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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A Última Valsa


Edmundo, estatura média, rosto macerado de rugas lavradas por sessenta e oito anos de vida, olhou para a entrada da casa onde tantas vezes estivera. A música escutava-se cá fora e as batidas sentiam-se no peito. Estava hesitante. Há vários anos que não entrava naquele sítio, onde vivera tantas horas de diversão. Parecia tudo na mesma, ele é que era uma sombra do que fora.

Olhou para os seus dois amigos, como que para confirmar se o deveria fazer. António fez um sorriso triste, mas incentivador e Joaquim, de lágrimas nos olhos, acenou-lhe afirmativamente e deu-lhe uma pequena palmada nas costas. Ambos eram mais novos que ele uns bons dez anos, mas, desde que se conheceram numa escola de dança há mais de duas décadas, tornaram-se inseparáveis e as respetivas mulheres amigas para sempre… até Alice ter partido.

Aceitou o incentivo e sentindo o coração bater apressadamente, como se fosse outra vez um adolescente, lançou as pernas a subir a escada que levava ao primeiro piso, onde há muitos anos se faziam aqueles bailes semanais.

A música ensurdecedora, o salão cheio, a multidão dançante, traziam um prazer e uma adrenalina que já não se lembrava como lhe faziam falta e como fizeram parte da sua vida durante uma grande extensão dela… sempre acompanhado da sua Alice. Desde a juventude, ambos jovens e virginais, dançavam na romaria da aldeia, ao som de bombos e violas desafinadas, tentando passar despercebidos das velhas comadres, que eram capazes de encher de epítetos pouco nobres, até a mais casta das criaturas. Depois, casados, continuaram a correr todas as festas que podiam, sempre que o tempo ou o trabalho deixavam. Quando migraram para a cidade, a mudança de ares obrigou à mudança de atitudes, mas a dança fez sempre parte das suas vidas.

O grupo de cinco ocupou a mesa previamente reservada, como sempre foi hábito. Edmundo ficou sentado, embevecido, a apreciar os dançarinos de diferentes graus de habilidade, que alegremente rodavam em volta da pista. Há quantos anos ele e Alice fizeram parte dessa mole humana, encantada pelos acordes mais ou menos maviosos dos músicos? Parecia uma eternidade, mas, na verdade, fora há apenas seis anos a última vez que ali estivera. A sua mulher, eterna companheira, já não aguentava sequer subir as escadas, os pulmões inexoravelmente consumidos pela doença prolongada que acabou por a levar.

  Os seus amigos rodavam alegremente na pista ao som das músicas por demais ouvidas e outras nem tanto. O grupo era desconhecido, afinal havia novidades naquele mundo, que ele achava, tinha parado no tempo com a sua ausência.

De súbito, Madalena, a mulher de António, possivelmente instruída por este último, veio buscá-lo para dançar. Ele olhou o amigo, surpreendido e deparou com um sorriso aberto e incentivador.

Lentamente avançaram para a pista, ela era uma bela e elegante mulher, um pouco mais alta que ele e o vestido justo fazia-a ainda mais deslumbrante. Edmundo sentiu-se muito feliz enquanto os acordes do bolero gradualmente acordavam em seu corpo o dançarino de outras eras. Dançaram mais duas vezes, apesar dos seus joelhos e costas rangerem de contrariedade.

Terminada a melodia, agradeceu à amiga e pediu para se sentar, para recuperar de um esforço a que já não estava habituado e uma vez mais, apreciou-a, satisfeito, quando ela partiu para nova dança, desta vez com o marido. Também Alice se preparava bem quando “iam ao baile”, conforme se referiam aos encontros mais ou menos semanais, nos salões de dança da região. Ela vestia os seus melhores vestidos, pintava uma pequena sombra nos olhos e dava um brilho nos lábios, que nunca fora de grandes pinturas. Mas para ele, era uma princesa a seu lado, que lhe concedera a subida honra de a acompanhar… mesmo quando o seu corpo começou a ficar pesado pelo descontrolo hormonal e mais tarde demasiado magro, por não conseguir alimentar-se.

Agora era Fernanda, a mulher de Joaquim, quem o convidava, também esse amigo estava feliz, porque ele assim o estava. Era uma forma de lhe darem as boas vindas ao grupo.

Dançaram um tango e logo de seguida uma valsa, para que se não adormecesse na pista e Edmundo teve de parar mais um pouco, com o velho coração a galopar furiosamente.

Sentou-se, com um largo sorriso de agradecimento para os seus grandes amigos, pois era a primeira vez que estava realmente feliz, desde que Alice caíra ao levantar-se da cama e não conseguira mais suster-se pelo seu pé. Este era o primeiro dia em que o seu sorriso era verdadeiro e não um pobre consolo para alguém que se finava a olhos vistos, numa lenta agonia de quatro anos, até se acabar de vez, há dois.

