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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Por Causa da Outra


"Qualquer coisa se perdeu, quando o Paraíso perdido se ganhou."

 

Fernando Pessoa.



Caminhando pelo trilho, sem pressas, uma jovem mulher de pele morena, quase dourada e longos cabelos loiros, que lhe chegam à cintura. Os seios desnudos, bamboleiam-se, exibindo as áureas rosadas com naturalidade e o baixo ventre está apenas decorado com uma penugem dourada. Os pés descalços calcam sem receio as folhas da vereda. Seu nome era Eva e estava nua, mas isso era natural, pois fora assim que viera ao mundo.
A floresta luxuriante, plena de cor, tem os caminhos perfeitamente demarcados e limpos, para que não seja necessário calcar as ervas ao caminhar. As árvores descem graciosamente os seus ramos, quase até ao chão, para que seja possível colher os seus frutos ou as folhas, sem ser preciso subir-lhes. Coelhos e outros roedores de tamanhos diversos atravessam os caminhos para se ocultarem novamente na vegetação do outro lado. O sol atravessa as copas das árvores e dá a todo o ambiente um tom dourado, como que de um outono bem-vindo após um verão quente.
Certificou-se que não a seguiam, antes de abandonar o carreiro e penetrar profundamente no arvoredo até à figueira que costumava visitar para se deleitar com os seus frutos.
— Olá! — Cantarolou um melro de um ramo alto.
— Olá! — Respondeu ela numa voz acriançada. — Está um lindo dia, não achas?
— Sim. — Concordou a ave. — Como aliás o de ontem, anteontem e de sempre, desde que me conheço. Aborrecido.
— Também me queixo do mesmo. — Concordou ela, de expressão contristada. — Mas de vez em quando, venho por aqui…
— …aos figos? — Adivinhou a ave.
— Sim, também. — Eva sorriu. — Mas foi ao pé da figueira que encontrei outra mulher e…
— A outra?!? — O animal agitou-se. — Mas não és só tu e o Adão por aqui?
— Sim. Também achava que sim, mas depois encontrei-a e tornamo-nos amigas.  — Explicou ela. — Vou agora ver se a vejo.
— Vou contigo. — O pássaro esvoaçou para o ombro dela, onde pousou com suavidade e sem apertar as garras afiadas.
Eva recomeçou o seu caminho, afastando os ramos mais baixos, até chegar a uma pequena clareira onde estavam duas figueiras baixas, os ramos plenos de frutos verdes e avermelhados, cujo aroma fazia crescer água na boca de quem os via. Mesmo ao lado, sentada numa pedra, estava outra mulher, de cabelos vermelhos, amarrados num rabo de cavalo que lhe descia pelas costas. Era morena e voluptuosa. Os seios estavam cobertos por uma pele de coelho e à cinta trazia o que parecia ser outra de raposa, que lhe descia graciosamente entre as pernas.
Assim que entraram na clareira, o pássaro levantou voo e foi-se embora, a tratar dos assuntos próprios dos melros.
— Olá querida Eva. — Cumprimentou a mulher sentada, exibindo um sorriso rasgado. — Esperava-te.
— Olá Lilith. — Saudou a recém-chegada, confundida com a intempestividade da partida do companheiro. — Esperava encontrar-te.
— Não disseste ao Adão que me viste, disseste? — A mulher ficou séria.
— Não, não disse nada. — Asseverou Eva. — Ele anda lá para os prados junto ao rio, a cavar; cismou que há de fazer crescer plantas, como o nosso Senhor.
— Passa a vida a inventar coisas para fazer. — A outra fez uma expressão de desdém mal dissimulada. — Em vez de se questionar sobre o que há fora daqui.
Fora daqui? — Eva ficou curiosa. — Para onde vá, só vejo as mesmas árvores, com e sem frutos, os mesmos animais simpáticos e faladores. Às vezes vejo um ou dois vigilantes, mas é raro.
— A saída fica um pouco longe… não a encontras com facilidade. — Afirmou Lilith. — Não querem que a encontres. Deves sentir-te bem nesta prisão… se não souberes o que é uma prisão.
— Mas o que é uma prisão? — Eva interrogou, confundida.
— É um sítio de onde não te deixam sair.
— Mas ainda não encontrei sítio nenhum onde não pudesse ir.
— Podes mesmo? E a árvore dos frutos luminosos? — Lembrou a ruiva.
— Podemos ir lá… — Concluiu Eva pensativamente. — Não podemos é comer dela.
— E isto porque nem sequer te aproximaste dos portões de saída, senão então é que era! Apareciam-te logo os vigilantes a perguntar o que fazias ali e a pedir-te delicada mente que te afastasses… até te empurrarem, se não fizeres o que te mandam. — A ruiva fez uma expressão zangada.
— Então não conseguiste sair?
— Eu?!? Claro que sim! Quando meto uma coisa na cabeça, não é fácil de sair. — Ela fez uma expressão de triunfo. — Atravessei um dos rios e tenho vivido lá fora, numa das cidades que eles tanto odeiam, onde o meu filho é rei. No princípio, ainda me perseguiram e tentaram apanhar-me, mas depois desistiram.
Eva estava boquiaberta com as maravilhas que aprendia sobre as cidades que existiam fora da quinta que ela não imaginava existirem.
— Mulher! — Uma voz masculina fez-se ouvir. — Onde estás, mulher? Eva!
— Vem aí o bruto do Adão! — Anunciou Lilith, levantando-se e afastando-se. — Vou-me embora. Vemo-nos aqui outro dia! Não digas que me viste!
— Aí estás tu! — Um homem completamente nu, de cabelo castanho escuro desgrenhado e uma barba rala quase loira surgiu na orla das árvores. — Como vieste esconder neste sítio? — Vários esquilos surgiram no chão e nos troncos das árvores para espeitarem a causa do alvoroço.
O melro regressou ao ombro de Eva.
— Não me escondi. — Desculpou-se ela. — Estava aqui a pensar.
— A pensar! — O homem riu-se. — Não faças isso, que ficas com a testa enrugada! Não estragues a tua cara bonita. — Coçou as partes íntimas, ruidosamente, mergulhando a mão na enorme mata púbica e agitando o pénis flácido.
