domingo, 17 de março de 2024
domingo, 10 de março de 2024
Eu vivo sempre no mundo da lua
Meu
filho ensaia um solo em sua guitarra. A música me trouxe lembranças daquele sábado,
em julho de 1969. Alguns dias depois eu completaria meus seis anos de idade. Um
ano antes, minha mãe e uma cartilha “Caminho Suave” abriram um novo mundo para
mim: além de ouvir o que se passava no rádio e no nosso televisor Philco Solid
State, eu já conseguia decifrar algumas notícias e os caracteres que percorriam
a tela em preto e branco. Também das revistas e jornais.
Tudo
se transformava rapidamente. Criança, eu não percebia muito do Regime Militar
implantado no Brasil. Não sabia o que era censura, até o dia em que minha
professora, no ano seguinte, explicou-me para que serviam os rótulos da Censura
Federal exibidos antes de cada programa: se podia mostrar na TV o que não fosse
contrário ao Governo. Talvez tenha sido por isso que na mesma época canções
como “Eu te amo meu Brasil” passaram a ser cantadas nas escolas.
Meu
pai trabalhava muito. Comprara nossa primeira casa e juntava dinheiro para adquirir
a sua tão sonhada Aero-Willys 65. Guardávamos o dinheiro em casa, numa lata depositada
sobre o balcão do armário da cozinha. Ela se enchia de cédulas de dez cruzeiros
novos. As notas de maior valor na época, continham, além do “carimbo” que
eliminou três zeros, a figura de Santos Dumont estampada na frente e seu 14 Bis
no verso. Eu admirava as chancelas do Presidente do Banco Central e do Ministro
da Fazenda e sonhava um dia assinar minhas próprias cédulas.
Naqueles
dias, meus pais se preparavam para a festa de casamento de uma das filhas de
nossos antigos vizinhos, uma família descendente de imigrantes italianos.
Minha
mãe escolheu, numa revista com catálogo de roupas, um conjunto de blusa e
maxissaia. As mulheres mais ousadas usavam minissaias. Os botões eram alguns
dos detalhes mais importantes na vestimenta feminina. Meu pai passou a cultivar
um bigode fino, comprou um terno, camisa e abotoaduras.
Poucos
dias antes daquele 20 de julho, meu pai ganhou de presente um compacto do grupo
“Os Incríveis” com a regravação de uma música instrumental chamada “O
milionário”. Só havia um problema: não tínhamos uma vitrola para tocá-lo.
Ouviríamos pela primeira vez na festa de casamento, pois era certo que lá
haveria uma, de alta fidelidade.
Vivíamos
uma “revolução” política, o Milagre Econômico Brasileiro, uma efervescência
cultural: com a realização de festivais da canção (meu primeiro caderno tinha
uma fotografia de Chico Buarque na capa e na contracapa a letra de “A Banda”,
vencedora do festival de 1966), movimentados por vaias e aplausos, motivados
por pensamentos políticos; com a influência da Jovem Guarda inspirada no
Beatlemania e com uma identidade brasileira surge a Tropicália, misturando
ritmos e estilos. Tudo isso, só fui compreender mais tarde.
Chegou
o dia do casamento de Pierina. Na festa muita música e gente que falava alto, com
sotaque e com as mãos. Num evento como aquele, não havia muita ocupação para os
pequenos. Eu fui salvo por um aparelho de TV, pendurado num galpão da casa da
família.
A
música se alternava entre tradicionais italianas, canções italianas com versões
em português, MPB e Jovem Guarda. Eu, “escondido” debaixo de uma mesa, com a
barriga cheia de tubaína, tentava ficar o mais próximo possível da televisão,
que durante o dia todo fazia chamadas para a chegada do homem na Lua. Eu me
esforçava para ouvir a narração de Hilton Gomes em meio as interferências da
transmissão e aos gritos dos jogos de cartas, embalados por muito vinho e pelas
canções reproduzidas na vitrola.
Poucos
na festa prestaram atenção, mas eu fui uma das 600 milhões de pessoas que assistiram
aquela transmissão ao vivo, uma das primeiras, no mundo inteiro. Hoje parece
uma coisa muito simples, pois cada um faz a sua própria transmissão,
instantaneamente, no seu smartphone, para qualquer lugar do mundo, mas naquela
época, transmitir ao vivo era um grande feito. Transmitir diretamente do
espaço, da superfície da Lua, mais ainda.
Me
esforcei para ficar acordado, até às 23h56min, quando finalmente Neil Armstrong
deu seu “pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a
humanidade". Meu pai, no exato instante, com ajuda do noivo, colocava “O
Milionário” para tocar.
O
presidente americano Richard Nixon realizava o sonho de seu rival John Kennedy
de colocar o homem na lua até o final da década de 1960 e “superar” os russos
na Corrida Espacial, durante mais um episódio da Guerra Fria. Falou de seu
gabinete na Casa Branca diretamente com Armstrong, Audrin e Collins, os dois
primeiros na superfície da Lua.
