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quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Laboratório Poético Especial Terror



Enforcamento (poetrix)

 

Ouço corações distantes, ouço muitos

Sou como este cadafalso, cego e mudo.

Cessa o rufar de tambores.

 

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Vizinhança no cemitério (poetrix)

 

Rumorejam e choram jovens falecidos

Por obséquio, peço-vos silêncio.

Respeitem um velho defunto.

 

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A noite do levante (soneto)

 

Levantemo-nos, ó gente morta!

Aguarda-nos a insurreição.

Daremos àqueles que andam

Inesperada lição.

 

Levantemo-nos, ó putrefados!

Os vivos querem diversão.

Esquecem-se que malfadados

Os tempos na Terra serão.

 

Miremos o terror nas frontes!

Saiamos desses mausoléus.

A noite é dos mortos errantes.

 

Vamos, que a treva é nos céus!

Vermelho já é o horizonte.

Colhamos os nossos troféus!

 





terça-feira, 23 de setembro de 2008

A estrada da noite- Joe Hill- Resenha

Hoje comecei um livro de terror e suspense. Autor relativamente novo mas com a pesada bagagem de ser filho de Stephen King, mestre do gênero.

As primeiras páginas me conquistaram, não consegui parar de ler até ser vencida pelo cansaço. Eram quase três da manhã e a história bem contada não dava uma trégua.
O escritor muitas vezes tem um texto maravilhoso nas mãos, argumento, personagens e construção perfeitas. E não acontece. Existem pessoas que irão achar loucura, mas um toque de magia pessoal tempera o enredo.

Volto e releio atentamente, não houve buracos ou enxertos desnecessários. É escrita limpa, direta e recém saída do forno.
Cheia de sabores diferentes. Para o leitor ávido a descoberta promete reviravoltas bem amarradas, surreais e completamente inusitadas.

Sempre fui fã de Stepen King e Dean koontz, são estilos diferentes, embora ouça, que tudo não passa de Terror. Isto não é verdade. King pega um eletrodoméstico e transforma em instrumento mortal, dá vida a um carro fantasma, cria situações impossíveis com uma simples caneta.

Koontz algumas vezes começa o livro tão cheio de descrições e sentimentos, que se você descuidar pensa que está lendo um romance. Paisagens bucólicas, famílias felizes e cidades perfeitas.
E no meio da calmaria, introduz uma criatura desumana, um assassinato inesperado, abre as portas do pesadelo e seduz. Ele consegue, assim como King , desafiar o leitor em hipóteses que saltam aos olhos e nos empurram para o oculto. Aquilo que não queremos enxergar, o banal que passa despercebido.

Até onde eles ousam, sinceramente não sei, quando penso que já li tudo que uma mente prodigiosa poderia criar, eles lançam obras completamente diferentes. Reinventam.

Comecei com Joe Hill e seu livro Estrada da noite, não consegui resistir e falei um pouco dos velhos senhores do Horror. Não existe a menor chance de confundir os três escritores.
Hill é a lufada de vento forte, invadindo espaços e preenchendo lacunas. Traz a modernidade sem perder o foco principal, irresistível e muito bem vindo. Não esconde o jogo, na capa ele diz o que vai contar. Uma boa história de terror com tudo que temos direito.

O que este moço vai mostrar se já sei que o personagem principal coleciona coisas bizarras, arrematou pela internet um terno assombrado em uma leilão virtual, e entre outras tem uma namorada Gótica?
Aí está o maior engano, Hill propõe um jogo e vale a pena entrar e aproveitar. Impossível resistir ao mistério oculto por trás das cortinas. Como fã , estou aguardando o próximo ansiosamente.





O fio da maldade - Giselle Sato

Abriu a porta com um sorriso cínico nos lábios. O cheiro de tempero perfumava o ambiente com aromas exóticos:- Oi Jenni, chegou na hora.

- Que delícia está preparando? Alguma comida especial?- Ele passou o braço nos ombros da moça e beijou de leve a bochecha rosada.

Era um jogo, ela adorava quando brincavam assim, precisava adivinhar o ingrediente: - Acho que tem alecrim e hortelã. Talvez uma pitadinha de zátar e raspas de gengibre. Acertei?

O rapaz fez ar de pouco caso e pegou um baseado na ponta da prateleira. Encarava a mulher enquanto acendia e aspirava a primeira tragada. Sabia o quanto incomodava:- Não me olhe deste jeito. Isto aqui é para relaxar. Senta aqui, vem ficar mais pertinho, não vou te morder. Vem amor, anda logo Jennifer.

Tensa, queria pegar a bolsa e voltar para o hotel. Mas não havia nada além do silêncio no quarto impessoal e frio. Sentia-se sozinha. O namorado não ficou satisfeito quando ela apareceu sem avisar. Sentiu saudades e decidiu passar um mês de férias no Brasil, queria muito conhecer o Nordeste.

Omar acariciava os cabelos da moça:- Quer fazer sexo, está com saudades? -Puxou a garota pelo casaco, tentou abrir o zíper do jeans. Apertava com força os seios, mordia o pescoço, respirando forte, excitado, a violência assustou Jennifer:- Pare com isso, Omar, está me machucando.

Ele não soltou o braço, apertou mais forte, torcendo e imobilizando:- Puta! Fofoqueira, pensa que não sei o que você fez? Minha mãe ligou e tenho até o final do mês para voltar para Londres. Eles cortaram minha mesada. Vadia. Porque veio atrás de mim?

A mulher tentava soltar-se, ele era muito mais forte. Não imaginou que a família de Omar contaria que ela havia alertado sobre as drogas. O namorado em poucos meses havia-se tornando um grande distribuidor e feito amizades com primos perigosos:- Eu te avisei que queria uma vida nova, que precisava de liberdade. Eu nem gosto mais de você. Tenho outras mulheres.

Ela precisava encontrar uma saída: - Tudo que fiz foi para o seu bem. Eu juro que nunca mais vou te procurar. Prometo - Sentiu a pressão no cotovelo e a dor insuportável. Gritou quando o osso foi deslocado: -Por tudo que é mais sagrado, não faça isto comigo...não me machuque mais...deixe eu ir embora

Um soco forte partiu os dentes da frente e fez com que perdesse o equilíbrio. Deitada no carpete, chutes cada vez mais violentos. Omar descarregava anos de raiva reprimida:- Eu não acredito nas suas promessas, você me traiu uma vez. Não confio em você. Vai correndo chamar a polícia e vou ser deportado.

