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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Confraternização

 

 
Na Madrugada dos Tempos - Parte 18

As culturas sobrevivem enquanto se mantiverem produtivas, enquanto forem sujeito de mudança e elas próprias dialogarem e se mestiçarem com outras culturas.
Mia Couto Escritor e Biólogo moçambicano
Nascido em 1955


Quando Mirsulo e Savirio entraram na casa da reunião, perceberam de imediato que não seria uma vulgar refeição aquela para a qual foram convidados.

Erem, por baixo da sua pele de leão, com a imponente cabeça da fera sobre a sua, usava peles novas e luzidias que repousavam sobre os ombros e antebraços, assim como uma túnica branca e limpa. Zia usava uma tiara com penas coloridas de várias aves e uma túnica decorada com riscas de várias cores pintadas à mão. Também os tornozelos, os pulsos e o pescoço ostentavam tiras de couro cuidadosamente entrançado.

Os restantes convivas, sentados no chão, em pedras ou toscos tambores de madeira, postavam-se na forma de um U, em volta da fogueira central, voltados para a entrada. Estavam também ataviados com as peles mais novas e aquilo que acharam de melhor. Apesar da maior parte do fumo se escoar pelo buraco no meio do telhado, havia uma atmosfera nublosa envolta nos aromas da carne que estralejava no fogo.

O barulho das conversas parou de imediato assim que os convidados Hati assomaram à entrada. Traziam as mesmas roupagens que, por si só, distinguiam-se em qualidade das dos seus anfitriões. Uma das jovens netas de Erem indicou os lugares entre o chefe e a companheira para os dois importantes dignitários e outros para Tibaro e os companheiros. Logo ao lado de Lemi e as suas duas esposas.

O chefe estrangeiro, antes de se focar nas pessoas que o esperavam, fez uma rápida apreciação da casa da reunião; paredes mais ou menos direitas, mistas de colunas de madeira e pedras desbastadas, os espaços preenchidos com lamas secas. Dois grandes troncos apoiavam o telhado, também composto por traves grosseiras e colmo.

De imediato, vários jovens de ambos os sexos, netos de Erem e Lemi, começaram a apresentar aos convidados travessas de madeira com tiras de carnes secas, carnes grelhadas ou mesmo cruas. Outras travessas traziam pequenos abrunhos e figos secos.

Todos continuavam calados, de olhos fixos nos convidados.

Ciente da atenção que recebia, Mirsulo sentou-se e sorriu para Erem e Zia, antes de fazer um gesto a Savirio para que o imitasse. Seguidamente, pegou uma das tiras de carne e começou a mastigar com satisfação, olhando para a petrificada audiência.

Este pareceu ser o sinal para que todos voltassem à normalidade e as conversas e risos voltaram ao salão como se nunca tivessem sido interrompidos.

Savirio estava contrariado por ser separado de Tibaro, que fora encaminhado para junto de Naci e os restantes filhos do chefe e por ficar junto de Zia que se portava friamente para com ele.

Os dois chefes conversavam sobre a casa da reunião, com Mirsulo a elogiar a força da sua arquitetura e a questionar porque as restantes construções não seguiam os mesmos moldes. Erem explicou-lhe em traços largos a ajuda prestada por Alim e Beki, porém, se a casa da reunião era uma obra para todos, onde todos colaboravam, as casas individuais eram trabalho de cada um e da sua família. Levaria mais tempo a assumir construções melhoradas nas casas mais antigas de Barinak, embora já as houvesse nas zonas recentes.

O chefe Hati não pareceu compreender o que lhe era explicado; para ele era bastante simples; diria a cada família que disponibilizasse um ou dois homens, que trabalhariam por alimentos e construir-lhe-iam uma boa e confortável casa.

Erem olhou-o com estranheza e disse que teria de caçar muitos dias para poder alimentar assim tantas pessoas.

— As pessoas deviam estar agradecidas por viver sob a proteção do déms pótis. — Desta vez até o mal-encarado Savirio interveio. — Tratando-se da casa dele, até poderiam trabalhar sem receber nada. De todas as formas, com o que recebe de todos os caçadores, pescadores e agricultores, tem alimentos mais do que suficientes para ele, a família e os trabalhadores.

— Não, não. — Negou Erem. — Já me falaram desse vosso costume, mas aqui as coisas são diferentes. Cada um trabalha para si e para a sua família. Juntam esforços para melhores resultados e aquilo que lhes é retirado trabalho é para alimentar os doentes, as viúvas e os órfãos.

— O que te impede de tirar mais um pouco? — Sorriu conspicuamente Mirsulo. — Não és tu quem decide?

— Sim, mas… — o chefe de Barinak começava a sentir-se desconfortável —… mando, porque estão todos de acordo que assim seja. Sabem que sou justo e olharei por eles quando precisarem.

— Precisamente. — O curandeiro estava cada vez mais interessado na conversa. — Esse trabalho, essa responsabilidade para com eles deve ser recompensada.

— Os outros podem não aceitar… — Lemi, que se mantivera calado até ali, aparentemente distraído da conversa, virou-se para os convidados. — … na certa revoltavam-se e quereriam escolher outro chefe.

— Para que te servem os homens que te são leais? — Mirsulo fez a pergunta a Erem, voltando-se depois para Lemi. — A própria família? Não terias o seu apoio?