— Não gosto nada quando fazes isso. — Censurou ela com uma careta de desagrado. — Nem que andes para aí com isso pendurado, como um animal qualquer.
— E que tem? — Adão indignou-se e apontou-lhe ao peito. — Não andas com essas coisas aí penduradas também?
— E eu disse-te que gosto? — Atirou a mulher, revoltada. — Parece-te que tive escolha?
Furiosa, dirigiu-se a uma planta rasteira que espalhava as descomunais folhas verdes pelo chão e arrancou-lhe umas quantas. Depois, aproximou-se de um salgueiro que derrubava os seus ramos esguios, mas resistentes, para o solo e despojou a árvores de alguns deles. Assim equipada, fez um entrançado das folhas e prendeu-as grosseiramente umas às outras com os ramos do salgueiro. Fez uma espécie de túnica para ela e um saiote para ele.
Adão observou toda a atividade num silêncio surpreendido.
— Não sabia que conseguias fazer estas coisas… — Comentou ele, mirando-se, agradado.
— Há muita coisa que tu não sabes… e pensas que sabes! — Afirmou ela, mordaz. — Agora anda comigo.
O homem não sabia o que dizer. Estava habituado a ser ele a mandar e ela a obedecer sem protestar, como o senhor lhes tinha dito para fazerem quando se conheceram. Esta mulher era muito diferente da outra que tivera antes, que era uma fonte de problemas e discussões. Era menos fogosa, é verdade, mas mais meiga e submissa… até este momento.
Eva puxou Adão pela mão e guiou-o pelo trilho calcado entre as árvores e ele deixou-se guiar, não sem sentir uma ponta de apreensão.
Mais à frente vinha um lobo a trotar pelo caminho.
— Olá meninos. — Exclamou o canídeo, medindo-os de alto abaixo. — Que é isso tão verde em cima de vós?
— Parece que são roupas... — O homem não estava muito seguro, enquanto continuava arrastado pela fêmea.
— É estranho, mas ao mesmo tempo agradável. — Comentou o lobo farejando o ar em volta deles. — Se soubesses a inveja que vos tenho, por vocês terem mãos e poderem fazer essas coisas maravilhosas e eu não… mais do que inveja é admiração. Onde ides afinal?
Como não obtivesse mais resposta dos dois, decidiu segui-los.
Estavam a chegar a uma enorme clareira dominada por uma descomunal árvore de frondosos e altos ramos, decorados com frutos vermelhos que reluziam e piscavam, envolvendo o ambiente numa luz colorida e irreal.
— Que queres tu daqui? — Perguntou Adão a medo.
— Quero que me dês um fruto destes! — Exigiu ela.
— Estás louca? O senhor disse que podíamos comer de todas menos desta!
— E porquê? Que está ele a esconder? — Ela pôs as mãos na cinta. — Sabes porquê? Porque é um guloso e quer os melhores só para ele.
Do outro lado da clareira, ocultos pela ramagem, Lilith piscou o olho a uma enorme e bela serpente colorida, coberta de escamas reluzentes como diamantes. Como que acatando uma ordem, o réptil subiu facilmente pela árvore e deixou-se ver entre os ramos.
— Serpente! — Chamou Eva. — Atira-nos um fruto desses.
— Destes, desta árvore? — Sibilou o réptil. — Não posso fazer tal. O Senhor não vos disse que não podeis comer deles?
— Mas eu quero saber porquê. — Insistiu ela. — Tenho de provar!
— De qualquer forma, estes frutos não são normais. — Explicou a serpente. — Só pode comer quem os apanhar, por isso, não posso ajudar-vos. Mas se os provarem, não vão querer outra coisa. Ficarão muito mais sábios e perceberão que a vida não é só andar a vaguear na floresta, por entre animais amestrados.
— Quem é amestrado? — Rosnou o lobo, a quem ninguém respondeu.
Eva começou a atirar pedras aos ramos com intenção de acertar nos frutos e Adão, incentivado pela conversa, imitou-a. A serpente estimulava-os a ambos com "Está quase!" ou "Ah, falhaste por pouco!"
Quando as primeiras pedras começaram a tombar caoticamente no chão em volta, o lobo achou melhor afastar-se um pouco, para ver a cena de longe. As aves de todas as árvores em redor levantavam voo apavoradas e vários ratos fugiram do tronco da árvore.
— Que estão a fazer, seus idiotas! — Gritou um dos roedores para Adão. — Vou fazer queixa ao Senhor!
O homem ergueu um pé para o chutar, mas o rato esquivou-se agilmente, para logo encontrar a mulher a cortar-lhe o caminho. Bufou e ameaçou-a com os dentes arreganhados fazendo-a acovardar-se, pois nunca tinha visto uma animal a fazer aquilo. O fugitivo saltitou agilmente pelas folhas que atapetavam o solo, até desaparecer de vista.
Adão retomara o exercício de tiro e conseguiu por fim acertar num dos frutos que se estilhaçou, literalmente, no chão, após uma queda vertiginosa.
— Ah! Esqueci-me de avisar, têm de apanhar os frutos antes de chegarem ao chão! — Riu a serpente, perante a desolação deles.
Os dois humanos retomaram as pedradas e mais frutos caíram e se estilhaçaram, antes que os conseguissem agarrar. Nenhum deles reparava que a luz da árvore dos frutos luminosos parecia alterar-se e o ar estava a ficar amarelado e doentio. Tirando o barulho que os três faziam, toda a floresta estava agora no mais profundo silêncio. Até que, por fim, Adão lançou-se num voo e conseguiu agarrar um fruto reluzente, antes que este tocasse o chão.
— Bravo! — Gritou o réptil do alto dos ramos.
Eva atirou-se por cima do homem e ferrou uma feroz dentada no fruto, ainda na mão dele e, depois de o saborear, beijou Adão lubricamente na boca, partilhando o sumo doce da sua conquista.
Naquele momento, a luz tremeluziu e encolheu-se, como se o sol se eclipsasse repentinamente. Os dois humanos assustaram-se, olhando em volta e aperceberam-se do foco de luz que se projetava do céu, mesmo no centro da clareira. Ali se materializou um enorme homem de cabelos despenteados brancos e barbas eriçadas da mesma cor. Vestia uma alva túnica comprida, debruada a ouro nos punhos, no pescoço e na bainha.