- Não. Juro que não vou fazer isso, tomo o primeiro avião para Londres. Eu não agüento mais Omar, pare com isso.

Omar batia sem pena. Em nenhum momento hesitou. Ela merecia cada porrada. Era uma dedo-duro safada. Foram namoradinhos desde a infância. Sempre juntos em todas as ocasiões.
Ele, descendente de árabes, só era aceito porque vinha de uma família extremamente rica. Exibia a namorada como um troféu.

No fundo odiava a vida na Europa. Enquanto a lourinha era eleita princesinha da primavera, ele recebia olhares desconfiados.

Tinha vindo para o Brasil em busca de paz e distância daquela gente. Meses depois, Jennifer apareceu. Maldita.

Pegou o celular e ligou para os pais, segurando firme o aparelho, machucando o rosto da moça:- Vai dizer que você mentiu, estava com ciúmes e inventou tudo. Se não fizer o que estou mandando, vai ser muito pior - Ela tremia e tentava controlar o choro, ouviu a mãe de Omar atender:- Senhora Ibrahim, é Jennifer. Sinto muito, eu menti sobre o Omar e as drogas. Inventei tudo porque estava com ciúmes dos primos. Não senhora, eu sei que ele me ama de verdade, ele é bom para mim. Sim, ele me perdoou. Senhora, diga à minha mãe que eu a amo.

Omar arrancou o telefone e empurrou a namorada com força contra a parede: - Desculpe, ela está nervosa. Muito arrependida. Por isso a voz de choro. Claro que pode dar o recado à família de Jennifer. Lembre que vamos passar quinze dias no Nordeste. Está bem, converse com papai e ligue mais tarde. Conto com a senhora. Jennifer está mandando um beijo.

Inconsciente, parecia uma boneca de trapos, toda retorcida, o sangue empapando os cabelos. Omar suspendeu um dos braços. Flácido, ela havia perdido as forças. Não importava. Ouvir a mulher voz implorando perdão era irritante demais.

Correu para o quarto e cheirou mais uma carreira, a terceira do dia. Coca misturada, cheia de resíduos. Porcaria para passar adiante. Ele merecia o melhor. Safados, isto não ficaria assim.

A mãe havia acreditado em tudo, o problema era convencer o pai. Só de pensar em retornar sentia mais raiva da moça.

Bebeu um gole do uísque e respirou fundo. Precisava clarear a mente e encontrar uma saída. Como iria se livrar de Jennifer? Só de imaginar a cadeia, ficou apavorado. O cheiro de queimado lembrou que o assado estava perdido.

Até o prato especial havia sido estragado por culpa da intrometida. Pensou no tempo perdido preparando o carneiro, o jogo de facas novo, usado pela primeira vez. Facões afiados e serrilhas. Facas e cutelos de todos os tamanhos. Cozinhar era o hobby preferido.

Uma idéia começou a tomar forma. Era tudo carne, não importava de que animal fosse oriunda.


Voltou à cozinha, jogou o corpo na bancada de mármore. Percebeu que ela respirava suavemente. Um golpe certeiro atravessou o peito e calou o coração. Precisava esperar para que o sangue esfriasse, não suportava sujeira. Queria fazer os cortes perfeitos. Limpos.

Resolveu sair, encontrar os amigos, dançar e relaxar. Daria o tempo necessário para a segunda fase. No dia seguinte cortaria a namorada em pedaços. Separados em embrulhos, deixaria os pacotes em vários pontos da cidade.

Bateu a porta com força enquanto acendia outro baseado. O celular tocou, eram os pais com as boas novas. Jurou que havia largado as más companhias, prometeu que doravante Jennifer seria a única companhia:- Não se preocupem, estamos bem, foi tudo um grande engano. Não, ela acabou de sair, foi para casa, vamos ao cinema e depois jantar. Fizemos as pazes.




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domingo, 21 de setembro de 2008

