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sexta-feira, 28 de abril de 2023

Velhos Inimigos

 


Na Madrugada dos Tempos – Parte 9    

Certamente têm razão aqueles que definem a guerra como estado primitivo e natural. Enquanto o homem for um animal, viverá por meio de luta e à custa dos outros, temerá e odiará o próximo. A vida, portanto, é guerra.

Hermann Hesse

Escritor e pintor alemão

(1877-1962)

 

Todos estavam indignados com a audácia dos homens-macaco, principalmente os estrangeiros pelo assassinato dos dois homens. Aquele grupo, que se mantinha mais ou menos segregado da aldeia, já tinha quase tantos elementos como o próprio clã e, se inicialmente eram olhados com desconfiança, já circulavam livremente entre os demais, fazendo trocas e trabalhando onde era preciso.

Erem convocou um conselho para a semiconstruída casa da reunião, como todos lhe chamavam. As paredes não estavam totalmente erguidas, mas já representavam uma barreira eficaz contra o vento gelado. Os grandes troncos, previamente limpos das cascas, estavam enterrados profundamente à distância de dois homens e o espaço entre eles era diligentemente preenchido com camadas bem equilibradas de pedra. O objetivo era erguer aquelas paredes até ao limite dos troncos onde seriam “fechadas” com travessas de madeira, sobre as quais assentaria o telhado de colmo. Seria uma obra única nas redondezas.

Toda a população da aldeia já representava uma pequena multidão que Altan, o filho mais velho do chefe e Civam, um irmão de Zia tentavam silenciar. Foi, porém, a voz forte de Lemi que conseguiu impor respeito e gradualmente todos se calaram. Erem olhou com satisfação o amigo e tio, embora se sentindo preocupado pelo envelhecimento que este inverno estava a produzir nele.

O chefe subiu a uma pedra para poder olhar para todos e para ser visto. A seu lado esquerdo colocaram-se Zia e Civam e ao direito os seus filhos Altan, Tekin e Asil… uma vez mais Naci primava pela ausência.

— Amigos e vizinhos. — Começou ele à laia de apresentação. — Na noite passada sofremos uma grave afronta; mataram e feriram alguns dos nossos e roubaram e destruíram alimentos que nos irão fazer muita falta. — Um coro de vozes iradas e punhos erguidos ameaçadoramente apoiaram as palavras do chefe que fez um gesto a pedir silêncio. — Não nos bastam já as vezes que atacam os nossos grupos de caça, ou roubam as peças que perseguimos, como agora invadem as nossas próprias casas. — Novas vozes indignadas. — Por muito que me custe, tenho de vos pedir novamente para arriscar a vida pela nossa sobrevivência. Temos de voltar à gruta do nosso inimigo.

— Mas desta vez, temos de acabar o serviço de vez! — Gritou Naci da entrada do edifício. — A nossa covardia colocou-nos nesta situação; morreram alguns de nós no ataque, mas não devíamos ter desistido! Devíamos ter voltado, nem que fosse com todo o nosso clã, nem que morresse metade de nós, mas teríamos acabado com eles de uma vez por todas! — Havia alguns murmúrios de aprovação na audiência. — Em vez disso, andamos a arrastar pedras pelas montanhas e vales.

— O apoio dos deuses é o mais importante! — Gritou Zia, incapaz de se conter, sobrepondo-se ao coro de vários elementos da audiência que também se indignavam pelas palavras heréticas do filho do chefe. — Sem os deuses nada somos! Que podemos nós contra Tarhun[1], quando atroa os céus e destrói grandes árvores ou queima florestas inteiras? Que podemos nós contra Swol que tanto nos traz o suave calor quando a noite deixa de ser maior que o dia, como abrasa o ar e seca os chãos quando o dia é maior que a noite?

— Temos de eliminar a ameaça, sim. — Interveio Erem para conciliar as partes. — Temos de a eliminar de vez, mas agora invocaremos o apoio dos deuses antes de ir. Quero que todos quantos podem lutar se armem e se preparem para a viagem, ficam apenas os velhos, os doentes e as mulheres com crianças. Lemi organizará os grupos e escolherá alguns guerreiros que ficarão com ele a guardar a aldeia. Partiremos amanhã à primeira luz. Não pode ir ninguém ferido, nem doente, lembrem-se que está muito frio e as neves estão altas. Vai ser uma caminhada muito difícil. Quero aqui aproveitar — olhou na direção dos estrangeiros — para pedir a ajuda dos nossos vizinhos, para que nos cedam os guerreiros que puderem para combater esta ameaça.

Destacou-se entre o grupo um homem chamado Tailan, visto pela maioria como o porta-voz. Era dos mais velhos, o rosto alongado e enrugado de muitos sóis, o cabelo comprido preso num rabo de cavalo e a barba mantida curta. Envergava uma camisola de lã escura por baixo de um capote de peles de lobo.