No
rádio, a chegada do homem à lua foi eternizada pela narração de um jornalista
da Rádio “Voz da América”, que dizia em uma gravação, transportada para o
vinil: “Você sentiu, ao vivo, todas as emoções da descida dos primeiros homens
no satélite da Terra. Viveu com eles este momento histórico de absoluta
grandeza. O que você ouviu hoje é notícia, amanhã será documento. Guarde,
portanto, essa gravação e no futuro, mostrando-a aos seus netos, voltará a
sentir orgulho de ter sido contemporâneo da conquista do espaço”. Acredito que
depois disso eu tenha pegado no sono, pois só lembro do dia seguinte na casa de
minha avó.
Desde
então, a Lua me fascina. Durante bons anos de minha infância pilotei
espaçonaves feitas a partir de cadeiras de cozinha e viajei no espaço sideral
formado por cobertores. Acredito que tais lembranças inspiraram algumas de
minhas histórias de ficção científica, desafiaram a minha imaginação e a de
tantos outros. A conquista da Apollo 11 nos deu maiores esperanças de nos
lançarmos com mais ousadia ao espaço, pois a curiosidade humana transforma a
Terra num lugar pequeno para a nossa inquieta mente, que faz com que a nossa
imaginação não tenha limites.
Vivo
sempre no mundo da Lua, com a esperança de que a natureza humana não nos torne
extintos antes de consolidarmos o nosso caminho no espaço.
Meu
filho desconecta a guitarra. Solar “O milionário” era um de meus sonhos, não
tive habilidade suficiente. Ele fez por mim.
sábado, 9 de março de 2024
Decisões, decisões
Sentado num dos bancos da estação, Pedro
observa, distraído, a chegada de um comboio vazio, remoendo pela milésima vez o
seu dilema: ficar ou partir?
Fora sempre o tipo de pessoa de se deixar
“ir na maré”, mas desta vez não via outra solução, tinha mesmo de tomar uma
decisão. Só que ao fim das duas semanas que lhe tinham concedido, muito a
custo, estava ainda mais confuso do que quando começara.
Fizera tudo de que se lembrara para o
ajudar a avaliar a situação, mas o prazo estava o fim, tinha de dar uma
resposta final daqui a menos de uma hora e não fazia a mais pálida ideia de
qual seria.
Amigos e conhecidos não tinham sido de
grande ajuda. Contactara todos de que se lembrara, alguns, até, que não
contactava há anos, mas, infelizmente, ao contabilizar as poucas opiniões
recebidas, havia tantas a favor da partida como contra.
A família, bom, essa estava farta das suas
indecisões, do seu eterno saltitar entre opções ao sabor do último a falar,
muito francamente a opinião geral era de que era mais do que altura de ser ele
o responsável por decidir a sua vida. Tinham-se, pura e simplesmente, recusado
a opinar, particularmente a mulher. Mas esta tinha boas razões para isso,
ajudara-o em várias ocasiões similares no passado e depois vira-se a ser o alvo
do seu descontentamento quando as coisas não tinham corrido como imaginara. E
nunca corriam, inevitavelmente, porque ele nunca tinha uma visão clara do que poderia
acontecer.
Como agora. Esta oferta de emprego era
muitíssimo tentadora, bom salário, despesas de estadia pagas, um país que
sempre quisera conhecer e, como bónus, um certo ar de aventura com que sonhava
vagamente desde miúdo. Mas havia a distância, a separação da família, a falta
de comunicações regulares, os maus cuidados médicos, ou antes, a ausência deles,
e, acima de tudo, o possível perigo de se vir a tornar um alvo por ser
estrangeiro.
Por outro lado, ficar significava manter o
seu ambiente familiar e o conforto da rotina, isso se nada acontecesse à
empresa que, bem o sabia, passava atualmente por um mau momento. Mas podia ser
que as coisas se endireitassem, o mesmo acontecera dois anos antes sem
consequências de maior, podia ser, até, que lhe oferecessem finalmente um vínculo
permanente.
Rotina? Ou salto no escuro? Que decidir?
Ouviu então o comboio que vira chegar
vazio, agora quase cheio, dar o sinal da partida. E foi quando se decidiu, usá-lo-ia
como símbolo da sua partida iminente. Não seria, certamente, um critério pior
dos que adotara no passado e podia muito bem ser que o resultado fosse bem
melhor.
Luísa Lopes
Imagem feita com QuickWrite
domingo, 3 de março de 2024
ALGUMA COISA PASSADA
Um dos rapazes que ali estava
tinha sono. Era madrugada de um dia qualquer que nenhum deles se lembra mais.
Ali sentados na calçada já não esperavam mais nada de ninguém nem de nada. No
entanto o sangue etílico os incitava a fazer algo de inusitado que, diante da
impossibilidade de realizarem, se recusavam também a ir para casa.