Labirintos



Marcia Szajnbok


- Aqui viveu Catarina de Médicis, uma das mais astutas e manipuladoras mulheres da história da França. Ela era uma menina ainda, tinha apenas 14 anos quando se casou com Henrique II. Apesar de todo o seu poder, foi publicamente preterida pelo marido, que presenteou Diane de Poitiers, sua amante, com este castelo. Dizem que nunca se curou desse orgulho ferido. Após a morte do rei, Catarina obrigou Diane a devolver todos os presentes que ganhara de Henrique II, inclusive o castelo, e para descaracterizá-lo, mandou construir a grande galeria sobre a ponte em arcos que atravessa o rio, e projetou um novo jardim que deveria superar, em beleza, o antigo, feito pela rival. Mas há quem diga que Diane nunca se desprendeu deste lugar, e até hoje seu espírito disputa espaço com o de Catarina...
O dia estava nublado e quente, abafado. O Loire refletia o céu e tornava o ar úmido. O grupo era grande, estávamos todos cansados e, a partir de um certo ponto, todos os castelos me pareciam iguais. A guia turística contava mais uma história. Esta versava sobre as personagens que passaram por Chenonceau, várias mulheres unidas por complexos laços de parentesco e rivalidade. Meus pés doíam e foi por isso que decidi fazer uma pausa. O que veria no interior daquele edifício que já não tivesse visto nos últimos dois dias? Vitrais, escadarias estreitas, armaduras, os aposentos do rei, a cama da rainha... O bosque junto ao castelo me pareceu bem mais convidativo para um descanso de quarenta minutos, tempo que estimei iria demorar a visita do grupo no interior do castelo.
O outono francês tingia o cenário de amarelo-alaranjado, e era marcante o contraste de temperatura entre as áreas ensolaradas e de sombra. Dentro do bosque, o ar puro e fresco cheirava a grama molhada. Enchi os pulmões e, surpreendentemente, tive um acesso de tosse abrupto e imotivado. Foi uma sensação estranha, como se uma força invisível tivesse me apertado a garganta. Hoje, penso que deveria ter compreendido melhor o que se passava ali, e retornado para junto do grupo de turistas. Mas na vida, muitas vezes, só nos damos conta do perigo quando já se fez tarde demais.
Passado algum tempo, notei que não havia mais ninguém por ali e que o burburinho dos arredores do castelo tinha se tornado inaudível. Apurei os ouvidos: o silêncio só era quebrado pelo ruído dos meus próprios passos amassando folhas no chão. Um certo desconforto: de repente, aquele lugar que me parecera tão convidativo começava a se tornar um pouco sombrio. A frescura agradável do ar protegido pelas árvores cedia lugar a um vento gelado, que me arrepiava a pele mesmo sob o agasalho.
O estado de alerta sempre nos torna um pouco sugestionáveis, de modo que não consigo até hoje afirmar que realmente vivi tudo o que se passou em seguida. Posso ter apenas imaginado, delirado, alucinado, não sei. Há quem diga que o sobrenatural só existe dentro da mente humana. Mas naquele momento, tudo me pareceu terrivelmente real.
Intuitivamente, comecei a procurar a trilha por onde havia entrado, pensando em retornar aos jardins do castelo. Todas as veredas, entretanto, me pareciam iguais. Não conseguia reconhecer por onde havia passado, e depois de algumas tentativas já não sabia exatamente em que direção seguir. Sem perceber, apertava os passos e, quando me dei conta, estava correndo. O coração disparado, a respiração ofegante, tinha a sensação de estar andando em círculos. Por duas vezes virei o rosto, tomada por uma espécie de certeza de que havia alguém atrás de mim, mas não vi ninguém. A impressão de estar sendo observada, entretanto, crescia na mesma medida em que meu pânico aumentava.
Entre as árvores vi alguns arbustos de espinhos. Não me lembrava de tê-los visto quando entrei no bosque. Pareciam ter surgido do nada e se proliferar rapidamente. Em alguns trechos, obstruíam ou estreitavam a passagem, criando um labirinto que me impedia de sair do bosque. Impossível dizer se o que os fazia se comportar assim era alguma força mística, ou tão somente minha claustrofobia.
Tentava manter meu raciocínio claro, repetia para mim mesma que aquilo era apenas uma crise de ansiedade que logo passaria, que tudo ficaria bem. Mas há circunstâncias em que toda informação que podemos acessar não faz frente ao transbordamento dos sentidos e das emoções. Eu sentia algo muito ruim ali, sentia maldade ao meu redor. Aqueles arbustos tomavam formas de enormes garras, e era difícil lutar contra a idéia de que estavam ativamente tentando me agarrar.
Recordava as histórias contadas pela guia. O ódio e a vingança que moveram a poderosa Catarina a armar intrigas e ardis, as perseguições, os assassinatos, essas tramas do passado me envolviam como uma onda. Meu pensamento corria por lembranças ruins, pelos acúmulos de minhas próprias raivas, e pelas pessoas pelas quais ainda nutria um insuspeito ressentimento. Não supunha haver, dentro de mim, tantas câmaras secretas, cheias de tantos rancores. Entre a folhagem, surgiam pontos brilhantes, pareciam olhos. Não que eu os visse, apenas os pressentia. Olhos dos meus desafetos, os meus próprios olhos refletidos neles, os olhos das mulheres de Chenonceau. Ora invejosos e vingativos, ora cúmplices e curiosos. Mesmo vestida, a força daqueles olhares me observava nua, sob as roupas. Como uma varredura, deslizavam pelo meu corpo como que em busca de tomá-lo. Havia ali um misto de violência e sedução. O brilho daqueles olhares invisíveis me hipnotizava e eu me deixava ficar ali, prostrada, enquanto elas tiravam de mim um tanto de força, de energia. Olhos vampiros, roubavam-me a vida.
O desespero chegou ao auge quando comecei a escutar os risos. Risos debochados, depois gargalhadas, cada vez mais altas, cada vez mais fortes, formando um coro de escárnio que ecoava-me dentro da cabeça. Parecia que o mundo se desfazia, que meu corpo se despedaçava, que minha vida escoava pela pele e penetrava naquelas mãos de espinhos que, nesse ponto, me aprisionavam completamente. Imersa nessa vertigem de sons e luzes, medo, volúpia e entrega, deixe-me levar. Até que tudo se apagou.


***


Não sei como saí de lá. Voltei a dar acordo de mim já fora do bosque, com uma multidão de turistas ao meu redor, a guia me oferecendo água, o som repetitivo de uma sirene de ambulância se superpondo às vozes. Não conseguia falar, queria apenas ir embora dali.
Aos poucos, no caminho de volta, fui narrando minha história. A maioria a interpretou como um ataque de pânico, alguns atribuíram minha crise ao cansaço, ao calor, à fome ou à sede. Quando falei dos olhos e dos risos, percebi em alguns rostos um ar preoupado. A guia explicou que naquela região não nasciam arbustos de espinhos, por conta do clima, da temperatura e do solo. Achei melhor não comentar mais nada. Talvez eles estivessem mesmo certos, e tudo não passasse de fantasia. Estava exausta, queria dormir, dormir profunda e indefinidamente.
O único detalhe que nunca consegui explicar foi que, ao despir-me naquela noite, percebi meu corpo todo arranhado. Braços, pernas, dorso, abdome, peito. Em toda parte, filetes de sangue coagulado traçavam estranhas tatuagens. E, como que enfeitando esses desenhos, aqui e ali restavam pedaços de espinhos.





sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Olhar

por Pedro Faria


Abra os olhos”.

Uma voz sussurra em meu ouvido. Olho para o lado, não vejo ninguém. Eu tinha fechado os olhos por um segundo apenas.

Estou caminhando. Não lembro bem para onde estou indo. Talvez eu não saiba.

Talvez eu tenha simplesmente levantado, me vestido, e decidido sair para uma caminhada nessa bela tarde de inverno, o céu pouco nublado, as nuvens de um branco puro, diferente das comuns cinzas e negras de poluição que vemos tanto nos dias de hoje.

Não sei onde estou. Quer dizer, a rua. Estou bem longe de casa.

Há quanto tempo estou andando? Meus pés doem.

Então porque não paro?

Eu tento, mas não consigo. Preciso andar.

Há uma mulher a minha frente. Seus cabelos são pretos, e descem até topo de suas nádegas. Não é magricela, e não é gorda. Está de calça jeans, e sua camisa é preta e sem mangas. Seus braços são brancos, e há uma tatuagem em seu ombro direito.

