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domingo, 31 de março de 2013

Coniunctio Oppositorum

A miserabilidade do farejo me impede de rastrear novos ares. costumo confundir o impreciso desdém das pálpebras mortas com a fervura que mantém lonjuras acesas. pratico o desgarro cefálico em meio aos labirintos dos ensinamentos. vendo-me porque recuso a me ser. propago a nudez em verdade por quem gostaria de me adormecer no colo. sairia da sua intimidade relampejando fome. o que me segura não é o corpo apático. não é o dizer de quem se vai. é a inconstância de quem se anestesiou desarranjando a paz implacável. ouço-te dizendo que não me é. inflijo a lei imutável. arrebento-te noturna pelos memoriais da nossa fraqueza. ser-te o caos desflorando a luminosidade que lhe intensifica o medo. verbalizando apenas o corpo para não derramá-la. eixo da perdição. seremos saudades enquanto seguirmos. silábico badalo. minha língua sobrepujando a sua. descanso antigo. espero tremendo em demasia com a vibração de todo esse rudimentarismo. desgrenho a tormenta devorando o belo que lhe retifica. é a sua estrela que me avigora a hiperatividade em excitação. assopro-te insônia contra a nébula quando não mais me detenho. ineficácia de deleitoso que derramou-se em perfilá-la. a lua dos seus traços é um nômade compromisso de partir-me alucinações. esclerose múltipla pelos roseirais fragmentados do jardim pútrido quando não te reguei em dor. língua-puta das noites inoportunas que te afeiçoava carinho. cerveja banhando nossas insignificantes enlaçadas articuladas com pena de nós. bombeando-a mais do que sangue em perfeito esporro quimérico. em chamas nos fazemos escorrer pelas sensações do não mais em universo algum. acalento-a para ninar no habitat primitivo que me negou a presença das desumanidades. o resto dos punhados corrosivos que me desencadeiam hematomas contornam-te no retrato. ainda palpito-me como escoriações de outras calamidades acentuadas de um tempo que resta-se sozinho. perfeita anulação para te ver feliz. migrá-la em mim. deixá-la ao pó. nas securas das intempéries te adorando como uma sina. forço-me até mesmo para amedrontar os desígnios da guerra. velejo enquanto me abre em multiplicidade medonha. mais do que alguns momentos e tudo se recalca na desventura. outrora tendia-me ao desgarro das desencadeações. buscava no aquém o nutrir da forma que me desterrou inexpressividade. o pendão é uma lástima a me concretizar subjeções. orar na perfeita desarmonia sanguínea. urrar com o cataclísmico dialeto enternecedor. prostrar-me procurando o subsídio dos lázaros. a rotina dos joelhos me dobra. já não sei pra qual alto me atrever. salvar-me antes de ressenti-la. sou o vácuo teimoso que palavreia luz. amar-te-ia mesmo que fosse só de passagem.


[Svanen, 1914 - Hilma af Klint]





quinta-feira, 28 de março de 2013

O apanhador de desperdícios




(...)
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios.
(...)”.
(Manoel de Barros)

Sou um apanhador de desperdícios. Estou sempre disponível para ser encantado com o extraordinário que se esconde nas dobras do ordinário. Reparto com o raro leitor algumas histórias pescadas no sempre caudaloso rio do cotidiano.

Estou na parada de ônibus. Começo a ouvir a conversa de três mulheres. Se a conversa me interessa, e quase todas me interessam, arranjo um jeito de ficar mais próximo, assumindo o risco da indiscrição em favor da curiosidade. Logo percebo que são mães com filhos internados no Caje – Centro de Atendimento Juvenil Especializado. Apesar da imponência do nome, trata-se de uma espécie de Febem. Ali são recolhidos menores infratores. As mães dividiam entre si as aflições próprias de quem tem filhos nessas condições. Todas muito pobres, um ar cansado, todas vindo de bem longe. Uma delas falava da angústia que era chegar o sábado à noite e ainda não ter conseguido dinheiro para o ônibus. Outra falava do aperto no coração que era não poder ir, sabendo que o filho estaria contando com a presença dela, a mãe. São todas mães muito sofridas, mas não vi em nenhuma delas sinal de desalento diante das circunstâncias. No rapidíssimo contato com aquelas mães pude ver um pouco do que diz o poeta Affonso Romano de Sant’Anna: “Há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada na vida, têm um arco-íris na alma”.

* * *
É fim de tarde de domingo. Estou num shopping. À minha frente, vejo um casal andando abraçado. Nada demais se o casal não fosse pai e filho, e não fosse o pai estar em plena terceira infância (calculo mais de 80 anos), e não fosse o filho estar debutando na segunda infância (calculo uns 60 anos). E não era o filho abraçando o pai como se o amparasse. Era o filho abraçado ao pai (pelo ombro), era o pai abraçado ao filho (pela cintura). Refém de cenas assim tão lindas, dou um jeito de ficar por perto, muito disfarçadamente, para ver o que mais posso colher na superfície do instante fugaz. E cuido de eternizá-lo na minha memória.

* * *
Na volta para casa, a pé, passo por um shopping. Nele acontece todos os dias o evento “Um piano ao cair da noite". E foi lá que vi a "menina" que dança. A "menina" de que falo deve ter uns 70 anos, está sempre sozinha, está sempre com umas sacolas, e sempre a encontro dançando. E dançando põe no rosto o mais contente dos sorrisos. Fico cogitando: para que mundos maravilhosos a música e a dança a transportam para ter no rosto aquele sorriso!? Certo dia, ao passar por ela – que dançava sozinha, como sempre –, temi ser tirado pra dançar. E se acontecesse? Não podia recusar jamais. Talvez seu maior sonho seja este: ser tirada pra dançar. Um outro dia a flagrei numa traição inocente. Em vez do piano ao cair da noite, foi atraída pela música de uns sanfoneiros que tocavam na entrada do shopping. Era a única que dançava, sorridente e sozinha. Tenho pena dessa senhora cujo nome não sei, que vem não sei de onde, com suas sacolas, com sua vontade de dançar, com o seu sorriso. Reparei que as pernas (região do tornozelo) estão um pouco escurecidas. Deve ser problema de circulação. Reparei também que as costas estão bastante encurvadas. Mas, quando dança, esses aparentes achaques não são bastantes para apagar do rosto o mais feliz dos sorrisos. Palmas para ela!

* * *
Guardada no bolso de certo sábado, uma surpresa me aguardava. A caminho da parada de ônibus, ouço som de voz e violão. A dúvida: será da parada que vem o som? A surpresa: sim. O violeiro que tocava era, na verdade, um pedinte. Longe de ser um virtuose do violão, via-se que tocava com alguma técnica, que tinha intimidade com o instrumento. Quando cheguei na parada, ele estava no meio de uma música. Empunhando o violão, o violeiro era pura entrega. Qual não foi meu espanto ao reconhecer a música que ele tocava. Era “Pisa na fulô”, do João do Vale, artista popular que teve o reconhecimento dos grandes da nossa música. Sabendo disso, apurei mais os ouvidos. E mais me encantei com seu canto, com o enlevo de quem tinha no violão um companheiro. Terminada a música, pediu ajuda à platéia presente na parada. Mas pediu de um jeito que não era aquele pedido desesperado, urgente. Dessem-lhe o que pudessem, se pudessem. Qualquer moeda tava bom. E repetia: “Somos todos irmãos”. Havia no violeiro (negro, meio sujo, alguns dentes faltando) uma aura zen, vinda talvez da profunda comunhão com a música. Feito o pedido, ele partiu para a próxima música. Quando me decidi com quanto o ajudaria, hesitando entre a generosidade e o que pensariam os demais da platéia, ele já tocava outra música. Meu ônibus chegando, ele teve de interromper o número para receber a moeda que lhe dei – e não tive tempo de reconhecer a música da vez. Só sei que vi naquele violeiro a perfeita tradução desses versos de Caetano: “Como é bom poder tocar um instrumento!”.





quarta-feira, 27 de março de 2013

Sinfonia do medo



Quando aquele jovem casal mudou-se para o 209, as batidas e gritos viraram a trilha sonora da rotina

A entrada dos metais, graves, adicionou tensão

Por fim, ouviu-se apenas um sopro agudo

A platéia permaneceu estática, cada um em sua poltrona










segunda-feira, 25 de março de 2013

Mais vale rir que chorar


O seu sorriso era uma ode à vida.

Quem a via nunca suspeitaria das dores que já lhe tinham atravessado o peito, a filha adolescente desfigurada e morta por um acidente estúpido, o marido que não tinha aguentado o desgosto e tinha fugido para parte incerta deixando-a solitariamente desvastada pela mágoa e culpa, as pequenas e sempre insatisfeitas necessidades diárias de compreensão e a constante angústia de não ter sido capaz de proteger quem estava a seu cargo...
Nao, quem a conhecia e nada sabia do seu passado limitava-se a ficar alegre na sua presença e, mais tarde, comentar descuidadamente como era contagiantemente alegre, aquela velhota.

A tudo sempre fizera frente com um sorriso.Tinha a teoria arreigada que mais valia rir que chorar e, já que não possuia alegria para si própria, podia pelo menos fazer os outros ter alguma.