— Que estão a fazer, infelizes? — A voz do recém-chegado ecoava como trovões nos montes distantes. — Não vos disse que não comêsseis desta árvore?
Mais dois humanos, vestidos de forma semelhante, se materializaram atrás do Senhor.
— Que tens a dizer Adão? Porque fizeste isto? Vê o que estragaste! — A voz trovejante estava zangada.
— Meu Senhor. — Lamentou-se o humano, pousando a cara no chão em subserviência. — Foi a mulher que me arranjaste, que me levou a fazer isto!
— Eu? — Eva indignou-se, apesar de também imitar a postura de humildade do companheiro. — Parece que que não te estavas a divertir e além do mais, foste tu quem a apanhou!
— Mulher! — Censurou o Senhor.  — És uma má influência para o homem e ele é um fraco, por se deixar guiar por ti! — Depois voltou-se para o outro lado da clareira. — E tu, Lilith, já tentaste corromper Adão antes e, não conseguindo, corrompeste a mulher que arranjei para te substituir.
— Então sempre era verdade que eu era a segunda! — Eva ergueu-se em desafio. — Tanta meiguice, tanto amor pela verdade e esconderam-me uma coisa dessas! Ela bem me avisou que vocês eram uns falsos!
— Falaste com Lilith? — Adão estava em pânico. — Viste-a? Então era para te encontrares com ela que desaparecias?
— Não vos disse que queria aquela criatura longe daqui? — O Senhor censurava agora os dois outros humanos, gémeos indistintos, que chegaram com ele.
— Peço perdão. — Pediu um deles. — Sabíamos que andava por aí e temo-la perseguido, mas não a conseguimos apanhar.
— Mandei-vos matá-la, porque não o fizeram? — Continuava a censura.
— É uma vida humana, nós…
O Senhor ergueu uma mão indicando que não queria ouvir mais nada.
— É assim fácil, não é? — Eva aproximava-se do trio em tom de desafio. — Não faz o que querem, mata-se! Deviam tê-la matado e não o fizeram. E agora? Matam-na e a mim também? Depois arranja-se outra… se calhar desta vez é melhor matar o homem também e começar tudo de novo!
 — Cala-te mulher… — Ameaçou o Senhor erguendo uma mão e vendo-se com um dos gémeos a colocar-se entre eles, com uma expressão infeliz.
A jovem humana tinha metade do tamanho dos três, que pareciam controlar a vida dela e do companheiro, mas mesmo assim enfrentava-os.
— Porque não podíamos comer deste fruto? — Insistiu ela. — Se não eram para comer, porque os puseste aqui, a provocar-nos? Ou era só para te lambuzares sozinho com o prazer de nos mostrar que era só para ti?!? És um invejoso?
— Esta árvore controlava o ambiente em que viveis, é uma estrutura biológica que mantém o equilíbrio da natureza e deixa todos os animais dóceis! — O Senhor estava corado de fúria, enquanto gritava e empurrava o gémeo para o lado. — Tudo está controlado, exceto vós, criaturas ingratas!
— Nós aborrecemo-nos aqui, a inventar coisas para fazer. — Desculpou-se Adão, erguendo-se também. — Esta mulher que trouxeste, é mais dócil que a outra e melhor que ela em muitas coisas, mas é curiosa e está sempre a complicar o que devia ser fácil. Sempre a fazer perguntas em vez de aceitar como as coisas são.
— A mulher que te trouxe… o mundo que vos criei… tudo o que eu fiz foi errado, não foi?  — O cenho franzido do Senhor converteu-se numa máscara de tristeza. — … Eu sou o culpado da vossa curiosidade e insatisfação. Esta mulher é melhor que a outra endemoniada, mas também não serve, não é?
Não se ouvia uma mosca em toda a clareira, quando o Senhor virou as costas a todos e deu uns passos para se afastar, de braços e cabeça caída. Mas, de repente, parou e voltou o rosto novamente furioso.
— Vou resolver o vosso problema! Vão sair deste vale e procurar a vossa própria alimentação e vestir-se, já que gostaram de o fazer. Terão de arrancar o sustento da terra, em vez de o colherem abundante nas árvores. A serpente, esguia e insidiosa como a mulher, que morder-lhe-á o calcanhar que lhe esmagará a cabeça. O rato será o eterno inimigo, que vos invadirá a vida, roubando e estragando os alimentos produzidos a custo, que guardardes. o homem persegui-lo-á e a mulher odiá-lo-á e temê-lo-á. O lobo atacará e comerá os bens do homem e até o próprio homem, se puder. Homem e lobo admirar-se-ão, mas serão inimigos mortais. E agora desapareçam da minha vista! Vão-se embora deste vale, os animais deixarão de vos reconhecer e fugirão de vós, ou atacar-vos-ão.
— Meu Senhor, peço-vos perdão. — Implorou Adão. — Foi tudo por causa da outra, não vedes?
— A outra está condenada. — Disse o Senhor sem se voltar. — Será como um demónio, de quem toda a gente foge e nunca terá paz. Viverá a semear a intriga e a dúvida nos corações puros. 
— Senhor. — Pediu um dos gémeos. — Dê-lhes outra oportunidade.
— Não há mais oportunidades! — Trovejou o interpelado, apontando-lhe o dedo. — E vocês, não se atrevam a aparecer à minha frente, ficarão todos aqui em baixo com eles, guardem-nos e vigiem-nos, já que lhes têm tanto amor. Para que quero trezentos de vocês, se não são capazes de manter uma mulher minúscula fora dos meus domínios. Ponham-nos fora daqui e fechem este vale.
— Mas, Senhor… — O gémeo insistiu. — Que vai fazer?
— Vou-me embora! Vou recomeçar a experiência noutro lado… digam ao Lúcifer que ele ganhou. Começou a ganhar, assim que permiti que me ajudasse a criar a Lilith. — O foco de luz começou a envolver o Senhor que acrescentou ainda, antes de desaparecer: — Fiquem aqui em baixo uns com os outros. Merecem-se!   