Estou observando essa mulher há algum tempo. Tempo suficiente para perceber que a estou seguindo.

Ainda não vi seu rosto, mas dá para adivinhar que ela é linda. Já estive errado antes, é claro. Já houve mulheres que achei serem bonitas, apenas as observando pelas costas, mas que na verdade eram no máximo “simpáticas”, como meu avô diria sobre mulheres de rosto comum.

Essa não. Seu formato, em geral, não deixava dúvidas. Ela seria linda. Seria o tipo de mulher com o qual eu poderia morrer, ou matar.

Será que é por isso que estou caminhando? Querendo interceptá-la? Puxar uma conversa, talvez um convite para algum lugar. Será possível? Eu, que nunca fui de dar em cima de mulheres aleatórias pela rua?

Estou suando. Seco o suor de minha testa, e lembro que sou casado.

Lá está a aliança, em minha mão esquerda.

Não sou casado. Não, com certeza não sou. Como posso, se não me lembro?

Meus pés continuam doendo. Droga, não estou com tênis próprios para caminhar.

Agora, quanto a essa aliança. Como isso veio parar aqui, eu não sei...

“Abra os olhos”.

Estou parado. Há pessoas ao me redor. Chove, mas não me importo. A chuva me lava, manda embora o podre, o fétido, o errado. Tinha muito errado em cima de mim, agora... Ainda tem, mas menos.

Há uma mão em meu ombro. Olho para o lado.

A mão é nodosa, e denota experiência, e endurecimento. O endurecimento do espírito, que vinha com o tempo, com a vivência.

O terno do homem é cinza, e perfeitamente ajustado ao seu corpo. Seus cabelos são pretos, porém o cinza desponta na base de sua cabeça, como que se passado do terno, pelo pescoço, até os pêlos mais baixos de seu cabelo.

Ele não tem rosto. Meu Deus, estou ficando louco.

Não há olhos, nem nariz, nem boca.

Abro a boca e grito. As pessoas ao meu redor, igualmente sem rostos, se viram e me fitam.

Eu corro, para longe. Olhando ao redor, noto que estou num cemitério. Chego ao portão, e parado diante dele, de costas para mim, está a mulher.

Um pensamento aterrador cai sobre mim agora: E se ela não tiver rosto? E se, quando ela se virasse, eu visse o mesmo vazio que vi nos olhos do homem de cinza?

Não, eu enlouqueceria. Há beleza no mundo, não há apenas o vazio, a sombra, e a morte.

Eu caminho até ela. Tento parar, mas não consigo. Não quero olhar.

Estou a dois passos dela. Ela se vira.

Sim, é um clichê, mas seu rosto é o mais bonito que já vi na vida.

Ela é branca, mas não é pálida. Há uma cicatriz em seus lábios.

Seus olhos são negros, da cor do cabelo, que cai sobre seu olho esquerdo.

Ela sorri, e eu caio de joelhos.

Tenho lágrimas nos olhos. Lembro do anel: Não uma aliança, apenas um anel, no dedo errado.

Ela se abaixa, seu rosto fica em frente ao meu.

O beijo vem naturalmente, de iniciativa dela. Eu fecho os olhos

“Não, abra os olhos!”

E vejo tudo:

Era eu no caixão. Eu, sendo colocado a sete palmos embaixo da terra.

Sinto um medo me consumindo, como nunca tinha sentido antes. A mulher continua me beijando.

Ela se afasta. Seus olhos brilham um brilho negro, profundo, que me faz pensar em Dante e em buracos negros, e em morte.

“Não há beleza”, ela me diz.

Seu segundo beijo é agressivo, sua língua me invade como uma lança, matando meus sentidos um por um, e eu caio na escuridão.

“Abra os olhos”

Estou deitado. Há pessoas ao meu redor. A chuva cai, e faróis me iluminam.

Uma mulher de vestido branco dá um grito agudo.

Um homem de cabelos grisalhos e terno cinza balbucia, “eu não o vi, ele pulou na minha frente”.

Eu engulo o sangue.

E, entre a multidão que me cerca, está a mulher. Seu olho esquerdo ainda está oculto sob o cabelo. Ela me olha fixamente, e sorri um sorriso malicioso e sedutor.

“Você está vindo para mim”.

Sim, estou indo. E feliz.

Eu fecho os olhos, e a escuridão dela me leva.






quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Nativity in black

Volmar Camargo Junior


Amanhece e uma notícia macabra corre pela cidade. No início da noite anterior, um bebê veio ao mundo, mas é declarado morto pelo obstetra. Poucas horas depois, durante o velório, mergulhados em profundo pesar e no frio silêncio da madrugada, ouve-se o choro do bebê vindo de dentro do caixão.

 

Ao longo do dia, o terror e o desconforto dessa história bizarra alastraram-se de tal maneira que no telejornal do meio-dia, da emissora de maior audiência, a manchete teve destaque entre outras tantas mortes. Durante a tarde, nas repartições públicas, nas empresas, bares, esquinas, em todos os cantos, não se falava de outra coisa: o bebê não fora simplesmente enterrado vivo, mas fora enterrado vivo com a ciência dos médicos e enfermeiros que atenderam a mãezinha à hora do parto.

 

Cai sobre a cidade a escuridão incômoda de uma noite úmida e fria. Nos lares, e novamente nos noticiários televisivos, o relato acrescido de todas as certezas colhidas durante o dia: houve testemunhas de que a criança suspirava enquanto preparavam-na para deitá-la no minúsculo esquife. E que mexeu as perninhas quando tentaram reanimá-la pela segunda vez. E até teria chorado novamente durante o enterro.

 

 

 

O caso do bebê aconteceu de verdade. Para falar com sinceridade, as histórias que contaram em Canela sobre a criança ter chorado no próprio velório ocorreram mesmo. É impossível não se sensibilizar com um caso assim: não só pelo sofrimento dos pais da criança, de uma moça e um rapaz que acabaram de perder o bebê, mas pelo repúdio e a revolta da população contra o hospital e os médicos que atenderam este caso. O problema é que até o final daquele dia, das vinte e quatro horas seguintes aos fatos acontecidos, essa revolta era baseada na boataria. Queria-se pôr o hospital abaixo sem dar um direito de defesa aos outros envolvidos.