Mas hoje era um dia de felicidade e resolveu fechar os olhos um pouco, mantendo o enorme sorriso nos lábios. O seu corpo relaxou e sentiu uma grande paz.

Sonhava. O salão já não era o salão, era o imenso céu azul, onde fulgurava o sol, numa esplêndida tarde de verão. Os músicos não tocavam boleros, mas sim as pouco afinadas modas da sua juventude, onde conseguiu distinguir a rabeca do ti Feliciano e o tambor do Zé Pedreiro.

Os seus amigos aperceberam-se que algo não estava bem e chamaram-no e abanaram-no insistentemente. Ele não os escutava, não deixaria que o tirassem do seu sonho, nem quando um homem ajudou a deitá-lo e iniciou manobras de reanimação. Todo o salão parou, perante a agitação em volta de Edmundo.

Ele já não se interessava. Os dançarinos já não vestiam as roupas modernas e dançavam alegremente, levantando a poeira do chão de terra batida. De repente, lá estava ela a caminhar ao seu encontro; o vestido de alças aos quadrados vermelhos e as sandálias de couro da mesma cor. Os cabelos negros e longos que lhe desciam pelas costas, encimavam o belo rosto, sem mácula, da sorridente Alice com quinze anos. Ele ergueu-se, sem dores nem cansaços e viu que a mão que lhe estendia, não era esquálida ou peluda, nem manchada pela idade. E assim, sorrindo de felicidade, lançaram-se na dança, desfrutando da primavera da vida.









quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Obra de misericórdia

 

 

Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato:

— Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?

Era a sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade. Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes turísticos da zona.

— Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco — lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa, sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora, vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?

— Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então, agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente, escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal, mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.

— A sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte desdobrava-se em perguntas.

— Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma encomenda de uma peça para metro e meio.  Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.

— Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!

— Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete, ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.

— Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? — brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.

— Ah! Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical. Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”, não sei se conheces.

Com programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe oferecia.

— Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim fechado, mas público.

— Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em Roma.

— Mas isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? — admirou-se Duarte.

— Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração! Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!

— Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?

— Já leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.

Duarte começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.

  Parece latim, mas não me serve de muito… Já estou esquecido. O que é que isto significa?

— Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança o que for preciso.

— Filial?

— Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do verdugo, na visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia, “alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos, ambiguidades.

— Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da amiga.

— Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.

Duarte não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim. Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:

— A mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.

— Sobrinha!

— Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora. Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados a olhar para a cena pintada?

— Não sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás, parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas representando este tema. Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.

— Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel relevante na sua popularidade.

— Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha, se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar da jovem representada atirado para o alto — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio, acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para ela, há tanto tempo.

— Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão ou mais passado que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já tivera melhores dias.

Sabemos pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual. Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu. Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão suave e leitosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura terna:

— Chh! Doucement!

Duarte não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão. Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”, suspeitou Duarte, por fim.

Em breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além, tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.

Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo, lá do alto, tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente. E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.

Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para concluir o esboço da escultura, agora com conhecimento vivido de posições anatómicas e expressões faciais.

Joaquim Bispo

*

Este conto foi o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de leitores de Alcains, com a moderação da dinamizadora da comunidade e promotora da leitura Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul. O final foi, entretanto, objeto de afinação.

*

Imagem: Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.

Jardim Botânico Tropical, Lisboa. 

* * *







quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A DERRADEIRA VIAGEM

 



 

Três horas da tarde...  O sol escaldante de outubro, hoje, castiga mais que de costume. É um calor no limite do suportável, causa um imenso desconforto.

Dentro do ônibus, com poltronas quentes, sensação de incômodo, o roçar do plástico nas pernas, o suor teimoso, o cheiro acre de corpos ávidos por banho, tudo torna a viagem ainda mais cruciante. Nem as crianças param! O burburinho e a movimentação excessiva das pessoas provocam um desassossego no espírito que não sobra nem disposição para me concentrar na leitura.

A cada cinco minutos o ônibus para. É um sobe e desce sem fim. Em cada parada, a nuvem de poeira que sobe dos pneus em contato com a terra vermelha da estrada, envolve o ônibus, entra pelas janelas, e a situação chega a ficar desesperadora. O negócio é distrair a mente, tentar pensar em outra coisa...

Reparo na mulher sentada ao meu lado. Bem mais de cinquenta anos e, observando pelo semblante, não está nos seus melhores dias. De aspecto consumido, amargurado, frágil.  Alguma coisa lhe aflige... Puxo conversa. Falo do calor, do atraso das chuvas, e ela, dificultando o acesso, sussurra algumas coisas, completando as respostas com leves gestos e meneios com a cabeça.