— Aqui somos todos irmãos perante Swol! — Sentenciou Zia subitamente. — Fazer o que pedes é viver como as pulgas e os piolhos; a comer o que os outros produzem com o seu esforço!

— A mulher não devia falar sem que lhe fosse pedido! — Indignou-se Savirio, tomando a posição de uma criança amuada.

— Também nisso somos diferentes, Mirsulo de Hatiweik. — Indignou-se a Xamã, ignorando o curandeiro. — Swol criou o homem e a mulher diferentes, mas como duas partes da mesma coisa. As duas faces do mesmo rosto, as duas mãos ou os dois pés do mesmo corpo!

— Mas a boca é só uma! — Replicou Savirio. — Devias calar-te e não entrar na conversa dos homens!

Zia levantou-se intempestivamente.

— Calem-se… ambos! — Erem alterou-se, carrancudo. — Não quero discussões neste dia de festa.

A cacofonia de conversas cruzadas parou subitamente, quase em simultâneo, sob a ordem seca do chefe de Barinak. Todos se olharam confundidos e os elementos dos Hati trocaram olhares de avaliação e suspeição com os seus anfitriões. A tensão na sala subiu repentinamente e todos se perguntaram se aquele que estava sentado ao seu lado era um amigo ou inimigo.

— Savirio…! — Rosnou Mirsulo entre dentes, desagradado. — Deixa-me ser eu a falar.

— Não recebemos bem os nossos convidados. — Erem admoestou Zia num tom mais suave, apesar do seu rosto crispado. — Vamos perdoar-lhes a diferença de ideias e evitar discussões.

— Quando um convidado nos vem insultar na nossa própria casa… — ia continuar a xamã.

— Zia… — o chefe não terminou a frase, mas o seu rosto triste dizia tudo.

Ela virou-lhes as costas e saiu intempestivamente, percorrendo a sala em passos largos sob os olhares interrogativos de todos.

Savirio abriu a boca para dizer algo, mas o simples olhar furioso de Mirsulo fê-lo fechá-la sem emitir um som e retornar ao seu mutismo amuado.

Erem deitou um olhar rápido a todos os convivas; bastaria uma palavra sua e a sala transformar-se-ia num campo de batalha. Ergueu-se com um sorriso e fez um gesto na direção da entrada. Seis homens e mulheres fizeram a sua aparição, três deles ressoando peles esticadas sobre molduras de madeira, dois saltavam e gritavam enquanto abanavam cabaças cheias com pequenos seixos e outro soprava notas agudas através de um osso furado.

Com tão intempestiva entrada, a audiência logo esqueceu o pequeno incidente e batia as palmas e soltava gritos de incentivo. O entusiasmo aumentou e houve exclamações de espanto quando um grupo de vários guerreiros entrou em corrida e começou a executar um conjunto de saltos e cabriolas em volta e por cima da fogueira.

O chefe e o curandeiro Hati assistiram em silêncio às acrobacias e presenciaram o drama traumático de dois indivíduos cobertos de peles, onde quase só se viam os olhos, a “matar” um e depois outro dos dançarinos e fugirem com vários objetos. Seguidamente os restantes perseguiram-nos, sempre em redor da fogueira e travaram uma acrobática luta que resultou na derrota dos “peludos”. Os vencedores colocaram um pé sobre os vencidos e soltaram urros de vitória ecoados pela vibrante assistência e um crescendo da cacofonia dos instrumentos musicais.

Tão depressa os dançarinos saíram em corrida, como entrou outro, a cabeça coberta com um espantoso crânio de auroque, que foi ameaçando a assistência com roncos e os afiados chifres. Três dançarinos, com tiras de tecido em volta da cabeça e envergando túnicas, simularam o ataque ao “animal” que os derrubou e os fez correr em volta da fogueira.

Outros três, vestidos conforme as tradições de Barinak, fingiram-se surpreendidos pela refrega e envolveram-se na “luta”. Um dos que envergava túnica fez-se de morto, assim como um dos outros. Os dois grupos uniram-se, dançaram juntos, perante o espanto do “auroque”, até que, juntos, ergueram um dos homens de Barinak que simulou uma estocada mortal sobre a fera.

A besta caiu como morta para gáudio da assistência que irrompeu em aplausos e gritos de “Naci, Naci, Naci” enquanto os dançarinos saiam transportando o crânio de auroque numa procissão vitoriosa.  

Os instrumentos musicais aumentavam o ruído ensurdecedor da assistência em crescendo, até que se calaram subitamente, deixando apenas alguns aplausos tardios e murmúrios excitados e felizes.

Os agravos do início da cerimónia foram apagados da memória de todos, inspirados pelas imagens dos dois povos a lutar para eliminar uma ameaça comum.

 

Manuel Amaro Mendonça

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18 - O Conselho de Barinak


    Forjando Alianças
Introdução    





sábado, 27 de janeiro de 2024

Relento

 






segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Mas Há o Acaso

 


Por ser o descaso uma ofensa à criação, e ao tempo, e à história, e à existência e às narrativas do possível e impossível, haveria de não somente constar entre os pecados capitais, mas encabeçar o inventário supremo de nossos sacrilégios, ou então classificar-se em graus e classes de injúria e o descaso em relação à pessoa constituir o mais grave dos insultos, pois a desconsideração para com o indivíduo importa em uma ofensa à humanidade e à imaginação. Tal comentário, entretanto, não pretende estabelecer condutas criminosas – e isto apesar de Valéria merecer a concessão e a decência de uma recusa educada, dir-se-ia cavalheiresca, ao invés do desdém com que a castigava o jovem Renato.