Manuel Amaro Mendonça






segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Lealdade



Ela faz questão de não esconder do marido. Puxa, incisiva, com os dentes incisivos, várias lasquinhas do esmalte vermelho. Veio da manicure ontem, mas a tinta da mão esquerda já beira a meia-lua na raiz das unhas. 

Não é possível, Rosana. Você continua desse jeito por conta de uma coisa tão pequena.

Pequena? Ela bate o cantinho do dedo na mesa. Você acha pouco o que fez comigo?

Você sempre foi generosa. Vive se gabando de altruísmo.

— Do meu desprendimento cuido eu.

— Já vi você jogando seus trecos num saco plástico e entregando a bolsa de couro de vespa praquela mendiga. Já vi você doando o vestido que te dei no último aniversário pra diarista da vizinha. Já vi você fazendo campanha pra pagar o tratamento do Zelito.

— E não me arrependo. Dei, tá dado. Ajudei com gosto.

— Que ótimo.

A gata Bovary sobe no colo de Rosana. Bate a patinha no braço da dona e lambe suas unhas lascadas.

Cada um tem seu jeito, Jéferson. Você precisa respeitar o meu, senão este casamento azeda.

— Então agora é crime doar o resto de um sanduíche para um menino faminto? 

— Condenado por justa causa. Você me traiu.

— Gente, não estou te reconhecendo. Rosana, o que aconteceu?

Bovary mia forte, encarando Jéferson.

Não sabe até hoje que eu guardo o pedaço mais cheio de maionese, a porção de hambúrguer mais suculenta e o gole mais gelado de coca pro final, pro meu grand finale? Você não me perguntou nada.

— Você tinha ido ao banheiro, criatura. Já tinha deixado o resto no prato.

Jéferson puxa a nota fiscal de dentro do bolso e amassa o papelzinho que recebera na lanchonete.

Por que não me esperou? Eu já estava voltando. Posso dar esse pedaço pro menino? Perguntasse. Eu dizia não, e tudo bem. Enquanto eu me olhava no espelho, esfregando as mãos, até salivei, pensando no pedaço que eu tinha deixado sobre a mesa.

— O menino ficou tão feliz. Desembrulhou e saiu comendo, satisfeito. Você precisava ver. E você tinha pedido um sanduichão enorme.

— Eu podia comprar um bem grande pra ele, um mc donalds, um bk, um refil pro menino encher com o tanto de coca quisesse. Eu podia cozinhar hambúrguer pra família dele toda comer a semana inteira, podia ensinar pra ele que hambúrguer é escrito com h, tem acento agudo no u, uma paroxítona aportuguesada que termina em r; mas aquela carninha, aquele pãozinho redondinho, aquele cheddar, aquela lasquinha de alface que sobrou, aquele meio do pão, bem redondo, era meu. MEU. Entende? Aliás, como meus são os desejos, como minha é a liberdade de comer quando e quanto eu quiser, como meu é o corpo que não quer filhos e não quer netos e não quer cachorros e não quer viagem pra Bahia e não quer fazer exercício e não quer plástica e não quer se deitar com você (nem com a promessa de um galeto com farofa de ovo no alpinus, filé acebolado no faisão dourado, nem com o convite pra um sorvete de tapioca no saborella). Entenda. A minha caridade eu faço como eu bem entender. Você tá parecendo a minha mãe, Deus a tenha, que fazia promessa pra eu pagar, que combinava com a santa sem eu saber. Você dá minhas coisas pros outros sem combinar comigo. Tá vendo o erro?

E ela começa a puxar também as lascas de base incolor das unhas do pé.

— Pare de se meter no meu sanduíche. Pare de ficar me obrigando a parecer melhor, mais caridosa que eu já sou. O pedaço de sanduba era meu. Traidor. Corrupto. Você queria lucrar em cima dele? Esse tipo de indulgência não resolve.

— Desculpa, Rosana. Você enxerga tanta coisa. Vamos lá na lanchonete hoje de novo? Deixo o meu último pedaço pra você. Prometo.

— Não, Jéferson. Hoje você não me compra nem com uma caixinha inteira de geleia de mocotó colombo. Não quero remendo. Só queria o direito de desfrutar da última mordida no meu sanduíche. Hoje não. Aquele dia, aquele dia. Mas isso não volta, né, Bovary?

A gatinha balança a cabeça.

 

Corta, corta diz o diretor. Só não mandei parar antes porque a interpretação dessa gata tá demais. Mas precisamos repetir. Nossa. Tem lasca de esmalte no cenário todo. Gente, eu preciso de uma cena mais real, e sem sair tanto do roteiro. Que mania é essa de abusar do improviso? Por favor, Daniela. Detalhes significativos, meus caros. Quero vida, sensação, entusiasmo. Rasguem as aulas de filosofia, o tom de confessionário. Esqueçam as terapias de casal e me venham apenas com o frescor do dia a dia. Sem exagero. Se querem mesmo entrar no próximo Tchékhov que vou dirigir, precisam melhorar muito. E seu papel tá garantido, madame gatínea. Miau.

 

Maria Amélia Elói





sábado, 24 de outubro de 2020

Um planeta B

 


O dinheiro que o Estado já meteu nos bancos, desde a crise de 2008, dava para construir 100 hospitais — atirou Carlos, como quem bate um trunfo na mesa de sueca. — O Público diz que são dezoito mil milhões de euros.

Luís e Carlos costumam encontrar-se no regresso a Odivelas e, ao longo do tempo, criaram uma competição intelectual, para entreter a viagem de metro: ver qual consegue apresentar a notícia mais fantástica. O que também lhes permite ocupar as horas mortas no trabalho com pesquisas e cálculos. Luís dá apoio às fotocopiadoras da biblioteca da Faculdade de Letras e passou a apanhar o amigo Carlos que trabalha na casa de fotocópias da Faculdade de Ciências, no Campo Grande, logo ali.

Catano! 100? Isso é escandaloso! — concedeu Luís.

Se é! Um hospital médio, como o CUF Tejo, custa 180 milhões. Consegues imaginar o volume de dinheiro que representam 100 como ele?

Deve dar para encher de notas até ao teto as salas de supervisão do Banco de Portugal — ironizou Luís.

Eh, eh, acho que mais! Há bocado pus-me a fazer umas contas. Achei que imaginar uma passadeira de notas talvez fornecesse uma imagem elucidativa. Então, pensei num percurso de dezoito mil passinhos de meio metro — tantos quantos os milhões —, o que dá nove quilómetros. Assim, tomando como meta o Terreiro do Paço, os nove quilómetros começam mais ou menos no Lumiar. Agora, imagina, caminharmos calmamente do Lumiar até ao Terreiro do Paço, a um milhão de euros por passada. Um passeio de magnatas desaparafusados! É essa a quantia que o Estado tirou do bolso dos contribuintes para não deixar falir empresas incompetentes. Bancos! Não produzem, fazem negócios gananciosos com o dinheiro que nós lá pomos; e mesmo assim conseguem perdê-lo.

Caramba! Isso é inacreditável! Fomos mesmo endrominados!