Aquela
cidade parecia inexistir. Nenhuma pessoa na rua além dos três, que sabiam que
naquelas casas havia o pulsar da vida e que talvez uma nova vida se insinuasse
num coito anônimo em andamento.
Nisto
chegou um quarto rapaz levado por um quinto. Cumprimentaram-se em silêncio e
dali todos foram embora como que levados por um pacto sinistro que se fazem
entre bêbados ou talvez pela própria ausência de perspectivas.
Naquela
noite (o que restava dela) Carlos dormiu relativamente bem e o sono avançou
pela manhã. Quando acordou não tinha perdido nada. Almoçou como se aquele
almoço fosse o primeiro desde a sua chegada, assim fazendo tinha a impressão de
que chegara naquele dia e a noite anterior não fora perdida.
Cuidou
então em preparar o momento a vir. Deitou-se novamente sem ter sono ou se tinha
não soube, pois não dormiu. Deitou-se apenas porque queria fugir do tempo e do
tédio que o ameaçavam de aniquilamento. Mas cansou-se de tudo e saiu pela
chuva, encontrando os dois rapazes da madrugada. Juntos, eles se exilaram de si
mesmos numa mesa de bar reservada por concessão do proprietário que (conhecedor
da mania dos três em se isolarem) queria tê-los como fregueses. A despesa que
faziam era considerável.
A
noite chegou e os encontrou ébrios de copos, músicas que cantaram e conversas
muitas. Aproximava-se o momento e Carlos não teve tempo e nem paciência para
tomar banho. Chegando em casa comeu da sopa que havia e quando foi fritar um
ovo se atrapalhou: a sopa derramada na gaveta de onde fora tirar uma colher era
um sinal dele e de sua vida que escorria neutra. Acabada a refeição, Carlos se
dirigiu à rua depois de pegar um livro. Passando por uma padaria comprou um maço
de cigarros e destinou-se a casa dela sem a certeza de que devia fazê-lo.
-- Ela
não está.
-- Obrigado. Volto depois.
Carlos
sentou-se numa praça aparentemente deserta nas imediações para esperar. O livro
deixado a um canto do banco. Fazia uma bela noite e ele pôde verificar a lua e
dois velhos que, sentados no banco ao lado, conversavam qualquer coisa a que
não deu atenção. Os olhos presos ao relógio.
Não
havia perdido nada até que duas mulheres (ou seriam crianças?) da janela, com
seus alardes, anunciaram-no e a todos quanto houvesse, a queda de um homem na
rua. Carlos o reconheceu e foi ao seu encontro, levando-o bêbado ao seu barraco
sem luz e esperanças. Deixou-o na cama que ocupava todo o espaço daquele
quarto. Minúsculo barraco para quatro. Seriam seis, não houvesse a morte de
dois filhos por inanição. A mulher do homem e os dois filhos pequenos que
restavam receberam-no sem o menor sinal de espanto.
--
Isso acontece todos os dias, disse a mulher resignada. Você sabe como é... já
expliquei pra ele, mas de que adianta? Agora a pouco quando vinha, vi ele e um
outro de chapéu de feltro com os copos até aqui de pinga.
Aquele
homem, Zé, era subempregado de um órgão público. Pagavam a ele o que queriam e
o que pagavam não era nada. Mas o Zé não podia reclamar, pois senão nem isso. Esteve
algum tempo em São Paulo como empregado (quando se conseguia serviço) da
construção civil. Mas foi sendo mandato embora daqui pra lá, de lá pra cá, até
que chegou aqui: cidade onde nascera e que confessava gostar. Afinal tinha sua
mulher, seus filhos, aquele barraco e uma fome permanente. Mas são muitos os
Zés espalhados pelo Brasil que, inevitavelmente, um dia irão se juntar. Não
pode estar distante este dia. A lua cheia, quase explodindo de ódio, era uma prova
disso.
Carlos
deixou o barraco com aquela tênue luz de uma lamparina e uma ainda mais tênue
esperança de melhores dias. Mas a lamparina insistente queimava o querosene e o
fogo dela há de incendiar os povos para esta realidade zé-brasileira-mundo.
Ainda
naquela hora, Carlos não havia perdido nada (ou quase nada) de si mesmo.
Anterior a tudo seguiu para a casa dela, Mariana. O livro na mão trêmula e esta
num corpo em expectativa. Mas era sempre assim. No livro uma ligeira, certa
impressão de ser ridícula, dedicatória.
-- Ainda
não voltou. Deixa recado?
--
Não. Encontro-a por aí. Obrigado.
Não
havia perdido nada e ainda era tempo de receber alguma coisa daquilo que,
deliberadamente, ofertara. Mas Carlos não sabia. Sempre foi bastante ingênuo.
