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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Campónios e Extraterrestres

 


O sol principiava grandiosamente a aparecer no topo das montanhas a leste. Raios de fogo projetavam-se em todas as direções, anunciando a chegada do astro-rei e o início de um novo dia.

Caminhando no trilho calcado que seguia entre as árvores, o homem conhecido por Tone Canhoto, bufava com as costas carregadas por um grande saco de lona. Trazia um chapéu surrado e envergava um casaco demasiado grande. À cinta, no pedaço de couro que lhe segurava as calças, que não chegavam às botas cansadas, uma faca e a coronha decorada de uma pistola de fecho de pederneira espreitavam.

Repentinamente, apercebeu-se que não seguia ninguém atrás dele e pousou o saco no chão, olhando em volta, confundido.

— Xico…? — Chamou quase a medo. — Zé?

Ninguém respondia e não havia meio de aparecer alguém, nos cerca de cinquenta metros de caminho que conseguia ver até à curva.

— Raios partam… — Gemeu baixinho. — Onde demónios se encafuaram aqueles dois?

Com esforço, tornou a carregar o saco nas costas e avançou em sentido contrário, a procurar os companheiros.

— Vais morrer!!! — Uma voz forte gritou de entre as árvores, enquanto dois vultos lhe saltam ao caminho.

— Credo, em Cruz, mãe de Deus! — O Canhoto arregalou os olhos de susto e soltou um grito estrangulado, antes de reconhecer os amigos, que riam do terror que lhe haviam infligido. — Seus gandulos, artajeiros! Quase que me esfoiro todo de susto!

— Só queria que visses a tua fuça! — O mais magro do trio, chorava a rir encostado a uma árvore.

— Mijaste-te, maninho? — Também o mais forte, a quem chamavam de Xico Zangão, tinha lágrimas de tanto gargalhar.

— Ah, vão à merda. Isto não se faz. — O Canhoto ainda tinha as pernas a tremer.

— Coitadinho… — O mais magro, conhecido por Zé Patranhas, fez menção de o acarinhar, mas foi prontamente sacudido.

— Sai-te daqui! Pincha-Grilos de um raio! Andas sempre à turra e à maça com o meu irmão, mas me fazerem galdrumeiras, já se ajuntam!

— Então, Tone. — Tornou o Xico. — Não sejas assim! Borraste as ceroulas foi? — Soltou nova gargalhada em uníssono com o Zé.

— Raio que vos pele! — Amuou Tone, alombando novamente o saco e virando-lhes as costas, retomando o caminho.

Os outros dois, ainda a rir, correram a buscar os seus sacos, que esconderam no mato e tornaram para junto do companheiro, para o atazanar mais um pouco.

— Valeu a pena assaltar a casa do velho Menezes ou não valeu? — O Patranhas queria reconhecimento. — O Badocha deu-nos uma boa dica.

— Até gostava de voltar lá… — Riu o Canhoto. — A criadita era bem engraçada.

— Mesmo a mulher do Menezes… Vejam lá aquele velho asqueroso com uma lasca daquelas! — Acrescentou o Zangão. — E sorria-se toda para mim, parecia até que gostava de ser assaltada.

— E gostava! — Gargalhou o Patranhas. — Estava toda consolada, que eu estava a apalpar-lhe as cascas!

— Mentiroso! — Xico enfureceu-se. — Pantominas de um raio…

— Vá, calem-se lá. Já vão começar novamente? — Interveio Tone, conciliador. — Temos aqui um bom saque para dividir e ir vender ao Galego de Chaves. Ou só se juntam contra mim?

Ai, é verdade! — Xico soltou uma sonora gargalhada. — Precisavas mesmo ver as tuas ventas de cagaço!

Enquanto estavam nestas brincadeiras, um enorme objeto voador, fortemente iluminado, passou a baixa altitude, quase roçando as copas das arvores e levantando uma nuvem de poeira, folhas e ramos soltos. Logo de seguida, o silvo grave que perseguia o objeto, ensurdeceu-os por segundos, até tudo se quedar num silêncio pesado. Uma enorme árvore seca caiu mais à frente.

— Que demónios foi isto? — Perguntou o Patranhas assustadíssimo.

— Vinha a voar, com muita luz! Era um anjo! — Exclamou o Canhoto.

— Com aquele barulho dos infernos?!? — Discordou o Zangão. — Era na certa obra do mafarrico!

— Vamos embora, depressa. — O Zé não tirava os olhos da direção tomada pelo estranho objeto.

— Acho que está ali, por trás daquelas árvores. Vêm-se as luzes. — Apontou Tone. — Deve estar naquela clareira que há ali abaixo.

— Vou lá espreitar. — Anunciou o Zangão.

— É melhor não… — O Patranhas tremia visivelmente. — Anjo ou demónio, pode não gostar de ser visto.

— Sim, acho que seja lá o que for, devemos deixá-lo em paz… — Concordou o Canhoto, para as costas do irmão, que abandonara o saco no chão e já se pusera a caminho.

— Oh, raios me partam, lá vai ele meter-nos em sarilhos! — A voz do Zé também tremia. — Com homens grandes ou mal-encarados eu cá me entendo, mas com estas coisas, não gosto nada de estar por perto.

Como o companheiro os ignorasse e, de varapau na mão, descesse o carreiro na direção da clareira, os outros dois olharam um para o outro, indecisos.

— É meu irmão… — Desculpou-se o Canhoto, empunhando a sua pistola.

Sozinho no caminho, o Patranhas olhou em volta, para as árvores ainda envolvidas nas sombras da madrugada. Ficar ali, enquanto eles iam, também não lhe parecia grande ideia. Num resmungar choramingado, ocultou na vegetação os sacos abandonados no caminho e correu atrás dos companheiros. Tirou a pistola do cinto e armou-a. Eles já estavam escondidos na vegetação, fora da estrada e fizeram-lhe o gesto para que se aproximasse em silêncio.

Para além das giestas e ramos onde se acoitavam, existia uma enorme clareira de mato rasteiro, onde se arrastava um pequeno ribeiro, que se tornava um colosso com as chuvas invernais. Eles chamavam-lhe a praça dos recos bravos, pois, normalmente, viam-se imensos por ali. Grande parte da clareira estava ocupada pelo que parecia ser uma imensa, luminosa e fumegante casa sem janelas. Havia forte emanação de calor a partir da inusitada construção.

Quando o Patranhas ia manifestar o seu espanto, o Zangão voltou a gesticular para que fizesse silêncio e apontou para o lado direito, onde estavam quatro pequenas pessoas, vestindo o que parecia ser uma roupa cinzenta, que os cobria da cabeça aos pés.