— Apoiaremos de bom grado, grande chefe! — Respondeu ele na sua voz forte e de sotaque carregado. — Mas quero também pedir uma graça, a ti e a todos os que em Barinak[2] nos têm acolhido tão bem; gostaríamos de também poder enterrar os nossos mortos no santuário que estamos a ajudar a construir. Os mortos desta noite… — O homem calou-se à medida que vozes indignadas se faziam ouvir na audiência.

— Esperem! — Mandou Erem. — Acalmem-se, vá! — Insistiu o chefe sobre os descontentes. — Por que o não hão de merecer eles? Não trabalham lá como nós? Não colaboram em todas as atividades do clã como todos os outros? Mesmo nas construções na aldeia, que já não lhes diria respeito? — O descontentamento reduzia-se a alguns resmungos. — Bem sei que são estrangeiros, não são descendentes do grande clã de Birol, mas partilham connosco as dificuldades. Proponho que enterrem os seus mortos no santuário, sim, mas, tal como vivem nos limites da aldeia, os enterramentos serão em volta do círculo e não dentro. O círculo interior fica reservado aos elementos do nosso clã.

Tailan curvou a cabeça em agradecimento, ignorando alguns elementos da audiência que insistiam em manter a discriminação mais acentuada.

— Daqui vamos todos para o santuário — Zia tomou a palavra com autoridade, dando por encerrada a discussão —, sacrificaremos uma cabra e um cabrito. Farei a leitura das entranhas da velha para a aldeia e da nova para o nosso futuro. Invocaremos o favor dos deuses na nossa jornada e, com ajuda deles, desta vez venceremos.

Foi uma grande comunidade que se juntou no santuário onde havia agora cinco monólitos. As condições climatéricas limitavam muito o tempo de trabalho e a pedra com o tamanho necessário e as características exigidas por Zia ou Nehir encontrava-se cada vez mais distante. Por vezes faziam grandes caminhadas para ver um megálito referenciado por um dos caçadores, para chegar à conclusão que não era do material certo, não tinha tamanho ou estava quebrado. Agora optavam por duas equipas chefiadas por uma das mulheres que localizavam as pedras e deixavam lá aqueles que a iriam desbastar para a tornar mais leve e transportável. Só depois se iniciaria o transporte. Tudo tomava mais tempo; encontrar os objetos, a distância e os obstáculos naturais.

Erem, Zia e Nehir compareceram no santuário envergando as vestes e símbolos dos seus altos cargos. Ele trazia a cabeça e a pele de leão, que eram a majestade e o poder sobre os outros e a lança, que representava, ao mesmo tempo, a ferramenta que alimentava o clã e a arma que o defendia. Zia e Nehir envergavam alvos casacos de peles de carneiro que lhes desciam até aos joelhos com as golas e punhos de pele de coelho matizados de branco e cinzento. A mãe estava coroada com o cocar de penas de corvo e pomba cinzenta e a filha com outro de pomba branca, distinguindo os seus estatutos de sacerdotisa/oráculo e o acólito. 

Ainda havia murmúrios descontentes quando Zia executou as mortes rituais junto à fogueira no centro do círculo e invocou os deuses para que vissem o sacrifício que faziam. Aqueles animais eram preciosos e podiam, no espaço de poucas semanas, serem essenciais para evitar a morte pela fome de alguns deles, no entanto, faziam aquela oferenda para que as divindades percebessem que lhes davam mais importância do que à sua própria subsistência.

A noite descia rapidamente sobre o povoado e refletia-se apenas em pequenos espaços deixados entre as nuvens escuras que praticamente cobriam o céu. A luz bruxuleante das chamas projetava a sombra da sacerdotisa nas pedras: um gigante com enormes chifres que parecia querer libertar-se para avançar sobre os crentes. Também o som ressoava de forma impressionante nos monólitos, os que estavam mais perto, sentiam a vibração que deles provinha e as palavras do oráculo ressaltavam e pareciam ficar suspensas no ar. Zia invocava a presença de Swol que não os abandonasse e regressasse rápido com o calor, a caça e as colheitas, de Mensis para que lhes iluminasse a noite e os caçadores não se perdessem no caminho e de Tarhun para que os conduzisse à vitória sobre os inimigos. Enquanto isso, retirava as entranhas dos animais sacrificados para potes de barro que lhe eram estendidos por Nehir.

O chefe do clã colocou-se no meio das duas mulheres e aproximou-se da sacerdotisa para receber a premonição. Nehir marcou-lhe o peito com uma sanguinolenta mão aberta sobre o coração e Zia riscou-lhe o rosto com três dedos sangrentos em cada face antes de lhe segredar o que vira nas entranhas dos animais. Ele olhou-a com profundidade antes de confirmar com um aceno de cabeça que aceitava a previsão que podia ser divulgada ao povo.

