Nunca foi apurado de onde partiu o primeiro disparo. As potências em
conflito acusaram-se mutuamente, enquanto foi possível ouvir rádio.
Nem sequer havia consenso sobre onde caiu a primeira ogiva nuclear.
Aparentemente, houve um disparo de origem indeterminada, mas o que
primeiro atingiu o alvo no solo terá sido uma resposta a esse
fantasmático primeiro disparo. Só se percebeu que, em poucas horas,
foram disparados alguns milhares de mísseis regionais e
intercontinentais, portadores de bombas nucleares, dum lado e do
outro do Atlântico.
As primeiras dezenas de disparos apontavam para as áreas de
lançamento e armazenamento das ogivas inimigas. A maior parte foi
travada pelos sistemas de interceção, mas as explosões aconteceram
na mesma, só que em altitude. A ogiva que atingiu a zona de Aviano,
em Itália, provocou o rebentamento de, pelo menos, outras quatro
ogivas, em prontidão. A explosão resultante vaporizou milhares de
toneladas de solo e causou uma cratera de mais de um quilómetro de
diâmetro.
À medida que os satélites adstritos ao uso militar foram sendo
derrubados, perdeu-se grande parte da capacidade de deteção e
interceção. Também os mísseis lançados deixaram de poder contar
com os satélites para os guiar; passaram a usar sistemas de
navegação incorporados, o que lhes baixou sensivelmente o grau de
precisão. O que devia atingir a base da Nato em Oeiras foi cair
perto de São Domingos de Rana.
Havia semanas que Eneias punha a eventualidade da guerra nuclear
como muito possível. Percebia os apelos armamentistas, a retórica
de confronto, a escalada bélica em crescendo. Quando o clarão
apocalíptico acendeu o dia no seu quarto estremunhado, seguido de um
abanão pavoroso, imediatamente mobilizou a família — o seu pai, com mobilidade reduzida, e as duas filhas adolescentes —, carregaram todos os víveres que tinham em casa e
desligaram tudo. Provavelmente, não voltariam tão cedo. Tinha
passado apenas meia hora depois do impacto e da onda de choque que
estilhaçou janelas e destruiu edificações num raio de vinte
quilómetros, quando partiram de Odivelas em direção ao interior.
Eneias optou pela circular exterior de Lisboa, pensando evitar o
provável trânsito denso da autoestrada, mas, apanhou um
engarrafamento monstro, logo ao entrar. Viram passar apenas duas
viaturas da polícia de trânsito. Circulou a passo de caracol,
contornando os inúmeros destroços e evitando os conflitos de
trânsito quase forçosos, num contexto de enorme crispação e
terror, percetível em muitos rostos. Meteu pela A10, assim que pôde
e só conseguiu entrar na A1 quatro horas depois.
As notícias, das poucas rádios que se mantinham em funcionamento,
eram alarmantes. Boa parte do leste dos Estados Unidos tinha sido
destruída, assim como todo o ocidente da Rússia e variadas zonas no
resto da Europa. Milhões de toneladas de cinzas radioativas subiam
na atmosfera e toldavam o sol. Aparentemente, tinham parado os
disparos, embora, presumivelmente, ainda houvesse alguns milhares de
ogivas disponíveis. Eram horríveis os relatos das destruições e
do estado dos corpos dos que ainda sobreviviam.
Eneias sabia que, provavelmente, ele e a família já carregariam
alguma contaminação. Esperava tão só que as doses radioativas
ainda não fossem mortais. Não tinha grandes planos. Para já, só
fugir dos grandes centros, alvos mais prováveis de novos disparos e
obrigatoriamente foco de desordens sociais. Quando passaram pela zona
de Torres Novas, perceberam que o centro comercial que se via da
estrada estava a ser alvo de pilhagem. Os dias que aí vinham
prometiam provações terríveis para milhões de seres humanos.
Ainda antes de Abrantes, a mancha de cinza, que escondia o céu a
oeste, sofreu vastos acrescentos negros a grande altura, de norte e
leste, que foram enchendo o céu até tapá-lo completamente. Uma
obscuridade estranha foi crescendo até transformar-se numa escuridão
densa, que se tornaria a companheira de todos os dias, mas não era
sensato parar. Ao longe percebiam-se incêndios em algumas povoações.