Dedicou-se à essência de si mesmo e se esqueceu de tudo, inclusive da
existência. São coisas indissociáveis, mas há uma ordem de precedência segundo
um filósofo e que Carlos desconhecia ou voluntariamente ignorava.
Encontrou-a
num lugar onde não se sentia bem. Mas tinha que ir até lá. Era onde poderia
encontrá-la e ele queria encontrar-se com ela. Contrariando a intuição de
Carlos, bastaram algumas palavras para ele perceber que já era tarde demais
para tudo. Havia um abismo e isto era o que havia. Disse a ela algumas poucas/bobas
palavras de praxe e isso foi tudo o que disse. Estava acabado.
Carlos
desceu a calçada até o bar onde estavam os dois rapazes. Expôs a eles alguma
coisa do ocorrido, bebeu dois copos d’água e, deixando com eles dois cheques,
foi embora. Sentou-se à porta de sua casa sem coragem para entrar. Se o
fizesse, haveria uma série de perguntas para as quais não tinha respostas.
Estava confuso, mas não tardou muito em se recolher. Deveria viajar na manhã
seguinte (se houvesse manhã seguinte, é claro). O relógio importunava-o com
aquele maldito barulho. Pensou em jogá-lo fora, mas não passou daí.
No
quarto, a cama de casal era demais para seu pequeno corpo, posto que já o
sendo, ainda se sentia menos. Nas paredes desgastadas um quadro de uma santa já
um tanto descrente de sua santidade ao vê-lo. Deteve-se por alguns instantes na
foto sorridente do dia do casamento. Aquilo o reconfortava em parte. Sentiu que
nem tudo estava perdido para todos, na verdade estava acabado.
Pela
veneziana entrava um pouco da luz que emanava de um poste em frente. Fechou as
vidraças como se fechasse a si mesmo. O cinzeiro acusava o quarto cigarro e o
relógio assinalava 3 horas da madrugada. A insônia e o peso de tudo
exasperavam-no. E depois aquela dívida que ele tinha. Amanhã viriam os credores
a despeito de tudo. Ignoravam tudo, menos as dívidas. Mas haveria de arranjar
um jeito.
O
dente podre e a cabeça oca lhe doíam. Tomou um analgésico e um copo de
erva-doce. Isto acalma e dá sono, disse-lhe a mãe, preocupada com os fatos
evidentes da desgraça do filho, mesmo sem conhecer as verdadeiras causas que
determinavam isto ou aquilo. Diabos, mas ele também não falava, não se abria.
Estava arruinado e todos sabiam disso, mas não havia como ajudar.
Voltou
para a cama e acendeu outro cigarro. O dia amanhecia e nada de sono. O dia amanhecera
de todo.
Desistiu
da viagem. Trabalhar não pôde. Esqueceu-se de tudo e pegando uma caneta
escreveu no papel higiênico: “Se algum dia eu me arrepender de alguma coisa,
não vou culpar a mim mesmo e nem aos outros. Não vou culpar ninguém. Vou apenas
justificar-me perante as diferenças individuais”.
Leu e
releu o escrito. O pensamento não era de todo ruim, mas ficou em dúvida quanto
ao caráter genérico ou específico do mesmo. Usou o papel para o fim que lhe é
destinado, puxou a descarga e desfalcado de si mesmo foi almoçar.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Forjando Alianças
Na Madrugada dos Tempos - Parte 19 |
Para vencer - material ou imaterialmente - três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte.
Fernando Pessoa (1888-1935)
Escritor português
Mirsulo estava feliz. Aqueles homens e mulheres, apesar de culturalmente mais atrasados, recebiam-nos como irmãos e, principalmente, salvaram a vida do primogénito. É verdade que tinha muitos filhos das suas quatro esposas, mas Tibaro, além de mais velho, sempre fora o seu favorito. Era aquele que lhe recordava ele próprio, quando era mais jovem.
Olhou Erem de perfil, enquanto este contava uma peripécia de caça a Savirio. Era um rosto de linhas firmes, nariz forte e queixo bem delineado. Os seus olhos castanhos olhavam diretamente nos do seu interlocutor, sem se desviarem. Gostou daquele homem assim que o viu; alguém que se preparava para se defender de um grupo de jovens guerreiros armados com um bando de velhos, mulheres e crianças…, mas alguém que se defenderia mesmo assim, nunca se renderia sem luta. Naci, o filho, era sem dúvida da mesma cepa, embora talvez um pouco mais impetuoso.
— Tenho uma oferta para te fazer. — Mirsulo interrompeu Erem, que o olhou com curiosidade. — Salvaste o meu filho, um estranho, sem esperar nada em troca. Quero oferecer-te uma filha! Desejo que o teu filho Naci, sei que não tem mulher, tome como esposa Tuana, uma das minhas filhas. Será muito bom ter um neto com o sangue de tal bravo.
Se Savirio o olhou com incredulidade, Erem olhou com satisfação.
Foi o curandeiro quem primeiro reagiu à proposta: —Uma das tuas filhas? Para viver no meio… deles?