De pouca prosa, uma pessoa incrivelmente humilde. Humilde na acepção completa da palavra: nos modos, na fala, no traje, e deixa transparecer também humildade de condição humana. Acho mesmo que está bem perto do miserável. Os pés enfiados em chinelos de borracha bem gastos, as roupas tristemente descoradas, as mãos enrugadas, calosas, unhas carcomidas. Fisicamente é um trapo! Mas o que mais me aflige são seus olhos! São terrivelmente descrentes, pedintes, sofridos.  

 

Queria tanto falar com ela! Mas como?! Sou tão sem expediente! A viagem será relativamente longa, e apesar da pouca conversa, consegui descobrir que vamos para o mesmo destino.

Noto que está remexendo a sacola. Que será que procura? Olhe só, é um rosário! Será que está com medo da estrada? Vou novamente tentar falar com ela. Se for medo, posso distraí-la, e até mesmo confortá-la!

Inútil... Recostou a cabeça, cerrou os olhos, mas sei que não está dormindo. Está rezando... Sei disso porque passa as contas do rosário por entre os dedos. Rezo uma Ave-Maria e cronometro o tempo. É o mesmo espaço de tempo que ela leva para passar os dedos de uma conta a outra.

 A viagem segue... Agora, além do burburinho torturante que não me deixa concentrar na leitura, ainda existe esta preocupação a me martelar os miolos. Queria tanto falar com ela! Pelas minhas contas já rezou o terço duas vezes. Continua com a cabeça reclinada e com os olhos fechados. Seus cílios estão úmidos... Tenho certeza de que sente vontade de chorar, de soluçar. Ou será que está chorando?! Chego a ficar irritada diante do cerco que ela criou, e mais irritada ainda diante da minha impotência.

Engraçado! A mulher deve ter adormecido. Já não corre mais as contas do rosário pelos dedos. O sono é mesmo mágico! Olhando agora, seu semblante não tem aquele amargor de antes, há uma aparente leveza nos traços do seu rosto. O corpo está relaxado, solto. Balança quase que suavemente, apesar dos solavancos do ônibus.

A estrada está uma lástima! Não sei se pela falta de chuvas, mas a terra muito batida deixa as imperfeições do terreno mais salientes. Talvez seja o excesso de calibragem dos pneus. Sei lá! Só sei que pula tanto que fica difícil equilibrar o corpo sobre a poltrona.

Maria Santíssima! Que sono profundo tomou conta da minha parceira! Nem se incomoda com o balanço do ônibus. Balanço é um termo muito suave, brando demais para descrever a situação. Na realidade mais parece um galope!

Acho que agora consigo ler um pouco. Afinal, minha preocupação não tem mais razão de ser. A parceira dorme calmamente, não me incomoda, não estou aflita.

Arre! Ainda bem que estamos chegando! Já se pode ver a cidade lá adiante... É muito bom chegar.

Fecho o livro, guardo-o na bolsa, passo um pente nos cabelos. Olho do lado. Minha parceira ainda dorme.

             ─ Senhora!

Toco-lhe o braço de mansinho para não assustá-la. Coisa horrível é acordar sobressaltada!

            ─ Senhora, já chegamos!

             Incrível a profundeza do sono! Inércia abissal!  Não consigo acordá-la...

             ─ Senhora, por favor, acorde! Já chegamos...

 Meu Deus, ela não acorda! Fico apavorada. O sono está muito estranho, já a sacudi de todas as maneiras.  As pessoas percebem a minha aflição, devo estar com a voz alterada! Em segundos, várias pessoas se juntam tentando acordá-la. Minha angústia cresce, percebo que não está apenas dormindo, algo mais sério está acontecendo! Esta aflição explode quando um homem, que após ter tentado acordá-la, diz:

            ─ Está morta! Esta mulher está morta!

Afundo-me no banco. Um gosto estranho na boca, uma sensação de fragilidade extrema, de desamparo, de incredulidade, um vazio imenso. Perdida em meus pensamentos não me atenho ao que se passa em redor. É muito confuso, vejo muitas pessoas, um corre-corre danado, vozes alteradas, todos falam ao mesmo tempo, todos querem vê-la, alguns se benzem...

Quando dou por mim, o banco ao meu lado está vazio. Ela se foi... Já havia ido mesmo! O sono é irmão da morte. Que morte santa! Será que foi quando seus dedos pararam de correr as contas do rosário?! Será que foi a morte que lhe deixou a feição mais leve?! Como não percebi... Por que não fez um sinal, não exalou um gemido, não pediu ajuda? Coitada, tal vida, tal morte. No banco, ainda amarfanhado pelo peso do seu corpo, entre as duas poltronas, o rosário caído. Ela mesma se abençoou...