Voltaram-se os três de costas para o altar sacrificial, de mãos dadas, os rostos negros e dourados pela luz da fogueira transformados em máscaras divinas, prestes a revelar a vontade dos deuses.

Swol, — gritou Zia, acima dos murmúrios que se silenciaram de imediato —, abraça os seus filhos e recomenda paciência para regressar em força e abundância. Mensis, diz; as noites serão calmas e, embora as nuvens de neve por vezes ensombrem os céus, ela estará lá para velar por nós. Tarhun dá-nos a sua bênção para levar a vingança aos nossos inimigos. A luta será difícil, mas o nosso clã prevalecerá!

Gritos de alegria e vitória ecoaram entre os crentes que se felicitavam mutuamente por tão auspicioso augúrio. Mas logo Zia tornou a erguer as mãos para impor o silêncio.

— Amanhã será um dia muito comprido e difícil. — Anunciou ela assim que todos se calaram, erguendo um dos potes de barro utilizados na cerimónia. — Aqui estão o sangue da cabra e do cabrito; o velho e o novo misturados e inseparáveis, como sempre deve ser.  — Com um ramo de oliveira aspergiu pingos carmins sobre os crentes. — Todos devem molhar as mãos nele e marcar as faces com três dedos, que dá a força de três homens e as roupas com a mão aberta que dá a coragem do nosso povo. Depois vamos descansar nos braços de Mensis e acordaremos ao som das cornetas de Tarhun.



[1] Deus do trovão, da caça e da guerra

[2] Santuário

 

            8 - O Mundo Pula e Avança

Parte 8 – O Mundo Pula e Avança

A seguir:         

Parte 10 – Olho por Olho

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

Manuel Amaro Mendonça

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terça-feira, 25 de abril de 2023

Disfunção retrátil

 


Rui Mirandela não tinha preparado minimamente a reforma, quando ela chegou. Após 38 anos a tratar de confrontações numa conservatória de registo predial, a ordem de soltura atingiu-o com violência na zona da rotina. De repente, não tinha de se levantar cedo, não tinha de se despachar a almoçar, nem sequer tinha horários. Tinham-se acabado as preocupações burocráticas e as pessoas a assediá-lo com papéis. Nos primeiros dias ainda se levantava e, já que estava levantado, dava uma volta. Mas, para quê sair de casa? Só para ter com quem falar?

Nessa altura desanimou um bocadinho. E fez os seus balanços de vida. Na verdade, vivera para a profissão. Os planos de casar e ter filhos tinham ficado lá para trás. Namoradas não lhe tinham faltado, mas nunca chegara ao arrojo de assumir um compromisso. E agora… nem amigos tinha.

Iniciou então uma ronda telefónica pela sua lista de conhecidos. A maioria dos números já não existia, assim como muitos dos proprietários, e outros estavam “inoperacionais”. A meia-dúzia que respondeu ao desafio deu para muitas e alegres almoçaradas. Pôr as conversas em dia, relembrar bons tempos do trabalho, da tropa ou do liceu animaram-no durante uns meses. Depois, começaram a cansá-lo um bocadinho. E as namoradas… que seria feito delas?

Nos últimos anos, já bocejara bastante à frente do facebook. Talvez fosse altura de procurá-las por lá. O mais difícil foi lembrar-se dos nomes. Com esforço mental e ajuda de uma agenda antiga recuperou nove nomes, mas todos sem apelido. Do mal, o menos.

Pesquisando por Claudina, apareceram-lhe oito resultados e nenhum deles promissor. Então percebeu que havia a função “Ver tudo”. Aí, já tinha 163 caras que o ameaçavam com horas de pesquisa, mas, a meio da lista, numa visualização prévia, reconheceu o sorriso. Ali estava ela, a Claudina, com uns bons anos em cima, mas ainda com o mesmo sorriso. Sobrenome Veiga. E ainda “rompia meias solas”. Aparentemente morava em Arruda dos Vinhos e as fotos não mostravam maridos. Pediu-lhe amizade.

Entre a primeira mensagem e o acerto de um encontro não decorreram mais do que cinco dias. Seria em casa dela. A meio da tarde, para não se confundir com um almoço e os seus stresses prováveis.

O entusiasmado aspirante a janota cortou as unhas dos pés e das mãos e deu uma aparadela nos tufos mais espessos e grisalhos do corpo. Nunca se sabe. E pediu à barbeira um corte ligeiro. Mas sem dar tréguas aos excessos das sobrancelhas e dos pelos que espreitavam no nariz e ornamentavam as orelhas.