— Sim. — O chefe hati estava decidido e encarou o seu companheiro de viagem com uma expressão que o silenciou. — Mandarei um dos meus construtores para construir uma casa digna da filha de Mirsulo. — Depois tornou o olhar para o chefe de Barinak. — Isto, se concordares.
— Será uma grande alegria receber a tua filha, que será como se a minha fosse. — Afirmou Erem alegremente. — O teu construtor terá muitos ajudantes.
— Quero também propor-te outra troca. — Mirsulo estava imparável. — Vejo, pela variedade de carnes salgadas que me apresentas, que tens acesso a abundância de sal; que queres trocar por alguns cestos de tempos em tempos?
— O sal que temos vem da grande água a dois dias daqui. — Esclareceu Erem simplesmente. — Os comerciantes que o tiram da água trocam a qualquer um.
— Sim, eu sei. — O chefe hati sorriu. — Mas fica a dois dias de viagem para ti, para mim são mais de quatro e outros tantos de volta. Antes, íamos a uma mina de sal a menos de três dias para Ner [1]de Hatiweik. Há algumas luas, um grande bando de nómadas apossou-se da aldeia e da mina e não negoceiam, ou simplesmente pedem coisas impossíveis. Se trocasses sal comigo, os meus carregadores fariam apenas dois dias de viagem. Que quererias em troca?
Erem fitou o rosto largo e sincero do seu homólogo enquanto pensava se deveria pedir já o que lhe interessava, ou se começaria por outra coisa qualquer. Após uns segundos, como impaciente que era, resolveu ir logo diretamente ao assunto: — Quero saber como se consegue isto. — Apontou a reluzente placa de cobre, decorada com gravações, que Mirsulo trazia ao peito.
Savirio olhou com espanto para Erem e depois para o seu chefe, com a expressão: “Eu não te disse?”
O chefe dos hati olhou para a placa enquanto a acariciava pensativamente. Depois, num gesto rápido, tirou a tira de couro com que a suspendia ao pescoço. Sob o olhar atento do seu curandeiro e, exibindo um sorriso nervoso, colocou-a em Erem que ficou visivelmente agradado.
Lemi bateu as palmas com satisfação pelo gesto.
— Salvaste o meu filho! — Reafirmou Mirsulo gravemente. — És meu irmão! — Agora diz-me, irmão, queres o quê exatamente? Estes adornos? — Exibiu as pulseiras que subiam em espiral pelos braços em grossos fios.
— Preciso de armas melhores. — Respondeu Erem, aliviado por poder falar francamente. — Temos sido atacados e roubados por estranhos que trazem armas como as vossas; as lanças espetam-se melhor e as facas não se partem e são mais compridas.
— Obter o cobre não é fácil. — Explicou o chefe hati. — É precisa grande magia para roubar o sangue de fogo das pedras.
— Magia? — Lemi e Erem surpreenderam-se.
— Sim, claro, como acham que conseguiria fazer uma coisa tão dura como pedra? — Savirio adiantou-se. — Só os mágicos é que atiram pedras para o fogo e transformam-nas no sangue da terra. Um líquido grosso que corre em brasa e queima tudo em que tocar.
— Também temos sido atacados aqui e ali por esses bandidos. — Informou Mirsulo, desviando a conversa. — Não se atrevem muito próximo de Hatiweik porque sabem que está bem protegida atrás dos muros. Mas atacam as casas dos agricultores que existem em volta, matam, roubam e destroem tudo. São os mesmos que se apoderaram das minas de sal. Os meus espiões dizem que vieram de Ner, são muito numerosos e não param de chegar mais.
— Deveríamos tê-los atacado quando se apoderaram das minas e eram menos. — Censurou Savirio. — Conforme te recomendaram o teu filho e os chefes guerreiros.
— Mesmo quando eram menos, — Mirsulo não ficou contente com a censura do curandeiro —, continuavam a ser muitos e morreriam muitos dos nossos para os destruir. Os nossos homens estão habituados a exigir tributos a comerciantes reticentes, castigar ladrões e a expulsar desordeiros. Lutar contra guerreiros armados e acostumados à guerra será muito diferente.
— Antes o problema era difícil, agora é praticamente impossível… — insistiu Savirio.
— Chega! — Ordenou o chefe hati estendendo a mão com a palma para baixo na direção do seu subordinado. — Se se tratasse de um simples bando de salteadores já estavam eliminados. Mas são um número muito grande de guerreiros, que correm nas costas de cavalos, armados com lanças e flechas.
— Cavalos? — Lemi arregalou os olhos? — Como conseguem subir nas costas dos cavalos?
— Também não sabemos. — Mirsulo mostrou-se desanimado. — Sempre usamos burros como animais de carga, alguns deixam-se montar, principalmente aqueles que nascem dos que apanhamos selvagens. Mas os cavalos, é quase impossível apanhá-los com vida, quanto mais montá-los.