Pouco depois do cruzamento de Belver, estranharam a inação do pai
de Eneias. Estava morto. Frio, sem pulso, sem respiração, sem
embaciar o ecrã do telemóvel que lhe puseram à frente da boca.
Eneias sentiu-se perdido. Não era aconselhável entrar numa cidade; as complicações que se seguiriam quando apresentasse o caso
poderiam ser muito penalizadoras. E, para quê? O pai estava morto,
sem qualquer dúvida. Assumiu a decisão de prosseguir com o pai no
lugar do pendura, bem preso com o cinto, bem direito no banco. Na
confusão reinante e no escuro, nenhuma improvável patrulha iria
averiguar a saúde do idoso.
Ultrapassou os contrafortes da Gardunha quando uma ténue
luminosidade anunciava que, por cima das nuvens de cinzas, brilhava o
sol. Seria assim, daí para a frente, não se sabia se por uns dias,
se por meses ou anos.
A sua casa entre serras, junto a Silvares, seria o refúgio possível
num mundo enlouquecido. Com a devida discrição, sepultaram o avô
das meninas numa pequena elevação sobranceira ao vale. Ninguém
iria notar, ninguém iria saber. Ele deveria gostar, se soubesse.
Ainda nesse dia começou a cair muita cinza; radioativa,
provavelmente. Tinha um cheiro fétido, um misto de plástico
queimado, com reverberações olfativas metálicas. Eneias tinha
consciência de que cada inalação que permitisse representava um
foco de radiações a destruir o seu ADN, a facilitar cancros. A
temperatura tinha baixado abruptamente e todos os dias foi baixando
mais. O aquecedor a gás, mais o elétrico, eram insuficientes.
Acenderam a lareira, mas nada conseguia aquecer a casa. A pilha de
lenha diminuiu a olhos vistos.
As notícias das poucas rádios em funcionamento eram caóticas.
Ainda havia crispação das grandes potências, mas as pequenas
nações apelavam ao diálogo e ao trabalho conjunto para reconstruir
o mundo. Um pouco por todos os continentes, os saques, o morticínio
de grupos demonizados, os levantamentos militares, as revoltas
populares estraçalhavam o que restara. Regimes oportunistas de todos
os quadrantes surgiam e desapareciam no mesmo dia. A energia elétrica
faltou de vez ao fim de três dias. Devia ser geral, porque nem o
rádio de pilhas dava sinal. A sociedade desmoronava-se.
A casa já não era porto seguro. As cinzas tomavam tudo. Não era
possível colher vegetais enegrecidos e “queimados” pela
radiação, não era aconselhável consumir qualquer animal, qualquer
ser exposto às cinzas. Viviam de conservas. O frio tornava-se
debilitante. A temperatura tinha caído uns trinta graus, numa
semana. O “Inverno nuclear”, teorizado pelos cientistas,
confirmava-se. Sem luz solar, as plantas iriam mirrando e a maior parte morreria em poucas semanas ou meses. E a morte das plantas faria ruir toda a cadeia alimentar. Havia que engendrar uma maneira de sobreviver. E ousar partir para melhor refúgio.
Foi a proximidade das minas da Panasqueira, juntamente com a
memória de uma visita, em tempos, a umas minas de sal-gema na Suíça,
que iluminaram o espírito de Eneias. A temperatura em minas costuma ser
baixa, mas constante. Lá, não chegariam poeiras radioativas, lá
poderia captar água não contaminada, lá poderia cultivar
cogumelos.
Passaram seis anos desde que Eneias chegou às minas da Panasqueira.
A comunidade de uns cem refugiados que lá tinha já procurado
refúgio passou a chamar-lhe Lote, por ter chegado com duas filhas,
depois de um cataclismo de contornos de bombardeamento, como no
episódio bíblico. Eram sobretudo habitantes da região, alguns
muito maltratados pelas cinzas radioativas, das quais não tinham
sabido proteger-se. A maioria morreu nos seis primeiros meses, alguns
em grande sofrimento; outros foram morrendo de enfermidades não
imediatamente relacionáveis com as cinzas. Até o desmoronamento, provocado por um dos vários
terramotos de intensidade média, que se fizeram sentir no primeiro
ano, fez duas vítimas.