             ─ Dona, o ônibus vai pra garagem! A senhora precisa apear...

 

 

                              Regina Ruth Rincon Caires                                                                            

 

 





domingo, 20 de setembro de 2020

A LÁGRIMA E O SÊMEN



“Narciso em férias”, o documentário do Caetano Veloso, ainda ecoava dentro de mim, quando lembrei do meu primeiro namorado: Rubens. Foi o primeiro amor, a primeira vez que um homem -  um menino afobado, atrapalhado e muito intenso - conhecia minhas entranhas em profundidade. Diferente da estreia das minhas amigas, foi bom, muito bom, bom demais. 

Por que Rubens sai do fundo do baú e encontra Caetano flanando pelas minhas veias? Estranho. Logo ele, o garoto bonito, que se esvaiu pelos destinos que o tempo e a vida cuidaram de dispersar.


 “Narciso em férias” me arrebatou, não com a inocência da minha primeira paixão pós adolescente, mas com maturidade de refletir sobre a vida. Durante um tempo que me soou eterno, as palavras de Caetano, seus silêncios, seus olhares, suas lágrimas e a clareza da sua fala baiana mansa e feroz me provocaram a assistir cenas reais. Nem precisei fechar os olhos. Bastou olhar bem para sua eloquência terna para ver o jantar do general torturante, o soldadinho incauto que lhe espetava o fuzil nas costas caminhando pelas alamedas pseudo bucólicas de um quartel, a imundície da solitária, as frases do jornal amarelo, o sargento que burlou o oficial do dia e permitiu que sua mulher Dedé passasse um tempo de amor e sexo com um prisioneiro que não sabia por que estava lá, a estupidez do relatório de tosca redação, o primeiro olhar para a foto da Terra tão distante daquela masmorra, o riso nervoso incontido, a lágrima transbordante, o sêmen jorrado. 

Tanta coisa a mexer comigo, tanta história bruta imaginada revelada tardia, tanta poesia, tanta tristeza, tanta ternura nos olhos de quem tanto sofreu sem mais nem porquê, porra, fui logo lembrar do Rubens.

No momento em que Caetano filosofa sobre a similaridade da lágrima e do sêmen, o choro e a ejaculação como duas explosões sinceras e expressivas do espírito que nos habita, o avesso do vazio a que ele fora submetido, lembrei que quando gozei logo na primeira vez, quando senti Rubens escorrendo para a fora de mim, melando meus pelos (afobado, não carecia tal precaução. Eu já andava com a pílula na bolsa), senti exatamente um incontido manifesto das entranhas imateriais, o chamado orgasmo compartilhado com um suposto grande amor. E cai em prantos na hora.

Hoje sinto que foi menos pelo Rubens, o menino bonito, estabanado e gostoso, meu troféu disputado pelas colegas da faculdade, e mais pelo divisor de águas que a vida tinha me apresentado.

Hoje acordei com saudade curiosa do Rubens. Tanto tempo. Tantas vidas se sobrepuseram sobre aquelas horas no motel. Mas eis que sou persistente. Eis que existe Facebook. Eis que uma avó cinquentona espera o marido e o filho que ainda mora em casa dormirem, para mergulhar no computador.

Rubens. De quê? Carvalho? Cardoso? Cordeiro? Cordeiro! Está aqui. Fartos cabelos prateados, fortão, malhadão, barba rente grisalha, rei leão afrodisíaco, cercado da mulher alourada, um casal e três crianças, netos, supus. Não me detive em detalhes, pedi para ser meu amigo. Ele topou na hora e, não demorou muito, apareceu no Messenger acenando com aquela mãozinha.

- Oi, Lucia!

- Lucinha, eu mesma.

- Tanto tempo!

- É, Rubens. A vida voa.

- Lu. Lulunática. Você me chamava de Bim.

- Isso. Bim. Bimbim.

- Lu, me diga. Por que de repente? A essa hora?

- Insônia.

- Também sofro disso.

- Como está você, Bim?

- Caramba! Mais de 30 anos. Não sei por onde começar.

- Tempo da faculdade.

-  Impressionante, Lulunática, estou sentindo uma coisa.

- Também estou sentindo a mesma coisa.

- O que?

- Uma volta no relógio. Uma vontade de sei lá o quê.

- Gozado. Parece que o tempo não passou.

- Onde foi que paramos mesmo, Bim?

- Sei lá. Acho que quando fui estudar em Boston.

- Me lembro. Choramos no aeroporto. Muito boba eu.

- Acabei ficando por lá. 