Os elementos do pequeno e estranho grupo gesticulavam entre eles, apontando o céu e emitindo assobios e estalidos. Com o que parecia um pequeno graveto luminoso, um deles começou a escrevinhar em pleno ar; o extraordinário, é que os gatafunhos apareciam e ficavam estáticos na frente dele. Um outro, apagava alguns símbolos e substituía-os, numa aparente correção, enquanto tagarelavam animadamente.

— Aquela porcaria pode valer uma pipa de moedas! — Sussurrou o Canhoto, olhando espantado para os outros dois.

— Vamos botar-nos a eles. — Sentenciou o Zangão. — Aparecemos-lhes de três lados diferentes. Eu quero uma caneta daquelas, como não sei escrever, pode ser que com ela não seja preciso.

— Mas… já viste? — Observou o Patranhas, pouco animado. — Eles são tão estranhos… que tipo de bicho ou coisa são eles?

— São de fora, que queres? Não podem usar os paramentos que quiserem? — Simplificou o Zangão, sussurrando. — Por mim, podiam vestir a albarda do cavalo, ou a sotaina do prior. — E continuou como quem fala com crianças. — Aparecemos; tu e o meu irmão apontam-lhes as pistolas, eu dou uma barduada ou duas, se for necessário, pegamos o que queremos e chispamos daqui para fora. Agora vamos!

— Xico. — Também Tone estava preocupado. — Aquilo parece mesmo bruxaria…

Enquanto estão neste debate, um dos estranhos pega num pequeno retângulo e começa, como que olhando através dele, efetuando um semicírculo em volta da sua localização. Quando fica alinhado com a posição em que se encontravam os nossos assaltantes, pára e chama o companheiro com um gesto. Os dois olham pelo retângulo e depois sem ele. Os três amigos perceberam que tinham, de alguma maneira, sido detetados.

— Tem de ser agora, já! — Ordenou Xico erguendo-se e caminhando temerariamente na direção dos estranhos, de varapau em punho.

— Maldição! — Exclamou o Canhoto, erguendo-se também, mas engatilhando a pistola.

— Lá vamos nós arranjar problemas por causa deste torgueiro! — Gemeu Zé, seguindo os companheiros.

— Santa manhã, amigos! — Exclamou o Zangão para os quatro surpreendidos estranhos. — Tendes aí uma casa muito bonita.

— E também umas coisas interessantes. — Complementou Tone. — Vamos aliviar-vos do peso delas.

Os símbolos flutuantes desapareceram e os estrangeiros cinzentos começaram a gesticular e a emitir os assobios e estalidos entre eles, apontando os recém-chegados.

Percebendo a ameaça, o que estivera a escrever no ar, fez um pequeno gesto com a "caneta" e as pistolas dos dois assaltantes saltaram-lhes das mãos e colaram-se ao chão milagrosamente. O mesmo caminho seguiu o punhal do Canhoto que, no trajeto, cortou o pedaço de couro que lhes servia de cinto, deixando-o literalmente com as calças na mão. Não aconteceu o mesmo ao Patranhas, porque o cinturão era mais resistente e ele conseguiu livrar-se da faca irresistivelmente atraída para o solo. O Zangão viu-se de repente o único com uma arma e carregou sobre eles soltando um chorrilho de palavrões.

Outro dos cinzentos conseguiu, do que parecia uma mão vazia, atirar uma rede de fios finíssimos, que crescia à medida que voava na direção do atacante. A teia caiu sobre o assaltante e colou-se fortemente aos braços e às pernas fazendo-o cair.

Com o elemento mais forte imobilizado, o Patranhas e o Canhoto perceberam que precisavam de uma nova estratégia. Após uma fração de segundo de hesitação, fugiram para o mato.

O cinzento que atirara a teia, obviamente o chefe, fez um gesto aos restantes, que saíram a correr atrás dos fugitivos.

— Solta-me desta merda, espantalho! — Gritava o Zangão debatendo-se.

O chefe ignorava-o. Olhava para o pequeno retângulo com que os localizara e emitia os ruídos da sua fala, dando instruções aos companheiros.

— Quando me soltar desta bosta, vai levar tantas… — Insistia o Zangão.

O cinzento dignou-se a deitar-lhe um olhar do seu rosto inexpressivo, que quase não tinha nariz entre os enormes olhos negros e cuja boca era pouco mais do que uma fissura sem lábios. Apontou-lhe a palma da mão e saiu outra das teias de aranha, mais pequena, que se colou na cara do furioso Xico. Com a mão esquelética de quatro dedos, compôs a cola sobre a boca do prisioneiro, de forma a reduzir os seus gritos a irados grunhidos. Após isso, ergueu elegantemente a mão atravessada sobre a sua própria boca, numa caricatura do sinal de silêncio. Depois regressou ao acompanhamento da caçada.

Não tardou que os três cinzentos regressassem com os dois aterrorizados amigos, o Canhoto ainda a segurar as calças. Mas é nesse momento que se dá a reviravolta; o furioso Zangão está a conseguir soltar-se das teias que o prendiam. Os incrédulos cinzentos olham para o homem a cortar os fios com uma faca.

— Vocês estão tão, mas tão f**! — Exclamou Xico empunhando a arma. — Isto! — Exibiu triunfalmente. — É uma lâmina de osso, não de metal!

Mas mesmo assim, orgulhosamente, colocou a arma no cinto e pegou no bordão.

— Agora vou mostrar-vos com quantos paus se faz uma canoa! — Gritou Zangão começando a perseguir os apavorados cinzentos, que emitiam assobios aflitos.

Depois de uma curta, mas intensa perseguição, onde eles conseguiram furtar-se por pouco aos golpes de varapau, os quatro estranhos conseguiram reunir-se junto da estrutura e uma luz azul envolveu-os.

As pauladas de Xico estouravam ruidosamente sobre a luz azul, mas não conseguiam atingir os cinzentos, que mesmo assim se encolhiam de medo.

Tone e Quim, finalmente se recuperavam do medo e, vendo as criaturas encurraladas, atiravam-lhes com o que podiam, embora tudo fosse repulso pelo halo azul. O chefe das criaturas parecia escrever febrilmente no retângulo que já antes usara.

Por fim, abriu-se uma porta atrás dos cinzentos, de onde provinha uma fortíssima luz branca e eles correram de imediato para ela. Assim que a porta se fechou, o azul que os envolvia desapareceu e o Zangão conseguiu aproximar-se estrutura. Estranhou não ser metal nem madeira, nem nada que reconhecesse, mas era sólido o suficiente para o seu bordão e ele usou-o por várias vezes.

— Saiam daí, seus vassouros, venham cá para fora! — Gritava Xico. — Covardes!