Sorria. E por alguma magia desconhecida o seu sorriso, tão artificial como uma perna de pau, era igualmente eficaz – as pessoas sentiam-se quentes e acolhidas naquele sorriso, libertavam-se das suas preocupações por um momento, sorriam de volta e, por momentos, tudo estava certo no lugar certo, não havia dúvidas, medo ou culpa nas pessoas que a rodeavam. Uma alegria serena nascia por si própria naquele ambiente particular e toda a gente se sentia bem.

Menos ela, claro. Mas ela nunca se sentia bem, nunca era livre, por isso não tinha importância – aquilo que nunca é diferente não tem qualquer interesse.

Toda a gente gostava dela. Um gostar sereno como o seu sorriso, alicerçado nas lembranças dos momentos sempre alegres e protegido do esquecimento pela presença constante da suave companhia; ninguém vivo se lembrava de lhe ver um rosto sério ou uma expressão fechada.
Por isso mesmo, nunca ninguém se interrogava se seria feliz, se teria as suas necessidades satisfeitas, se precisaria de algum carinho... Que diabo, quem sorri um sorriso assim não precisa de nada, tem para si e para dar a quem passa!

Quando se sentiu realmente mal, apanhou a camioneta para uma cidade distante; não suportava ser, mais uma vez, incapaz de proteger contra o mal.
Saiu a meio de percurso, perdeu deliberadamente a carreira e, muito cansada, afastou-se lentamente a pé pela berma da estrada.

O relatório policial referia como estranha a expressão do rosto, “sorrindo como se cumprimentasse alguém”, embora não houvesse qualquer vestígio de terceiros.
Mas o médico legista não conseguiu evitar um pequeno sorriso quando se virou para o cadáver e tratou o corpo morto com um respeito inesperado.

Mais uma vez, a velhota de espírito indomável vencia a adversidade com um sorriso.





O Comerciante de Arte



Joaquim Bispo


– Então, não quiseram ir ver a catedral de Santa Sofia?
A minha interpelação direta não era impertinente, porque eu e a minha mulher já tínhamos entabulado algumas conversas com este casal, noutras ocasiões da viagem. Na Tunísia, deslumbrados na contemplação de mosaicos romanos, num dos inúmeros locais onde se mantêm bem conservados, lembro-me de o marido comentar: «Estas obras de arte não têm preço! Como eu gostava de viajar no tempo e ver estes banhos a funcionar com as pessoas da época!», o que foi pretexto para falarmos um pouco do tema, reconhecidos, que foram, alguns gostos próximos.
– Já a visitámos duas vezes – respondeu Renato, o companheiro de cruzeiro. – Vimos com alguma frequência a Istambul. Como já lhes disse, sou colecionador e comerciante de arte, e a pintura turca, especialmente a de alguns artistas mais vanguardistas, está a crescer na cotação internacional. Ontem, estivemos em casa de um deles e comprei-lhe uma dúzia de obras de pequeno formato, que não vimos preparados para levar obras maiores. Se quiserem, depois podemos vê-las!
– Ah, adorava! – respondi, cortesmente. – Ontem, vimos algumas telas no Grande Bazar, mas não faço ideia se são representativas da pintura que se pratica por aqui.
Estávamos, com as respetivas mulheres, na fila do almoço self-service, e o paquete deslizava pelas águas do mar Egeu, de regresso a casa. Sentámo-nos, depois, numa mesa para quatro. Cada um falou daquilo que mais o tinha impressionado. Eu alonguei-me, sobretudo, nas emoções de vaguear pelo Bazar das Especiarias – um mundo assombroso para os olhos ocidentais.
Depois de um digestivo no bar, que à noite se transmutava em discoteca, fomos à cabine dos nossos novos amigos. Renato e a mulher, Jennifer, mostraram-nos, então, as novas aquisições. Eram uns oito pequenos quadros figurativos de certa ingenuidade e uns cinco abstratos. Pareciam mais souvenirs baratos, que obras de arte passíveis de transação de alto preço. Confesso que fiquei desapontado.
– Isto vende? – perguntei, sem tentar esconder o desconforto.
– Ó, Francisco, já vi que tem dificuldades com a arte contemporânea. Arte é o que o artista diz que é arte, e torna-se vendável o que o sistema mundial da arte reconhece como arte. Há um século que deixou de ser equivalente a belo. As elites anseiam por novidades. O diferente tem a venda quase garantida.
– Realmente, esperava outra coisa…
– Este artista é ainda jovem e, com uma promoção adequada, pode vir a atingir bons preços no mercado. A arte pode ser encarada como um investimento, como outro qualquer. Há que estar atento às tendências, como um especulador vigia os movimentos da Bolsa. O segredo é «comprar em baixa», se assim me posso exprimir. Neste caso, antes de o artista ser muito conhecido e a cotação dele disparar.
Saímos e dirigimo-nos ao deck da piscina.
– O que eu faço – continuou Renato – é descobrir, em qualquer parte do mundo, artistas pouco conhecidos, mas cujas obras se enquadrem numa tendência que esteja a crescer em aceitação. E invisto. Mais de metade dos quadros que viu irá parar a uma galeria que temos em Nova Iorque; os outros, ponho-os na de Lisboa e vou guardar um para a minha coleção pessoal. Vou ver como o público reage. Creio que esta expressão pseudoingénua, com evocações exóticas, está a ter cada vez mais procura.
– Portanto – retorqui num tom ligeiramente crítico – a arte para si, afinal, não passa de um negócio!
– Gosto de arte, mas também vivo dela. É como um jogo – íamos a passar junto à sala das slot-machines –, mas onde eu controlo alguns dos aspetos. Já viu estupidez maior que a destas pessoas, que pensam que podem derrotar uma máquina programada para as vencer? Eu exponho em feiras de arte e promovo o meu investimento, com notas para a imprensa especializada e catálogos escritos por especialistas que sabem encontrar as virtudes de qualquer obra de arte, como faz um administrador quando anuncia os resultados trimestrais da sua empresa.
Instalámo-nos em espreguiçadeiras, na zona da piscina, com as brincadeiras da juventude na água, dum lado, e o azul profundo das águas de alto-mar, do outro.
– Ainda voltando ao jogo – prosseguiu Renato – está muito enraizada a ideia de que se se lançar uma moeda ao ar vinte vezes e vinte vezes sair «coroa» – ou que sejam cem! – haveria uma maior probabilidade de sair «cara», no próximo lançamento. Ora isto é um erro perigosíssimo, se se estiver a apostar forte. A moeda não tem qualquer memória dos lançamentos anteriores. Terá, exatamente, a probabilidade de cinquenta por cento de sair «cara». A mesma que de sair «coroa».
– Não estou a perceber!
– O que eu quero dizer é que o que parece lógico nem sempre é o que na realidade acontece. Os gostos mudam e há que estar atento aos movimentos da sociedade. Que pintor lhe faz lembrar esta piscina? A mim faz-me lembrar David Hockney – continuou sem me dar tempo de avaliar. – Foi uma sociedade hedonista, onde o corpo era e é glorificado e a homossexualidade ganhou espaço, que permitiu as pinturas apolineamente erotizadas de Hockney.
A conversa já começava a enfadar-me e tratei de a desviar para as frivolidades das conversas de viagens. Dois dias depois, quando passámos uma dezena de horas em Roma, fomos os quatro fazer o passeio sugerido por Renato. Não nos interessava repetir as visitas aos museus do Vaticano, às catacumbas e quejandos, que tínhamos feito doutra vez. Levou-nos a ver obras importantes, mas que não ficam nos roteiros habituais. Vimos o rosto «terrível» do Moisés de Miguel Ângelo e o inacreditável Êxtase de Santa Teresa de Bernini, onde não sabemos com o que mais nos surpreender: se com a inesperada expressão de gozo sensual de Santa Teresa, se com o facto de tal grupo escultórico erótico estar há séculos num altar. Renato aproveitou para teorizar sobre os jogos subconscientes da mentalidade de cada época e a resposta que a arte lhes dá.
Nessa noite, ainda confraternizámos e dançámos na discoteca do navio, onde uma pequena, mas estimulante, banda animava os foliões antes de deitar. Lá pelas cinco da manhã, acordámos com grandes solavancos do barco. Saí, cambaleante, para o corredor deserto e espreitei o mar. Estava bastante encapelado, devido a vento forte, mas o barco não parecia intimidado. Ao pequeno-almoço, pouca gente apareceu. O mar continuava agitado e o ambiente era deprimente, com gente amarelada a retirar-se para as cabines. Renato e a mulher foram dos que preferiram curtir o enjoo longe de olhares.
Chegámos a Barcelona a meio da tarde, já com bom tempo. Dos nossos amigos, nem sinal. Atracado o paquete, houve atrasos inesperados, antes de nos libertarem para as ruas da cidade. Havia movimentações no cais, pessoas entravam e saíam do barco, até que, estupefactos, vimos Renato ser levado algemado para fora do navio, com a mulher a acompanhá-lo. Em vão, tentámos saber o que tinha acontecido. No dia seguinte, depois de termos visitado o extraordinário parque Guell, do Gaudí, deparei-me com a fotografia de Renato na capa de um jornal local. Lemos a notícia, sofregamente, e oscilámos entre o sentimento de incredulidade, perante as revelações do jornal, e de desconforto pela nossa ingenuidade. Segundo o jornal, uma longa investigação tinha descoberto que Renato era um recetador de inúmeros ícones roubados em pequenas igrejas ortodoxas da Bulgária, que eram canalizados para agentes, na vizinha Istambul. Os ícones pintados eram dissimulados por detrás de quadros contemporâneos vulgares e Renato usava os cruzeiros para os fazer sair do país, devido ao menor controlo de fronteiras exercido nestas circunstâncias. 