Lote era tratado com curiosidade, por ter passado a falar por
parábolas, que alguns achavam acertadas, mas, respeitavam-no por ter
apontado alguns dos vários aspetos que podiam ajudar a mantê-los
vivos. Havia quatro fontes nas galerias da mina. Não tinham garantia
de que a água não viesse a chegar contaminada, mas tinham esperança
que ainda demorasse uns anos. A cultura de cogumelos tinha sido um
êxito. Desenvolviam-se bem em regime de ausência de luz solar, eram
proteicos e havia quem lhes encontrasse nuances de sabor. A
temperatura na mina, conforme previsto, era baixa, mas tolerável,
desde que complementada com muitos agasalhos. A comunidade decrescia,
apesar de as filhas de Lote e outras raparigas terem tido crianças,
no entanto, caminhava-se para um equilíbrio. Não podiam deixar
morrer a esperança.
Na rotina do cultivo dos cogumelos, há sempre quem, para dar
resposta aos seus pensamentos, faz uma ou outra pergunta:
— Lote, não teria havido uma maneira de travar a guerra no início?
Lote tornou-se um ancião de olhos encovados e face macilenta.
Abranda por uns momentos a atividade e depois debita uma inspiração:
— Em tempos que já lá vão, um jovem combinou uma saída com os
amigos, para celebrarem a noite, a amizade e o álcool. No Cais do
Sodré, já depois de uns shots
e em clima de boa disposição,
o jovem foi
surpreendido por uma chapada
que quase o atirou
ao chão, sem saber como nem
porquê. Virou-se ao
agressor, contudo, este era um marinheiro nórdico, cheio de tatuagens e
um corpanzil que aconselhava alguma prudência. Mesmo assim, galarito
empertigado, o jovem pediu-lhe satisfações, mas recebeu de
volta outro bofetão. Aí, percebeu que era melhor nem tentar saber
porque é que estava a levar pancada; o que era urgente era tentar
apaziguar os ânimos, porém, os amigos começaram a atiçá-lo, a
gritar-lhe que não se podia ficar, que tinha de retaliar. «Tu podes
derrotá-lo. Lembra-te de David e Golias», gritavam-lhe. «Tu chegas
bem para ele. Nem te vamos ajudar, porque aí ele pode puxar de
alguma faca, mas ficamos aqui a desmoralizá-lo.» E faziam um coro
ruidoso de «Cara de avestruz! Cheiras mal da boca. Vais morrer de
cancro. Estás a levar tantas que já não te tens em pé. Bêbado!»
Ora, o desgraçado rapaz fez o melhor que pôde, mas acabou a noite
muito amassado e foi mesmo parar ao hospital. Verdade seja dita que
os amigos foram todos visitá-lo à enfermaria e alguns levaram-lhe
flores. Depois veio a saber-se que o moço teria dito um piropo à
rapariga do marinheiro, ou, pelo menos, este assim o entendeu.
Eis aqui que não havia razão suficiente para a agressão inicial,
não obstante, foi uma temeridade insensata enfrentar sozinho o brutamontes.
Mais valia ter reconhecido a desvantagem física e ter ido para casa
só com um olho negro.
Na tarefa de aparar o fino fio de água gelada que escorre da rocha,
lá vem com frequência uma dúvida:
— Lote, porque é que começou a guerra e o que é que a Nato e a
América tinham a ver com o caso?