Titular do mais branco e prosaico dos sorrisos, especialista na psique feminina e sádico por decisão, desdenhava-a e cortejava-a como se Valéria representasse um dos destinos concebíveis ao amor. Sucessivamente atraída e rechaçada, consecutivamente aviltada, ao numa noite recordar-se de críticas acerca dos excessos em seus culotes, Valéria naufragou nos lençóis e considerou o suicídio. Culminava a madrugada, o firmamento qual negro vão, e as estrelas ela afrontou ao reanimar-se e contrapor suas aspirações românticas aos veementes impulsos do relacionamento. Apercebeu-o promissor e perfeito, com as atribulações essenciais aos lendários casos de amor, e no alvorecer resolveu por vencer as hesitações de Renato e conquistá-lo.

Ciente de como ele somente envolvia-se com beldades, ela, mulher insossa e indistinta, determinou-se um programa de renovação estética que compreendia a vigorosa rotina de exercícios físicos das forças militares, princípios de reeducação alimentar fundamentados nas técnicas dos faquires indianos, o uso artístico da maquilagem e numerosas, senão infinitas, cirurgias plásticas, e também de aulas de atuação, dicção, dança do ventre e poledance.

Resultou-se o imediato.

Antes das intervenções cirúrgicas, antes de seis meses, Renato cedia aos seus encantos e ao novo formato de seu corpo, e também ele involuntariamente converteu-se ao descobrir na coragem de outrem um atributo fascinante. Não apenas, agravava-se a atração conforme o progresso de Valéria, e ela, ou assim a revelar-se ou assim a tornar-se, à afeição e submissão reagiu com apatia e, adiante e com crueldade, destratou o então apaixonado Renato, além de evitá-lo e acusá-lo de fraquezas vis.

Eram outros, eles, e era como se os demônios do amor ora habitassem a carne dele e ora habitassem a carne dela. Valéria, porventura entusiasta da vingança, recordava-se das mortificações passadas e engendrava as mais indignas provações e punições. Na última, despiu-se, sentou na cama e, da mesinha de cabeceira, segurou o telefone celular. Pela janela entreaberta assomava o dia, e quem sabe se a afluência da manhã ou a sensualidade de seus propósitos conceberam-na atraente aos olhos do acaso. Valéria deitou, abriu as pernas e, sorridente, fotografou o ventre e seus abismos. À imagem adicionou uma legenda: “Você jamais possuirá isto!”

Por engano, ao invés de encaminhar o retrato para Renato, enviou-o para um grupo com os membros da família.





sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Por ele

 


É estranho não lembrar de fatos simples do dia a dia. Venho me esquecendo das coisas com certa frequência. Vó me diz que isso tem a ver com o cansaço. “Você não para quieto, menino, é curso, aula, faculdade… Seu corpinho não vai aguentar!”. Não é bem um aviso que soa na minha mente, mas uma determinação: você não pode continuar assim. É uma compulsão, para me tirar dos pensamentos ruins – por um lado, é uma fuga. Tenho medo do que pode ser; quem sabe, um distúrbio precoce. É preciso dizer que meu pai era bipolar e o vi, em vários momentos da vida, ser amarrado e arrancado de nossa convivência por brutamontes – que ele acusava, quando voltava do transe, de tê-lo surrado. Ele envelheceu horrores com as medicações fortes. Era letárgico e pacífico, ao final de seus dias. Tinha tiques que o deixavam paralisado e bisonho para quem o visse. Andava segurando as paredes quando não havia suporte de familiares. Uma noite, acordei atordoado pensando que havia tido um pesadelo, mas era ele no banheiro, caído, todo sujo de cocô; uma criança indefesa, chorando, com vergonha e com medo. Mariazinha, minha mãe, também tinha problemas psiquiátricos; foi internada várias vezes por esquizofrenia. Dessa – que Deus a tenha –, não sei o paradeiro. Pouco ou nada tive contato com ela. Vivi muitos anos na casa de meus avós paternos, porque tinham pena de mim e do meu pai. Ah, meu pai foi advogado atuante, um bom “ganhador de causas”, como era conhecido. Mas de uma hora para outra foi acometido pela doença que o sugou. Meus avós, por medo de dívidas – porque meu pai virava pródigo quando estava em estado de euforia –, resolveram impedi-lo de trabalhar. Então, resolveu escrever e se virar como revisor. Escrevia poemas lindos, que contrastavam com sua condição. Só que o trabalho era pingado e não garantia o sustento. Por isso, tive de batalhar desde cedo. Comecei no comércio do meu tio Luís, que, carinhosamente, me chamava de “doidinho”. Minha avó o ralhava por esse tipo de implicância. “Mas como, mamãe?! Tenho culpa?! Esse menino está condenado a ser doido. Filho de quem é…”. Isso eu escutei por detrás da porta da sala, num dia em que vovó deu uma surra nele – mesmo sendo maior, vovó mantinha a autoridade intacta. O valentão, aos gritos, prometeu me demitir, porque “não ia ficar tomando conta de trambolho”. Eu mesmo pedi as minhas contas. Disse que precisava estudar, o que não era mentira. Passei dois anos sendo sustentado pelos meus avós, com a promessa de passar no vestibular de medicina. Um sonho maluco, que deu certo. Entrei numa universidade particular, através do Fies. Queria cuidar do meu pai. Queria que ele tivesse o mínimo de independência e uma vida relativamente normal, na medida do possível. Foram anos puxados. Quase fui obrigado a trancar um semestre para colocar a cabeça no lugar, mas justamente meu pai me ajudou a lidar com as imensas obrigações. Papai falou a palavra-chave: “Você deve esfregar o diploma na cara do seu tio!”.  Mais do que ajudar o meu pai, eu devia mostrar do que era capaz – ou seja, não estava condenado pela genética a ser um incapaz. Formei-me em cinco anos, no tempo correto, e logo entrei para a residência em psiquiatria. Peguei todos os tipos de casos. Vi que meu pai estava no limiar para a sanidade; havia muita coisa pior. Mas, uma fatalidade, antes de concluir a bendita residência, meu pai se foi, leve como um passarinho; teve uma parada cardíaca silenciosa e traiçoeira. Como dizem, dormiu e não acordou. Agora, recolho os cacos para cuidar dos meus avós e lhes dar um pouco de vida. A vida que não tiveram. Doaram-se pelo meu pai. Tudo por ele. Ainda, sim, tudo por ele; para honrá-lo.






quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Cantiga - poema de Eduardo Lacerda






 





sábado, 13 de janeiro de 2024

encontros e... Encontros

 

encontros e…Encontros

 

O cão era grande e bonito. Olhou para mim e abanou a cauda. Olhei para ele e sem rodeios disse-lhe:

̶  Fica no teu caminho que eu sigo o meu.

Até parece que entendeu aquilo que eu disse, porque não se mexeu quando passei por ele. Ao chegar ao fim da rua e antes de virar a esquina olhei para trás. Fiz o gesto de relance, não fosse o diabo do cão pensar que eu estava a convidá-lo para me acompanhar. Apesar do rápido virar da cabeça deu para ver que ele ainda ali estava parado, talvez a seguir-me com os olhos.

Atento ao que se ia passando à minha volta, rapidamente esqueci-me dele e fui andando ao longo duma rua esburacada e cheia de lama que confluía com uma estreita, comprida viela. Era ali que eu tinha o meu destino. Lá ao fundo pontificava um contentor que recebia os restos de uma casa de pasto situada a poucos metros.

A vida está cada vez difícil, porque agora os clientes levam para casa os restos do almoço, por isso nós, os especialistas na arte da procura, notamos cada vez mais que os restos são cada vez menos. Também as casas de pasto com a crise são menos frequentadas de clientes.

Eu aproveito o anoitecer para fazer o meu abastecimento naquela abastada viela, mal conhecida pelos meus camaradas de rua. Ainda somos poucos os comensais nocturnos daquele contentor.

«É hora de me aproximar do local certo. Se não me apresso, arrisco-me a não ter nada que trincar, o que vai agravar a situação. A boa sorte não bate muitas vezes à mesma porta, uma, duas vezes no máximo e temos de estar lá para a agarrarmos com todas as nossas forças. A má sorte é que aparece mais vezes e nem sequer bate à porta, entra de qualquer maneira e ele que o diga, já a experimentou algumas vezes na sua longa vida»

Antes de o abrir o contentor olhei para todos os lados, não fosse alguém estar ali a querer aproveitar-se dos meus achados, mas não se vi vivalma a não ser uns olhitos, talvez de algum gato ou de algum um cão vadio, a brilharem ao fundo da rua. Esses não me incomodavam, nem tinham a intenção de se aproveitarem daquilo que lhe poderia servir.

Vasculhado o contentor nada mais encontrei do que duas asas, o peito do frango, e algumas batatas cozidas. Guardados os bocados num saco de plástico caminhei ao longo da viela. Fui seguido por aqueles olhos brilhantes que continuavam no mesmo sítio, sem se mexerem. Por precaução reduzi a marcha e tomei as devidas precauções, não fosse sofrer algum ataque por parte do dono daqueles olhos que o fitavam. Afinal esses olhitos já eram meus conhecidos.

̶  És o cão que encontrei hoje à tarde, parece que os nossos caminhos estão a cruzar-se. Já te disse que cada um se faça à sua vida. Nos tempos que correm temos de contar só connosco, uma boca para alimentar já é difícil, duas seria bem pior. Oh! Estás com uma patita presa nesse buraco e não consegues safar-te sozinho. Por isso não te mexeste desse sítio quando me aproximei, não podias. Vou ajudar-te, mas mantenho a minha decisão, cada um vai à sua vida e desde já te digo que não pretendo agradecimentos.

Resgatada a patita do cão, analisei-a e concluiu empiricamente que não havia lesão à vista e, assim, dei por concluída a operação de resgate. Antes de me ir embora escolhi uma das asas e deixei-a ao pé dele. O cão olhou para mim, abanou a cauda. Cada um rumou ao seu destino e na solidão da miséria lá fomos sobrevivendo, uns dias melhores outros piores. Nos momentos em que a solidão apertava mais, vagueávamos sem tempo pela rua que confluía com a viela. Fiéis ao acordo olhávamo-nos carinhosamente e cada um seguia o seu destino. Às vezes quase que nos tocávamos, mas nunca chegámos a vias de facto, bastava o olhar.