Dei por mim a pensar como é que Renato enquadraria este desenlace nas suas teorias dos jogos…


(Conto integrado na coletânea Ora, Vejamos… 2009)





domingo, 24 de março de 2013

ONZE DE MARÇO – DOIS ANOS DA TRAGÉDIA NO JAPÃO


Há duas semanas, completaram-se dois anos das tragédias no Japão. No momento do primeiro terremoto, por volta das três da tarde, estava em Higashi-Ginza (centro de Tóquio). Lembro dos momentos de tensão para todos, desde então: trens parados, notícias desencontradas, impossiblidade de comunicação – recordo que havia filas nas estações para as cabines telefônicas, pois até a comunicação pelos celulares ficou prejudicada. Naquela noite, tive que dormir num abrigo improvisado em um dos prédios locais, pois os trens pararam desde Ueno (a 30 minutos, de trem, até minha residência).
E, em meio ao pânico, no final da tarde, a notícia: o tsunami destruía cidades e povoados na região de Tohoku. 
Consegui retornar para casa no dia seguinte. Em casa, minha esposa aliviada – por meu regresso com segurança -, mas, ao mesmo tempo, tensa, pois a TV começava a trazer piores notícias: o perigo da radiação, entre elas. E, daí em diante, começariam as consequências nocivas para a população, o que se prolongaria ainda por alguns meses: diminuição ds estoques de comida nos supermercados, horas previstas para o corte de energia (de três a seis horas, duas vez ao dia, etc). Ou seja: o sempre tão planejado Japão estava agora sem saber o que fazer. Mas a verdade é que ninguém nunca sabe, seja onde for, o que fazer diante de uma tragédia.
No exterior, falsas notícias de que TODO o Japão estava sofrendo os efeitos da radiação – quando, na verdade, eram somente as regiões atingidas pelos terremotos -,  faziam com que os estrangeiros evitassem viagens e até investimentos no país. E a economia, já afetada desde 2009, passaria a enfrentar, desde então, uma crise ainda maior. Efeitos estes que sofremos até os dias de hoje.
Quanto à região de Tohoku, as medidas do Governo para reconstruir a região, e devolver a paz e a dignidade a seus habitantes, tem início ainda em 2011. Porém, passados dois anos, tal reconstrução ainda se arrasta, e muitas pessoas continuam desabrigadas, sem emprego e sem esperança. Notícias de suicídio e de alcoolismo, infelizmente, aumentaram entre seus habitantes, conforme divulgou a TV num especial sobre a tragédia.
Dois anos se passaram desde aquele 11 de março, mas as feridas no Japão ainda permanem profundas, difíceis de cicatrizar.

Edweine Loureiro
Saitama, Japão
Março de 2013.





sábado, 23 de março de 2013

Teus profundos olhos negros


Teus profundos olhos negros
escondem o tempo,
escondem segredos.

Teus profundos olhos negros
que tanto apreciaram o mundo,
hoje enxergam cada um a sua maneira:
um enxerga a própria escuridão que o compõem,
o outro, em meio a tons de cinza,
busca as cores de um mundo que já se foi.

Esses teus profundos olhos negros,
que escondem o meu passado,
escondem segredos,
mas revelam uma vida,
revelam dor,
revelam o cansaço de uma vida.

Ai esses teus profundo olhos negros,
de tão negro são brilhantes.
Um brilho de uma vida que se foi,
de um tempo que não volta,
daquela nostalgia da infância.

Perco-me nesse negro brilhante.
Tento em vão compreende-los,
talvez para compreender-te.

Não, não quero compreender-te,
quero apenas abraçar esses teus
olhos profundos, construídos com longos anos,
com os meus próprios olhos negros,
simples como o de uma criança.





sexta-feira, 22 de março de 2013

Agulha nº4

De repente, tudo o que se fala tem a ver com bebês. Descoberta de gravidez, previsão de chegada, batimentos cardíacos normais, ultrassons, chás de bebê, decoração de quarto de recém nascida, partos sem grandes traumas, visita à maternidade, estado de graça, babação, fotos e mais fotos, muito contentamento. Adoro crianças, especialmente as menores, e acho que essa movimentação de vida que começa dá uma leveza ímpar aos humores das pessoas, faz durar nosso estado de alegria. Tenho reparado até certa cobrança, afinal de contas quando se cumprem as regras sociais que dão origem às famílias no sentido tradicional não é apenas o relógio biológico que pede satisfações. Apesar de a última semana ter sido cheia de notícias assim, há uma lembrança sobre gestação que dá voltas na minha cabeça, uma história difícil.

A Laura nunca foi do tipo que arrasta tristeza pelo chão, mas nos últimos meses olhava para sua vida e não conseguia ver nada de bonito, de colorido, de seu. Do lado de fora da porta de entrada, aconchegada sob o cobertor na cadeira de balanço, ela desembrulhou sem entusiasmo o presente de Daniel. Era a décima oitava terça-feira desde aquele dia e o primo insistia em fabricar uma intimidade que, por Laura, jamais teria lugar para existir. Os dois foram criados muito próximos e os parentes tratavam com naturalidade a mania que ele tinha de cercá-la. Um dia isso passa, comentavam após almoços, deixa ele conhecer mulher, garantiam os tios. Mas não passou. Numa manhã bem cedo Daniel valeu-se da ausência dos pais de Laura na casa do campo, entrou sem fazer barulho, subiu as escadas, abriu a porta do quarto dela e entrou. Houve grito, houve socos, houve choro e pedido de socorro, mas não havia ninguém por perto, com ouvidos de ouvir.

Dentro da caixa do presente, novelos de lã vermelha e sapatinhos de bebê recortados da revista. Perdeu o que restava de graça a Laura, que nos últimos dias sentava no mesmo lugar, na mesma hora, a tricotar um blusão cinza de gola alta. Pensou na avó paterna, que lhe ensinou a colocar os pontos na agulha e a tramar as primeiras carreiras. Lembrou da rigidez da velha e quase ouviu a voz grave de repreensão: isso não é ponto que se dê, criatura! Apertado desse jeito, vai terminar um ninho de camundongos o teu tricô. Pode desmanchar e fazer de novo, com decência. Teve medo de imaginar como a avó a trataria se fosse viva e soubesse que.

Sabia que estava perdida, nem sinal de menstruação. Confirmou o adiantado do blusão, já tinha as mangas e as costas prontas. Começava a frente com as agulhas mais finas, de número 4, como havia aprendido. Quinze, dezesseis, dezessete pontos, aflição. Olha, não é que eu não te queira, não é isso. Vinte e nove, trinta. Eu não posso contigo e não suporto de onde tu vens. Não tenho um corpo que possa te servir de casa em tempo algum. Do meu desgosto jamais nasceria exemplo e retidão de heranças para ti. Eu não tenho nada de bom para te oferecer, nem buscando lá no fundo. Cinquenta e cinco. Não sou nada. Acho que nunca cheguei a ser. Laura dizia coisa para dentro, numa conversa longa e necessária, sem perder-se nas contas.

Respirou fundo e, decidida, arrancou a agulha dos pontos, passando-a para baixo do cobertor. Sem provocar suspeitas dos pais que iam e vinham do campo e entravam na casa com frequência, envolvidos que estavam com as ovelhas, puxou com calma a saia para cima das coxas, arredou a calcinha para o lado com uma das mãos. Segurou firmemente a agulha e cravou o próprio ventre. Diversas vezes. Aguentou a dor sem choro até o fim. Até o frio. Anoitecia e Laura tinha olhos vidrados no horizonte de árvores verdes.