Repentinamente, toda a estrutura ficou envolvida pela luz azul e os três amigos foram projetados para trás com violência. De seguida levantou voo silenciosamente e desapareceu em segundos no céu azul.

— Eu não disse que era bruxaria? — Gemeu o Canhoto sentado no chão. — Escapamos de boa.

— Escapamos? — O Zangão olhou para o irmão. — Eles é que nem sabem do que se safaram! Estiveram por um pelo de levar um chuveiro de barduadas, que tão cedo não esqueceriam!

— Este raivoso do catano! — Exclamou o Patranhas. — Está sempre a meter-nos em alhadas!

— Raivoso? — O Zangão ergueu-se com o varapau em riste. — Seu aldrúbias canastrão! Olha que eu…

— Lá estão eles outra vez! — O canhoto levantou-se e virou costas aos dois amigos que discutiam acaloradamente.

 

 

(Nota do autor: Este acontecimento deu-se algures no século XIX, mas acredito que, por causa dele, são pouco vulgares em Portugal os fenómenos envolvendo extraterrestres ou OVNIs)






quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Abacaxis

            

A 6ª C virou meu xodó. Não sei bem por quê. Era mais atrasada e mais difícil que a A e a B. Mas os alunos se afeiçoaram a mim, e eu a eles. Esta professora inexperiente foi se aproximando da turma ao longo do ano. Eleita conselheira, me tornei, pouco a pouco, confidente, psicóloga, madrinha, amiga. O bem-querer era recíproco.

            — Tem remédio pra cólica na sua bolsa, professora? Me empresta? Minha mãe não quer comprar pra mim.

Diploma fresco, não mais estagiária nem contrato temporário, mas servidora devidamente empossada, lotada numa escola pública de primeiro grau de Ceilândia, cidade periférica de Brasília.

Quando o ano letivo começou pra valer, me pesavam o medo, a insegurança e a preocupação da responsabilidade. E as expectativas foram logo dissolvidas por assombros novos.

— Me ajuda aqui, professora. A Marina tá tendo um desmaio.

— A pressão deve ter caído. O teto de zinco desta sala cozinha os miolos de qualquer um.

Interessante como, depois de tanto tempo, ainda me lembro de alguns rostos, nomes, fatos, surpresas boas e sobressaltos da estreia.

— Professora, acode aqui. Seus alunos estão se matando.

— Socorro! Polícia! Alguém chama a polícia. O André tá com uma faca no pescoço do Pedro. Parem essa briga agora, soltem, senão vão expulsos.

Assumi três turmas de Língua Portuguesa. — Por que vocês insistem em acentuar melancia, substantivo e abacaxi? Que coisa! Essas palavras não levam acento.

Tirei de letra a gestão da matéria, a elaboração das provas, a correção das tarefas, o preenchimento dos malditos diários.

— Puxa. Revisamos a matéria tantas vezes, e as notas foram tão baixas...

Mas descobri, rapidinho, que minhas cordas vocais não valiam muito, que minha voz era impotente e que as doses de pó de giz magoavam a pele e o sistema respiratório. Meus braços doíam, moídos de tanto preencher o quadro-negro.

Eu descascava abacaxis em exercícios do livro didático: vocábulo polissílabo oxítono; classe gramatical substantivo masculino plural; sintaticamente núcleo do sujeito simples, blá-blá-blá... Assim, aprendi também que não bastava ficar repetindo gramática, redação e literatura para aqueles adolescentes de problemas tão maduros. Na verdade as regras do Português eram o de menos.

— Professora, o pai chegou bêbado em casa e bateu feio na minha mãe, mas ela diz que não vai denunciar.

— Não quiseram atender minha irmã. Ela rodou a cidade inteira atrás de hospital. Aí, quando finalmente resolveram atender ela, em Taguatinga, a coitada estava tão exausta, que morreu no parto. Vou cuidar do meu sobrinho. Vou virar mãe dele.

Não eram muito assíduos, mas se alegravam e pelo menos nunca faltavam às quintas-feiras, quando o lanche era galinhada. Eu servia seus pratos dentro de sala, dosando a concha, repartindo irmãmente entre eles o arroz e o frango, e não sobrava nada no caldeirão.

— Na sua casa tem panela cheia todo dia, professora?

— Tá precisando de diarista? A patroa dispensou minha mãe.

Dentro de sala, eu procurava respeitá-los e apresentar-lhes qualquer fantasia, qualquer ficção que me parecesse mais bonita que suas vidas reais. Fora de sala, porém, as coisas de gente sofrida continuavam dominando.

— Pegaram meu irmão. Mas tenho certeza que ele é inocente. Quem tá traficando é o meu cunhado, professora. Aquilo não vale um jiló podre.

Era o reinado da falta de carinho, da falta de víveres, da inexistência de pequenos luxos. O predomínio do excesso do alcance da morte (por doença, falta de opção, vício, negligência da família e do Estado)... Eu tinha 20 e poucos; eles, entre 12 e 16 anos. Algumas violências que eu desconhecia foram eles que me apresentaram.

— Minha prima tá grávida. Ela é da minha idade. Só tem 13 anos, professora. Parece que é do marido da minha tia, mas minha tia não acredita na palavra da própria filha. Não quer perder o macho.

— Faz três anos que meu pai não aparece nem deposita pensão. Será que ele esqueceu a gente? Será que ainda tá vivo?

Essa nossa proximidade facilitava algumas coisas e dificultava outras. Como sabiam desse meu dengo especial por eles, muitas vezes não me levavam tão a sério quanto eu gostaria. Quando eu queria dar uma bronca amarga, por conta das notas baixas ou das tarefas mal feitas, alguns alunos ignoravam, outros tomavam como afago. Quando a conversaiada virava descontrole, eles me chamavam para dentro da rodinha, contavam intimidades ou me pediam conselhos:

— Minha mãe falou que, se meu pai descobrir que tem filho gay, manda o infeliz pro inferno.

— Será que eu beijo o garçom, professora? Ele tá doidinho por mim. Diz que já tá quase separando da mulher.

— Sorte tem o meu vizinho, que tomou comprimido e morreu dormindo.

Não havia monotonia na 6ª C. Quando entrei na sala para a última aula de sexta-feira, eles já estavam lá, em volta da minha mesa. Eu não sabia, mas estavam preparando uma surpresa para o meu aniversário.

Devem ter arrecadado os ingredientes numa vaquinha. Arrumaram forro branco, balinhas de coco enroladas em papel colorido, vaso com rosas vermelhas subtraídas de algum jardim. Pegaram pratinhos e garfos na cantina, com a bela e gentil Dona Clarice (— Ela devia se chamar Dona Escurice — costumavam dizer), trouxeram refresco e o bolo de dois andares. Aquilo era um acontecimento. Bolo confeitado, cobertura de glacê cor-de-rosa e cerejas. Convidaram a diretora e mais alguns professores da turma. Nunca os vi tão felizes.