Agora, escuta — sorriu-se Carlos, a consultar o telemóvel e a antecipar o efeito do aumento de nitidez da imagem que aí vinha. — Já tens a distância; mas... a espessura da passadeira? Imaginei uma base quadrada, com a amplitude de cada passo — meio metro. E forrada com notas de 500 euros. Sabendo as medidas da nota, cheguei à conclusão que se consegue ladrilhar esse quadrado com 18 notas de 500 euros. Como um milhão são 2000 notas de 500, são precisas 111 camadas para perfazer o milhão de euros… Eis uma imagem que já dá uma ideia da enormidade do escândalo: uma caminhada apoteótica sobre uma fofa passadeira de 111 camadas de notas de 500 euros desde o Lumiar ao Terreiro do Paço...

Cuidado! — exclamou Luís.

Tão absorto ia Carlos, que quase tropeçava numa trotineta elétrica abandonada em frente ao Museu da Cidade. Um pano na fachada indicava que o piso térreo se encontrava encerrado para obras de remodelação.

Se há dez anos me dissessem que andaria agora a tropeçar em trotinetas, dizia ao tresloucado para tomar os comprimidos…

Bem, estou abismado — voltava Luís à conversa. Um milhão por passada é uma imagem incrível.

Mas uma camada de 111 camadas de notas pareceu-me ainda pouco visual. Pensei antes numa única camada. Cheguei então a isto, escuta!: as 111 camadas, lado a lado, são equivalentes à largura de uma autoestrada de 15 faixas de rodagem de 3 metros e meio cada. Desde o Lumiar até ao Terreiro do Paço. Totalmente asfaltada de notas de 500 euros. Já imaginaste 15 faixas de carros em hora de ponta a esfarrapar notas de 500?

Entretanto tinham subido as escadas da estação e posicionavam-se no cais. Havia alguns olhares furtivos e gente a fingir que não estava a ouvir. Luís, percebendo o tamanho da audiência, aumentou ligeiramente o tom de voz:

Uau! Não dá para acreditar! E o vento a levantar farrapos de notas e a levá-los pelo ar até caírem lá longe e apodrecerem durante uma dúzia de anos... — pegava Luís na sugestão. — Apresentado assim, parece ainda mais alucinante.

Como foi possível, não é?

Incrível! Fizeste o trabalho de casa... Agora escuta a minha, que apanhei no Expresso e confirmei na revista científica de origem. Uma equipa de investigadores, que tem estudado o aumento de temperatura dos oceanos, fez cálculos e chegou à conclusão que a energia fornecida aos oceanos pelas atividades humanas, nos últimos 25 anos, é tanta como se tivéssemos feito explodir 3600 milhões de bombas atómicas, iguais à de Hiroxima.

Milhões? — era a vez de Carlos se admirar.

Milhões! — reafirmava Luís. — Três mil e seiscentos milhões.

Fiu! — assobiou Carlos.

Entretanto chegou o comboio, bastante cheio. Era por meados de janeiro; as pessoas ainda nem sonhavam com as terríveis alterações de vida que um vírus lhes traria, em breve. Arrumaram-se como puderam, envolvidos pela multidão cansada, mas agarrada a telemóveis.

Parece que é o equivalente a bombardear os oceanos com cinco bombas semelhantes à de Hiroxima... por segundo... todos os segundos... 365 dias por ano. Durante 25 anos. Luís martelava os dados com pequenas pausas, para aumentar o efeito.

Heich! Isso é horrível! Como é possível? Bate a minha aos pontos.

Só para Portugal continental, dá mais de 250 bombas atómicas por dia, desde 1995. Fiz as contas.

És sempre o mesmo, Luís! — ouviu-se atrás deles. — Só tu!

Olha o Eugénio! Que é feito?

Há quanto tempo! — saudou Carlos, que também o conhecia do secundário. — Por onde tens andado?

Ajeitaram-se, de modo a ficarem mais próximos.

Eh, pá, em novembro estive na Flat Con, em São Paulo. Aquilo foi fantástico! — desvanecia-se o recém-aparecido.

Flat Com? O que é isso? Imobiliário?

Convenção Terraplanista! Não ouviram falar? Dah! Estive lá de pleno direito. Sou correspondente em Portugal da Federação Mundial da Terra Plana…

Carlos e Luís entreolharam-se. Em volta era possível detetar alguns sorrisos complacentes e uns poucos esgares de desaprovação.

Ok! Já li sobre essa moda — concedeu Carlos. — A Terra é plana, está coberta por uma espécie de cúpula e é limitada por um rebordo de montanhas geladas que impedem que se caia no vazio. Não acreditam nas viagens à Lua, nem em nenhuma das provas tradicionais da esfericidade do nosso planeta. E esse pessoal juntou-se para quê?

Ora, para reforçarmos as nossas convicções e falarmos do futuro. Eu próprio apresentei um projeto — empolgava-se Eugénio, ao perceber o interesse dos amigos. — Já viram esses cartazes todos que estão espalhados por aí, a dizer que não há planeta B? Foram eles que me deram a ideia principal. Não há planeta B? Pois parece-me evidente que há. E a minha ideia pode ser a solução dos nossos problemas e a salvação da Humanidade.

Eugénio calou-se a fazer render a expectativa e a saborear a curiosidade dos amigos, mas estes mantiveram uma atenção sóbria. Em volta apurava-se o ouvido, tentando contrariar o ruído do metro, naquele ponto do trajeto.

A Terra é uma espécie de disco plano e grosso, como uma tarte, não é? Ora, o outro lado do disco o que é senão uma outra Terra plana? O tal planeta B! Claro como água. Só falta descobrir como vamos conseguir passar para lá. Ultrapassando a borda e virando para baixo? Ou furando o chão? De uma maneira ou de outra, quando o conseguirmos temos o problema resolvido.

Carlos e Luís estavam constrangidos. Em volta manifestavam-se sorrisos abertamente.

Um furo parece-me o mais prometedor. Mesmo que a gente não consiga colonizar a outra face… por exemplo, se lá não existir este efeito a que chamam gravidade… nesse caso, o furo pode ser a solução para a subida dos oceanos, se ela for real. Foi a ideia que eu lancei lá na Convenção. Abre-se o furo e esvazia-se o excesso! Lógico, não?

A dois corpos de distância, alguém tentava conter uma gargalhada. Eugénio acusou o toque.

Sempre houve grandes pensadores escarnecidos pelos seus contemporâneos, mas depois tiveram que lhes dar razão — declarou, solene. — Precisamos de um novo paradigma que denuncie a grande fraude com que nos têm enganado e prove a verdade da Terra plana, na sua simplicidade e beleza.