— A solução é unir forças. — Sugeriu Lemi, calando-se de imediato e desculpando-se com um olhar a Erem.
— Estariam prontos a lutar ao nosso lado? — Mirsulo mostrou-se interessado. — Há outros povoados nossos amigos… realmente, se nos uníssemos todos…
— Teria de falar com todo o meu povo. — Erem fez uma expressão de desagrado. — Não poderia simplesmente dizer-lhes para caminharem para a morte.
— Ou para a vitória. — Acrescentou Savirio.
Fez-se um silêncio pesado entre eles enquanto cada um se refugiava nos seus próprios pensamentos.
Erem interrompeu as meditações: — Mas quanto ao cobre. Que temos de fazer para o conseguir?
— Em troca do sal… — começou Mirsulo fazendo uma expressão pensativa —…, poderemos dar-vos pontas de seta e de lança. O problema é que não há tanto cobre como possas pensar. Não são quaisquer pedras que os mágicos querem, têm de ter uma cor e um aspeto que eles exigem. Temos de escavar muito para encontrá-las, outras vezes, são trazidas por comerciantes provenientes de Hewsos[2], mas não dizem de onde vieram exatamente.
Zia, ultrapassado o aborrecimento, regressou ao convívio e sentou-se pesadamente ao lado de Savirio, para desagrado deste. Erem dedicou-lhe um sorriso triste a que ela correspondeu.
— Os teus mágicos poderiam ensinar-nos quais as pedras a procurar… — sugeriu Lemi, espreitando por cima da cabeça de Zia.
O curandeiro hati voltou a deitar um olhar de alarme ao seu chefe.
— Estamos a falar sobre o cobre. — Erem informou a mulher. — Mirsulo diz-nos que são mágicos que produzem o cobre, queimando umas pedras.
— Nunca ouvi falar dessa magia. — Entendida no assunto, a xamã emitiu a sua opinião. — O poder dos deuses é pedido em muitas ocasiões, nem sempre conseguido. Que fazem essas pedras queimadas?
— Transformam-se no sangue da terra! Vermelho, fumegante e queima tudo em que toca. Quando arrefece fica duro como a pedra. — Explicou Savirio, com ar de superioridade.
— E qual o deus que abençoa essa transformação? — Questionou ela assumindo a mesma postura.
— Mas que queres saber tu, mulher, destes assuntos de homens? — A agressividade do curandeiro regressara.
— Não me vais voltar a fazer sair da minha própria casa! — Rosnou Zia entre dentes, mas suficientemente alto para que os mais próximos ouvissem. —Tal como o sol e a lua, também o homem e a mulher foram criados diferentes e iguais no Primeiro Amanhecer! Se Da Pater é o deus pai, Da Mater é mãe, irmã e esposa! A mulher não está abaixo do homem, mas a seu lado! — Os seus olhos pareciam soltar chispas na direção de Savirio. — Eu sou a sacerdotisa de Swol, xamã do Clã do Leão das Montanhas. Sou a voz e a mão do deus. Sou xamã, caçadora, guerreira e mãe, mais do que tu alguma vez serás! És meu convidado e ouço o que dizes, tu deves respeitar a mim e a minha casa!
— Ouço-te, esposa de Erem e xamã! — Mirsulo tomou a dianteira rapidamente, calando Savirio com um gesto. — O curandeiro-maior do meu povo respeitará a tua posição, apesar de seres mulher e isso ser diferente dos nossos costumes. — Depois olhou diretamente para ele. — Se ele não se sentir bem, tem a minha autorização para se retirar. Não te voltará a afrontar.
Savirio corou da cabeça aos pés e olhou o seu chefe de soslaio por várias vezes sem conseguir evitar de resmungar baixinho o seu descontentamento.
— Para responder às tuas perguntas sobre os deuses que presidem à transformação das pedras — retomou Mirsulo — é Tarunte, claro, deus da guerra do fogo e da vida.
— Tharun é o deus do trovão, da guerra e do fogo, sim. — Respondeu ela, corrigindo o nome. — Mas não o da vida. Da Pater e Da Mater criaram o primeiro homem e a primeira mulher, eles sim, os deuses da vida e puseram-nos à guarda de Swol e Mensis. O Senhor do Dia ilumina-nos e faz crescer as colheitas e os animais e a Senhora da Noite vela sobre a escuridão e guia a fertilidade da mulher que dá os filhos dos Homens.
— Se teu esposo permitir — num ato de apaziguamento, Mirsulo soltou uma das suas pulseiras de cobre em espiral e ofereceu-a diretamente a Zia, depois de um rápido olhar a Erem — recebe este penhor do meu respeito pela xamã e voz dos deuses do Clã do Leão das Montanhas.
[1] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal norte) por oposição ao sol do meio-dia.