Entregaram-me um cartãozinho ilustrado pela desenhista da turma, além de pequenas frases carinhosas escritas à mão, cheias de erros de grafia e sem pontuação, assinado por todos. Bateram o parabém, o com quem será e se acotovelaram, numa fila torta, para receber um pedaço do bolo.

— É de abacaxi, professora. Foi minha mãe que fez — disse a representante.

Quando parti a primeira fatia, no entanto, senti um cheiro bem ruim. Po-dre – adjetivo singular dissílabo paroxítono... O recheio do bolo tinha azedado.

Maria Amélia Elói





terça-feira, 25 de agosto de 2020

Uma nova casa para o Homem


A comunidade era constituída por doze vizinhos. Habitavam uma encosta suave e viviam de vegetais e de alguma criação. A água era a grande riqueza de que todos careciam. Em estações húmidas, uma única nascente alimentava a várzea. Escorria para uma charca a céu aberto e represava, enquanto a escuridão era vagamente atenuada pela luminosidade espetral que se escapava da imensa bola do planeta vizinho. Em tempos secos, era preciso pôr bestas potentes a puxá-la da fundura do poço adjacente à presa. Quando o Sol se fazia ver, a temperatura subia um pouco e era tempo de libertar a água retida. Seguia por uma levada ao longo de sete ou oito nek, onde se bifurcava. Como se bifurcava em cada um destes ramais secundários e nos seguintes, até atingir as doze leiras dos moradores.
A água era pouca, era sempre pouca. Nunca passou pela cabeça de ninguém um sistema de rega automática — um fluxo contínuo de água para todos ao mesmo tempo. Havia que compartilhá-la à vez. Um único vizinho recebia toda a água que a represa vertia e conduzia-a para a sua plantação. Durante uma lonk completa. Não eram precisos mecanismos complicados para medir o tempo; uma rocha a pique com doze furos fazia a medição com o rigor desejado. Cada vizinho sabia que, quando a luz solar batesse no fundo do seu buraco, era tempo de cortar a água ao vizinho anterior e conduzi-la para o seu campo. Quando a sua vez estava próxima, postava-se a vigiar a pedra da rega. Depois, partia em corrida até ao ponto de corte. Cada gota perdida para o vizinho constituía uma perda para as suas plantas.
Goji andava desconfiado. As tufae de Andi cresciam mais e com mais vigor que as suas. Goji suspeitava que o vizinho trapaceava o sistema. Talvez abrisse a água para si, em período de defeso comum. É certo que, mesmo que não houvesse sol, quando o olho vermelho do grande planeta Zois se mostrava, havia luminosidade suficiente para trabalhar no campo. Embora esse fosse um interdito aceite por todos. Mas há sempre pecadores. Eram conhecidos casos antigos de vizinhos que tinham violado a proibição e tinham sido violentamente sancionados. Talvez houvesse novo pecador na comunidade.
No período carmim seguinte, Goji saiu para os campos. A várzea de Andi estava deserta, mas esplêndida de viço, naquele lusco-fusco rosado. E que bem organizada estava! Talvez a rega nem precisasse de acompanhamento. Goji calculou que aquelas tufae teriam quase o dobro de altura das suas. Admiráveis. Lindas. Pareciam ter sido regadas há poucas lonk. Dirigiu-se para a distante pedra da rega ao longo da vala que abastecia Andi. Umas passadas dadas, percebeu que o rego parecia bem mais seco que a várzea. Voltou atrás e, aguçando o olhar, pôs-se a sondar todo o perímetro do campo de Andi. Nessa altura, uma sombra escureceu por momentos o solo. Voltou-se e avistou uma massa escura e arredondada que cruzava lentamente o céu em frente do olho de Zois, mas que desapareceu daí a pouco. Goji não conseguiu dizer-se o que seria. Sentiu um arrepio. Tinha as suas superstições. Mas o empenho em descobrir o que se passava com a várzea de Andi era mais forte. Pouco depois, descobriu um indício prometedor: um estreito buraco no chão, no limite do campo. Podia chegar água por ali. Mas de onde vinha? E quando?
Daí a várias lonk voltou o sol. Goji batucou fortemente o pote sonante — uma enorme talha de barro seco —, a pedir reunião da comunidade. Iniciada a assembleia, expôs as suas suspeitas e as razões para elas. Começou por ver censuradas as suspeitas e foi acusado de má vizinhança. Convencido dos seus motivos, reafirmou e enfatizou a questão. O grupo acedeu por fim a visitar a várzea de Andi e a verificar o buraco suspeito. O caso revelou-se grave. Depois de sondagens e escavações, ficou a perceber-se qual o esquema fraudulento de Andi: um tubo captava furtivamente um diminuto fio de água no início da levada, de cada vez que a represa abria, e era armazenado numa cisterna subterrânea. Quando se iniciava o período de escuridão e ninguém andava pelos campos, Andi abria essa cisterna para a sua várzea, que estava preparada para uma distribuição uniforme automática.
A descoberta gerou uma violenta resposta do grupo defraudado. O visado ficou lívido ao perceber que tinha sido exposto e as consequências que daí adviriam. Logo ali lhe tolheram os membros e arrastaram-o para a pedra da rega. Um julgamento sumário ditou ser a ela amarrado e açoitado com doze vergastadas de cada um.