A chegada ao destino não deixou Eugénio continuar. Saiu na Ameixoeira, permitindo a vários passageiros alargarem os sorrisos, mas contristou outros que esperavam mais galhofa. Luís estava incomodado e levantou um pouco a voz, para afastar de si os mais que prováveis preconceitos circundantes.

Isto não era possível antes do Youtube. Pelo menos com esta dimensão. Uma convenção… Os algoritmos, ao apresentarem inúmeros vídeos relacionados com a teoria maluca a que começámos a assistir, fornecem-nos mais e mais a ilusão de que toda a gente está de acordo com ela. É com a Terra plana e é com as milhentas teorias de pseudociência que são visionadas e difundidas sem reflexão, sem verificação, sem racionalidade.

Olha, sabes que estive a ler exatamente sobre isso? — corroborou Carlos. — Todos os terraplanistas se tornam terraplanistas a ver outros terraplanistas no YouTube. É a força das imagens, com a sua potência emocional a influenciar o fenómeno cognitivo; e são outros mecanismos psicológicos, sociais e culturais. Muitas vezes, são pessoas com formação, mas a desconfiança em relação ao conhecimento especializado e uma maneira errada de entender o ceticismo leva-as a pôr em causa esteios bem firmados do conhecimento científico. E acabam por se convencer que eles é que pensam com lógica e raciocínio científico.

No Senhor Roubado saiu muita gente. Luís pegou na conversa, mas já em tom de voz normal.

E não vale a pena argumentar com um terraplanista ou outro crédulo desse tipo. Nada os demove do seu erro. Agarram-se à sua ilusão com unhas e dentes; tudo o resto são manipulações da Grande Conspiração Global. Não há paciência!

Eu fico possesso com teorias maradas e notícias falsas. Estou farto de apanhar com imbecilidades, desonestidades, fanatismos no Facebook. Às vezes, só me apetece desamigar toda aquela gente que prefere viver com os neurónios desligados. As pessoas não têm a mínima sensibilidade para detetar a treta, o disparate, a falsidade. Acreditam em tudo!

Não é em tudo. Parece que têm uma preferência por histórias estapafúrdias. Se a história parece inverosímil, é certo e sabido que vai ser partilhada por muita gente. Mas não perdem uns segundos a tentar perceber se é falsa. Eu acho mesmo que, para eles, é irrelevante se é verdadeira ou falsa. Interessa é a espetacularidade. Como se a sua vida fosse tão desinteressante que precisasse de grandes ficções para lhe dar um pouco de animação. De vida real estão eles fartos. Só não os desamigo porque gosto de pensar que, enquanto forem meus “amigos”, posso influenciá-los. Mas acho que não consigo.

Saíram em Odivelas e encaminharam-se para o bairro Codivel, pelo túnel decorado pelo graffiter Styler. As pinturas murais de grande intensidade figurativa, do tema de Alice no País das Maravilhas, ilustravam, oportuna e ironicamente, a nossa grande apetência por mundos fantásticos, maravilhosos e mágicos.


Joaquim Bispo

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Imagem: Styler, Alice no País das Maravilhas (pormenor do Gato de Cheshire), 2016–2017.

Odivelas.

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sexta-feira, 23 de outubro de 2020

CORTE “AMERICANO”

 

                                    


 

         No início da década de 1970, para tirar o sossego dos pais dos garotos, a moda era cabelo longo.

         Aloísio, embodocado na timidez dos seus treze anos, filho mirrado de um negro e de uma cabocla, órfão de pai desde que nascera, vivia com a mãe e mais um irmão.

         Meio carapinha, ele dormia todas as noites com a cabeça enfiada numa velha meia para tentar driblar a rebeldia dos longos cabelos. Quando acabava de lavá-los, com a velha tesoura aparava as pontas daqui e dali, ritual que fazia escondido, longe dos olhos da mãe e do irmão mais velho. Os dois não aprovavam aquela profusa cabeleira que deixava Aloísio com o semblante ainda mais franzino, disforme. Era uma cabeça desproporcionalmente volumosa sustentada por um corpo minguado. Imagem triste.

         Certo dia, Paulo, seu irmão, ofereceu-lhe, de presente de aniversário, um corte de cabelo na barbearia do Seu Alípio. Aloísio ficou todo cheio! Cortar o cabelo numa barbearia era artigo de luxo. Desde que se dera por gente e até certo tempo atrás, seu cabelo sempre fora cortado pela mãe. Sairia da barbearia todo faceiro, cheirando a álcool, a talco ou à água Velva!

         No dia combinado, Aloísio recebeu uma cédula de dinheiro do irmão, e foi todo aprumado em direção à porta. Antes de sair e temendo não saber o que dizer quando chegasse sozinho à barbearia, perguntou:

         - Paulo, o que eu digo ao Seu Alípio?!

         -Não fique avexado, oxe! É só chegar lá e falar que quer fazer o corte “americano”! Vá logo, ande! – respondeu Paulo.

         Aloísio passou pelo portão, todo garboso, metido num traje domingueiro, calças até o joelho, impecavelmente passadas a ferro pela mãe. Caminhava quase aos trotes, tamanha a pressa, e com as mãos nos bolsos, remexia alegremente a cédula de dinheiro, e o seu velho canivete, inseparável companheiro. Logo estava diante da barbearia.

         Cumprimentou Seu Alípio e, numa voz quase sumida, disse a ele que queria cortar o cabelo, corte “americano”, conforme a orientação do irmão.

         Seu Alípio o colocou na velha poltrona, mas Aloísio era tão miúdo, tão apoucado no tamanho, que não conseguia se olhar no espelho colocado na parede de frente. A toalha foi colocada sobre os ombros, e Seu Alípio começou o preparo da tesoura. Ao mesmo tempo em  que começou a assobiar, iniciou também a dança das tesouradas. Era uma rapidez de movimentos que Aloísio ficou imobilizado. O medo de se mexer virou pânico quando ele pressentiu que, caso se movimentasse, poderia levar uma tesourada nas pontas das orelhas. Orelhas, aliás, bem avantajadas, muito mais que o desejado...

         Aloísio, enquanto ouvia o assobio ininterrupto do Seu Alípio soar cada vez mais estridente, via os tufos de cabelo caindo da tesoura, passando pelo seu rosto, pelos seus ombros cobertos pela toalha, pelos braços, e se esparramando pelo chão. Estava em choque! De onde saía tanto cabelo? O que Seu Alípio estava aprontando na sua cabeça?! Espavorido, nem conseguia se mover. E o zunido da tesoura não cessava...