O primeiro contacto foi fácil e inspirador. Como se tivessem deixado de se encontrar na semana anterior. Claudina estava um pouco mais velha do que nas fotos do facebook, mas, por outro lado, Mirandela gostou da sua genuinidade assumida. Mantinha um visual e gostos hippies que ele já tinha esquecido. Agora não se chamavam assim, mas era certamente “vegana” e esotérica. O espaço de estar, muito atapetado e com ornamentos a lembrar culturas tibetanas e budistas, era aconchegante. Incensos ou fumos equivalentes perfumavam o ar. Chás de ervas que ela própria colhia na região confortavam e avivavam o corpo. Mirandela resolveu tomar um comprimido azul, à socapa. Claramente, o encontro podia encaminhar-se para essa região exigente e ele não estava seguro do seu desempenho.

Realmente, o caminho estava bem assinalado e era só “seguir a sinalização”. Mas, embora sem placas de proibição, nem rotas marcadas, intuía-se a renúncia da velocidade e a opção pelo desfrute da paisagem, dos aportes dos outros sentidos, da companhia, em suma, da viagem. Claudina era exímia a rodar nos limiares, nas margens, a saudar adiamentos. O contacto era mínimo, descontínuo, tangencial, mas não descurado. Mirandela, que nunca fora muito paciente, nem amante da frugalidade, desesperava de tensão e urgência. «Estamos quase a chegar; espera só mais um bocadinho» era a mensagem que enviava mentalmente ao seu apressado bólide. A estrada estava boa, com algumas curvas, mas de piso firme. Por ele, carregava no acelerador a fundo e ia por ali afora, embora se lembrasse que sempre ficava constrangido quando chegava antes da hora. Então, achou que era tempo de refrear a pressa e experimentar viajar pelo desfrute.

Mas achar é fácil e dizer ainda mais. Percorrer a superfície de Trás-os-Montes em ponto-morto e a travar era de loucos, mas resolveu tentar. Realmente, travando nas descidas e ganhando balanço para vencer os relevos, dava para seguir em baixa, mas segura velocidade. Só duas horas depois, a subir para o túnel do Marão, meteu a primeira mudança. Mas não se afigurava viável chegar ao destino com a primeira; meteu a segunda e, não muito depois, a terceira. Em vão. Com o motor a ferver e fartos de metáforas rodoviárias e automobilísticas, resolveram encostar às boxes.

Exausta, Claudina não deu mostras de grande estranheza, como se fosse um caso muito natural; para Mirandela, regressar de um encontro romântico com a garrafa de espumante por estoirar era uma nova e perturbadora experiência. Não que o incomodasse muito; só não estava habituado àquele volume em permanência. Mas acreditava que seria uma contratura temporária. Como uma cãibra. Com o passar das horas, pondo o caso em perspetiva, Mirandela assumiu a glória e o orgulho inusitado, passeando-se nu, em frente do espelho do roupeiro. Caramba, que pujança! Era pena se fosse desaparecer na manhã seguinte. Resolveu tirar umas fotografias, para mais tarde recordar aqueles momentos singulares, e enviou uma a Claudina, como informação.

De manhã, mal tinha retomado um mínimo de lucidez, sentiu o peso gostoso que ambicionava. Verificou. Lá estava ele, impávido e ereto, como uma sentinela em prontidão. Como é que podia ser? Talvez do Viagra, talvez dos chás, talvez dos fumos, já que não acreditava em magias, nem em bruxas, mesmo da Arruda. A hipótese de problema de saúde, eventualmente grave, aflorou-lhe a consciência depois. Havia de ver isso. Por enquanto, não sentia constrangimento nenhum, pelo contrário; o sentimento de potência e plenitude era tão bom... Encostou-se na cama, de pernas abertas, a desfrutar daquele bem-estar. E no resto da manhã, Mirandela passeou-se nu pela casa, admirando com regularidade os vários enquadramentos do fenómeno.

Com sentimentos adolescentes, resolveu almoçar num sítio público e muito frequentado. Escolheu a zona de restaurantes do centro comercial local. Nas interações com as funcionárias, só o olhar brilhante denunciaria o seu estado. A saborear um bife com molho de mostarda, divertia-se por se saber aprumado no meio de tanta gente, mas incógnito devido aos boxers apertados que vestira. Animado com a situação, meteu-se no Metro e saiu nos Restauradores. Misturou-se com a multidão, atravessou o Rossio e percorreu a Rua Augusta até ao Arco. Se baixasse as calças, de certeza que teria mais público do que qualquer daqueles homens-estátuas, pensou. Depois subiu ao Chiado, entrou na Brasileira e na igreja dos Mártires. Sempre com um sorriso subtil de que só ele conhecia a razão.