- Não tinha internet para achar os sumidos.

- Que pena. 

- Seguiu na Engenharia?

 - Não. Economia. Voltei pro Rio, abri um banco e vendi o banco.

- Tá rico.

- Modestamente. E você?

 - Jornalista.

- Você sempre escreveu bem.

- Modestamente.

 - Kkkkkkk.

 - Kkkkkkk.

- E agora?

- Ah, avó, escritora, professora, metida a cozinhar.

- O agora que eu disse foi sobre nós. Já que você me achou, quando a gente se encontra?

- Hummm... assim você me desconcerta.

- Muitas histórias deixamos passar. O que perdemos, o que ganhamos...

- Um balanço?

- Por aí. Mas, por que lembrou de mim?

- Ah, bobagem...

- Diz, Lulunática!

 - Acabei de ver “Narciso em Férias”. Tem uma passagem que me lembrou nossa primeira vez no motel.

- Nossa! Você é direta!

- Como direta? Foi só um flash, sem intenção de flashback. Só para arrumar as fotos

no baú.

 - Sei....

- Juro.

- Jura mesmo?

- Kkkk ... mais ou menos.

- Então... o que mesmo que você viu e lembrou da gente?

- “Narciso em Férias”. O documentário sobre Caetano Veloso preso pela ditadura...

- Caetano Veloso? Você vê aquele baiano viado subversivo comunista e lembra logo

de mim???

Não respondi. Bloqueei o sujeito e chorei de novo. Sou uma velha boba.





sábado, 19 de setembro de 2020

A dor entranhada

 


Vociferei, com todos os ares do pulmão, a quem quisesse ouvir: “Chega! Acabou a palhaçada! Vocês terão o que merecem!”. Quis dizer mais, mas a educação me traiu. A atmosfera, sempre confusa, caótica, fechou mais sobre mim.

Não queira saber a cara de espanto da megera Carmina, declarando o descomunal ultraje; mas, atadas às convenções sociais, tentou logo colocar panos quentes e abafar o princípio de incêndio. O todo poderoso Demóstenes, um homem carrancudo, arrogante, com o qual troquei ligeiras e precisas palavras, não contou pipoca e questionou a minha sobriedade, fazendo pouco caso: “Esse daí virou a cabeça de vez; maluco beleza…”. E o detalhe: falava sem olhar para mim, confirmando o fascínio pelo escárnio.

***

Para que possa entender, a cena se desenrolou numa manhã de sábado, com o alvoroço de gente que não parava de entrar: primos, tias, avós, todos com os seus respectivos companheiros e, pasmem, amigos de amigos, sucessivamente, em plena pandemia. A situação, como se pode perceber pela explosão que sucedeu, era comum, em quaisquer momentos, manhã, tarde, noite e madrugada. E, convencidos de que eu não teria direito de sequer reclamar, acochavam-me contra as paredes da casa; espremiam-me ao extremo, a ponto de perder facilmente o fôlego.

Natália, à parte de se portar como boa namorada, procedia segundo os ditames disformes da casa, ao deus-dará; jamais se preocuparia comigo; ou não teria forças para lutar contra os acontecimentos. De certa forma, tentava entender, porque, por mais complicada que fosse a zona, era o ambiente possível, no qual estava acostumada a viver; não sabia, nem se esforçava para saber, de outra vida.

Eu, claro, era uma mosca que ocupava, temporariamente, como frisou seu pai, o ambiente sagrado. Desde que saí de Itatinga, da casa de meus pais, para estudar e trabalhar, para dar cabo de minha vida, com a esperança de ser independente, não seria capaz de supor a desordem que se avizinhava. Não abria a boca para formular uma frase, pois que era constantemente interrompido pelo irmão ciumento, o Daniel, que me testava não só a paciência, mas também os conhecimentos, colocando-se num pedestal, como sendo o aluno mais brilhante que havia em toda a história da grande cidade. Exageração barata, egocentrismo, que me enojava. Repetia os passos do pai, que não parava de se gabar a quem chegava; que havia trabalhado como alto funcionário da Vale, desvinculando-se, óbvio, dos fatos recentes, “da época em que havia gente séria…”.

A grande questão, o que a leitora já pode inferir, é que o ambiente era hostil para um ser interiorano, acostumado à calmaria – algo que não ajuizei enfrentar, assim, de cara – e lidar, também, com as oscilações de humor de todos os entes que coabitavam o recinto. Ademais, a leitora pode me achar um sujeito ingrato. Falo de coração que me culpei desde o primeiro dia ali instalado; que seria problema meu; que deveria ser dócil, paciente; que estavam me fazendo uma grande bondade. Mas, não, posso confirmar, há áudios que gravei para não sair, no momento devido, como o ruim, mau, propriamente mal-agradecido.