         Atordoado, Aloísio fechou os olhos e, silenciosamente, clamou por todos os santos para que aquilo acabasse logo. De repente, Seu Alípio parando de assobiar e descansou a tesoura sobre o aparador. E com a mesma rapidez de ação, pegou um instrumento que parecia um boticão ampliado, tombou fortemente a cabeça de Aloísio para frente e começou a passar aquela ferramenta da nuca para o alto da cabeça. E como doía! Conforme subia, aquele aparelho ia puxando de maneira ríspida os fios de cabelo, roçando asperamente a pele da cabeça. Uma sensação horrorosa. E Seu Alípio voltou a assobiar...

         Aloísio nem ousava abrir os olhos. Tinha receio de olhar o chão e constatar que todo o seu cabelo estava ali. Só queria que aquilo acabasse logo...

         E Seu Alípio parou de assobiar. Guardou aquela estrovenga no aparador, junto com a tesoura, e começou a retirar a toalha.

         Aloísio não queria saber de álcool, de talco ou de água Velva. Nem aceitou a oferta de Seu Alípio para se olhar no espelho, e nem se atreveu a passar a mão pela cabeça porque não queria constatar o que já sabia. Não queria saber de nada. Queria ir para casa, e lá, sozinho, olhar o que havia acontecido com os seus cabelos.

         Pegou o troco dado pelo barbeiro, e foi rapidamente rumo à porta. Não precisou chegar em casa para se certificar do ocorrido. O vento que lhe batia na nuca, o sol que lhe ardia na cabeça e as orelhas proeminentes esculpidas na sua própria sombra refletida na calçada foram enchendo o seu peito de raiva, enchendo os seus olhos de água...

         Aloísio, com a mão enfiada no bolso, comprimia com força o velho canivete. Apertou o passo. Queria sair da vista de todos. Já diante do velho portão, meteu o pé nos sarrafos já puídos, entrou em casa chorando em silêncio. A mão, que tentava esmagar o canivete no bolso, desejava esmagar o pescoço de Paulo.

         Naquele momento, se não tivesse a mãe, e se não fosse pecado, seguramente Aloísio teria furado o irmão. 

 

 

                                                    Regina Ruth Rincon Caires

 

 





terça-feira, 20 de outubro de 2020

O CAMINHÃO DOS OLHOS

Toda segunda feira tem feira no Largo da Segunda Feira, na Tijuca. Esse mantra  me ecoa até hoje, sou capaz de ouvir a voz da minha avó, me apressando a pegar a sacolinha de minha propriedade (a primeira posse que tenho nos meus escaninhos) e partir com ela a sentir aromas, sons e emoções de uma feira livre que insistem em não abandonar minhas entranhas. 

Levava eu uma bolsinha micra, exatamente para caber o agrião que, diziam as boas línguas, minha mãe e meu pai não dispensavam na salada. Muita mãe, muita avó, muito pai, muito avô, muito carinho, muita feira livre que não me arredam pé das lembranças. Ainda bem. 

Muito bom não me desvencilhar dos tempos bem vividos, quando, na altura do meu campeonato, sou levado a frequentar a feira do Jardim Botânico no Rio, onde cheiros, atropelos, sons diversos e cores múltiplas me servem de gatilho a recordações. 

No Largo da Segunda Feira, onde toda segunda feira tinha feira, havia o português Seu Manoel, conhecido à boca pequena como Mané Feioso, que de tão feio não resistiu ao meu comentário sincero: “O senhor é feio mesmo, hein?”, para desconcerto da minha avó contida e gentil. 

Havia o Narciso, moleque descalço, pretinho hoje afrodescendente, que carregava com seu carrinho de bilha as compras até o edifício onde morávamos no quarto andar. A consciência antiescravagista não havia me envolvido, tanto que achava normal o menino subir quatro andares com as compras e entregar na nossa porta, em troca de uns meirréis e um copo d’água, que depois seria desinfetado com sabão de coco. Assim era o que era. 

Havia o feirante que colocava água com açúcar na faca, para provar que o abacaxi estava realmente doce. “Vai uma provinha aí, freguesa? Tá tão docinho que parece que saiu de uma colmeia”. Ficava imaginando o feirante com aquela roupa de astronauta tirando o abacaxi do antro de abelhas com seus ferrões impiedosos que saiam da bunda. 

Mas nada é tão vívido até hoje quanto o Caminhão dos Olhos. Explico. Nas ruas adjacentes do Largo da Segunda Feira, onde toda segunda feira havia uma feira, estacionavam vários caminhões que transportavam mercadorias em caixotes e barracas desmontadas. Um deles tinha um olhar especial. 

Era um Chevrolet dos anos 50, cuja frente apresentava um gradil de radiador cromado sobre o qual dois faróis me sorriam com contornos de traços disneyanos de pestanas, sobrancelhas e expressão generosa. Magia pura. Minha avó encerrava a função me levando a me despedir dele e ele estava lá, encostado numa esquina a retribuir meu encantamento com mais encantamento, como se aprovasse meu carinho em levar para a família a sacolinha com agrião dentro. 

Não havia segunda feira, onde sempre havia feira no Largo da Segunda Feira, que eu não celebrasse o olhar carinhoso de um caminhão para um menino sonhador. Era uma troca de cumplicidade, que até hoje, de olhos fechados, sinto o quanto de real perdura no meu eterno imaginário infantil, transportando a mais pura sabedoria.  

Numa recente segunda feira ousei em ir até o Largo da Segunda Feira, na torcida teimosa que houvesse uma feira e um caminhão que me olhava carinhoso na rua adjacente. Claro que encontrei nada. Não me deparei com feira alguma, apenas um amontoado de camelôs, pedintes, indigentes, passantes sem romantismo, excluídos, gente que importa aos olhos dos sensíveis, porém invisíveis ao cotidiano, vagando por sobrevivência, atenção, justiça, cuidado, oportunidade, comida, teto. 

Muito menos na rua adjacente havia um misero caminhão. Tudo tomado por carros sem personalidade, sacos de lixo semi abertos, mendigos, famílias embrulhadas em papelões e cobertores imundos, crianças sem calça, cachorros magros, vivendo ao relento dos dias de hoje. “A que pontos chegamos?”, diria minha avó simplória e católica se aqui estivesse. 