A expedição a Europa não era a primeira. Várias outras tinham explorado os satélites de Júpiter, com especial atenção para os que apresentavam água. A de 1989 tinha sido especialmente fértil em dados geológicos, mas agora — 2022 — as preocupações eram de outro tipo: avaliar as condições de habitabilidade, quer de Europa, quer de Io, Ganimedes e Calisto, e iniciar a instalação da primeira colónia terrestre. Os outros satélites não pareciam ter dimensão nem características propícias para uma colonização em massa.
Seis cientistas rumaram a Júpiter — viagem dura, nunca tentada por missões tripuladas. Cinco anos durou a viagem, com rotação de períodos de semi-hibernação induzida. Por fim, à aproximação ao gigante gasoso, todos assumiram a vigília. Depois de umas semanas de órbitas a Júpiter, quatro partiram num módulo intermédio para orbitar Europa e só depois três fizeram a descida numa sonda independente. Todo o cuidado era pouco.
Pousaram a sonda numa zona predefinida, cujos registos indicavam presença de água. Havia esperança que essa provável água tivesse criado condições para o aparecimento de vida, ainda que apenas vegetal ou pré-vegetal. A zona situava-se na face sempre voltada para o planeta gigante, mas que naquela altura não estava iluminada pelo sol. Em coordenação com o membro que ficara em órbita do satélite, os cientistas iniciaram medições e registos. As condições apresentavam-se prometedoras: alguma água, sim, temperaturas baixas, mas não impeditivas de vida, algum oxigénio não biológico. Uns dias jovianos depois, decidiram a primeira saída.
Um casal de cientistas saiu, rodeado de cautelas. A gravidade é baixa, exigiu alguma adaptação. Durante uns dias, fizeram pequenas explorações locais, limitadas em tempo e extensão. Parecia possível a existência de vida. Redobraram cuidados, para perturbarem ao mínimo o que quer que pudessem encontrar. Aos poucos, alargaram a extensão da área explorada. Então, certa vez, ao atingirem o limiar de um vale, confirmaram emocionados o que constituía o objetivo daquela viagem: a existência de vida em Europa. Pequenas áreas planas mostravam-se cobertas do que parecia uma viçosa penugem vegetal. Claramente com acesso a água. Naquele momento de aperto na garganta, só os olhares brilharam, no isolamento relativo dos estanques fatos de exploração. Como conseguiram, comunicaram o achado à cientista, que, na sonda, atenta a uma miríade de pequenos ecrãs, já tinha intuído o que os companheiros tinham encontrado. Logo depois — quase os pisaram —, acreditaram estar perante uma incipiente forma de vida animal: uma dúzia do que pareciam minúsculos pulgões movimentava-se em volta de um grão de areia pontiagudo, ao qual um deles parecia amarrado. Cautelosamente, efetuaram registos visuais, bioquímicos e físicos preliminares, cientes do momento histórico que viviam. Umas horas depois, já a bordo da sonda, lançaram, solenes e orgulhosos, a novidade em direção ao Sol.
Hoje é um grande dia para a Humanidade! — proclamou a bióloga Jennifer, enfaticamente. Depois de uma pausa adequada ao momento, continuou: — Europa possui vestígios de água e revela-se propício à vida. Não devemos esperar encontrar formas de vida inteligente, mas registámos formas vegetais e animais, claramente, elementares... — nova pausa. — A colonização está ao nosso alcance! Um pequeno satélite nos confins do Sistema Solar, uma nova casa para o Homem!
A resposta da Terra, a mais de setecentos milhões de quilómetros, chegou hora e meia depois: um grito em uníssono da enorme equipa em rede protegida por máscaras. Em direto para todos os meios de comunicação mundiais. A ecoar em todos os lares em confinamento social. Um mesmo sentimento de comunhão fraterna e de esperança unia todos os homens. Não havia tempo a perder.

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos 22 selecionados para compor a coletânea “O Espantoso Mundo da Antecipação” da Elemental Editoração, Brasil, 2020.

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Imagem: Henri Matisse, O ramalhete, 1953.
Museu Hammer (Universidade da Califórnia), Los Angeles.

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domingo, 23 de agosto de 2020

BANHO DE AÇUDE

 


 

         O aviso fora dado pela enésima vez...

         Mas, vivendo a plenitude da meninice, como resistir a um banho de açude naquele calor infernal?!

         Nos arredores da vila, nas áreas de vários sítios e fazendas, os açudes multiplicavam-se ano a ano. Escavados, brotados das minas; enfim, eles espocavam convidativos, tentadores.

         E assim, para o desespero e a preocupação dos pais, não havia tarde que não terminasse com os meninos varando cercas de arame farpado, cruzando plantações, pastagens, e mergulhando nas águas nem sempre limpas daqueles imensos açudes.

         E, apesar dos inúmeros avisos, Mário estava sempre entre eles. Cansava de prometer a si mesmo que não mais desobedeceria às ordens do pai, que não quebraria o acordo firmado com ele, mas era uma tentação quando os ponteiros do relógio da igreja matriz iam marcando três horas da tarde...

         Os meninos, sorrateiros, esgueiravam-se das casas, da praça, e seguiam em direção de algum açude. E aí o coração não resistia! Mário, num átimo, jogava às favas as promessas, e só se acalmava quando sentia o frescor das águas do açude no seu corpo...

         E todos faziam tudo do mesmo jeito. Quando estavam bem próximos do açude, principiavam a correr enquanto desatinados se despiam. Na largueza da inocência, na sofreguidão da liberdade. Calção e camisa eram tirados do corpo e displicentemente enrolados. Cuecas e sapatos não havia. Naqueles tempos, meninos não usavam cuecas, e calçado nos pés era só para a escola, igreja ou passeio.

         Cada um escolhia um lugarzinho para deixar a sua acanhada trouxinha a salvo até que saísse do banho. Podia ser junto ao tronco de uma árvore, na sombra de uma moita de capim, sobre um cupinzeiro, não importava. A única preocupação é que a roupa ficasse protegida da água do açude.

         Mas o pai de Mário queria colocar ponto final naquela série de desobediências, e o pobre caborteirinho nem de longe imaginava que seria justamente naquela tarde.

         Lépido, ardiloso, conluiado com os companheiros, num triscar de olhos atravessava os pastos, as plantações, vazava as cercas, se despia, arrumava as roupas perto do tronco de uma árvore, e se jogava no açude.

         E o açude virava uma festa! A água, antes serena, pipocava com os saltos, e logo, com o incessante pisoteio agitado de todas as crianças, o barro do fundo ia subindo e turvando tudo, até formar um lamaçal. Parecia um bando de jacarés rolando os corpos nus.

         E o barro grudava nos cabelos, nas costas, sob as unhas, nas curvas das orelhas... Por mais que se esfregassem para limpar, não havia como não levar resquícios para casa e, consequentemente, fragilizar a argumentação de que não incorreram na desobediência de nadar nos açudes. As evidências estavam sempre presentes. Se não na roupa, com certeza, no corpo.

         Naquela tarde, no meio das risadas, dos saltos, das brincadeiras, ouviu-se uma voz ao longe, gritando:

         - Mário! Mário, você está aí?!

         Mário, que reconheceu a voz do pai, estremeceu.

         De longe, o açude apinhado de cabecinhas enlameadas, brilhando ao sol, silenciou. Era totalmente impossível reconhecer cada criança.

         O mais experiente deles, numa tirada de mestre e líder, respondeu:

         - Seu Osvaldo, o Mário não está aqui, não!

         E Mário apavorado, petrificado, meio escondido atrás de dois amigos, prendia a respiração, não conseguia arfar o peito tamanho era o medo.

         Seu Osvaldo, aparentando muita calma, respondeu:

         - Está bem... Eu me enganei pensando que ele estivesse aqui...