quinta-feira, 21 de março de 2013

O Melhor Amigo do Homem


Chegou em casa puxando o cachorro pela ponta de um barbante improvisado como coleira. Janete tão logo pôs os olhos no bicho, resmungou:
— Apartamento não é lugar prá cachorro! Já tenho trabalho por demais, homem! Vou lá ser aia de um cão?
Adalberto clamou pela compaixão da esposa. Encontrara o animal perdido e, em um ato de piedade, o levara para casa. Que mal havia nisto? Seria uma companhia para os dois, um casal sem filhos, beirando a meia-idade. Como a esposa mantinha-se resoluta, apelou para os santos
— Por São Francisco, mulher!
Neste ínterim o cachorro, que se mostrara impassível durante a discussão, escapou da coleira de barbante improvisada e correu em direção a Janete de jeito festivo, abanando o rabinho cotó. Amolecida pelos carinhos do animal, a esposa foi aos poucos cedendo. Que ficasse o pulguento. Adalberto poderia dispensar a ajuda do santo protetor dos animais. O cão vencera.
 Sentados no sofá, acariciando o pelo do cachorro que se deitara entre os dois, Adalberto e a mulher começaram a debater como chamariam o animal. Depois de abortarem algumas nomes, Janete cismou por Ralf. Adalberto preferia Rex, todo cachorro se chamava Rex, não convinha inventar mas, diante da insistência da esposa e temeroso de que a contenda em torno do nome a fizesse mudar de ideia em relação a permanência do bicho, Adalberto capitulou. Daria um tiro na cara de Janete caso descobrisse que o nome escolhido remetia a recordações luxuriosas entre a esposa e seu primeiro amante, um Padre alemão (ou austríaco, Janete nunca soube ao certo) com quem ela descobrira as ciências do amor dentro casa paroquial. O casal se amava após sermões do Padre, hipocritamente pregados no púlpito, carregados de ameaças àqueles que, mesmo em pensamento, pecassem sensualmente. Colegial inocente na época, Janete caiu de paixão pelo religioso. Sofreu o diabo quando Padre Ralf foi enviado para a África. Por anos a fio, Janete imaginou que ele havia sido devorado por supostos canibais. À noite, o seu sono era assaltado por pesadelos. Acordava suarenta, mente agitada pelas visões de partes do corpo do Padre Ralf, tão conhecidas, tão intimamente percorridas por ela, dilaceradas por bocas antropófagas. Sim, o padre merecia a singela homenagem.
E o cãozinho conquistou o casal. Era gratificante para ambos ter alguém, ainda que irracional, como objeto de um amor quase filial. Banhos, tosas, roupinhas de cachorro, passeios pelo condomínio onde moravam. O único motivo de discussão entre eles passou ser o prosaico privilégio que um acusava o outro pelo zelo extremado a Ralf.  O cão agradecia a atenção recebida com chamegos.
Durante um dos incontáveis passeios com Ralf pelo condomínio, Janete conheceu Rogério, um viúvo, aposentado, tipo atlético apesar dos sessenta, também morador do conjunto residencial. Ele afagou Ralf que, de rabo abanando, simpatizou com o viúvo. Cumprimentaram-se mecanicamente. “Belo animal”, disse ele. “Obrigada”, retribuiu. E cada um tomou sua direção. Depois deste episódio, sempre que Janete passeava com Ralf, Rogério cruzava seu caminho como por encanto. Os monossílabos trocados no primeiro encontro metamorfosearam-se em diálogos gentis e da simpatia nasceu a atração. Em pouco tempo Janete e Rogério tornaram-se amantes. Sob a cumplicidade do cachorro, os dois se encontravam fora dos limites do condomínio. Janete embarcava no carro do aposentado e Ralf ia no banco traseiro. Nunca se soube que motéis aceitassem cachorros, tal fato seria uma aberração, um verdadeiro culto à bestialidade. Permaneceu assim o mistério do local para onde aqueles três personagens se dirigiam.
Adalberto começou a estranhar a maneira como a esposa passou a tratá-lo. Tornara-se distante, fria, dispersiva. E aquele sorriso permanente? Qual o motivo da alegria? A felicidade de Janete o incomodava. Fofoqueiras da comunidade fizeram chegar aos seus ouvidos insinuações maldosas em relação à fidelidade da uma certa esposa cujo cachorro passeava demais. Mesmo sem provas, tornou-se ríspido com a mulher. Só a possibilidade de traição o desnorteava. Ela, mais preocupada com sua nova paixão, sorria o seu sorriso de adúltera por todo o condomínio enquanto desfilava por entre os blocos de apartamentos escoltada por Ralf .
Um dia, ao chegar do trabalho já corroído pela desconfiança, Adalberto decretou.
— De agora em diante quem leva o Ralf para passear sou eu!
— Vai me prender em casa?
— Só estou dizendo que vou levar o cachorro pra passear. Não posso?
— Claro que pode, se esta é a sua verdadeira intenção....
 O pobre Adalberto segurou de forma abrutalhada o rosto da mulher.
— Se for verdade que você me trai sua ordinária, eu não respondo por mim...
— Pergunte ao Ralf! – zombou a mulher, livrando seu rosto daquela mão suada.
Disposto a não cometer um desatino, Adalberto tomou a coleira e chamou Ralf para passear. O cachorro prontamente o atendeu. E saíram os dois, com estados de espírito opostos. O dono, exalando ódio e dúvida, o cão, felicidade estampada no abanar da cauda. Deram uma volta pelo condomínio e Ralf  arrastou o seu dono para o estacionamento. Em meio aos inúmeros carros, Adalberto descobriu o de Rogério. O veículo estava com as portas escancaradas. Dentro, o aposentado, espanador, nas mãos, tratava da limpeza do estofamento. O viúvo desviou o olhar para não encarar Adalberto. Era o amante, todavia mantinha seus pudores. Não era daqueles de desafiar maridos traídos e exibir suas conquistas. Rogério poderia se dizer, tentava ser discreto como um mordomo, daqueles que, diante de seus patrões parece desaparecer, aglutinando-se a mobília de uma casa.
Acontece que Ralf, ao reconhecer Rogério, rompeu com força a coleira da guia e, saltitante, correu em direção ao carro do aposentado, entrando e se aconchegando no banco traseiro.
Aquele gesto do cão fez com que Adalberto fosse como que atingido por uma bala. Explodia diante de si a prova da infidelidade de Janete. Até o cachorro, que ele tanto prezava, o enganara. “Corno da esposa, corno do seu próprio cão”, ruminou. Rogério empalideceu. Tentou se explicar, mas viu que as palavras morriam em sua boca. Inesperadamente, Adalberto girou calcanhares e, bufando, dirigiu-se para o bloco onde morava. Abriu a porta de com violência. Janete estava na cozinha preparando o jantar. Diante de um marido rubro pelo ódio e coleira na mão, ela escancarou os dentes numa risada indecorosa. Adalberto saltou para cima de Janete e, sem ligar para os seus protestos e resistências, amarrou a parte que restara da guia e da coleira no pescoço da esposa e a arrastou para a pracinha central do condomínio. Juntou gente para ver a humilhação. Meia dúzia protestava, outros apoiavam o modo como o marido punia a mulher adúltera. Crianças riam e pulavam divertidas, sem ter a real compreensão do dantesco espetáculo.
— Cachorra! Vagabunda! Vem dar uma voltinha, cadela no cio! – vociferava Adalberto, exibindo a traidora pela coleira que na, tentativa de resistir, teve o corpo arranhado pelo contato com o a aspereza do calçamento.
Em meio ao tumulto, Rogério fugira no automóvel levando Ralf com ele. Deste modo, o viúvo não presenciou o final mexicano dos acontecimentos. Achincalhada perante os vizinhos, humilhada diante de uma comunidade, Janete vingou-se com a originalidade que só algumas mulheres são capazes de fazer. Aproveitou-se de uma mínima distração de Adalberto e conseguiu enrolar a guia da coleira em torno do pescoço do marido. Apertou com todas as suas forças, asfixiando-o. Os vizinhos ainda tentaram socorrê-lo, mas a fúria de Janete impediu que eles conseguissem afrouxar o laço. Morreu ali mesmo, na praça, olhos saltando das órbitas, boca espumando, ante o horror dos moradores. Janete está presa. Agora é famosa. Um programa sensacionalista de televisão a batizara como “O Monstro da Penha Circular”. Rogério reapareceu meses depois e, portando sua costumeira discrição de mordomo, providenciou a mudança. De Ralf, não há notícias.