 

Não entro no mérito de quem teria começado. Talvez o cadaverzinho jamais tenha-se movido, ou suspirado, ou chorado como dizem. Mas alguém julgou ter percebido, e da vaga impressão à certeza absoluta está o espaço de um boato. E, se há nesse boato um elemento repulsivo, bizarro, medonho, aí está o fermento para nascer uma crença. A realidade nasce, não do conhecimento, mas da crença. 





quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O Corvo (The Raven), Edgar Allan Poe

The Raven
Edgar Allan Poe

Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels named Lenore -
Nameless here for evermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
`Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;
Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more!'

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.
Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,
With such name as `Nevermore.'

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore
Of "Never-nevermore."'

But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -
Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels named Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels named Lenore?'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!

O Corvo
Edgar Allan Poe
Tradução: Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!


Biografia do autor
Edgar Allan Poe (Boston, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, 7 de Outubro de 1849) foi um escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor estado-unidense.

Poe é considerado, juntamente com Jules Verne, um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica modernas. Algumas das suas novelas, como The Murders in the Rue Morgue (Os Crimes da Rua Morgue), The Purloined Letter (A Carta Roubada) e The Mystery of Marie Roget (O Mistério de Maria Roget), figuram entre as primeiras obras reconhecidas como policiais, e, de acordo com muitos, as suas obras marcam o início da verdadeira literatura norte-americana.





O Gato Preto, de Edgar Allan Poe

Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e instruíram.

No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror _ mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum _ uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto _ assim se chamava o gato _ era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento _ enrubesço ao confessá-lo _ sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim _ que outro mal pode se comparar ao álcool? _ e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão _ dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo _ coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme _ tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo _ e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse _ detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê _ seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente _ , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo _ apresso-me a confessá-lo _ , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar _ sim, mesmo nesta cela de criminoso _ , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível _ que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa _, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável _ um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso _ encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim _ pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros _ os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade _ e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia _ e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

_ Senhores _ disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada _ , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes _ os senhores já se vão? _ , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!





segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Um som no escuro

Joaquim Bispo


Nesse Setembro de 75, dois jovens portugueses, colegas de profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado há pouco para espraiarem a liberdade por paragens além-fronteiras. Levavam uma tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso.

Em Vitória, já país basco, a notícia do dia era a morte de mais um «carabinero». Pressentindo a morte iminente de Franco, os separatistas da ETA intensificavam o número de atentados.

Petiscaram num bar e voltaram à estrada procurando um local para acampar. Uns quilómetros à frente, encontraram um terreno plano ao lado da estrada e entraram. Ainda de faróis acesos e motor a trabalhar, foram rapidamente cercados por vários guardas que iam a passar em dois jipes. Tentaram explicar-se em espanhol, mas, porque falassem suficientemente bem, porque a matrícula começava pelas mesmas letras que as de Burgos, ou pela ideia apetecível aos militares de que tinham apanhado dois terroristas, não estava a ser fácil convencê-los da origem lisboeta dos intrusos.

Nisto, chegaram mais guardas comandados por um graduado. Estes, nem dúvidas tiveram. Ao verem aquele aparato, saltaram dos jipes em atitude de grande sanha bélica e, sem darem tempo a qualquer explicação, gritaram que os suspeitos saíssem do carro. Tensos. Os jovens saíram, ofuscados pela luz forte dos faróis, para logo ouvirem ordens de «manos en el aire!», quase abafadas pelo matraquear metálico de muitas culatras puxadas atrás.

Quem vos conta isto levantou as mãos lentamente, virou-se e apoiou-as no carro, rodando o rosto para o lado contrário ao dos guardas, para que nem o olhar pudesse fornecer qualquer pretexto ao nervosismo revanchista dos carabineiros. Durante uma eternidade de segundos, esperou ser trespassado, senão por um sem-número de balas à queima-roupa, com certeza por aquela que só obedece ao diabo e que é disparada até pelas espingardas descarregadas.





O Ratinho

por Carlos Alberto Barros

Se é real, pouco importa. A mente de uma mulher como eu – viúva, só, 97 anos – já não se incomoda com distinções entre ilusão e realidade. Só quero ter algo em que apoiar a pouca vida que me resta.

Um ratinho. Tão bonito com suas asinhas negras batendo, assim, velozes. Os olhinhos vermelhos brilham na escuridão do quarto.

- Olá, ratinho bonito. Está com fome?

***

Dias depois, na casa da solitária anciã, são encontrados apenas restos de ossos humanos roídos. A mulher é dada como desaparecida e o caso é arquivado por falta de testemunhas ou evidências.





domingo, 14 de setembro de 2008

O Bicho Roncador

Henry Alfred Bugalho

Zé Carlos engatilhou a espingarda, abriu uma fresta na porta e espiou.
— O bicho ‘tá lá fora, Maria! — ele tremia.
— Deixa, Zé. Aqui dentro ele não faz nada... — Maria, incerta.
— Que nada, mulher. Você não ouviu a história do Tião. O bicho comeu uma criança já.
— Mentira, Zé. O Tião só fala mentira!
— Mas olha, olha o ronco do bicho. Ele ‘tá rondando.
E estava mesmo. Era possível ouvir o caminhar dele, a respiração profunda, rosnar dum tigre.
Zé Carlos disparou para fora, Maria com mãos unidas, rezando.
— Foi embora. — Maria, desesperada.
— Não sei. Acho que não.
O ronco aumentou, o som das patas mais perto, Zé Carlos tremia, Maria também.
— Fecha a porta, Zé, fecha!
Mas não deu tempo, quando Zé a encostou e se preparava para trancá-la, o monstro deu uma trombada, derrubou Zé e estraçalhou Maria. Depois, foi embora. Zé chorando sozinho, espingarda na mão trêmula.

— Mentira, Tião! Este bicho não existe. — Pedro tragava o cigarro de palha.
— Mentira não, Pedro; meu amigo Zé Carlos que não me deixa mentir. Agora me vou, só não esqueça de trancar a porta.
Pedro não obedeceu, mas, quando ouviu o ronco fora de casa, se arrependeu.
Tião nunca mentia.