Contrariando a realidade dos fatos, consegui enxergar os olhos do Caminhão dos Olhos. Eu fechei os meus e vi o caminhão olhando para mim. E o fitei e ele me fitou, sim, o imaginário afetivo pode tudo. Seus olhos desenhados me disseram, com a eloquência de sempre, que o que a gente enxerga através da memória é o combustível para seguir vivendo. 

Olhar a vida com olhos felizes e inocentes do Caminhão dos Olhos não é um saudosismo paralisante. É um jeito maroto de não permitir que os arredores nos deixem cegos. E que o futuro não nos mate de medo.  

Não creio que o presente seja o instante absoluto da vida, "viver o presente é o que importa", dizem alguns, muitos, milhares manipulados pela cultura imediatista. Pois arrisco que o "aqui e o agora "só existe porque houve um "antes", que influenciará o "depois". 

É o passado que, através do presente, você evoca numa entrevista de emprego, na energia de um projeto futuro, lhe dá estofo para um desafio por vir, constrói a pessoa que você é, produz a auto estima do visionário, alimenta o sonhador.  

É provável que se queira apagar o passado. É provável não olhar para ele, jogá-lo para debaixo do tapete da cachola, fingir que o que passou, passou. Mas impossível negá-lo no inconsciente. E quando o inconsciente quer, não tem jeito: manda recados, sinais do que se bem ou mal viveu, sentimentos bons ou maus que podem ser administrados a ponto de não vestirem a carapuça dos manipuladores.  

Meus filhos e meus netos não conheceram o Caminhão dos Olhos. Mas estou certo de que outros Caminhões dos Olhos já habitam suas memórias tenras e lhes iluminam a vida para o que está vindo por aí, com suas dores, delicias, imprevisibilidades, sonhos, escolhas, frustrações, desejos, indignações, potências e impotências. E naturalmente torço que considerem conscientemente a bagagem emocional e objetiva, a tal da História individual que carregamos como aprendizado para lidar com o futuro. 

A vida é um piscar. Melhor aproveitar enquanto enxergamos a realidade, olhamos os arredores com indignação e percebemos que ainda podemos imaginar o Caminhão dos Olhos, sorrindo com esperança e afeto, servindo para alguma coisa agora e amanhã.

Não se trata de nostalgia doída, nem de expressão tardia pelo Dia das Crianças, muito menos do abominável e inerte “ah, no meu tempo...”. Mas é sinal de uma energia limpa da fonte da memória que faz a gente subir na boleia e seguir viagem. Temos sempre muito chão pela frente e um caminhão de lembranças carregado de vida.

Um brinde à memória que ilumina.  


 





segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Em tempos de paz



Acordado à beira da cama, suado, a um palmo de se despregar, Nonato mirou o branco do teto, infinito; refletia o vazio. Tem o ritual de passar, entre o limiar do sono e do despertar completo, cerca de quinze a vinte minutos conjecturando sobre as dádivas de uma vida digna. E isso lhe confere o significado da solidão, algo que alimenta há exatos dez anos. E, também, qualquer coisa mínima, imperceptível para os demais, sente um pouco de excitação nisso.

Depois da separação de Denise, a mulher ideal, segundo seus sonhos, não havia sentido para mais tentativas vãs; perda de tempo procurar dividir ou aplacar o que só cabia, de direito, à Denise.

Em dezoito de novembro de 2004, Denise resolveu deixá-lo, sem sobreavisos. Levou consigo – o que não conseguia discernir o porquê – dezoito pares de sapatos, três mudas de roupa e os gatos. O resto, pelo que pareceu, poderia tocar fogo. Assim o fez.

O golpe dela está aí, pois que, sem filhos, atribuía aos bichanos todo o amor que pudesse ter. Com o fetiche por coxas torneadas, grossas, em sapatos altos, achou que, com isso, a leviana dera a punhalada fatal, por mera implicância, despeito.

Não concorda com essas modernidades, de que homem não pode ter uma, duas ou três à disposição. Ela, no entanto, havia avisado: “Nonato, tu pensa que sou uma cadela vagabunda, que pegou no meio da rua? Tu te prepara! Ou tu te ajeita, ou eu mesma dou um jeito nessa esbórnia!”. Nonato acha, seguro, que é histeria de mulher; que mulher tem de dar chilique: normal; que a ebulição hormonal depunha contra ela; que, desgraçadamente, já que teria de passar o resto da vida assim, aturando-a, poderia ter uma, duas ou três por fora: compensação.

Ainda convicto e magoado, e feliz pela solidão forçada, gasta quase todos os rendimentos em compensações mundanas. Fora o apartamento hipotecado; o vazamento que escorre para o apartamento de baixo, como dilúvio, pelo banheiro; o débito do cartão de crédito, que soma a ninharia de dez mil reais; problemas no fígado, saturado de gordura e de escárnio, e de raiva, e de rancor; Nonato se considera um homem de sorte, porque seu presidente anda bem, sua equipe ministerial anda bem; porque o Brasil anda bem, e não há razão, portanto, fora os inconvenientes, para preocupações.

Ao tomar o café, lembra-se que a esquerda foi dizimada, como prometera o presidente, e isso lhe conforta. Lembra que a solidão é uma dádiva nesse mundo cão. Revigorado, pega um pedaço de pão, passa manteiga, abre um sorrisão e degusta, com delicadeza e certeza, para comemorar mais uma data de solidão e de autonomia.

Lembra, também, da Denise; sempre se lembra da Denise, que tripudia de sua honra. Mas soube que ela é petista, e deseja que vá para o quinto dos infernos. Congratula-se, ainda mais, com o fim da mamata; e se prepara para exaltar a glória da pátria na igreja, logo à frente, há um mês anunciada, a rigor, com paramentos militares. Sente-se pronto e aliviado. Declara-se, batendo no peito tomado de orgulho: “Sim! Sou mais um guerreiro, instrumento da paz nacional”.

 


 

         


 





sábado, 17 de outubro de 2020

A manga e a vontade

 




                           A vontade que tenho é não deixar que nada escorra de você e se perca. Minha boca junta e engole o que você derrete para mim. Tiro as roupas temporárias de seu corpo e estico a língua para tudo recolher. Ao cravar os dentes em uma manga madura, alisando, tocando e chupando o grão de onde principia uma existência nova, imagino seus olhos presenciando eu comer a fruta, olhando ao mesmo tempo para seu corpo. Minha boca e minha língua absorvem com ímpeto o que escorre da superfície da manga descascada e da sua pele, sem receio de saber onde termina uma e começa outra.