         Dizendo isso, Seu Osvaldo deu meia-volta e lentamente foi caminhando em retirada, refazendo quase o mesmo trajeto que percorrera na vinda.

         As crianças, percebendo que ele se afastava, voltaram às brincadeiras, às cambalhotas, e às risadas como se nada tivesse acontecido. Mário ficou meio ressabiado, mas logo esqueceu. E brincou... Como brincou...

         Seu Osvaldo, com olhos astutos de quem um dia já fora criança, ia caminhando lentamente e olhando de esguelha cada trouxinha de roupa colocada aqui e ali. E encontrou a trouxinha de Mário, com aquela velha camisa, surrada. Disfarçadamente, abaixou-se e rapidamente a recolheu. Estavam ali a camisa e o calção.

         Seu Osvaldo continuou a caminhada rumo à vila, abraçado à trouxinha de roupas do filho. Calmamente... E seguiu para casa.

         O sol estava baixando, e era chegada a hora de Mário cuidar da limpeza do corpo antes de vestir a roupa e seguir de volta para a vila. Era preciso estar em casa antes da escuridão da noite chegar.

         E todos foram saindo do açude.

         Mário se lavou inúmeras vezes, esfregava o couro cabeludo com as unhas até que ardesse. Esperava a água se acalmar, esperava a lama assentar-se no fundo, e mergulhava a cabeça para se livrar do barro. E esfregava cada curvinha das orelhas para remover o barro teimoso que insistia em não sair.

         Pronto. Agora, era só andar devagar até encontrar a árvore onde deixara as suas roupas. Caminhando devagar, evitaria que o barro fosse espirrado nas pernas e o corpo ficaria completamente seco com os últimos raios do sol.

         E assim foi...

         Os companheiros estavam quase todos vestidos, muitos já caminhavam de volta, e Mário ainda procurava as suas roupas. Olhava de um lado, de outro, e nada. Foi ficando intrigado e pôs-se, desesperado, a perguntar a um e a outro.

         Nada... Em poucos minutos virou uma verdadeira caçada às roupas de Mário. Inutilmente... Os mais medrosos puseram-se a correr rumo à vila. Não podiam se atrasar! Os companheiros mais chegados, calados, cansados da busca e imaginando o que havia acontecido, foram se dispersando.

         E Mário ficou ali, parado. E nu.

         Sabia exatamente o que o aguardava. O pai havia levado as suas roupas, e ele teria de enfrentá-lo. Nu...

         E, como chegar até lá? Como um menino de dez anos pode atravessar uma vila, assim, pelado?!

         Olhando o céu e percebendo que logo seria noite, juntando a vergonha de caminhar nu e o medo do escuro, Mário foi mudando os passos, vagarosamente.

         O trecho de volta, naquelas condições, tornava-se mais longo, infinitamente mais longo, e logo precisou apressar o passo. Assim, ele foi correndo de árvore em árvore, de moita em moita, para tentar esconder a sua nudez.

         Mário vazou cercas, cruzou pastos, plantações... Nu. 

         Ficou apavorado quando percebeu que estava perto da vila. Como passaria pelas casas, como enfrentaria as pessoas, assim, pelado?!

         E foi caminhando, aos trotes, aos pulos...

         O sol sumiu, a noite estava à porta. E o medo, também...

         Atravessou a primeira rua da vila, escondeu-se atrás de uma casa. Ainda bem que não existiam muros. Só cercas.

         E foi, já no escuro da noite, correndo de parede em parede, esgueirando-se por moitas de bananeiras, varando cercas, atravessando ruas na noite escura. E a cada espaço de tempo, respirava fundo, benzia-se e pedia a Deus para que aplacasse a ira do seu pai. Não escaparia da cinta, disso ele sabia. O que pedia a Deus é que as cintadas fossem menos iradas, mais suaves...

         Enfim, Mário chegou ao quintal de casa. Caramba, no varal não havia nenhum pano, nada para se cobrir!

         Tinha certeza de que o pai, a mãe e seus irmãos estavam lá dentro, esperando por ele. E sabia que seus irmãos iriam cair na risada quando ele entrasse pelado. Talvez não. O pai devia estar furioso e os irmãos não iriam ter coragem de rir! Duro ia ser aguentar a gozação, a zoeira dos próximos dias...  Mas não queria pensar no depois. Tinha de resolver o agora. E com a voz quase sumida, disse:

         - Pai!

         Nada, ninguém apareceu.

         - Paiêêê!!!

         Gritou tão forte que chegou a fechar os olhos.

         E o pai apareceu. Imenso. Parecia maior que a porta!

         E Mário ali, em pé, no escuro, e pelado. Nem queria olhar para a mão dele. A cinta deveria estar ali, saltitante, ávida pelo seu lombo, pronta para estalar...

         Mas não estava. Para sua surpresa e alívio, não estava.

         Mário caiu no choro. Choro de vergonha, de medo, de arrependimento, de tudo...

         E Seu Osvaldo entendeu. Não seria preciso castigar mais. Limitou-se a buscar uma toalha, cobrir o filho, abraçá-lo e dizer:

         - Mário, meu filho, que esta seja a última vez!

         E parece que foi...

                                                                       

                                                               Regina Ruth Rincon Caires                  

 

 





quinta-feira, 20 de agosto de 2020

UNS CHATOS

Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones. 
Passava dias de quarentena entre aulas on line e seu violão. 
Auto didata, tirava músicas com a parceria da internet 
e assim foi acumulando um repertório digno de um menino da sua 
idade, com algumas incursões em canções mais suaves. 
Quando fez 15 anos, ganhou dos pais um violão elétrico. 
E no dia seguinte, uma quarta feira comum, em torno de 11:30 h, 
passou a dedilhar Black Bird, acordes de Lennon e McCartney
que voam como um passarinho embalado pela ternura ao vento. 
Claro, o som saiu amplificado, como convinha ao brinquedo novo. 
Não era um rock pauleira, um heavy metal,  ou um Helter Skelter, 
dos mesmos rapazes de Liverpool, que toparam o desafio de Pete 
Thousend do The Who em compor uma música suja e barulhenta. 
Voltando ao nosso garoto e seu violão elétrico.
Imaginou o menino que estivesse nas varandas da Lombardia, 
espalhando música e delicadeza para amenizar dores de perdas, 
medos de morrer e sacos cheios do isolamento. 
Imaginou o menino receber a cumplicidade das varandas, 
onde as pessoas cantariam juntas, retribuindo a gentileza do gesto 
e da canção. 
Mas eis que um vizinho explodiu. 
- Desliga essa m#$da! Tem gente trabalhando! 
E houve adesão. 
- Para com essa p#@ra, vagabundo!
E mais: 
- Enfia essa música no c#, filho da p&ta! 
Ouviu-se um frágil contraditório. Entrou uma voz feminina, aflautada, 
adolescente, sensível: 
- Aumenta o som! Tá lindo! 
Porém, mais uma vez, a estupidez reincidente nesses tempos obscuros saiu 
vitoriosa. Os pobres diabos conseguiram. Não conhecem o que a música 
é capaz de operar dentro do peito e se infiltrar por veias e artérias. . 
Não conhecem a educação, os bons modos, as palavras que abraçam. 
Seus vocabulários se limitam a termos que carregam tão somente virulência.
Não conhecem a sensibilidade, muito menos o advento dos fones de ouvido, 
que poderiam ter isolado o som exterior, evitado a baixaria e deixado 
a música se espalhar numa paz de invadir corações e de tirar os meus pés 
do chão, com licença do Mestre Gil.  
O menino botou seu violão no saco e mergulhou numa tristeza profunda, 
emudeceu a pureza da sua oferenda e fechou a janela para um mundo 
que não era dele. 
Os insensíveis voltaram às suas cavernas. Intolerantes, arrogantes,
deselegantes, donos de si e das varandas alheias, brutamontes de
corpo e alma foram reabastecer a ira.
Uns chatos. 
Tais miseráveis de espírito não deixaram de ter uma certa dose de sorte: 
meu filho baterista há tempos se mudou para São Paulo.





quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Além da queda

 



Era noite e João olhava para o céu, vago, sendo embrulhado pelo vento abafado, que não o dissuadia da catatonia. Entrecortavam, no entanto, pensamentos desconexos, como chupar mexerica, na primeira visita à irmã Lúcia, depois do lockdown; a cara do sobrinho espevitado, que não parava de cutucar suas pernas, para que visse, sempre, a nova proeza; o tom da pele encardida de Zulmira, sua velha tia, cada vez mais coberta de manchas, pela velhice; o olhar soturno de seu cunhado, como não querendo que estivesse ali.

Não fazia muito que aportara em casa, após ter superado o ônibus lotado, tendo percorrido oito quilômetros de distância da morada da irmã – entre mundos, talvez se pudesse comparar de Santiago ao Cazaquistão. A sensação era a mesma, não havia sentimento, não havia bem-querer, potencializado o desgosto pela partida da mãe, no ápice da confusão da pandemia. Pensava que, se a mãe morasse com ele, teria o máximo de cuidado e, assim, suplantariam juntos a maldita fase. Mas não, Lúcia decretara, enérgica, que a mãe não sairia de “suas posses” – isso mesmo, na crença maluca de que fosse sua propriedade.

A desgraça, e o que minava os sentidos, era que João não desejava se sujeitar a uma disputa eterna, mano a mano; aliara-se a um destino seco, vazio. Desde novo, por insistência da mãe abandonada, com dois filhos para dar de comer, foi orientado a vender, de porta em porta, os seus doces caseiros, e, como era bem mandado, não voltava sem ter esvaziado o cesto. Por essas e por outras, saía às sete da manhã e retornava à noite, lá pelas oito ou dez horas, seguindo o ritmo da labuta exigente. Também, se não o fizesse, era condenado pela irmã e pela tia solteirona. E a punição era pesada, pois que, sendo o único “homem” da casa, pelos traumas vivenciados por todas, teria o karma de esfregar o banheiro, limpar a casa, arear as panelas e o que mais aparecesse de serviço, apesar de estar exausto da lida na rua. Portanto, acostumara-se a chegar tarde, para unicamente comer e dormir.

Conseguiu, aos oito anos, com muito esforço, por vontade própria, ler algumas poucas palavras e escrever o seu nome, ganhando as bênçãos de dona Graça, a moradora do bairro Novo, bairro contíguo ao seu, professora da escola Dom Lustosa. Sabendo do ocorrido, dos esforços descomunais, próprios de um adulto, resolveu comprar parte dos quitutes para revender na escola e, com isso, diminuir o seu fardo. De quebra, o matriculou na primeira série, para “virar gente!”.

A professorinha morava só – “Não só. Sou eu e Deus”, como dizia –, e o acolhia em muitas oportunidades, inclusive, e principalmente, quando era enxotado de casa pela tia, porque “atrapalha o andamento das coisas”.

A mãe, com amor ralo e magoado, se importava mais com os vinténs que trazia da rua, sem tomar nota de como os arranjava. Enjoado de vender doces, sem o encanto da infância, que se esvaía de seu rosto maltratado, com incompletos doze anos, João se aventurou a comercializar frutas. Ou seja, a tática era clara: para não estragar, as que sobravam serviam de merenda ou de janta.

O sonho era maior na cabeça da professorinha, a qual já chamava de mãe: “Menino, você precisa concluir, pelo menos, o ensino médio, para arranjar um bom emprego” – e cobria-o de agrados, deixando à disposição o único quarto de hóspedes, que era, esporadicamente, ocupado por um sobrinho distante. Destarte, dava menos atenção à mãe de sangue, não deixando de entregar o dinheiro que achasse justo. Na verdade, a combinação perfeita, a sua ausência e o dinheiro; irmã e tia regozijavam.

Trabalhava e estudava, como tinha de ser, sabendo que afagava o coração da mãe postiça. Queria, enfim, entregar-lhe o diploma, e faltava pouco, quando a avalanche sucedeu. Graça, numa noite densa, repleta de nuvens, partiu sem sobreavisos, acometida por um ataque fulminante, “um mal súbito”, decretaram os médicos.

No ato, João se impregnou num juízo torto de retorno às origens, o que não queria. Perdera o chão. Suava em bicas, extremamente aflito com os vultos da incerteza que lhe rondavam, como espectros errantes.

Cognominado zumbi, vagava pelas noites cálidas da cidade, até que lhe acudisse um abalroamento, uma bala ou um quiçá. Suscitava medo nas pessoas cabreiras.  Enquanto andava, praguejava a própria vida e a dos passantes, que, por descuido, se intrometiam entre as suas passadas arrastadas.

Com vinte dias largado às traças, arquejando vida, assaltou-lhe um arrependimento medonho, um único resquício de tino, que dilacerava o peito, e raciocinou que devia procurar a mãe de sangue, dona Genuína, que, a essa altura, deveria estar encomendando a sua alma aos céus.

Fato que o perturbou foi o ardor da mãe ao lhe encontrar, muito diferente da mulher que havia deixado. Não sabia onde colocar o filho pródigo, enchendo-o de carinho, de doces e de um amor que não imaginava existir.