Deu por si a pensar como poderia dar boa aplicação àquele milagre. Ainda antes da primeira ideia, o telemóvel deu uma resposta: era Claudina a desafiar para mais um lanche, com chá de Arruda. E foi assim mais do que uma vez por semana, durante uns meses. Sempre com o mesmo comportamento consistente do seu bem-apessoado relações-públicas, a que só faltavam olhos azuis para um garbo de engenheiro hidráulico. Apesar de já ir suscitando rostos pensativos à amiga, que não desdenharia uma inundação da zona do cais. Começou a insistir para Mirandela ir ao médico. Podia ser uma coisa má; não se sabia.

Mirandela preferiu falar com o seu ex-colega de Liceu, que tirara Cardiologia, mas já não exercia.

— Parece apenas um priapismo não isquémico, mas representa seguramente um enorme esforço do sistema vascular — avisou ele. — Pode não ser nada, mas é melhor fazeres umas análises e um eletrocardiograma.

Quando chegaram os resultados, Mirandela estava apreensivo, sobretudo pela possibilidade de ser constrangido a fazer alguma operação que lhe retirasse aquele mimo de terceira idade.

— Não encontro nada de preocupante, Rui. Até o eletrocardiograma está impecável. Tudo indica que é uma situação pontual, uma espécie de disfunção retrátil, não explicada ainda; possivelmente, um bloqueio da comunicação neurológica. Queres que te arranje uma consulta de Neurologia?

— Não, não, obrigado! — descartou Rui, tentando retomar o controlo no ponto em que o entregara. — Deixa que eu depois marco.

— Como queiras. Vou-te receitar só um creme, por causa das assaduras. Desfruta!

Desfrutar? Sim, claro, mas, exceto o óbvio, o quê?

— Diz-me uma coisa: não achas que a Ciência podia estar interessada em mim? Sempre devia dar para fazer umas boas viagens, a exibir-me em congressos médicos um pouco por todo o mundo…

— Rui, a situação parece fixa e irrepetível, uma espécie de prótese natural e inamovível. Se descobrissem o que provocou essa rigidez constante, talvez conseguissem produzir um medicamento para a reproduzir, mas, se alguém estivesse interessado, iriam vendê-lo a cada pessoa uma vez, no máximo. Eles precisam de vender, mas aos milhões.

Mirandela despediu-se do amigo não tão feliz como devia. Não estava a conseguir notoriedade para o seu notável estado. Talvez num circo; talvez num bar de strip-tease. Depois das meninas do varão, entrava o próprio varão. Havia de fazer inveja a muitos que iam ali só deleitar-se com a sensação do arranque do motor.

Na semana seguinte, numa quinta-feira já quente, foi até à Praia do Meco. Ali podia dar largas ao seu desejo de exposição, mas sem se tornar insultuoso. Erro seu. Foi olhado como, possivelmente, um tarado sexual, que trazia para a praia, ainda que nudista, a excitação sexual. Ali era bem-vinda a naturalidade do corpo, em comunidade e em comunhão com a natureza, não a luxúria egocêntrica. Acabou por se resguardar numa dobra das dunas, só a abandonando para ir à água.

À saída da praia foi abordado por um tipo que julgou conhecer:

— Desculpe tocar no assunto, mas não pude deixar de reparar que você mantém uma ereção há horas. É uma prótese ou é por causa deste lugar inspirador?

— Não; este é o meu estado normal, desde há umas semanas. Mas não ando à procura de companhia — frisou.

— Não, não se preocupe; eu também não. Acontece que sou produtor teatral e preciso de uma novidade para uma peça ao estilo dos “Monólogos do Pénis”, que é um tema que tem esgotado bilheteiras, quer no Brasil, quer aqui. Já tenho o texto. Agora você fez surgir a novidade. Estaria disposto a ser figurante num espetáculo deste tipo? Bastaria andar em palco de um lado para o outro, enquanto os atores, à boca de cena, debitariam o texto. Como uma ilustração do tema tratado. Seria exibido só em casinos e em sessões tardias num teatro. O que me diz?

Mirandela ficou sem fala, durante uns segundos. «Caramba, era mesmo isto. E teatro…»

— Uau! A ideia agrada-me… só precisava de tempo para medir as consequências...

— Com certeza que, de vez em quando, seria reconhecido na rua. Nem sempre é agradável. Mas ainda retiraria dividendos dessa condição, acredito; não sei se seria do seu agrado.

— Ora, não… Desejarem-nos é sempre um afago de ego, ainda que não seja pelas boas razões e nem estejamos interessados.

A adaptação ao palco foi quase imediata. Apesar da exposição total aos olhares permanentes e incisivos do público, o seu desempenho era fácil. Nem precisava de ter angústias com possíveis esquecimentos de texto, como os atores. Que aliás, ressumavam algum ciúme por aquele êxito tão pouco trabalhoso.