Lote olha para o negro invisível do fundo da galeria e, depois de
uns momentos de silêncio, debita uma lucubração:
— Havia em tempos um grande apicultor que prezava muito a qualidade
do mel que produzia. Gabava-se de que o seu produto estava isento de
pesticidas ou outros químicos nocivos. Num outro concelho, havia um
grande agricultor que ensaiava todo o tipo de práticas agrícolas
para obter boas produções de cereais, incluindo o uso de
agrotóxicos, que o apicultor abominava. Ora isto durou, e nenhum
problema houve, mas, aos poucos, os pequenos lavradores vizinhos do
apicultor foram passando a usar os mesmos químicos que o grande
agricultor usava e produzia. «Não quero aqui venenos junto ao meu
terreno! O vento traz tudo para o lado de cá. Mata-me as abelhas e
estraga-me o mel», gritava o apicultor. Porém, cada pequeno produtor
ripostava: «No meu terreno não posso fazer o que quero?» E o
mandante instruía-os: «Ninguém manda no vento. Se vai para a terra
dele não é culpa vossa.» No entanto, o apicultor sentiu-se ameaçado no seu
negócio e no seu modo de vida. Vendo as suas colmeias a morrer e a
qualidade do mel a deteriorar-se, foi acumulando ressentimento e
vontade de retaliação, sobretudo contra o produtor de venenos e
instigador da pressão tóxica sobre os seus colmeais. Um dia de
junho, já muito irritado, aproveitando uma brisa favorável, acendeu
dezenas de balões de São João e lançou-os, em procissão
punitiva. Conforme esperava, alguns balões caíram nos terrenos
próximos e outros elevaram-se e foram aterrar lá longe na propriedade do grande produtor
cerealífero, incendiaram as searas e causaram uma destruição
avassaladora. Ao furioso coro do “Núcleo Agro-Tóxico Ocidental”, como
lhe chamava, o apicultor respondia com todo o cinismo: «Acaso não posso
festejar o São João no meu terreno? Ninguém manda no vento.» E,
para si, autojustificava-se, com um aforismo ouvido há muito: “Dizem do rio que é violento porque
arrasou todo o vale, mas ninguém se preocupou com as margens que o
oprimiam.” Eis assim que no nosso mundo ambientalmente encapsulado,
nenhum terreno é uma ilha. Faltou muito respeito mútuo, muita
capacidade de se pôr no lugar do outro, muita empatia pelo que é
diferente, muito diálogo, muitas relações de boa-vizinhança. Porém, uma
conversa franca e honesta, um entendimento de seres racionais, podia
ter evitado aquele desacato.
Nas muitas vezes em que a pequena comunidade se junta, durante horas,
em círculo à volta de uma chama, para se autogerir, para conversar,
para socializar — imagem pós-apocalíptica de um grupo de
silhuetas espetrais, embrulhadas em cobertores, em ambiente de quase
escuridão —, com frequência lá surge um lamento, uma
especulação, um desalento: «Será que voltaremos a ver um céu estrelado, que um dia voltaremos a percorrer campos
abertos, respirando ar puro a plenos pulmões, com o sol no rosto e o
futuro nos olhos?» E outro acrescenta: «E, se voltarmos a ter uma
vida lá fora, não teremos de nos armar para a guerra, nem que seja
com paus e pedras, já que ela parece estar no nosso “ADN social”?
Lote está muitas vezes de cabeça baixa. Certos temas levam-no a
responder:
— Um escritor escreveu um romance, em que um homem e os
seus irmãos chegaram a uma terra desconhecida, onde construíram uma
casa e em que moraram em harmonia durante muitos anos, entretanto, um dia veio uma cheia
que lhes derrubou a casa e lhes destruiu as colheitas. Era, pois,um drama
que passava uma mensagem de tristeza e desalento. Ora, o escritor não
gostou daquele final,não obstante, em vez de o alterar, prosseguiu a
história. Deste modo, pôs os irmãos a corrigir o percurso, a reconstruir a
casa fora do leito de cheia e a levantar uma pequena barragem, para
regulação do rio. Eis que a história já continha uma mensagem de
esperança e resiliência, todavia, surgiram alguns conflitos, alguma
falta de solidariedade, algum desleixo social. Assim, o escritor não
resistiu a fazer rebentar a barragem, com a consequente destruição
do que tinham construído. Ora, este final também não lhe agradou e
novamente continuou a história. Entretanto, suspeitando que o autor tinha
inclinação para a desgraça ou as personagens para a asneira, experimentou mudar
de personagens; então, pôs a nova geração de primos a fazer a
reconstrução, com novos paradigmas. As novas personagens, só por
serem outras e jovens, levaram a história por outros caminhos: logo
fizeram nascer uma grande quinta e uma pequena sociedade em que, ainda que
havendo problemas, eram resolvidos com diálogo e racionalidade.
Eis que, depois de um final dramático, pode-se sempre imaginar
uma continuação, uma nova narrativa, um final motivador.
O pequeno círculo de espetros vivos parece esperar mais respostas, soluções concretas, mas Lote baixa novamente a cabeça e cala-se. A
meditação de cada um começa a divergir da de cada um dos outros,
talvez alguma vislumbre um futuro viável, para quando a missão de cada um
aspire a mais do que só sobreviver outro dia.
Joaquim Bispo
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Imagem:
Caspar David Friedrich, Abadia no Carvalhal, 1809–1810.
Coleção Castelo de Charlottenburg, Alte Nationalgalerie, Berlim.
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