quarta-feira, 20 de março de 2013

O acaso é passageiro


Sou um esbaforido crônico. Amarrotado, mal ajambrado, três envelopes pardos embolados
entre jornais dobrados debaixo do braço, corro pela rua. Nos dedos, um saco politicamente
incorreto de padaria com suco de mamão com laranja, sem açúcar, por favor, tomara que a
garçonete cara de entojo tenha fechado o copo direito. Na mesma mão, uma sacola de papelão.
Tênis, meião, short, camiseta amarfanhada. Fazendo do mindinho um gancho, enrosco um laço
delicado de um pacotinho mimoso estampado de rosas sobre um fundo lilás. Acordei tarde,
não posso perder a hora, o minuto, o instante.  Nesta condição infame e atabalhoada,
mergulho num taxi que, talvez por piedade, para ao meu aflito e troncho sinal: a mão que sobra,
segurando dois livros que leio simultaneamente, acena como um náufrago ao escaler.
E me jogo ao banco de trás do carro, agradecendo à inventiva humana pelo ar condicionado,
relegando a segundo plano a penicilina, o astrolábio, o caminho marítimo para as Índias, o inconsciente,
o quanta, os óculos, a camisinha, a vacina Sabin - agora peguei pesado - , o vinho, a combinação
mágica e inebriante das sete notas musicais, a fita crepe, a roda, o cortador de unha, a anestesia, sim,
nada criado pelo homem pode ser mais importante que a brisa gélida que me acolhe agora.
É o analgésico dos males do bafo de Lúcifer, vulgarmente chamado pelos otimistas que ostentam
corpos dourados de verão carioca. E suspiro. Digo para onde quero ir e me deparo com uma
voz suave e delicada. Mais pausa para respiração. Trata-se de uma motorista, mulher com todas
as letras e charmes, uma chauffeuse, como dizia minha avó, empinando as narinas, embicando os
lábios prenunciando o botox, espargindo perdigotos. Minha adrenalina se curva à circunstância.
Ajeito as tralhas cuidadosamente no banco e me estico ao lado oposto para contemplar Sonia, como
diz o crachá colado ao para brisa. Tudo se acalma. Gosto de mulheres me conduzindo. E que mulher
bonita. E que sorriso bonito. E que gestos bonitos ao passar a marcha e comandar o volante.
Tentamos um diálogo minimalista. O trânsito. O calor. A cidade. A selvageria dos ônibus.
O abuso dos motoqueiros. A fragilidade ousada dos ciclistas. A indolência dos guardas municipais.
Imagina na Copa. Não dá para contemplar a dona totalmente de frente, mas seu sorriso de perfil
e seus olhos no retrovisor me bastam. Acho que estou carente.  Acho, não: estou. O diagnóstico
é óbvio. Um amálgama de melancolia, autoestima no pé, chifres na cabeça. Mas do resíduo que sou,
faço o adubo da minha coragem. Tão pensando o quê? Vou jogar tudo pro alto, vou mudar
o destino da vida e deste taxi. Por favor, Sonia, vamos pela praia e dê uma paradinha para uma água
de coco. Quero conhecer essa mulher em pé, andando a esmo pelo calçadão de Ipanema, as pernas
que vislumbro intuem um caminhar gostoso, num doce balanço, o balanço do mar, que alguém
já decantou diante daquele mesmo céu, dessa gente feliz. Sou piegas, sou clichê, e daí? Ela merece.
Ela não é nenhuma garotote, nem carcomida pela vida. Travessa, esbanja veneno. Madura, focada, conversa de olho no carro da frente sorrindo para mim, eu sei que é para mim. Suas unhas são bem
feitas, suas mãos decididas. Não usa aliança, não tem retratinho de criança no painel. Mas,
o que importa? Neste exato momento na rua que não anda, ando eu com meus pensamentos incandescentes. E puxo assunto. Fecham os cruzamentos, gente mal educada e sem respeito. Tudo
está parado. Só a conversa acelera. Cidadania, trabalho, passageiros, saúde, solteirice, homens
canalhas, mulheres desfrutáveis, vida a dois, traição, Martinha me largou, sabia? Edvaldo aprontou
comigo também, aquele patife! Sexo sem compromisso, não precisa mandar flores, ah, eu gosto de
mandar flores, dia seguinte é tudo. Como pode? Num engarrafamento de hora e vinte e cinco com
uma chauffese encantadora pode tudo. Um sonho, um desejo, uma viagem de estourar o taxímetro.
Pena que chegamos.
Aqui está, Sonia, pode ficar com o troco, digo eu. Divertido, gentil, muito gente boa, diz ela.
Foi um prazer, abro um sorriso, olhos nos olhos. Aqui está o cartão da cooperativa, me entrega,
devolvendo a flechada com o olhar. Quando precisar, é só ligar. E se não precisar? Arrisco
timidamente. Ah... liga assim mesmo, responde dengosa. Bingo. Não saio do carro. Espreguiço
em direção à calçada. Ainda dá tempo para um cretino e derradeiro provérbio que invento na hora, atribuído a um sábio qualquer do Nepal: que os deuses do acaso lhe aprontem surpresas felizes.
Ela sorri, piscando os olhos lentamente. Acertei fundo, penso eu. Ela não dá partida no taxi.
Acertei fundo, tenho certeza. Ela acompanha meu caminhar atolado de tralhas até o entra e
sai do edifício majestoso de vidro fumée e entrada de aço escovado. Não entro. Vigio a sua saída, demorada, involuntária. O trânsito buzina insensível, impaciente, invejoso. Trocamos palavras mudas
de rabo de olho. E segue a vida.
Subo as escadas como um Fred Astaire, canto como a Noviça Rebelde. Em três andares repasso
a minha existência. Lépido, zombo das desditas. Tantas e tantas nesses 46 anos de carne, osso e
algum espírito. Morro de rir da desgraça mais fresca: Martinha me trocando pelo psicanalista do gato,
de nome Escaldado, bicho esquisito temente à própria sombra, sempre apavorado com Dr. Raphael
De Pomposo Sobre Nome De Encher a Boca Neto, acho que com razão e perspicácia, já que
o doutor em behaviorismo de felinos e outros pets acabou por roubar minha mulher. Diabo de gato visionário. Sempre me olhou como se eu fosse um idiota, o adjetivo que mais ouvi de Martinha,
entre os tantos que ela me desfiou com sua voz anasalada salpicados de palavras da língua inglesa, para justificar com seu estilo sua saída de banda: seu tijucano mal ajambrado, seu troncho, seu gauche, seu asshole, seu good for nothing, seu metido a intelectual de boteco, seu chicken, seu traste, seu fucker
looser, seu isso, seu aquilo. Ouvi tudo calado, chorei baixinho e agora acho a maior graça.
Ah, Martinha, você é uma dondoca vagabunda. Vagabunda, dondoca, besta e burra. Muito da burra.
Tem gente com alma de gente, jeito de gente, sorriso de gente, que acha que eu sou gente. Sou gentil, divertido e gente boa, não foi isso que a Sonia disse? Ah, Martinha, a vida é um moinho -
de novo o clichê, a ausência de originalidade, a pieguice rasteira. Dane-se. Agora é cada um na sua.
Você com seu Freud de bichano cuidando da sua patricice e eu com minha taxista tesuda, charmosa, simples, guerreira, me levando aos píncaros dos paraísos. E com essas palavras no coração
e cara de freira possuída, chego secretamente feliz ao meu destino.
A sala está cheia. A recepcionista vem ao meu encontro, apontando para o relógio. Em cima da hora,
diz ela. Peguei um belo trânsito, digo eu. E que trânsito, que trânsito, que trânsito, repito, repito, repito sorridente, sentando na cadeira em frente à escrivaninha. Começa o confere. Trouxe roupa apropriada
para o teste ergométrico? Claro. Os resultados das radiografias anteriores? Tudo aqui. Jejum de
12 horas? Sim, sim. Ela baixa o tom de voz: ejaculação nas últimas 48 horas? Nem por conta própria,
minha filha. Ela ruboriza, se apruma e vai: medicamentos frequentes? Poucos: controle de pressão, colesterol, gastrite, vitaminas C e E. Coleta para o exame parasitário? Como? Arregalo os óculos. Ela, discreta, cochicha professoral ao meu ouvido: as-fe-zes-no-po-ti-nho. Pronto. Todas as tralhas desabam
no chão da ante sala do laboratório. Sinto que as pessoas param de ler Caras, Capricho, futucar celular, tablets, essas coisas.  Respiro fundo, tranco os olhos e vejo o pacotinho mimoso estampado de rosas
sobre lilás, tão disfarçadamente embrulhado, solitário e delicado, repousando prosaico no banco
traseiro do taxi de Sonia.
Virei estátua. Martinha é sábia. Escaldado, o gato visionário. Só me restam um silêncio infinito
e um olhar profundo para o nada.  Minha mão sai do controle. Mato mil moscas na minha testa,
pulo súbito sobre a escrivaninha. Quero fazer harakiri com uma caneta Bic.






terça-feira, 19 de março de 2013

Um filme à meia-noite (Parte 2)

(Maristela Scheuer Deves)

Na escuridão completa, seu coração deu um salto. Sem nem mesmo perceber, trancou a respiração e ficou estática, sem mexer um músculo. Só escutando. O ruído dos passos cessara, mais uma vez. Depois de alguns segundos, atreveu-se a respirar novamente e baixou as pernas da poltrona da frente. Ficava ali esperando para ver se o filme recomeçava, ou saía da sala?

Seu desejo, tinha de admitir, era sair dali imediatamente, mesmo que nunca ficasse sabendo o final da história que tanto quisera ver. Seu orgulho, no entanto, obrigava-a a continuar ali, esperando. Eles vão voltar a passar o filme, e as luzes de emergência vão voltar a se acender, garantiu a si mesma em pensamento (ainda não se atrevia a falar alto, mesmo estando sozinha na sala - estaria mesmo?).

Esperou pelo que lhe pareceu uns dois minutos, depois cinco. Já se mexia incomodada na poltrona quando os passos voltaram. Eles estavam ali, não era produto de sua imaginação. Talvez fosse um funcionário do cinema, que procurava-a para avisar que houvera um problema técnico ou de falta de luz, e que ela deveria voltar outro dia ou aguardar por tanto tempo. Se era um funcionário, porém, por que ele andava no escuro, sem uma lanterna? Por que não falava nada? Por que só andava, sorrateiramente? Por que...