Passaram-se semanas, meses; quatro noites por semana, Mirandela, qual Priapo dos tempos atuais, passeava-se atrás dos atores, durante uma hora e vinte, de pénis ereto a exatos 40 graus. Percebia os olhares de alguma inveja dos homens, de alguma cobiça das mulheres; seguramente, todos de espanto e maravilhamento. A sala cada vez enchia mais e a partir aí do primeiro mês estava sempre esgotada. O êxito trouxe a Mirandela muitos desafios expressos e convites tácitos, todos recusados, e até uma ida à televisão, ao programa da Júlia, a contar o seu caso. Com 68 anos, cavalgava a crista da onda pessoal. Até um dia.

Mirandela nunca soube o que desencadeou o murchamento fulgurante. Talvez uma hesitação dos atores, talvez um risinho da assistência, talvez o frio do palco. Ou nada. Em menos de 30 segundos, o seu orgulho abateu-se para uma posição humilde e desinteressada. Um “Oh” elevou-se da plateia. Os atores procuraram com o olhar a razão daquele burburinho uníssono. Viraram-se. Mirandela parara de frente para o público, o olhar em terror, ciente de não poder esconder a calamidade. A oitava maravilha, o menir vivo, transformara-se numa natureza-morta pendente de entrepernas. No dia seguinte, até a CMTV relatou o acontecido.

A rogos do produtor e do elenco, Mirandela acelerou para Arruda, à procura da repetição do milagre. Mas, desta vez, quem ficou surpreendida com a viagem foi Claudina, arrastada pela enxurrada mesmo à chegada. Nem reconheceu aquele condutor que, ébrio de paixão, certamente se despistara, derrubara algum dique e agora se mostrava sóbrio e apaziguado.

Na discussão urgente do grupo de teatro, houve quem defendesse a naturalidade de um membro pendente. Mirandela, constrangido e nervoso, ainda se passeou atrás dos atores durante duas ou três semanas, mas, pendente por pendente, o produtor acabou por contratar um jovem de 26 anos, que, pelo menos, tinha o resto da pele firme e lisa.

Joaquim Bispo

*

Imagem:

O deus romano Mercúrio, deus do comércio e da abundância, fundido com o deus romano da fecundidade e da abundância, Priapo, pintado a equilibrar o peso do seu enorme pénis ereto com um saco de ouro.

Afresco da Casa dos Vettii, Pompeia, sepultada pela erupção do Vesúvio em 79 A.D.

* * *





quarta-feira, 19 de abril de 2023

Até quando?


 

Inara pegou a minha mão e garantiu que me salvaria da próxima tormenta. Resolvi confiar, apesar de certos “lapsos” passados. Ela jurou que desta vez seria diferente. O corpo dela me acalma – essa é a dependência e a maldição? Mas até quando terá paciência? Até quando as pessoas terão paciência? Meu pai, meu grande amigo, me deixou cedo; eu ainda era um recém-formado, que confiava trabalhar com ele – que ele me daria o Norte –, que me faria virar gente, como ele mesmo prometeu. Encarei um ano e meio de solidão, de 2010 a 2011 – muito mais do que os cem anos de solidão, de Márquez. Foi tenebrosa e turva a caminhada, sem saber onde me apoiar, sem saber se ainda teria fé. Logo caí de cama, com uma depressão brutal. Passei dois meses inteiros sem conseguir trabalhar. Fui afastado pelo INSS, porque o meu chefe não queria “saber de bronca para o meu lado”. Soube, por colegas, que ele disse que preferia uma mulher “buchuda” de funcionária a um paspalho como eu. Dois crimes aí, de uma lapada: misoginia e canalhice – ainda que, para este último, infelizmente, não haja pena, nem previsão legal, é bem verdade. Voltei ao trabalho e, com pouco mais, não aguentei: pedi para sair, porque o clima estava insuportável; ele fazia de tudo para me ver fora de suas vistas. Perdi boa parte do que teria direito de verbas rescisórias. Com a ajuda de uma amiga, ingressei com uma ação na Justiça do Trabalho, para inclusive desfazer o meu pedido de demissão, pois, na verdade, eu tinha sido coagido a sair. Um saco ter de encarar Dilma, sua fiel escudeira, nas audiências. Sua cara de entojo não combinava com a sua baixíssima renda e com a sua servidão moderna. Consegui, de fato, reverter a demissão – o que lavou a minha alma, me deu um certo suspiro. De lá para cá, foi difícil me firmar num canto, até conhecer Inara. Foi amor à primeira vista; breguíssimo, por sinal. Apaixonamo-nos numa viagem organizada por um amigo, para Flexeiras. O ano de 2014 foi especial, por causa de Inara. Ela me fez sair da letargia, me animou a continuar a faculdade de Jornalismo, e fui pelejando porque ela estava ao meu lado. Em 2016, casamo-nos à moda antiga. Nos primeiros dois anos, montamos uma empresa de assessoria; ela já era jornalista e me instigava a seguir o ramo. Viajávamos bastante, cobrindo eventos cafonas e bizarros – ou será que o meu olhar fatalista que vê assim? Inara estava vibrante, esperançosa, e por isso eu não quis desfazer os seus sonhos. Formei-me em 2018, e, apanhado no loop, voltei à depressão. Ela não soube como lidar. Brigávamos porque ela não se conformava em estar trabalhando, dando conta de tudo, e eu na cama, dormindo até tarde. Foram dias e meses para que percebesse a gravidade do problema. Sim, tenho culpa, não a preveni como deveria; fui relapso e desdenhoso, achando que teria superado definitivamente o mal. Retornei ao tratamento com um novo psiquiatra, humano, que se tornou meu amigo. Testamos os mais distintos remédios, até que eu tivesse uma qualidade de vida razoável. Passei apuros e fui suportado por Inara. Ela segurou a onda da empresa por uns seis meses, enquanto estava destacado do mundo. Pensei em encerrar a minha vida aí, mas ela não deixava um dia sequer que eu pensasse besteira. 2019 foi um ano ok. O instinto de mãe – e de pai – fez que nos questionássemos se esse era o momento para ter um filho. Tínhamos medo. Ela me convenceu, depois de muitas conversas com amigas e psicóloga, de que devíamos dar esse grande passo, que seria bom para a minha saúde. Logo na primeira tentativa sem contraceptivo Inara engravidou. Ficamos flutuando. Era início de 2020 – janeiro, mais precisamente – e não tínhamos ideia da longa pandemia. A gestação de Júlio foi marcada pelo nosso isolamento. Houve muito medo, mas, de várias formas inventadas, tentamos nos fortalecer no nosso núcleo. Felizmente, consegui reagir, trabalhar e engatar novos projetos. Júlio nasceu em setembro de 2020, cercado de todos os cuidados. Foi difícil incorporar a ideia, um choque de realidade, de que agora éramos três – e a cantilena penosa vinha, de que devia “ser gente”. Inara incrivelmente foi a nossa sustentação – e eu fiz o possível para acompanhá-los. Hoje, quando chego do trabalho, infestado de problemas, meu filho vem me receber com um sorriso que apaga todas as dúvidas. Continuo sendo clichê, lugar-comum, o mais do mesmo, mas, de certo modo, imune à tragédia. Inara vem percebendo meu desligamento da vida, minha falta de mobilidade e de vontade. Dessa vez, ela me deu um abraço e garantiu que tudo ficará bem. Até quando? Até quando?