Lúcia fez sugestão de se aproximar, cogitou abraçá-lo, mas foi bloqueada, de repente, pelo enjoo e pelo asco da figura repulsiva. Viu o significado de penúria e horror. Teve inveja do tratamento despendido. Quis admoestar a mãe, cega, que não percebia, inclusive, o fedor que ardia as narinas. Mandou, irrefletida, que o irmão tomasse banho, “imediatamente”. A tia intuiu, murcha: “problemão”. Falou entredentes, para a sobrinha escutar.

Nos meses que se seguiram, João não achava maneira de interagir com mais ninguém, a não ser com a mãe. Era boicotado em tudo: na comida, no espaço, no ar que respirava. Declarara, num bilhete de despedida, que a casa era como uma roupa nova e rude, que “pinicava”, e, sem medir as consequências, ganhou novamente a boca do mundo. Voltava, por amor à mãe, quando lembrava de existir, para comer e dar notícias, dias ou meses depois.

Arrumou um cubículo para morar, honrando rigorosamente o aluguel, angariando uns bocados na velha prática de vendedor. Alcançou, também, um enorme feito; a vida entrara nos trilhos: ser vendedor credenciado da única loja de variedades da região, o famoso “galego”, andando de porta em porta, oferecendo as novidades às clientes, que se sentiam atraídas, além do mais, pela sua lábia jeitosa.

Então, sobreveio a catástrofe da pandemia e, nesse ínterim, a morte da mãe Genuína. Conjecturava estratégias para deletar os rastros da irmã e da tia, que atravancavam o seu caminho. Na última oportunidade, tentava estreitar os laços, para, depois, no momento certo, desembuchar as tripas.

 






domingo, 16 de agosto de 2020

A morte do eu ou a revolução das coisas mortas - conto de Márcia Barbieri

 

Eram coisas minúsculas que me faziam não entender o mundo, como dois interruptores para apagar a mesma luz ou o som vindo da Ásia e saindo de uma caixa negra ou morangos mofarem tão rápido ou o gosto das pitangas serem tão parecidos com os das cerejas ou as flores que terminam em um falo ou a teta alimentar o universo ou um espelho esférico invertendo meu pânico ou dois homens se amando com o desespero que nunca conheci ou o amor ser um criadouro de moscas estéreis zunindo zunindo zunindo dó ré mi fá sol lá si cataclismas no meu cérebro larvas obesas ruindo a carne vespas negras no fundo do quintal ou o tédio enferrujado esburacando a manhã ou buchada ser uma iguaria ou crianças comendo testículos de bois ou um escorpião amarelo atravessando o deserto comendo a própria cria ou a diáspora das nossas mãos durante as masturbações ou bonecas infláveis serem tão perfeitas ou o ódio insano dos homens pelos touros ou a beleza dos chifres espiralados dos antílopes negros ou mulheres clonando-parindo como animais ou a disputa selvagem dos homens pela buceta das fêmeas. O pensamento da aranha tecia absurdos sobre minha tíbia rótula patela minha vizinhança meus membros eram uma máquina de encaixes arruinados e eu era um ser obtuso e ter o crânio de um animal era o menor dos meus problemas. Coma logo a aranha antes que suas ideias se tornem matéria coma logo a aranha antes que ela teça a revolução coma logo a aranha antes que cem luas despenquem de suas patas peguem a faca e cortem o verbo ao meio só sobrará a ação. E nossa cópula fosse a união de mil garras, armistício, campo minado, fratura de invertebrados. Não entendi quando percebi que essas coisas pequenas entre as pernas num ângulo diálogo monólogo obscuro não fosse capaz de provocar asco, não entendi quando percebi que existiam idiossincrasias em todas as genitálias, eram todas tão diferentes uma das outras... Olhei de novo para minha e tive vergonha. De que espécie eu era? Por que meus buracos e seus contornos eram tão pavorosos? Ela era rosada e grande, uma membrana pesada e com bainhas desproporcionais os pelos cresciam em direções variadas perdidos entre uma ordem e outra. As estrias formavam ramificações difíceis de entender. 

 Desviei o olhar, não gostava de encará-la por muito tempo. Eu jamais deixaria que ele me visse, não assim, onde eu não era normal, onde a duração do tempo se distendia nos meus pequenos-lábios, pensei na solidão dos ornitorrincos... na feiúra incompreensível dos peixes abissais... nas dobraduras se desdobrando na minha pele fina. De novo os ornitorrincos e os peixes abissais. Eles como eu não eram daqui e eu pensei: é bem estranho ser estrangeira no próprio corpo é bem estranho ser estrangeira no seu país é bem estranho estar sitiada nas escórias da própria carne é bem estranho conhecer apenas as superfícies das coisas inanimadas.
 

 Olhei para seus olhos castanhos e clamei, você que não me conhece não me deixe nunca sair da minha terra não me deixe pisar em outros solos áridos não quero conhecer outros países não quero conhecer outros dementes não quero lamber a falência de outro corpo não quero sentar na rigidez de outro pau não quero enrolar minha língua em outras línguas não quero ter certeza que a felicidade não existe em parte alguma, quero ter essa esperança rasa de que em alguma parte o ar é rarefeito, as palavras são todas francesas e a lama é branca...
 

 Você me olha com um olhar idiotizado, o olhar de todo homem que já passou dos trinta e eu desfaleço. Você podia me fazer parar, agarrar meus pulsos, amarrar minhas mãos nas grades da cama. Você não faz nada, só me olha, um gato paralisando sua presa. Retiro a armadura do eu penduro na parede texturizada grandes rosas secas arabescos que não existem mais a arquitetura falida nostalgia rococó retiro as carrancas retiro as máscaras japonesas enfio o dedo na sujeira do umbigo retiro os caranguejos da minha última morte retiro a penugem do buço agora sou não eu essa cor opaca massa mole matéria quase morta parecendo o abdômen de um inseto ou um incesto de dois irmãos.
 

 Você sussurra no meu ouvido surdo labirinto bigorna eu eu eu eu o eco ensurdecedor de todas as suas ideias olho seu palato em decomposição e você continua agora num grito sufocado eu eu eu e eu coloco a corda frouxa e suicida em torno do seu pescoço vejo a língua enrolada e a baba grossa de um epilético.
 

 Você sopra no meu olho sem cílios eu eu eu e recorda um velho refrão cavalos cavalgam na cartografia do seu dorso – cavalos negros selvagens cavalgam no seu leito – mas isso não é importante – o eu está morto. Sou uma massa amorfa e coalhada e o sol apodrece minhas vértebras e o líquido que me tirou das penúltimas meninges explode na minha garganta há um pêndulo enferrujado entre minha laringe e minha traqueia falar não é tão indolor quanto parece ainda mais nesse lugar suspenso onde cada palavra cai um rifle ainda mais nesse campo de marionetas onde não perdura a consciência íntima do tempo.