Microcontos: Terror

O Corajoso
Marcia Szajnbok
O Tuta era aquele menino que todos os demais invejavam: grandão, musculoso, metido. Foi o primeiro a fumar, se gabava de ir ao puteiro desde os 10 anos, conhecia palavrões que nenhum dos outros tinha ouvido ainda. E, o principal, era corajoso, muito corajoso mesmo. Toda sexta-feira, os meninos apostavam: quem é que consegue ficar mais tempo sozinho no portão do cemitério? O Tuta sempre vencia, e vencia de lavada. Naquela noite, fez uma proposta diferente:
- Vamos ver quem é que consegue ir mais longe dentro do cemitério... Cada um entra, os outros vão contando os passos... Aposto que vou levar esta também!
Não que os outros acreditassem que podiam vencer o Tuta. Mas, uma aposta dessas menino que é homem não recusa. E lá foram, perto da meia-noite, se embrenhar no cemitério. Foi um, depois outro, ninguém dava mais de vinte passos. Chegou a vez do Tuta. Depois de dez passos, virou-se para o portão e gritou:
- E aí, cambada? Não tem nenhum macho aí pra me acompanhar?
Diante do silêncio, seguiu em frente. Do lado de fora, os outros ouviam os passos e contavam: trinta, quarenta, oitenta, cento e vinte, cento e vinte e dois... Silêncio. Os garotos se entreolharam. Cadê o Tuta? Ninguém fez a pergunta, mas ela pesava no ar escuro e absolutamente silencioso daquele início de madrugada de sábado. Quando uma nuvem escura tapou completamente a luz da lua e um vento gelado uivou por entre as árvores, saíram todos correndo, cada um rumo à sua casa, ansiosos pelas cobertas e pela própria mãe.
O Tuta? Nunca mais foi visto.





sábado, 13 de setembro de 2008

Imperfeição

I. Na livraria

Nunca gostara de contos de terror. A sua aversão era devida a uma capacidade imaginativa forte que o tornava vulnerável, gerando mal-estar físico para lá da insónia que aflige o comum dos mortais. Por isso, é com alguma surpresa que entra na livraria e dá por si espreitando sobre o ombro do homem que folheia. Antes de fixar o olhar, ainda pensa que poderia ter arranjado melhor forma de “matar” o tempo enquanto a Margarida não chega.

O homem que espreita, André, é mais um daqueles aviões de voo de rota falhada, está a pagar caro o rigor desleixado com que sempre encarara os outros na vida profissional e relações familiares. Nunca fora de “engolir sapos” e calar. Mas também jamais conseguira entender o valor de respeitar as devidas hierarquias e proporções. Daí o mal-entendido com o chefe do chefe, originando chamada repentina ao gabinete do subordinado deste. O discurso, cheio de palavras bem escolhidas incluía as frases que não deixavam margem para dúvidas - Lamento muito mas não existem condições para continuares. Seria mau para nós e ainda pior para ti – dissera o “chefinho” com ar preocupado, pleno de comiseração.

Em casa a sorte não fora melhor. Depois do início fulgurante, a relação com Matilde foi arrefecendo, resistindo como podia à erosão do tempo e ao seu muito mau feitio e excessos ocasionais. Aconteceu o mesmo de muitas vezes - os dois lados seguram a corda e vão puxando, puxando. Julgam que dará sempre para mais um pouco. Até que quebra de forma mais ou menos inesperada. Naquele dia, chegado ao apartamento deu com o nada, o vazio. Mais tarde um SMS informou lacónico da “ida para casa dos meus pais”. Não te preocupes, levei a Margarida, depois o meu advogado contactar-te-á – disseram de forma aparentemente despreocupada as letras pequeninas, redondas, do aparelho.

Entretanto aproveita e vai lendo, de boleia. O companheiro não deu pela sua presença e avança interessado para a uma das histórias – Perseguição implacável. Vem-lhe à lembrança algo. Em silêncio volta atrás no tempo e conta a si mesmo tudo. Desde o início.

 

II. Dos incríveis acontecimentos da semana passada

Talvez fosse a solidão, talvez a utilidade do dinheiro extra. Só sabe que dá por si folheando os anúncios do vespertino, a vista percorrendo linhas em ziguezague, os olhos atentos a qualquer oportunidade. E foi assim que encontrou o insólito que se lhe cabia e assentava como uma luva. Rezava o texto “O candidato deverá ser homem de meia-idade, bem-parecido, desempregado e livre. São quinhentos euros para um 'casting' ”. Ligou, nervoso e seguiu à risca as indicações, a coisa ficava lá para o bairro da Lapa, bem perto da Rua das Trinas.

O apartamento era direito de terceiro andar e a campainha, de tão ineficiente por certo seria muda ou cansada. Estava quase a voltar para trás quando aconteceu

“André Valadares?” perguntou a voz

“Sim, sou eu”

O outro som retorquiu, indo de trás

  “Olhe, não nos conhecemos mas existe algo que lhe quero propor. Vale bem quinhentos euros. Ah... pode chamar-me Ana.”

Virou-se e viu-a. Alta loira e elegante, óculos escuros da moda, devia andar pelos seus trinta e cinco. Vestia de forma prática, impecável a combinação das cores.

Seguiram em silêncio por duas ou três ruas até encontrarem a porta do apartamento pequeno, quase quarto e sala. No meio, a mesa posta e o ambiente romântico sugerido pelo par de velas não causavam estranheza ao homem baixo, um tailandês entroncado que vestido a rigor se preparava para servir “Quinta da Bacalhoa” com todos os requisitos de cerimonial.

“Faça o favor de sentar”, disse outra vez a voz. Anuiu. Sentaram-se e deram início à conversa.

A curiosidade da anfitriã era enorme e avançava e alcançava, casava bem com a sua solidão. De tal modo que ficou a ver com espanto o desfilar despudorado da sua vida, ao ritmo e toque das palavras que eram lançadas e deixadas à sorte - umas atrás das outras. Passaram os anos da infância feliz e despreocupada, os tempos de Universidade de borgas e amores e professores austeros. Passou a morena tímida que se chamava Matilde e estudava biologia e a festa onde proferiram ambos os votos solenes e cortaram o bolo e beberam champanhe cruzado após inaugurarem a pista de dança com uma valsa. Passou uma barriga linda em crescendo que, chegado dia do parto se esvaziou na felicidade de pegar o rebento rosado e chorão. Chamar-lhe-iam Margarida – nome da avó materna. E chegaram depois, enfim os tempos maus. As dificuldades, as discussões, o acomodar mútuo, a incompreensão partilhada. Chegou o dia que tinha marcado os sentimentos da sua vida mais recente. E quando atingiu este ponto, subitamente, olhos húmidos, a voz perdeu a força, calou-se. Tinha passado uma hora cheia, ele ali a falar, falar, falar. À sua frente a mulher escutava atenta. De vez em quando parava e baixava o olhar para tirar anotações no caderno.