Foi aí que ela ouviu. Além dos passos, havia algo mais. Uma respiração pesada. E não era ela, tinha certeza. Como alguém respirando pela boca, ou talvez... O som chegou mais perto, e já não parecia mais uma respiração, por ais pesada que fosse. Agora, parecia mais um rosnado... Algo inumano, algo animal. Começou a tremer, incontrolavelmente, e sufocou um grito. Fosse quem fosse (ou o que fosse, corrigiu-se mentalmente), melhor não revelar sua localização.

Localização. Era isso, precisava se localizar. O rosnado e os passos vinham de trás, vagarosamente, porém se aproximando. A entrada estava à frente, à direita. Ou seria à esquerda? Droga de cinema, em que cada sala te entrada por um lado! Se ao menos as luzes de emergência tivessem continuado acesas, ela saberia onde estava a saída...

Deixou escapar um gemido, e a coisa que estava atrás ouviu, tinha certeza. Até rosnou mais alto dessa vez, derrubando as últimas dúvidas que ela tinha. Agora, o barulho estava muito próximo. Uns dois ou três metros, no máximo. Levantou-se, tentando não fazer barulho. Precisava sair dali, e o mais rápido possível. Mas como? Para que lado ir? Ainda se decidia, tentando enxergar algo na escuridão absoluta, quando alguma coisa tocou o seu ombro, e ela não pensou mais: correu na direção oposta, tropeçando nas poltronas no caminho.

(termina no dia 19 de abril)





segunda-feira, 18 de março de 2013

COISAS DA VIDA, E DO CONSUMO


 por Otávio Martins

   Já nem reparava nas instalações – ou já não lhes despertavam mais qualquer atenção – tampouco nas coisas, tantas, as quais se espalhavam pela casa toda. Quanto mais se inteirava da moda e do que as suas amigas e conhecidas haviam adquirido, maior a quantidade de objetos que iam substituindo aos mais antigos. Até mesmo para “livrar-se” daquilo tudo que considerava obsoleto, era uma trabalheira danada. Coisas que iam se tornando quase como entulho. Quando atingiam certa condição, eram olhados como trastes. A compra em si era o que a entusiasmava e incentivava. Objetos, que teria visto, ou parecidos com outros que tomara conhecimento por aí. Seus guarda-roupas andavam atopetados; modelitos que ainda nem havia experimentado. Sempre faltava alguma coisinha... Mas, era assim que se sentia realizada, feliz.

   Perdia-se pelos corredores de shoppings e por ruas cheias de lojas. Na maioria, bugigangas, ou coisas que perdiam a sua importância tão logo eram retiradas da vitrine.    Seu marido até que gostava daquilo tudo. Achava, com certo descaso, que, assim, ela teria com que ocupar o seu tempo. Mesmo pesando no orçamento e nas movimentações de seus cartões de crédito – pensava - valia à pena.

   Num dos finais do dia e início de noite – um tanto fria – parou diante de uma barraca que vendia churrasquinhos. Nem sabe por que parou ali.  O olhar do homem que atendia na pequena barraca improvisada – além de duas mesas e quatro cadeiras, dessas cedidas por fabricantes de alguma bebida qualquer - parecia um ímã. Ali, hipnotizada, não teve alternativa, pediu um churrasquinho e, (escolheu o de carne mais magra – lembrou do seu regime, o qual uma amiga havia lhe indicado) solenemente, sentou-se numa das mesas, à espera dos últimos preparativos. Num pratinho, de tamanho médio, dois guardanapos de papel sob o alimento, a água mineral, canudinhos e papel, acondicionados em pequenos recipientes, além de alguns temperinhos, caso quisesse incrementar o seu churrasquinho.

   Tanto o olhar do homem, quanto a sua força de minutos atrás, de segurar o freguês por sua simpatia, desarmaram-se. Parecia satisfeito. Deixou-se levar pelas perguntas e pela conversa, sentindo que ela estava necessitando falar com alguém. Pouco ela falou de si. Estava interessada em descobrir de onde vinha aquele poder, tanto do olhar, quanto de outras atitudes que, conversa vai, conversa vem, ficou sabendo que – quer dizer, ele lhe contou – talvez pela necessidade que tinha de comprar um fogão novo lá para a sua casa, esforçava-se ao máximo no atendimento. Sua mulher já não agüentava mais aquele velho. Duas bocas que já não acendiam; o forno, nem pensar; as bocas restantes exigiam muita paciência. Enfim, já não servia mais pra nada, como se costuma dizer.

   Impossível não lembrar da sua casa. Também, nem perguntara à empregada se aquele fogão novo que havia comprado recentemente substituíra à altura, o antigo. Não que o outro estivesse velho, mas não tinha essas coisinhas mais modernas. Automaticamente, lembrou-se da churrasqueirinha – daquelas elétricas, de cozinha, que o alimento fica rodando sozinho – a qual nunca havia usado. Perguntou ao homem se poderia lhe vender uns quatro churrasquinhos, crus, os quais levaria para assá-los em casa. Reforçando, elogiou o corte e a seleção da carne, gostaria de comer mais tarde.

   Chegando a casa, entusiasmada com a situação e com a própria atitude, ligou a churrasqueirinha, deixou esquentar um pouco, e colocou os quatro churrasquinhos para rodar. Pouco tempo depois, retirou-os e, acomodou-os em um prato; noutro, os temperos, levou a comida até o escritório onde o seu marido ainda estava trabalhando.

   Ele nem se admirou. Era assim que costumava avaliar as suas atitudes, com desdém. Apenas estranhou o horário, pois àquela hora, coisas do seu regime, nem mesmo ela costumava comer. Já passava das dez horas da noite.





domingo, 17 de março de 2013





         Perguntei ao menino com uma mala, ali sentado na estação, se o trem para a capital demorava. Não, ele disse, daqui a pouco. Levantou-se e foi para a beira da plataforma. Logo o apito soou e o trem, com um estardalhaço, chegou, parou e abriu as portas. Eu queria ser ele. Para tomar o trem.



***


          Não vim para pegar o trem, tomarei outro caminho. Sairei pela estrada, com o meu carro. Agora, na beira da plataforma, vejo o trem para a capital se afastar, com um menino. Sequer nasci nessa cidade, eu sou da capital. Estou só de passagem. Quero ao menos presenciar, aquilo que consigo só imaginar.