Logo no primeiro dia, Natália, que conheci pela internet e que me ajudou a passar no vestibular para Medicina, na USP  – na verdade, a ajuda resultou mútua –, me alocou no quarto destinado a um funcionário que estava de férias, contando que, dentro de um mês, no máximo, eu procurasse o meu lugar; esse era o decreto: “Pois é, Gustavo, não somos acostumados a visitas demoradas… namoramos há pouco tempo, e o papai não compactua muito com essa ideia de namorado em casa”.

Como cheguei no começo da tarde, esperava, ansioso, o almoço, ou o que tinha sobrado deste; nunca tive besteira em comer comida requentada. Carmina, mãe de Natália, mal tendo acomodado minhas coisas no quarto, me alertou que o almoço era rigorosamente às 12h30min; que estava deveras atrasado; e que não havia mais tempo de preparar algo, sobretudo porque preparava o almoço “contado”, para não haver desperdício. Até então entendi, com um pé atrás, porque poderia, se quisesse fazer uma gentileza, preparar um ovo mexido, um sanduíche, etc. e tal. Contudo, sem cerimônias, despachou-me com poucas palavras e fui, por isso, cansado e esfarrapado da noite mal dormida, obrigado a buscar qualquer coisa no bairro; e me custou andar cerca de dois quilômetros para encontrar um posto de conveniência com preços acessíveis.

No segundo dia, também descobri que o café da manhã se dava, “rigorosamente”, às 6h30min, visto que se habituaram com os horários do chefe de família; então, mais uma vez, passei por debaixo da mesa, como diz a expressão. Comi duas bananas que Natália me deu, escondida, pelo visto, pois que aparentava bastante nervosismo, como se me passasse um contrabando.

No quarto emporcalhado, entre cupins e mofos, me deitei e comecei a ler um livro chamado A estepe, de Anton Tchekhov, para vagar pelos campos infinitos, imaginar a natureza e conjecturar algum ar – quando fui surpreendido pelas batidas do chefe, como era chamado pelos seus, declarando que eu não passasse muito tempo trancado; que, aliás, não permitia as portas trancadas, sob o risco de confiscar a chave.

Abri a porta atordoado com o atropelo, às oito da manhã, como se estivesse num quartel, com horas bem definidas, sem qualquer critério para tal. Lembrei-me imediatamente de minha casa, na qual estudava por horas a fio, só, sem ser perturbado por meus pais, que entendiam e apoiavam os meus desejos. O chefe se sentou na cama, ou o que se pode deduzir que seja, e declarou, pausadamente, forçando cada sílaba, que eu não me atrevesse a fazer besteira com sua filha, muito bem educada; que, se algo acontecesse, antes de me pôr para fora, deixaria profundas marcas em meu corpo.

A insinuação veio como uma bomba, especialmente porque Natália me provocava, sem perder o olhar inocente, para parecer boa moça; como se quisesse, sórdida, incitar os meus instintos. Inteligente que era, não mandou nenhuma mensagem mais quente pelo celular, o que seria proveitoso para mim, caso seu pai insistisse na perseguição. Ao contrário, pegava-me, em algum momento de distração e apertava meu corpo, sem constrangimento; dedilhava a porta do quarto, na madrugada – sentia os seus intentos macabros. Um frio indescritível percorria a minha espinha, com o medo de ser confundido; como se eu estivesse “dando em cima” da menininha inocente.

O primeiro almoço foi um suplício. Todos, inclusive Natália, olhavam-me fixamente, de cima a baixo, com desdém. O chefe deu início a um interminável questionário: de que família era; o que meus pais faziam; o que pretendia para a vida e com a sua filha; quais seriam as minhas notas, etc., etc., etc., sem deixar de me rebaixar, com linguajar torpe, declarando, sem meias palavras, que a vida em São Paulo era difícil para gente mixuruca; que o mercado da medicina – algo que nunca tinha ouvido: “mercado da medicina”; pensava em cuidar de pessoas, unicamente – era bastante competitivo; e, para fechar, que não via em mim a marca do sucesso. Engoli a comida para não ser indelicado, controlando os ímpetos, sendo afrontado com risos nervosos, inclusive de Natália, de quem menos esperava; a moça de voz mansa, e, ao que parecia de início, calma.

No mesmo dia, o segundo, não consegui jantar. Também, não houve qualquer contato da família nesse sentido. Experimentei, de certa forma, o alívio. Planejava sair pela manhã, comer o que conseguisse na rua, ajeitar a minha matrícula na universidade e procurar um canto para ficar.