Durante muito tempo, os caminhos os nossos caminhos não se cruzaram. Passaram tempos e outros tempos vieram e a crise acentuou-se e com ela a fome a miséria e a doença apareceram com mais força.

No fim de uma tarde fria de inverno envolto num triste nevoeiro vê-se um vulto arrastando pesadamente os pés pela viela malcheirosa. Com muita dificuldade conseguiu chegar junto ao contentor do lixo e esforçadamente abriu a tampa e remexeu o lixo. Desalentado e sem nada que lhe mitigasse a fome afastou-se uns metros, parou, deixou-se cair pesadamente no chão e encostou o leve peso do corpo na húmida parede. Olhou em redor e viu ao longe os já conhecidos olhitos que não o deixavam de fitar. A saudade de um olhar mais de perto foi crescendo dentro de si. Era o que mais desejava naquele momento.

De repente o cão virou-lhe a cauda e saiu correndo como se da peste fugisse.

«Ah! Tu também já foges de mim!»

Fechou os olhos e fez um último esforço para não sonhar. Só queria que a noite viesse. Mas em vez da noite veio mais do que um sonho lamber-lhe carinhosamente a face. Abriu os olhos e viu o cão a olhar para ele, a mexer a cauda.

Era grande e bonito e trazia na boca um bom pedaço de carne assada.





quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O sinistro, o destro e o louco

 


A Dodge City de hoje não tem as mesmas emoções de alguns anos atrás. Depois que o Xerife Earp e seus irmãos chegaram não há diversão de verdade para um velho cowboy. Lembro-me como se fosse hoje daquele verão de 1873. Eu era apenas um garoto, antes abandonado, que trabalhava num estábulo da cidade. Já havia visto todo o tipo de gente passar por ali: cowboys, jogadores, gente cheia de dinheiro e alguns pobres miseráveis também. Desde que paguem, dizia o patrão, “atendemos índios e mexicanos também”.

A chegada da diligência da Wells & Fargo era esperada por todos. Quase sempre aparecia uma nova garota para trabalhar na Dodge House. Quase todas de muito longe do Kansas. 

Mas ele não chegou na diligência. Foi num final de tarde, logo depois de uma forte ventania, surgiu em meio a poeira, como um espírito que se materializa. Era quase igual a tantos outros que passaram por aqui. O que o diferenciava não era o seu traje, pois vestia uma camisa de flanela, lenço no pescoço, chapéus de abas largas, calças jeans e luvas de couro como qualquer cowboy. No alforje uma jaqueta de couro.

Ele não portava um dos famosos peacemakers da Colt. Sua arma era mais elaborada, com belas marcas gravadas no cabo. Além da estrela em metal, duas letras: L.H. Não me veio à mente nenhum nome de pistoleiro das histórias do velho Smith, um ferreiro que parecia ter nascido há mais de duzentos anos de tanta história que tinha para contar. Se estivesse vivo, com certeza eu perguntaria a ele.

Não havia como não olhar para as armas nos coldres do forasteiro. O homem estava coberto pelo pó da estrada e fedia a carniça, mas as pistolas brilhavam, como se tivessem sido limpas há apenas alguns minutos. Pelo peso no alforje, ele carregava muitas balas. Não bastassem os dois revólveres, ele carregava também uma carabina Winchester, também muito cuidada.

Me aproximei para perguntar das armas, não consegui nem enxergar os olhos do sujeito, escondidos pela aba do chapéu e cabeça baixa. Ele pegou a carabina, colocou em minhas mãos e sugeriu que eu fizesse mira.

– Gostou, garoto? Faça-me um favor, guarde-a para mim!

Em seguida, jogou-me algumas moedas nas mãos e entregou-me o cavalo. Eu nunca havia segurado uma arma daquelas nas mãos.

Duas horas depois, com roupa trocada ele saiu do Great Western Hotel. Passos firmes, cabeça ainda baixa, suas botas agora limpas, forçavam as tábuas do assoalho da varanda do armazém geral. A lua cheia parecia iluminar o sujeito, mas a sombra da aba do chapéu ainda tornava o rosto misterioso.

Não havia quase ninguém na rua. Os homens da cidade estavam quase todos no Long Branch Sallon. Eu o segui até lá. Ficaria observando pela janela.

Quando ele empurrou a porta do bar, fora de hora, todos os olhares se dirigiram a ele e para as duas pistolas presas ao cinto. Quase todos se certificaram que as próprias armas estavam ao alcance.

Uma das garotas usava o piano. Poucos percebiam a canção reproduzida. O burburinho e as risadas continuaram após uma pausa de dois segundos.

O forasteiro se aproximou da barra e pediu um uísque. O barman esforçou-se para olhar nos olhos dele, sem sucesso, pois apesar das velas nos candelabros a sombra contribuía para o clima de mistérios em relação ao homem debaixo do chapéu.

Ele pegou o copo e sentou-se numa mesa de canto. No trajeto passou por Jeannie, que lhe esboçou um sorriso, não retribuído.