segunda-feira, 17 de abril de 2023

certa vez, / porque mamãe ensinou, / de toda economia... poema de Laís Velloso


 


certa vez, 
porque mamãe ensinou,
de toda economia 
de todo espaço ocupado 
evitar todo excesso 
evitar todo desperdício 

[cozinhar
apenas o que se dá conta de comer]

sobre planejamento 
só as mães podem dizer.

toda mão circular 

[comer somente quando se tem fome]

mexer a massa
fazer bolinhas 
mexer a massa 
fazer bolinhas 

[coreografia e risadinhas]
cinco bolinhas 

um retangulozinho 

[ouço quem me diz como fazer,
fazendo]

separação e partilha 

[na boca é tudo junto. 
passar o café]

nota de passagem: 
nunca comer o bolo quente. 
dá dor de barriga.

também ouvi 
num domingo
uma pequena alegria.




















segunda-feira, 10 de abril de 2023

O sinistro, o destro e o louco



A Dodge City de hoje não tem as mesmas emoções de alguns anos atrás. Depois que o Xerife Earp e seus irmãos chegaram não há diversão de verdade para um velho cowboy. Lembro-me como se fosse hoje daquele verão de 1873. Eu era apenas um garoto, antes abandonado, que trabalhava num estábulo da cidade. Já havia visto todo o tipo de gente passar por ali: cowboys, jogadores, gente cheia de dinheiro e alguns pobres miseráveis também. Desde que paguem, dizia o patrão, “atendemos índios e mexicanos também”.

A chegada da diligência da Wells & Fargo era esperada por todos. Quase sempre aparecia uma nova garota para trabalhar na Dodge House. Quase todas de muito longe do Kansas.
Mas ele não chegou na diligência. Foi num final de tarde, logo depois de uma forte ventania, surgiu em meio a poeira, como um espírito que se materializa. Era quase igual a tantos outros que passaram por aqui. O que o diferenciava não era o seu traje, pois vestia uma camisa de flanela, lenço no pescoço, chapéus de abas largas, calças jeans e luvas de couro como qualquer cowboy. No alforje uma jaqueta de couro.

Ele não portava um dos famosos peacemakers da Colt. Sua arma era mais elaborada, com belas marcas gravadas no cabo. Além da estrela em metal, duas letras: L.H. Não me veio à mente nenhum nome de pistoleiro das histórias do velho Smith, um ferreiro que parecia ter nascido há mais de duzentos anos de tanta história que tinha para contar. Se estivesse vivo, com certeza eu perguntaria a ele.