Levantei-me às sete, quando não existia farelo de comida sobre a mesa. Fui até a porta nas pontas dos pés, para não ter de falar com ninguém, e Natália surgiu de não sei onde. Os planos ruíram, já que ela insistia em me acompanhar, alegando que precisava me ajudar; que eu não conhecia a cidade e poderia me perder.

Rodamos a cidade, em passos lentos. Natália estava pronta para me atacar. Tentou me prender num parque, sob o pretexto de a faculdade estar o dia todo aberta; que não precisávamos de aperreio. Caí, como um patinho, na lábia experiente, treinada. Apesar disso, me socorreu uma sensação de terror, pensando que o chefe poderia estar à espreita, caçando um motivo para me pegar. Larguei-a e pedi que me acompanhasse em paz, razão que a fez ferver na rua movimentada e despejar em mim as piores palavras, as quais nunca teria ouvido; que era frouxo, mentiroso, aproveitador, preguiçoso e feio. Não entendi o preguiçoso e feio, visto que pensei que estava comigo justamente pelo contrário.

Ela, por si mesma, chamou uma amiga e resolveu seguir o seu rumo, sem mim. Agradeci a Deus e suplicava por uma solução rápida; não aguentaria mais um dia.

Infelizmente, tive de aguentar. Na faculdade me avisaram que a matrícula deveria ser feita pela internet. Viagem perdida. Minhas expectativas foram frustradas e, além do mais, estava arrasado com o engodo em que havia me metido.

Passei o maior tempo possível nas ruas. Consegui concluir a matrícula através de um computador instalado num prédio público. Voltei a casa às 19h, sendo recepcionado pelo olhar severo do Daniel, que nem sequer respondeu ao meu “boa-noite”. Não foi um problema não me encontrar com Natália. A mãe irrompeu o tempo, antes que entrasse no quarto, para dizer que Natália estava indisposta, com dor de cabeça; que não a perturbasse.

Conferi o celular no quarto, depois do banho, estando mais relaxado; e vi duas longas mensagens de Natália, assumindo o erro de ter aceitado o namoro; que queria conversar seriamente, porque a família não me suportava; que o chefe já havia decretado que resolvesse a situação, pois não admitiria viver com alguém tão feio e preguiçoso.

Mais uma vez, liguei o alerta. Mas como, se eles não sabiam de minha luta, estudando e trabalhando desde novo, sem nunca tirar um dia de férias? O feio era a designação que não acreditava; não me conformava. Como falavam assim de mim abertamente? Fui ao espelho e a única diferença visível, para os que estavam ali, seria a cor. Sim, a cor mestiça, cabocla, da qual tenho tanto orgulho.

Foi a primeira vez que percebi o desprezo: o brutal racismo. Acordei cedo, no dia 29 de agosto de 2020, esperei que todos estivessem ao redor da mesa para soltar parte do que havia em meu coração.

De lá, parti para a delegacia. Entreguei todos os áudios, mensagens, inclusive vídeos que fiz à socapa, dois, com as caras bem expostas de nojo à minha figura. O inquérito foi aberto. Mas, destruído, não quis acompanhar de perto; voltei à minha cidade e esperei os nervos acalmarem para tocar a vida, de novo, na grande cidade.






quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ponto de Honra - um conto de Monahyr Campos



- Acordei de madrugada com o sistema nervoso, pregado na intuição: o Travoso, comandante da ala ia me pedir antes da visita, daqui a dois dias! Acabou que eu tava mordido, na fissura de ficar bicudaço, mas careta que tava, num parava num pensamento. Mil fita na cabeça, mil treta. Todo o falatório por causa de uma brizola miúda, mó merreca, e agora, os perdigão aprontando a bicuda e eu no fim do carretel.

- Precisando dar um pino, precisando dar um pino, psôr. Tá ligado? Eu jurado só porque num entrei na fita e deu zica. Aí, do nada aparece uns passarinho e assopra meu nome. Aê, psor, o senhor tem que por um pano! O senhor tem deus no coração, num vai quebrar a perna!

Eu sentindo toda aquela aflição, sabia que tinha que me manter a uma distância segura. Por outro lado, como ignorar um pedido de alguém naquela condição?

- Eu não posso entrar na frente, entende? Se der pra conversar, lógico que eu faço um corre, mas não dá pra garantir. Cê tá ligado que se eu firmar contigo, viro adubo na mesma lampiana que você. Quando eu for lá no xis eu dou a letra. Segura a onda, aí.

Dois anos e dois meses de trabalho aqui na penitenciária e já estou quase insensível a essas confusões. A princípio, era pra ser apenas seis meses de trabalho forçado, mas fui me meter a besta de dar minha contrapartida social, de fazer a minha parte. Agora sou refém de mim mesmo, dentro de um episódio do Hannibal, visto com desconfiança pelos presos; com desdém pelos funcionários; como louco por meus colegas de profissão; e nunca mais fui visto de forma nenhuma por minha mulher, nem meu filho... A mulher é ex, mas o filho é pra sempre.