Numa das mesas, o Xerife O’Brian o observava, enquanto ordenava algo para um de seus ajudantes. O’Brian caminhou até o homem, puxou a cadeira e sentou-se.

– Boa noite forasteiro! Sou o Xerife O’Brian. Belas pistolas, não são?

– Boa noite! Não são apenas belas, também são certeiras.

– Foi o que imaginei, senhor...

– Não importa o nome.

– Pois bem, senhor Não Importa o Nome. Preciso ficar com suas certeiras pistolas.

– Melhor não arriscar tirá-las de mim, afinal todos portam pistolas neste saloom.

– Conheço cada um dos homens aqui, menos o senhor. Então, melhor não arriscar. Já faz algum tempo que não temos pistoleiros na cidade.

O barman abaixou-se, pegou um rifle debaixo do balcão e apontou em direção ao sujeito. Sem opção, ele entregou as armas ao Xerife.

– Posso beber sossegado agora?

– L.H., são as iniciais do seu nome ou do homem de quem roubou as pistolas?

Ele não respondeu, apenas continuou de cabeça baixa.

– Melhor olhar para mim quando falo, amigo! – disse-lhe O’Brian chutando-lhe a canela.

O homem ficou em pé, encarando O’Brien e antes que ele pudesse sacar a arma, o forasteiro lhe tomou o Colt 45 e apontou para a testa do Xerife. O salão silenciou-se por três longos segundos. O homem baixou o revólver e colocou de volta no coldre do Xerife. Depois, caminhava em direção a saída, quando um dos ajudantes do Xerife, Jhonny Caolho, lhe bateu na cabeça com a coronha da espingarda.

O’Brian não gostou nada de ser humilhado em frente de todos. Arrastou o sujeito para a cadeia.

Já se passavam dois dias. Segundo o Xerife, o homem continuava em silêncio, sem pronunciar o nome. Tiraram-lhe a comida, mesmo assim ele se mantinha calado.

Eu sabia que no começo da noite, na hora do jantar, todos saiam da cadeia. Fui até os fundos, me equilibrei sobre um barril que arrastei até lá e chamei o sujeito pela pequena abertura na parede.

– Ei, forasteiro! Sou o garoto do estábulo. Trouxe um pouco de comida. Vou jogar pelo buraco.

– Obrigado! Preciso de ajuda.

– Não sei se posso. Não quero ser seu companheiro de cela!

– Amanhã deve chegar à cidade um outro sujeito. Ele tem pistolas iguais as minhas. No cabo, as inscrições são R.H. Apenas diga a ele que estou preso aqui e diga que L.H. pediu que ele dê início ao plano. Se fizer isso, daqui há dois dias você será o dono daquela Winchester.

Logo cedo ele apareceu. Levei um susto: era o mesmo sujeito preso na cadeia da cidade. Como havia dito, os revólveres tinham as iniciais R.H.

– Como foi que saiu da cadeia? – perguntei ao sujeito, que me entregava as rédeas do cavalo.

– Eu lhe conheço?

– Ontem você, me pediu que quando um sujeito com as iniciais R.H. no cabo do revólver chegasse eu deveria lhe contar que você estava preso. Pelo jeito conseguiu resolver o problema sozinho. Matou o Xerife?

– Então L.H. já está preso. Quando foi?

– Há dois dias. Espere, se você não é o sujeito que está preso, só pode ser um irmão gêmeo!

– Se você está me dizendo isso é porque meu irmão confia em você. Me diga, em que horário há menos gente vigiando a cadeia?

– Na hora do jantar. O Xerife fica sozinho. Ele espera que um de seus ajudantes volte e só depois ele sai para o jantar.

– O que meu irmão lhe prometeu para que você o ajude?

– A Winchester que guardo para ele.

– Pois bem, se fizer o que eu lhe pedir, lhe dou uma pistola igual a essa.

– Claro, mas nunca vi uma assim antes. Quem a fabrica?

– Eu as modifico. Que iniciais quer nela?

– J.H., de Jason Howard. Mas espere, não sei se posso fazer o que me pede!

– A única coisa que precisa fazer é, ao meu sinal, no horário do jantar, correr até um dos ajudantes do Xerife dizer a ele que o forasteiro escapou da cadeia e está bebendo no saloon.

Concordei com a proposta. Não desconfiariam da minha ajuda, pois, hipoteticamente, eu estaria ajudando o Xerife a prender um fugitivo.

No horário combinado, aguardei o sinal de R.H. e corri até a casa de Jhonny Caolho. O homem correu em direção a cadeia, quando encontrou R.H. montado em seu cavalo e atirando para o alto, Jhonny Caolho, rastejou até a cadeia, temendo ser atingido.

Quando avisou, o Xerife apanhou o rifle e foi ver o que acontecia. Não acreditou no que via. R.H. atirou contra o cavalo do Xerife, sem atingi-lo. O animal se assustou e fugiu em velocidade. Provavelmente R.H. havia deixado as amarras frouxas.

O Xerife ordenou que os ajudantes perseguissem o fugitivo. Voltou para a cadeia incrédulo. Acho que ficou ainda mais curioso quando percebeu que alguém dormia na cela, chapéu sobre a cabeça, cobrindo rosto. Chamou pelo forasteiro, que não respondeu. De arma em punho, abriu a porta da cela e cutucou o sujeito. L.H. virou-se rapidamente, apontando uma pistola para o nariz do Xerife. Segurei-me para não rir.