“Senhor, obrigado pelo seu tempo, aqui tem” Estendeu-lhe o envelope com dez notas de cinquenta.

Tinha tirado de si e lançado para a frente todos aqueles guardados de baú de ser. E agora sentia-se mal, desconfortável, triste. Bem, pelo menos tinha ganho algum dinheiro! Se fossem necessárias mais histórias... – pensou. Estava neste diálogo interno, consigo mesmo quando foi invadido pelo torpor e seu corpo cedeu aos truques de um vinho bom mas adulterado.

São seis da madrugada quando acorda e ergue o olhar. À sua volta, o grupo de adolescentes com ar rufia segura os dois “Pit Bull”. O que parece mais velho avança e diz

“Ouve lá, cota. Aqui é tudo gente boa, do melhor. Por isso vamos fazer um trato contigo.”

“Hum... que trato, onde estou?” em frente via o descampado da lezíria. Ao fundo, a uns bons quatrocentos metros. A cerca de arame era interrompida por um portão.

“A gente quer ver como corres, se és como o Obiquelo. Por isso vais fazer uma corrida aqui com os meus dois primos” os primos olhavam ansiosamente, expectantes, dente afiado, língua de fora.

O magricelas de óculos saiu do meio do grupo. Encarou-o, mirando-o de baixo a cima e disse.

“Hei, assim não vale. O gajo está em tão boa forma que os animais não terão a menor hipótese. Vamos ter de desgasta-lo um pouco.”

Formaram um círculo de onde choveram pontapés e murros, transformando-o ao fim de uns minutos naquela massa física desgraçada que implorava descanso. Olhou para cima mesmo a tempo de ver o “caixa de óculos” sorrir e dizer

“Agora sim, o avozinho já está em pé de igualdade.” sorriu trocista “Mas se ele for bom desportista damos-lhe uma pequena vantagem. Façam-lhe a pergunta.”

A mente confusa começou a imaginar testes possíveis à memória – Quem eram os “cinco violinos”, qual foi o ano em que o Boavista ganhou o seu primeiro campeonato, qual era o nome do recordista mundial do triplo salto, todas estas questões surgiram se candidatando. Mas quando soube ao que vinham, descobriu como se tinha enganado e avaliado mal os interlocutores. Os putos estavam para o desporto como para a história aquele aluno que em visita ao Museu do Azulejo, perante o painel magnífico da Lisboa pré-terramoto de 1755 pergunta à “sotora” onde estava pintado o estádio do Belenenses. Agora a pergunta era simples: Qual dos três grandes era o melhor?

Foi fácil acertar na resposta. Premiaram-no com uma vantagem de duzentos metros, foi lançado para a frente. E correu como um louco, não se atrevendo a olhar para trás. E chegou a pensar que ia conseguir. O portão estava já tão perto, quase ao seu alcance quando algo agarra e puxa a perna esquerda. Decorre uma fracção de segundo após a qual sente o osso a partir como se fosse mero bambu de um qualquer canavial. Mas não se preocupa com isso nem com o sangue que jorra livre e desgovernado dos vasos sanguíneos dilacerados. Preocupa-se sim com o segundo primo, o qual o alcança também, atacando num ápice. Ainda coloca as mãos, protegendo a face de investidas sucessivas das mandíbulas que abrem e fecham e puxam e rasgam. Mas a dor aumenta e é impotente para resistir mais tempo à vaga violenta que avança e não recua, que encontra finalmente o ponto vital, partindo o pescoço, separando-o em duas metades, finando-o nesse divórcio físico. Antes de se ir ainda consegue ouvir ao longe a voz da loira a dizer – Muito bem, rapaziada, aqui está a vossa parte. Agora é comigo. Isto nunca aconteceu. Nem um pio.

 

III. De volta ao livro

Continua a ler. Para descobrir o quanto o personagem principal lhe é familiar. Alto lá - a boca abre-se de espanto. É ele, elezinho ali escarrapachado, pregado palavra a palavra em página de papel. Com todos os detalhes. Horrorizado observa o sorriso satisfeito do leitor que fecha o volume e se dirige decidido para o balcão. O livro é excelente, o conto tão verosímil e cheio de sensações. Ah... e aquela personagem tão bem descrita, tão real... vai comprar. Tem de comprar.

Então o homem chamado André passa de surpresa grande a tristeza maior, convencendo-se finalmente sobre o seu estado actual. Sabe agora que a Guidinha não virá pois o ele físico também já não é. E sente a dor imensa dos que são e ao mesmo tempo não são, que ainda recordam a vida que foi mas já nada podem fazer.

Ainda grita desalmado um “é pá, não gastes o dinheiro em porcarias, essa gaja é um embuste, é uma vampira, uma assassina”. Sem qualquer sucesso. Afinal de contas ele é ainda fantasma principiante. E não será certamente para principiantes a capacidade de causar manifestações físicas perceptíveis, chamando a atenção dos vivos.

 

IV. Epílogo

A mulher loira que não se chama Ana está à varanda de seu apartamento de luxo na zona nova da cidade – o Parque das Nações. Bebe um vodka a golos espaçados enquanto enche o olhar com a actividade bela e caótica dos que chegam e que vão junto aos jardins na margem do Tejo. É uma “contista” das boas, os seus contos prendem a atenção do leitor desde o primeiro momento. Mas como qualquer autor, não é perfeita. O seu calcanhar de Aquiles é a criação de personagens adequadas, verosímeis. Porém, com o método engenhoso que encontrara a imperfeição era eliminada de forma eficaz fazendo com que o problema nunca aparecesse aos olhos do leitor. Ao que parece, o seu livro mais recente, uma colectânea de histórias de terror e acção onde podemos encontrar títulos como “Tortura fatal”, “A morte dos gémeos inocentes”, “Acidente premeditado” e “Perseguição implacável” está fazendo muito sucesso.