No começo eu ficava desesperado, achava que tinha obrigação de ajudar esses coitados. Só aos poucos fui me dando conta de que, se bobear, muitos deles nem sabem o que é esse sentimento de empatia – apelam por minha intersecção justamente por saberem que eu prezo por meu sentimento de humanidade, que eu os vejo a todos como meus iguais, mas eles sabem porque estão aqui – eu não.

Hoje é o Carqueja. Semana passada, foi o coitado do Apendicite. Antes, o Buti. Teve também o caso do Timba, do Sprite. A lista é infinita... Tudo história mal contada, diz-que-me-disse; um, porque dizem que talaricou a feinha do outro; aquele porque era jacaré... Pessoas com problemas seríssimos em lidar com autoridade e, de repente, condenadas a viver sob um regramento extremamente rígido.

Aqui a vida é no limite o tempo todo. É no limiar do julgamento que o mais forte organiza a convivência, verbalizando as regras, que são invariavelmente aceitas por consenso. Não faria sentido questionar qualquer lei, simplesmente porque cada norma num ambiente primitivo é a consagração de um modo de viver, é sempre ponto de honra!

As paralelas encontram-se no infinito. Na teoria funciona muito bem essa afirmação, mas aqui, vivo diariamente a experiência de estar numa realidade paralela, beirando o absurdo pelo lado de dentro. Qual a vantagem de poder sair, se a sensação de desconforto levo comigo: a minha e a deles? “Aqui a vida é no limite o tempo todo”. O refrão do MC Louva-a-Deus não me dá descanso, vinte e quatro horas por dia martelando a britadeira nos neurônios.

Lembro de ter lido, há um bom tempo, num livro bastante badalado, que para se constatar se uma pessoa está viva, o meio mais fácil é colocar um espelho em suas narinas e observar: enquanto estiver respirando, a superfície ficará embaçada, sempre. Se a imagem refletida permanecer límpida, é porque não há mais vida. Sabedoria dos antigos que eu tive que aprender nos livros.

Feliz de quem vive “pregado na intuição”, como diria o Carqueja, mas eu, preciso de livros pra aprender até o que a vida ensina. E eu sei que estou vivo, eu existo, porque em minha vida, sempre vejo tudo embaçado. Visão límpida, só quando a gente encara a morte de perto, no susto, no choque! Quando a pancada te arranca do confortável e te empurra pro precipício, você enxerga longe, o fundo do poço fica cristalino, mesmo se a água for turva.

E eu sobrevivendo neste inferno, como se existir me bastasse, como se a satisfação fosse duradoura cada vez que tenho notícias de algum ex-interno recuperado. Como se a gratidão fosse uma qualidade que se possa esperar de quem teve sua humanidade arrancada junto com a placenta, como se...

- Tá morgando, fessor?! O senhor é o maior responsa, mas num dá brecha. O Carqueja vai cair e é hoje! O presidente já deu a letra, aqui mancoso num tem vez. O senhor num sabe de nada, né não? Fica pianinho que a gente dá a letra quando for chacoalhar o colégio. Lembra quando o ganso falou pro senhor faltar? Ninguém avisou o otário do nervosinho... agora ele tá o maior groselha.

Eles me avisaram quando teve rebelião. Simplesmente faltei. O Alemão não teve a mesma sorte, agora não é nem de longe o arrogante de tempos atrás. Tiraram toda a petulância dele aos berros. Passou mais de duas horas, pendurado, de ponta-cabeça, no telhado do presídio, sendo ameaçado, correndo o risco de escapar das mãos daquela gente ensandecida, completamente animalizada.

Infelizmente o Carqueja vai ser triturado. Perdeu.

A cada vez que tentava dormir, me vinha a imagem daqueles olhos estatelados feito jaca madura, caindo no terreno baldio de minha insônia, me pedindo socorro. Coitado. Eu era sua derradeira esperança. Eu, de mãos completamente imobilizadas, totalmente impotente. Disposto a resgatar algumas individualidades através do conhecimento, percebi que nem mesmo o meu melhor, nem minha dedicação ao máximo grau pode interferir na dinâmica daquele lugar.

Qualquer texto, poema ou discurso que lhes apresento, sempre vai transitar na possibilidade de se tornar uma extrema unção. “Pra morrer, basta estar vivo”, nunca minha mãe teve tanta razão! E quem me garante que a qualquer hora, não vai aparecer um “passarinho” para assoprar o meu nome?