Só então, comecei a e entender o que acontecia.

– Muito bem Xerife O’Brian! Ou prefere que eu o chame de Louco O’Brien de Kansas City?

– Isto já foi há muito tempo. Você já havia nascido?

– Já era crescido o suficiente para assistir o enforcamento de meu pai. Você não tinha motivos para matá-lo. Você e seu bando estavam todos bêbados. O único erro de meu pai foi sair à rua para buscar ajuda para a minha mãe, que também morreu naquela noite, por falta de assistência.

– Não me lembro disso!

– E da morte do Reverendo Windsor? Lembra?

– Ele se colocou entre mim e dos dois garotinhos. Eu não queria atingi-lo. Espere, então o sujeito lá fora era o seu irmão gêmeo?

– Então não estava tão bêbado assim. Eu, meu irmão e nosso pai não significávamos nada, não é mesmo?

– Seu pai foi incompetente, um ferreiro que mal conseguia ferrar um cavalo! Perdi meu melhor animal após uma infecção na pata.

– Pois bem, os filhos do ferreiro cresceram. Vamos até lá fora! Vê esta arma, igual as que me tomou naquela noite? Foram feitas com todo o cuidado pelas mãos dos dois filhos do ferreiro, especialmente para lhe dar uma morte digna, um fim que não foi concedido ao nosso pai.

Na rua, R.R. aguardava, após despistar os homens do Xerife.

– Morte digna? Isto é covardia: dois contra um homem desarmado!

– Dizem que o senhor é rápido no gatilho, Louco O’Brian. Escolha: R.H. ou L.H.

– Que diabos! Qual a diferença?

Left-hand ou Right-Rand. Prefere morrer pelas minhas mãos ou prefere a mão direita de meu irmão.

– Um duelo a luz da Lua Cheia.  No mínimo diferentes, não é? – questionou R.H.

L.H. jogou a pistola de O’Brian no meio da rua. O Xerife, sem saída e ainda confiando em suas habilidades com a pistola apanhou a arma e se posicionou para o duelo.

Sorrateiramente, Johnny Caolho chegou por detrás do armazém geral e apontou o rifle para a cabeça de R.H. Ele ia apertar o gatilho quando se ouviu um tiro vindo debaixo do assoalho do saloon. Foi meu primeiro tiro em direção a um homem, um tiro de sorte. Acertei a perna de Jhonny. Então R.H. conclui o serviço acertando uma bala no outro olho do caolho.

L.H. caminhou lentamente e se colocou no lado oposto da rua. Ajeitou o chapéu e pela primeira vez deixou os olhos azuis à mostra. R.H. tirou uma gaita de boca do bolso e começou a soprar uma suave balada. Na porta do salloon Jeannie suspirava e já sonhava com os braços do forasteiro.

O’Brian esperou o momento em que uma nuvem encobriu a Lua para atirar. De nada adiantou, o pistoleiro canhoto atirou pela primeira vez arrancando a arma das mãos de O’Brian. No segundo tiro acertou o joelho direito e na segunda o esquerdo. Quando O’Brian caia, a terceira bala atingiu diretamente o coração do Xerife.

Abraçados, os dois irmãos caminharam em direção ao estábulo. L.R. encilhou seu cavalo, enquanto R.R. colocava Jeannie em sua garupa.

Eu já havia escondido a Winchester quando cheguei ao estábulo. L.R. tirou a arma do coldre. Eu recuei. Ele segurou a arma com a qual havia atirado em O’Brian pelo cano e entregou-a para mim. No cabo, as iniciais J.H.

Nunca mais se ouviu falar dos dois irmãos e de Jeannie.

Depois daquele dia, comecei meu negócio de compra e venda de armas. Comecei com a Winchester e prosperei, também comecei a criar algumas cabeças de gado. Tenho até hoje a pistola fabricada pelos gêmeos sem nome. Com a chegada dos Earp, os negócios de armas faliram e mantenho apenas uma loja de ferragens e um pouco de gado.

Não gosto dos Earp. Me faz bem quando dizem que Wyatt Earp, nos seus pesadelos, vê os gêmeos voltando à Dodge em noites de Lua Cheia, cobrando-o por seus pecados.





terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Férias a sério



Apesar de ser bastante cedo e de ainda nem sequer ter jantado, Leonor decidiu preparar a bagagem, deixando de fora apenas o necessário para essa noite e para se arranjar de manhã, evitando, pois, pressas e esquecimentos antes da partida que programara para as 7 da manhã. Isto era, bem vistas as coisas, o último ato destas suas férias especiais.

Sim, daí a dois dias retomaria a sua vida habitual de que, muito francamente, já tinha saudades. Para muitos, duas semanas podem parecer pouco como férias, mas no seu caso era o máximo que conseguia aguentar sem começar a perder todos os seus efeitos benéficos.

E pensar que tudo tinha derivado de um pequeno acidente!

Tendo arrumado a última peça de roupa de que não iria precisar, sentou-se na pequena varanda da cabana que alugara para tomar a sua habitual bebida de antes do jantar e dedicou-se a algo também nada típico nela, recordar como tudo começara.