[2] Proto Indo-Europeu: Madrugada é uma das deusas do panteão, mas também um dos pontos cardeais que dará origem ao Leste.
Manuel Amaro Mendonça
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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024
Dos Males o Maior
Verruga,
berruga, cravo ou cancro, assim aludiam ao mamilo numa de suas sobrancelhas. De
rosto fino e acutilado, feito joia o defeito avultava sobre a vista. Era mole e
arredondada, e só os rosas abrandavam, dir-se-ia, sua existência. Gleise não se
perturbava com a imperfeição, entretanto, ou sequer escutava as recriminações e
exortações da mãe e das tias, instando-a a extirpar este outro excesso de sua
carne. Ora, as cirurgias estéticas são acessíveis; ora, o rosto há de aperfeiçoar-se,
aconselhavam as senhoras, e ela, surda à censura e alheia ao argumento,
recusava os conselhos com estoica determinação.
Mas evite-se
o equívoco: Gleise não se constituía em pessoa rija ou inflexível e seria a
primeira a acusar a efêmera condição de nossas circunstâncias – ilustrada a
convicção quando ela, ao apaixonar-se por Evandro, reconsiderar sua atitude em
face à verruga e manifestar o desejo de suprimi-la. Assim deliberou após ouvir
Evandro segredar para as colegas do escritório o como lhe repugnava a nódoa em
Gleise.
Pela conversão
de propósito não se sentiu mais fraca ou inferior, não sentiu tampouco que se
curvava às exigências da vida ou às exigências de outrem. Entendeu-se, isto
sim, astuciosa por adaptar-se a uma dificuldade, versátil por contornar um
obstáculo, e no dia em que deitou na mesa de cirurgia, desnuda senão pelo
avental, a enfermeira denunciou as batidas em seu peito,
Que
coraçãozinho mais animado!
Amputado o
cancro, na pele subsistia uma linha branca e fina destinada a suavemente
esvanecer qual um amor de infância. Em virtude da escala de trabalho intermitente,
há muito não se deparava com Evandro, e malgrado conversassem por e-mails e
mensagens, malgrado existisse, entre os dois, afinidade, não mencionou o
procedimento cirúrgico. Desejava surpreendê-lo com a renovação, e assim, escudada
pelo imprevisto, conquistá-lo ou, no mínimo, interessá-lo.
Duas semanas
após a intervenção, assomou ela no escritório. Era outra: altiva e imponente,
com a confiança dos mártires prometidos ao calvário. Do lugar onde sentou-se na
sala de recreação, Gleise contemplou a alameda: sombras de jamelões enterneciam
o calor e amainavam o infinito de azuis não obstante manchassem, com seu fruto,
o que era impróprio à natureza. Evandro chegou minutos depois e, novidade, acompanhado
e de mãos entrelaçadas. Ante o curioso olhar de Gleise e demais colegas, disse,
Pessoal,
apresento-vos a minha nova namorada, Jeneci.
De rosto
fino e acutilado, em feições parecia-se com Gleise à exceção de uma, ou duas,
dessemelhanças: Jeneci não apenas ostentava uma verruga na sobrancelha, mas
duas, e ainda mais exasperantes e horrendas
Dos
ferimentos à unha causados por Gleise, Evandro perdeu um olho.
sábado, 17 de fevereiro de 2024
Três poemas de Alessandro Romio
Etiqueta
tem gente que põe na frente
um monte de nome antes de dizer o seu
gente que põe na mesa um monte de talher
antes de pôr comida no prato
gente que se senta muito longe
gente que fala muito baixo
e eu do meu lado
nem sempre sei o que faço
mas sei que fome não passo
e sempre que posso grito
e sempre que posso abraço
Apego ao uniforme
teus sapatos de cimento
as âncoras em teus cadarços
as correntes em teus relógios
os nós em tuas gravatas
os botões em tuas camisas
os arcos-íris em teus pijamas
zelar por tudo que impeça
teu corpo de vir à tona
Perdoa pai
sei que o senhor
criou o céu a terra
os bichos etc.
até acho bonito
mas o diabo é o dono
de todas as coisas que não existem
& sabe descrever em detalhes
essa felicidade que só eu imagino
terça-feira, 13 de fevereiro de 2024
Um Artista das Artes Manuais
Um
Artista das Artes Manuais
Júlio
R. é um artista. A natureza tinha-o favorecido. As suas mãos desenhavam como
ninguém, levavam o lápis para onde queriam que ele fosse. Faziam-no deslizar
delicadamente sobre o papel e um desenho nascia em toda a sua beleza.
Tem
cerca de 35 anos, mede cerca de um e setenta e cinco de altura, veste de forma
neutra, cabelo curto, barba feita e sempre longe das confusões. Passa despercebido
e faz tudo para não dar nas vistas. Desde muito cedo primou pela discrição.
Fez
os seus estudos obrigatórios e depois entrou na área das artes. Acabada a
aprendizagem dedicou-se ao desenho de rostos. Os traços e as sombras têm tal perfeição
que parecem rostos com vida.