sábado, 16 de março de 2013

Carta de uma casa velha a inquilinos novos




Acaso me fosse possível, eu iria recebê-los. Tamanha a ansiedade em que me encontro para superar esse período prolongado de tristeza e solidão que me segue há tanto tempo. Não depende de mim afastar o infortúnio. Nunca dependeu. Se estivesse em minhas mãos decidir felicidade, eu nunca teria chegado a estar assim, tão vazia, despida de qualquer emoção decente.
Sou um corpo nu e exposto. Ora me deparo com olhares de tolerância, aprovação e até mesmo cumplicidade. Ora com o riso dos idiotas, com o desdém dos preconceituosos, com o deboche dos inconsistentes. Os acontecimentos moldam meus humores e é nisso que se descontrolam os meus sentimentos. Minha vida tem sido estranha e solitária.
Eu poderia fingir que tudo está bem, para não assustá-los. Mas mentiria. De tanto silenciar ante as histórias do tempo, fui acumpliciando-me com segredos, ensurdecendo-me aos lamentos, cegando-me aos crimes. Houve muitos por aqui. Todos eles por amor, disseram-me várias vozes ao longo das décadas. Disparate! Só o que vi da morte é que é desalento, desistência.
Queria tê-los ido encontrar na entrada dos jardins. Uma primeira impressão, um momento de leve dúvida se deveria ou não sorrir, uma acolhida elegante. Mas a vista envelhecida já não alcança tão longe e, afinal, logo estaremos juntos, porque já consigo delinear seus vultos aproximando-se da porta principal. Vejo que desistiram do carro e puseram-se a pé desde o início da propriedade. Bom sinal. Ao menos se importam em apreciar o que possuem. E se o fazem pelo simples ato de exibirem a si mesmos e aos outros a pertença, não vejo diferença no que sentirão com isso os arbustos, as flores rasteiras e o pequeno lago revigorado pela limpeza de alguns dias atrás. Sentir-se-ão apreciados. Depois de um tempo na existência, a gente aceita qualquer olhar que nos distinga do esquecimento. E os motivos deixam de importar.
Estou aqui retorcendo as palavras, pois há muito mesmo a lhes contar, mas a tentação de acompanhá-los caminhando pela alameda faz com que a curiosidade da inspeção supere os discursos preparados de véspera.
Cinco... Vocês são cinco. Não, não! Percebo agora, em meio às pernas do menino mais alto, um cachorro peludo que se atordoa com os novos cheiros. Então, são seis. Que a mim não dizem nada pernas ou patas, se o que constato é serem todos, ao final, criaturas que preenchem meus dias com afetos, desavenças, buscas, entregas.
Melhor concentrar-me novamente nos fatos. Vejamos... O que seria mais adequado para este nosso primeiro contato? Um abrir de porta com um sorriso amigável? Ou o escancarar das janelas para permitir que o vento substitua o ranço das memórias por aromas de mato? Mais tarde, no entanto, teremos que conversar sobre coisas mais sóbrias. Teremos, sim. Mas... Coisas? O que estou dizendo! Quando foi que me entreguei a isso de chamar de coisas os acontecimentos? Não, não! Falaremos de histórias, de infortúnios, de vidas que passaram pela minha. De gente que me contou, em sussurros ou gritos, suas aflições, seus medos, suas vontades. Gente que me mostrou seus demônios. É sobre eles que preciso alertá-los. Sobre os demônios que me habitam. Antes que o vozerio de vocês, agora tão perto, trespasse o umbral recatado que nos separa.
  Vou lhes contar sobre a noite de tempestade em que filho e pai se confrontaram. E da gaveta onde uma arma repousou dissimulada, até cumprir o seu destino parricida. E das razões de cada um. Do pai que só tinha a mim para dividir as suas dúvidas. Que procurava no alto um Deus para lhe dar respostas fabricadas. Do filho que não podia mais ser quem não era, alma-fêmea presa a um corpo masculino. De como eu lhes ouvi as vozes quando iniciaram a alterar-se. E sobre as portas batidas com força que me fizeram estremecer. Prenúncios, prenúncios! De que serve aos inertes como eu antecipar desgraças? A mim coube, mais uma vez, acompanhar. O cessar dos argumentos, a luta entre forças tão desiguais, o tiro que seria paterno e que se tornou, num último instante, filial. E como não bastasse, pouco adiante, o horror de um segundo estampido que fez cessar qualquer outro respirar que não o meu.
Preciso, ainda, falar sobre as heranças disputadas a veneno no meio de noites sem lua. Das crianças molestadas em seus leitos pelos que deveriam protegê-las, dos velhos depravados a consumirem-se em sexo sem sentido, dos meninos a aprenderem com os capatazes a curra das serviçais humildes. Dos tempos que andaram e andaram e andaram até converteram revólveres e venenos em drogas brancas, inaladas em consolo ao desconsolo. Mortes demais. Do corpo; do espírito. Tantas que nem os anos foram capazes de apagá-las em mim.
Doem-me à exaustão a estupidez da intransigência, a inocência sufocada, a cobiça e a miséria que o desfile do tempo trouxe para dentro de mim. E exaspera-me pensar que demônios ainda possam estar por vir. Por isso, talvez, esta pressa em antecipar-me aos fatos e em apresentar a vocês o que sou, uma casa omissa, alquebrada.
No entanto, que estranho... Desviam-me do passado esses risos que me adentram despreocupados e a leveza desses pés que sinto agora sobre as tábuas do meu assoalho. Surpreende-me ver braços e mãos que abrem as minhas janelas e que deixam o sol entrar para aquecer-me as paredes mofadas. Afagam-me os ouvidos essas exclamações que aprovam o que sou, o que tenho a dar.
Talvez eu deva aguardar. Talvez eu não seja mais infortúnio. Talvez minhas paredes ainda escutem segredos de riso. Talvez a morte esteja em trégua comigo e me conceda expulsar os demônios que me habitam.
Talvez.

 





sexta-feira, 15 de março de 2013

efeméride



     

Maria Inês envelheceu demasiado depois que ele partiu, e envelheceu, assim como se encontra, rugas a juntarem-se umas nas outras, depois que lhe morreu o filho, dizem que por terras de África.
De seu tem a casita e aquele bode que nunca mais morre.
E tem sempre uma cabra e duas galinhas.
É criação que ela mantém há muito ano, tantos que perdeu o conto.
Se a cabra morre, ela compra outra, e vai rodando.
Nunca come.
Vende o bicho assim completo, mas apenas se calha aparecer vizinho a dizer: então não aproveita? Mas Maria Inês mora naquele ermo. É caso raro que aconteça. Enterra tudo no quintal.
Nunca o bode, que se eternizou rijo e barbudo como ela.
Se acontece uma das cabras dar-lhe o mal ou se morre de ser velha e é Quaresma, ela não vende, nem dá, e comer nunca come. Enterra o animal inteiro debaixo da figueira lampa e benze-se por alma.
E se em plena Páscoa Santa lhe dizem: então não aproveita?
Ela zanga-se, escorraça, grita. Baba-se de aflita. Dizem os miúdos que sobem da aldeia para vê-la:
– Parece uma bruxa.
Maria Inês reveza também a criação de bico, mas não a come, e nunca teve um galo. Maria Inês não faz criação, pelo contrário.    
No baraço em que prende a cabra, em cada ano, mais precisamente no dia onze de cada Fevereiro, enforca uma galinha.   
 Assim tal e qual, é como ela mata o animal.
É na data em que comemora bodas. É ela mesma que o diz enquanto aperta o pescoço do bicho com o baraço:
– O meu pai casou-me com o Fernando faz hoje cem anos.
Perdeu-lhe o conto e arredondou para tantos.
E repete: “ o meu pai casou-me com o Fernando faz hoje cem anos”, e é como se ela estivesse falando para um público, e revira os olhos que já foram azuis-claros e agora estão quase transparentes.
Os meninos em casa das mães, apregoam:
– A bruxa não tem olhos.
E as mães sovam-nos porque não querem saber de bruxas e menos ainda de mulheres abandonadas como dizem que foi a dona do bode e da cabra e das duas galinhas. Que elas sabem, ora se sabem!
 Nesse segundo mês de cada ano, ao dia onze, Maria Inês dirá, desse modo, apertando o pescoço do bicho.    
Se a conversassem, se algum passante demorasse a escutá-la, o que é apenas hipótese de quem escreve, ela diria que o marido emigrou, faz anos, por terras que ela não sabe onde, e nunca mais voltou nem disse dele, a deixá-la mal parida de um filho.    
O que Maria Inês não contará, é que o dia onze de cada mês de Fevereiro, ela não tem por certo que seja a data do seu casamento, que ela bem sabe que, quando subiu ao altar pelo braço do pai,  já rompiam os dias mais compridos e despontavam papoilas pelos campos. Seria Abril, mas Maria Inês, num dia em que o luto de marido vivo mais lhe tenha pesado, ou porque o filho lhe berrasse mais que a cabra, ou por razão outra que não sabe, nem saber disso vem ao conto, tomou para data de efeméride o dia onze do segundo mês do ano.
Aqui para a gente que ninguém nos ouve: talvez essa tenha até sido a data em que  partiu Fernando .
O certo é que nesse dia de cada ano, sem deixar que um só pingo de sangue manche a terra do quintal que lhe deixou o pai, Maria Inês enforca o animal de pena que trouxe por ali pastando um ano inteiro.    
Hoje, será uma pedrês de crista vermelha, reluzente de gorda.      
A ave há-de estrebuchar ao aperto da corda, empinará o papo num derradeiro cacarejo e, a estremecer o corpo como se lhe tivesse passado uma aragem, há-de baloiçar ao ar as duas patas antes de ser apenas um monte de penas que ali fica sossegado.
Depois, Maria Inês, a enterrá-lo no quintal, há-de persignar-se. 


imagem de Ada Breedveld





quarta-feira, 13 de março de 2013

Realidade aumentada




Sempre que fecho os olhos
sua imagem
é o meu descanso de tela


&


Antes de dormir
revejo todas as fotos e vídeos do dia
- oxalá pudesse salvar somente as boas.


&


No milionésimo segundo
entre o despertar e o abrir de olhos
entre o raio e o trovão nas tempestades neurais
chamo você


&


Eu fui para ela
não mais que meia hora jogada
de paciência.


&


realidade aumentada
é namorar na escada
em meio ao incêndio.





terça-feira, 12 de março de 2013

O Filho da Puta

Eu sou um filho de uma puta. Lá da Praça Tiradentes. Dona Margarida fez questão de me revelar isso quando me dei por homem. Mais um acidente de percurso, numa dessas esquinas. E minha natureza não enganava. Aos seis já me descobria sob a água fria do chuveiro. Com sete, desvirginava as coleguinhas da Casa das Irmãs. Ser fraterno porra nenhuma, eu queria ser macho. Pecado, lascívia... O castigo viria. Pois já era um castigo ouvir a voz esganada daquela freira. Órfãos estão livres desse tipo de penitência, eu dizia, e me trancava. Quando me destranquei, aos quinze, ganhei o mundo. Cansei de respirar a poeira do abandono. Fiz umas amizades suspeitas aos olhos suspeitos. Percorri ruas sujas, muito sujas. Os sinais vermelhos foram meus expedientes diários de trabalho.

            Meu desejo mais incontido era ir a um puteiro. Juntei dinheiro suficiente para um programa ralé e fui pra Sotero dos Reis. Os odores, as salivas, os orgasmos... Era como se eu tivesse vivendo a minha infância, meu berço. As novas não me interessavam, nem as balzaquianas. Passei a caçar puta velha. De 50 anos pra mais.