Desde bem miúda, sempre gostara de ser o centro das atenções. Podia-se, até, dizer, que vivia apenas quando reparavam nela. Na escola, tornou-se rapidamente, uma das mais populares ou, pelo menos, umas das mais faladas, pelas suas roupas diferentes e, acima de tudo, pelo seu comportamento muito vivo e sempre a inventar alguma. Mas todos lhe desculpavam as brincadeiras e piadas, até mesmo os professores, porque não havia maldade nelas, era apenas “exuberância”, como lhe chamara a diretora.

E quando um pouco mais tarde descobriu o mundo dos podcasts... bom, foi o paraíso na terra. Podia agora estar sob escrutínio público quase o tempo todo que passava acordada, presencialmente ou via ecrãs, o que contava é que não dava um passo, nada fazia que não fosse imediatamente partilhado.

Inevitavelmente, mal acabou os estudos arranjou um emprego de relações públicas e, com o seu feitio e jeito para animar qualquer ambiente, tinha imenso êxito. Mas não tanto como na Internet, onde se podia orgulhar de ter uns milhares largos de seguidores que seguiam religiosamente todos os seus passos – bom, fora das horas de trabalho, bem entendido.

Ora um belo dia em que estava, como quase sempre, atrasada, Leonor escorregou e, para grande azar seu, embateu com a cara num muro áspero. Não foi grave, mas entre equimoses e feridas a sua face ficou uma lástima. Como cumpria os seus próprios horários sabia que não estranhariam não aparecer na agência nesse dia. Mas essa ausência não poderia prolongar-se muito ou daria azo a perguntas e, pior ainda, a alguma visita a casa!

E havia ainda o problema do seu podcast, nem pensar em filmar-se com aquele aspeto, tinha uma imagem a defender. Ora no hospital tinham sido muito claros, não voltaria ao normal antes de 10 a 15 dias.

Passou o resto do que seria o seu período laboral a dar voltas à cabeça e foi quase no limite que teve uma ideia genial que resolveria tudo: ir de férias.

Mas não umas férias como as que costumava tirar, uma vez que os seus seguidores esperariam ter ainda mais horas com ela. Não, teria de ser algo que justificasse uma total falta de imagens e de contactos. Pois bem, iria para uma aldeola que uma prima gabava muito como sendo um oásis de paz, de tal modo que nem Internet tinha! Mas havia várias opções de estadia, incluindo pequenas cabanas independentes, uma vez que era um destino muito popular para escritores e artistas em geral.

Com a alma de luto pelo corte total com o seu mundo eletrónico, Leonor rabiscou uma mensagem – sem imagem, claro – para o podcast a informar que fora chamada a cuidar de um familiar numa terriola isolada, não podendo, pois, manter as suas transmissões durante alguns dias, usando a mesma desculpa num telefonema para o emprego.

E lá foi ela, de orelha murcha, em direção ao exílio. Como o seu nome era bastante conhecido, pelo menos em certos meios, optou por usar o seu outro nome, Ana, que nunca utilizara por o achar demasiado corriqueiro, e o apelido da mãe, que também nunca usava. E como explicação para a sua estadia, caso lhe pedissem uma, decidiu ser uma escritora em crise de inspiração e que tivera um pequeno acidente de carro.

Espantosamente, correu até tudo muito bem, apesar de ser uma vida totalmente diferente da que levava há anos. Em vez de festas, saídas, convívios, compras, o máximo da animação era uma ida a um snack local onde “partilhava”, se é que se podia usar esse termo, uma refeição com meia dúzia de pessoas todas elas enfronhadas num livro ou em si próprias. E como optara por uma das cabanas, para evitar muitas perguntas sobre o que lhe acontecera, passava a maior parte do dia sem ver vivalma.

Mas não se sentia aborrecida, como esperara. E ao fim de dois ou três dias começou, até, a sentir um novo vigor, uma paixão renovada pela vida, dando caminhadas sem pensar em fazer comentários “giros” para o seu público e lendo, até, alguns dos livros que encontrara no seu alojamento e que não eram nada o seu género, bom, eram livros e não revistas...

E foi de alma limpa e renovada que regressou ao emprego e ao podcast após duas semanas de jejum total.

Só que em vez de uma vez sem exemplo, por pura necessidade, esta sua “pausa na vida” der origem a uma nova tradição. Passou a tirar, todos os anos, duas semanas “especiais” para carregar baterias, apresentando aos seus seguidores razões variadas para não estar sempre em direto, desde um familiar doente – pois, deviam pensar que já era azar – a um retiro num local que mantinha anónimo por razões legais e muitas outras, imaginação sempre fora o seu forte.

Felizmente, descobrira que duas semanas eram mais do que suficientes para tirar umas férias de si mesma, se durassem mais tempo as coisas tornavam-se complicadas, como descobrira da única vez que tentara estender um pouco esse período. Não, gostava demasiado da sua vida para abdicar dela mais tempo.

Luísa Lopes

Imagem feita com QuickWrite





quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

NU


O teu corpo,

pássaro esculpido

no assento do

sofá da sala

de visitas,

é uma ampla sala

onde te visito

(abolida a noção

de sonho

sob o teu vestido),

sempre que o desejo

do corpo desenha

a moldura de um

pássaro

em teu assento.