Não
vende os seus desenhos, oferece-os. São o desenho e a oferta que vão dar origem
a uma outra arte, praticada por muito poucos. Uma é o complemento da outra.
Intrinsecamente nada têm a ver uma com a outra, o elo está na sua
complementaridade. É do complemento artístico que Júlio R vive. Bem podia viver
dos seus desenhos, mas é a outra arte que lhe dá gozo, que o sublima, que lhe dá
pica, que o realiza.
Na
criação das obras de arte são as mãos que detêm o poder, porque são elas que
pensam e executam. Idealizar o desenho da obra, traçar as suas linhas,
arquitectar um plano, encher tudo isto na imaginação não lhe rouba muito tempo.
Basta um caderno, um lápis de carvão e as suas mãos.
Muito
artistas executam a sua obra numa oficina, onde a matéria espera, sem vida, a
existência de uma nova vida. Outros criadores trabalham sem oficina, são os
artistas de rua, que trazem sempre consigo a matéria-prima, que vai dar origem
à arte
Júlio
R é um pouco de tudo. É um artista de todos os espaços, a sua oficina mora em
todos os lugares, onde estejam pessoas. As pessoas são o início e o fim da sua
arte, sem elas não havia criação.
Apesar
de poder trabalhar a sua arte em qualquer espaço, o exercício artístico é feito
no Metro, porque é neste meio de transporte que circula muita gente, os
passantes ocasionais e os viajantes residentes. É nestes que se centra, em
primeiro lugar, o foco de atenção do artista, com o objectivo de escolher a
pessoa certa. Os viajantes de curta duração só têm interesse para finalizarem a
actividade artística.
A pessoa certa é aquela que viaja no dia-a-dia
e de preferência durante um longo percurso. Ela será o Alfa e o Ómega da sua
criação, porque nela se vai materializar a sua obra de arte. Ela vai ser o
modelo.
Possuidor
de um passe que cobre toda a área metropolitana pode viajar, vá para onde vá o
Metro, sem tempo contado. Também pode entrar numa qualquer estação e ir por aí
fora, saltando de zona em zona.
Quando
pretende iniciar a criação, entra numa estação senta-se num lugar estratégico,
onde possa ter uma visão de conjunto e estuda ao pormenor os viajantes. Durante
uns dias viaja sempre no mesmo lugar, às mesmas horas, até se fixar
definitivamente num dos viajantes residentes. É esse que vai ser o seu alvo. Procura
reter tudo acerca da personagem: perfil do rosto, tipo de olhos, cabelos, rugas
e também impressões sobre o seu comportamento e modo de estar, que vão dar
consistência ao trabalho.
Em
casa senta-se no estúdio e começa a traçar num caderno as notas recolhidas e,
pouco a pouco, a reprodução do rosto da pessoa eleita aparece em esboço.
Os
traços finais da obra serão riscados no metropolitano e é aí que a obra fica
pronta.
No
dia da revelação da obra de arte e antes de a dar a conhecer analisa o ambiente
da carruagem onde se instala, estuda tudo ao pormenor, quem vai, quem entra,
onde sai, o que traz consigo, o que veste, por aí fora, sem esquecer de
analisar o perfil comportamental de todos.
Quando
acha que está tudo em conformidade com o seu plano de ataque, Júlio R, levanta-se,
dirige-se à pessoa desenhada e, com toda a pompa e circunstância, oferece-lhe o
desenho do seu rosto, fazendo essa oferta com tanta eloquência que chama a
atenção dos passageiros que, levados pela curiosidade, logo se interessam pelo se
está a passar.
Assim,
um considerável número de viajantes acotovelam-se para ver a obra-prima e um
coro de exclamações aplaude a arte do artista.
Este,
aproveitando o momento de diversão, sem que ninguém dê por ele, sai de mansinho
na estação acabada de chegar.
Deixando
para trás as manifestações de apoio à sua arte, sobe as escadas e sai para a
cidade, levando com ele, uma carteira, a obra que as suas mãos de artista
tiraram artisticamente do casaco de um dos incautos admiradores do seu desenho.
Quando
está suficientemente longe da acção, abre a carteira e tira o que acha que é o
justo. Paga-se somente pelo seu trabalho de artista. Se o dinheiro não chega
para pagar, faz um desconto e fica tudo arrumado. Não mexe em mais nada, não
olha para mais nada do que está na carteira. Se encontra um agente de
autoridade no caminho entrega-lhe a carteira, dizendo que a encontrou no chão.
Caso contrário, dirige-se à bilheteira de uma estação, entrega a carteira, “achada”
a um funcionário e desaparece silenciosamente.
É
o único artista que recebe um valor pelo seu trabalho de uma pessoa que não
fica com a obra e que nem conhece nem o artista nem a pessoa que fica com ela.
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