            Freud, num papo de boteco, me diria que eu desejava comer a minha mãe e eu, após uma golada de cerveja, riria, acenando um sim com a cabeça para aquele filho da mãe. Possuído por aquilo que já havia se tornado um objetivo, fui, boca a boca, descobrindo os pontos menos valorizados. Me chamavam de pão duro, doente. Eu só comia as coroas, e, por vezes, nem eu nem elas tínhamos banca prum motel à beira de estrada que fosse. Certa feita, numa linha de trem, tracei uma tal de Índia, devia ter uns sessenta. Magricela, um par de seios ultrapassando o umbigo, um rabo cheio de estrias. Uma índia velha, retirante de uma tribo dos idos de 70. Meia cidade já tinha comido aquela índia. Me rendeu uma gonorreia penosa e bem-vinda. Fui atendido por uma enfermeira peituda, que fez questão de me examinar com minúcia. Espantada com o tamanho do meu pau, ordenou que eu ligasse para ela assim que tivesse curado. Dito e feito. As espanholas foram sensacionais com aquela enfermeira, a... Nem me lembro mais o nome.

            Minha jornada continuava, à procura da mamãe. Investigava, queria saber sobre a vida delas. “Tá escrevendo um livro sobre puta ou o que, garotão?”, elas perguntavam. Adoravam relatar suas peripécias sexuais. A Rita de Cássia, da Quinta da Boa Vista, me contou sobre um gringo que a obrigou cagar em seu pau. Foi uma das histórias mais nojentas que já ouvi. Muitas nem me cobravam: o prazer de serem consumidas por um jovem cheio de saúde, 18 anos e bem dotado, cobria qualquer preço. Algumas serviam até café com leite quando me levavam pro muquifo delas.

            Aquela ideia incestuosa foi morrendo, aos poucos. Vai ver já tinha até comido a minha progenitora, e jamais saberia. Vai ver ela já tinha morrido de sífilis, ou mesmo saído do ramo. Ela teria me buscado se tivesse conhecido um gringo milionário que a bancasse?

            Consegui um emprego num lava-jato. Passei a economizar grana, fazer bico com consertos, aprendi a ser mecânico. Já numa oficina, dobrava os expedientes, sedento por aprender mais sobre motores. Conheci uma menina, uma frentista. Não era amor, não. Era coisa de verão, que se estendeu pr’outras estações. Morena linda, do tipo garota do Leme, só pra não plagiar o Vinicius. Me lembro de ter saído atordoado de casa e quase ser atropelado numa noite de terça-feira. “Tô grávida”, com as mãos apertando a barriga, em sinal de proteção.

            Se estivesse viva, minha mãe agora seria avó. Ela seria desvalorizada se essa notícia vazasse no ramo dela. Percorri ruas sombrias, pintadas de rímeis, e com toques sanguinários de batons. Olhei muitos rostos, muitos rostos... Queria poder dizer isso a ela, abraça-la. Órfã da vida... Em que orfanato ela estaria neste momento?

            Anos depois, revirando alguns baús e álbuns de retratos, redescobri páginas. Soltas, amareladas. Garranchos. Eram os meus relatos, do orfanato até as aventuras com as prostitutas na minha adolescência. O cheiro dos anseios passados me causou uma estranha nostalgia, daquelas que não se devia sentir. Decidi passar a limpo. Reescrevi tudo, e algo mais. Varei noites em claro, numa autobiografia que me fazia bem. Àquela altura eu já era divorciado e pagava pensão. Meu filho, de nove anos, era coroinha. Sabia passagens bíblicas de cor. Muito católico, ele. Puxou um ancestral bem distante.

            Um amigo, professor de Português, fez a revisão dos meus escritos e disse que faria de tudo para me ajudar a publicar aquela que, para ele, era uma história do caralho. Ele não diria isso em suas críticas politicamente corretas. Talvez se valesse do que ele chama de... Não me recordo agora. Só sei que é uma estratégia pra deixar o “caralho” com cara de “magnífico”. Quase um ano e meio depois, eu estava lançando “Filho da puta”. Proibido para: menores, carolas, pseudo-intelectuais, velhos, editoras de família, cafés literários, leitura em saraus... Quase barraram até mesmo a inscrição pra concorrer ao Jabuti. O Jabuti foi onda, claro. “Vai que um jurado c seja pervertido e dê um dez pra sua história?”, gozava o meu amigo cult. A Igreja repudiava, no entanto, as freiras que coordenavam o orfanato onde passei minha infância quase levantaram seus hábitos para mim de tanta felicidade ao receberem, em mãos, um cheque generoso, de lucros adquiridos da venda do livro.

            A autobiografia virou febre nacional, do tipo “Bruna Surfistinha”. Muitos especulavam, inclusive, que eu tinha comido a Bruna e que isso constava na trama. Foi uma propaganda de marketing não planejada que me rendeu muitos lucros. Passei a receber um número incontável de e-mails de coroas fogosas, insatisfeitas no casamento, à procura de um homem que soubesse atender todos os seus fetiches. Quando dei por mim, estava dando entrevista na televisão. “Eu nunca fui escritor. Essas histórias não são minhas”. E a plateia ria. Agora eu era engraçado e não sabia.

            A pensão aumentou, lógico. Minha ex era uma filha da puta, e isso eu dizia com gosto, embora nunca tivesse conhecido minha sogra. Se tivesse conhecido, talvez tivesse a comido antes de traçar a filha.

            Outro dia, no Catete, parei pra fumar um cigarro e fui abordado por duas quarentonas no cio. “Tem fogo, gostosão?”, “Vai um programinha pra relaxar nesse final de tarde?”, “Nós duas, isso porque você é gostoso, tem desconto”.

-Não, eu agradeço a oferta, mas no momento prefiro só terminar esse cigarro e ir pra minha casa.

-Tá sem grana, não tá? Isso não é problema pra gente.

            A de bunda mais rechonchuda tirou da bainha uma máquina de cartão.

-Aceitamos cartão.

            Como essa putaria se modernizou. Eu não podia deixar aquele fato passar em branco na história da minha vida. Passei o cartão e passei o rodo nas duas. Dividi em seis vezes sem juros. No fundo, o que mais me interessava era saber o que sairia escrito no recibo emitido pela máquina.

“Sexual Therapy S/A”

            Após degustar aquela piada, me lembrei do Freud, no botequim, e da minha antiga obsessão. Terapia, vejam só... Terapia... Por que não? No mínimo, daria assunto para um próximo livro.

            A psicóloga foi escolhida a dedo. Não literalmente, claro. Uma loira de parar a Presidente Vargas. Dizem que as primeiras sessões são como túmulos. O meu silêncio era de contemplação, e não de timidez ou nervosismo, conforme ela deduzia no silêncio dela. Aos poucos, o gelo foi sendo quebrado. Exceto a minha ereção. Ela notava, disfarçava, falando de transferência, carência, frustrações, etc. No fim das contas, acho que eu queria comer a minha mãe porque nunca mamei nos seios dela. Algo assim. Chega de gastar com esse papo furado. As putas do Catete foram terapeutas mais eficientes. Mas, antes, eu não podia deixar de fazer jus ao meu codinome.

- Já que a intenção é perder a timidez, eu quero te dizer uma coisa. Você é linda, você... Eu me casaria com você, doutora.

            Ela sorriu, e, sem perder a classe:

- Casar? Fora dos meus planos.

- Entendi... E quanto a transar? Isso faz parte dos seus planos... Humanos?

- Gozar é sempre a mesma coisa. Sempre igual. Uns podem ser múltiplos, ou não, mas isso não faz diferença para mim. A diferença é de quem você engole a porra no final. Você, que é tão experiente em putaria: quanto você acha que eu valho?

- Você me pegou de surpresa... Você vale uns... Vale uns dois mil?

- Você pagaria dois mil reais por uma noite comigo?

- Não. Com dois mil reais eu como dez putas e ainda sobra pro táxi.

- Então por que achou que eu te daria de graça quando eu poderia dar para um banqueiro e faturar uma grana extra? Como eu te disse, gozo é tudo igual. Mas a carteira...

            Carla Natasha, o nome dela. Eu sempre achei que Carla fosse nome de puta, e essa regra tem poucas exceções. Natasha, nem se fale. Uma puta composta. A vida está cada vez mais difícil para todo mundo. A Carla me traumatizou, me causou um dano psicológico irreversível e, ao mesmo tempo, reformador. Tomei repulsa de vadia. Passei a ver vadia em cada esquina da cidade, passei a sonhar com vadias sendo incineradas pela Santa Inquisição. A ouvir sermões do meu filho, já adulto, como padre. As freiras acariciando meus cabelos, contando as pedrinhas dos terços... Colocar o corpo à venda, coisa mais desprezível. Pecado, lascívia. Eu nasci da putaria, nasci na rua, nasci do pecado. Fui um mundano, um pervertido sexual. Cancelem a venda dos meus livros! Dizimem meus lucros, no sentido mais católico da palavra “dizimar”. Maldita história, maldito passado que me corrói. Culpa da mamãe. Maldita mãe. Quero mata-la, quero mata-la. 

...

            “Mulher de sessenta e dois anos é morta na Rua Sotero dos Reis, mais conhecida como Vila Mimosa, com cinco golpes de faca. Colegas da vítima revelam que Neusa Maria dos Santos era prostituta há trinta anos e foi uma famosa cafetina nos anos noventa. A polícia investiga as suspeitas e, pelas circunstâncias do homicídio, teme que este seja o primeiro caso de um suposto futuro serial killer”.