Liliana, contista possuidora de imperfeição fatal sorri de sorriso triunfante. Observa o sol que se põe vagaroso, ao longe - por detrás da colina e tenta imaginar como serão os próximos textos. Sabe que não serão contos de amor.





A Mansão e Seus Hóspedes

Guilherme Augusto Rodrigues

No alto da colina, numa cidadezinha, havia uma mansão sombria e muito antiga. Cercada por uma vegetação densa. À porta de entrada, havia duas grandes gárgulas com dentes e garras afiados, asas enormes. Uma pequena e mal cuidada trilha, já abandonada há muitos anos que levava até o portão de entrada, velho e enferrujado. Pouco visível entre a vegetação, e nos pilares mais duas pequenas gárgulas, mas aterrorizantes. Pareciam vivas, só a observar a movimentação de quem ousasse se aproximar do portão. A mansão era encoberta por uma rigorosa névoa.
Ninguém visitava a casa, ninguém!
Júlia, uma garota, cansada de tantos mistérios e lendas contados pelos moradores, resolveu investigar a mansão, na noite de lua cheia.
Passou pelo portão e foi caminhando pela trilha, bateu à porta. Ficou ali na companhia das gárgulas. Parecia que iam voar em cima da garota, até que um homem abriu a porta, ambos levaram um susto, ele: porque ninguém vinha visitá-lo e de repente uma garota lindíssima estava ali diante dele, ela: com a aparência do sujeito. O homem era deveras esquisito, pálido, cabelos longos, despenteados e negros. Vestia um terno preto, já bem fora de moda, bastante antigo que carregava as poeiras do antanho. Disse com uma voz fria:
–Entre, não há o que temer. Fique à vontade– e saiu.
Júlia, hesitante, entrou.
A casa por dentro era fria, com pouca luminosidade, úmida e abandonada, empoeirada e com teias-de-aranha, somente algumas velas a iluminava. Júlia sentou-se à mesa velha, carcomida e deteriorada. Ainda com medo. O homem reapareceu servindo uma bandeja com biscoitos e bolinhos.
–Qual o seu nome?
–João Joaquim, e o seu?
–Júlia.
O nome dele lhe parecia familiar.
Estava morrendo de fome e comeu muitos biscoitos e bolinhos.
–Por que resolveu me visitar?
–Porque dizem muitas histórias e lendas sobre esta casa, então, resolvi conferir, mas, o que dizem não passam de lendas.
–Elas inventam muitas histórias mesmo, que representam seus medos, a sociedade. Não vou à cidade há muitos anos, aqui tenho tudo que preciso; só não tenho quem amar.
–Terá... Algum dia –disse sem jeito, sorrindo.
Depois de algum tempo foram até a torre mais alta do casarão, onde há uma bela vista noturna e lá embaixo se vê as luzes da cidade.
–Eu adoro esta vista, a lua cheia, a noite, sempre volto para cá para vê-la.
–Deve ser maravilhoso ver o sol nascente. Que linda vista!
Júlia ficou apenas contemplando a vista noturna, o luar que iluminava o interior da torre e a cidade. Ficaram em silêncio e depois conversaram por longas horas. João se mostrou um homem romântico e amoroso, frágil e carinhoso. Eles se sentaram no chão vendo o céu, o luar, a chuva. Sentaram-se um ao lado do outro. Júlia encostou-se em João e apoiou a cabeça em seu peito. João levou a mão à cabeça dela e a afagou. Ela quase dormiu.
–Quando vim aqui, nunca imaginava que ia encontrar uma pessoa assim tão amável, tão dócil, tão sensível...
–Eu, durante todos esses anos, nunca imaginei que alguém viesse a esta casa assustadora, velha, solitária no alto da colina.
Sem dizerem mais nada se beijam. Olhavam-se um para os olhos do outro certos de que se amavam. O silêncio era, naquele momento, a sinfonia mais bela nas notas mais suaves, amáveis. Os acordes do silêncio como ninguém, jamais, havia ouvido.
A lua parecia estar vigiando-os, parecia engoli-los. Abraçava-os.
A noite já ia se deitando, pronta para dormir. Júlia logo se apressou, esquecendo-se que tinha que ir, num pulo ficou de pé, logo estava pronta. Descendo a escadaria correndo. Pulava dois, três degraus. Chegaram à porta, abraçaram-se alguns minutos mais, beijaram-se.
–Tchau, querida! Sentirei saudades. Volte na próxima lua cheia.
–Tchau, amor! Até logo!
Passados alguns dias, Júlia voltou para ver João Joaquim. Bateu à porta e ninguém atendeu, bateu mais uma vez. De repente uma gárgula ganhou vida, Júlia, estupefata, congelou-se, a gárgula avançou e atacou com uma patada no rosto. Júlia caiu ao chão. Deve ter permanecido desacorda por um bom tempo. Foi recobrando os sentidos, se sentiu zonza, com a cabeça pesada e dolorida, sem saber o que tinha acontecido. Sem se lembrar do fato, levantou-se, ainda zonza, encontrou sangue no chão, no rosto e em suas mãos. Tentou abrir a porta, estava aberta.
–Socorro! João! Sou eu, Júlia.
Na escuridão e na frieza do lugar totalmente abandonado: Silêncio...
Envolto na escuridão, o que parecia ser a sinueta de um homem a observava amoitado atrás do pilar do segundo andar contíguo o corrimão. E ela nem o percebeu.
O ar pesado da casa, ela não vê nada de bom, sentiu tontura e logo saiu da casa.
Resolveu olhar ao redor da casa. No céu, avistou um pássaro grande rondando a casa. Olhou pela redondeza da casa chamando por João Joaquim. Encontrou: João Joaquim – 1831 – 1852.
Ao ver aquilo saiu correndo, desesperada, correndo mais do que suas pernas podiam agüentar, a gárgula deu um rasante que quase novamente a acertou na cabeça. Lembrou-se, ainda com dor e cambaleando, que João Joaquim foi o homem que morreu sem amar.
Dois meses depois descobriu que estava grávida de João Joaquim. Em homenagem ao pai, o garoto recebeu o mesmo nome. Júlia nunca mais viu o pai da criança. A criança, mais crescidinha, foi ao encontro de seu pai e nunca mais voltou.