Não havia como não olhar para as armas nos coldres do forasteiro. O homem estava coberto pelo pó da estrada e fedia a carniça, mas as pistolas brilhavam, como se tivessem sido limpas há apenas alguns minutos. Pelo peso no alforje, ele carregava muitas balas. Não bastassem os dois revólveres, ele carregava também uma carabina Winchester, também muito cuidada.
Me aproximei para perguntar das armas, não consegui nem enxergar os olhos do sujeito, escondidos pela aba do chapéu e cabeça baixa. Ele pegou a carabina, colocou em minhas mãos e sugeriu que eu fizesse mira.

– Gostou, garoto? Faça-me um favor, guarde-a para mim!
Em seguida, jogou-me algumas moedas nas mãos e entregou-me o cavalo. Eu nunca havia segurado uma arma daquelas nas mãos.

Duas horas depois, com roupa trocada ele saiu do Great Western Hotel. Passos firmes, cabeça ainda baixa, suas botas agora limpas, forçavam as tábuas do assoalho da varanda do armazém geral. A lua cheia parecia iluminar o sujeito, mas a sombra da aba do chapéu ainda tornava o rosto misterioso.

Não havia quase ninguém na rua. Os homens da cidade estavam quase todos no Long Branch Sallon. Eu o segui até lá. Ficaria observando pela janela.

Quando ele empurrou a porta do bar, fora de hora, todos os olhares se dirigiram a ele e para as duas pistolas presas ao cinto. Quase todos se certificaram que as próprias armas estavam ao alcance.
Uma das garotas usava o piano. Poucos percebiam a canção reproduzida. O burburinho e as risadas continuaram após uma pausa de dois segundos.

O forasteiro se aproximou da barra e pediu um uísque. O barman esforçou-se para olhar nos olhos dele, sem sucesso, pois apesar das velas nos candelabros a sombra contribuía para o clima de mistérios em relação ao homem debaixo do chapéu.
Ele pegou o copo e sentou-se numa mesa de canto. No trajeto passou por Jeannie, que lhe esboçou um sorriso, não retribuído.

Numa das mesas, o Xerife O’Brian o observava, enquanto ordenava algo para um de seus ajudantes. O’Brian caminhou até o homem, puxou a cadeira e sentou-se.

– Boa noite forasteiro! Sou o Xerife O’Brian. Belas pistolas, não são?

– Boa noite! Não são apenas belas, também são certeiras.

– Foi o que imaginei, senhor...

– Não importa o nome.

– Pois bem, senhor Não Importa o Nome. Preciso ficar com suas certeiras pistolas.

– Melhor não arriscar tirá-las de mim, afinal todos portam pistolas neste saloom.

– Conheço cada um dos homens aqui, menos o senhor. Então, melhor não arriscar. Já faz algum tempo que não temos pistoleiros na cidade.

O barman abaixou-se, pegou um rifle debaixo do balcão e apontou em direção ao sujeito. Sem opção, ele entregou as armas ao Xerife.

– Posso beber sossegado agora?

– L.H., são as iniciais do seu nome ou do homem de quem roubou as pistolas?
Ele não respondeu, apenas continuou de cabeça baixa.

– Melhor olhar para mim quando falo, amigo! – disse-lhe O’Brian chutando-lhe a canela.

O homem ficou em pé, encarando O’Brien e antes que ele pudesse sacar a arma, o forasteiro lhe tomou o Colt 45 e apontou para a testa do Xerife. O salão silenciou-se por três longos segundos. O homem baixou o revólver e colocou de volta no coldre do Xerife. Depois, caminhava em direção a saída, quando um dos ajudantes do Xerife, Jhonny Caolho, lhe bateu na cabeça com a coronha da espingarda.

O’Brian não gostou nada de ser humilhado em frente de todos. Arrastou o sujeito para a cadeia.
Já se passavam dois dias. Segundo o Xerife, o homem continuava em silêncio, sem pronunciar o nome. Tiraram-lhe a comida, mesmo assim ele se mantinha calado.

Eu sabia que no começo da noite, na hora do jantar, todos saiam da cadeia. Fui até os fundos, me equilibrei sobre um barril que arrastei até lá e chamei o sujeito pela pequena abertura na parede.

– Ei, forasteiro! Sou o garoto do estábulo. Trouxe um pouco de comida. Vou jogar pelo buraco.

– Obrigado! Preciso de ajuda.

– Não sei se posso. Não quero ser seu companheiro de cela!

– Amanhã deve chegar à cidade um outro sujeito. Ele tem pistolas iguais as minhas. No cabo, as inscrições são R.H. Apenas diga a ele que estou preso aqui e diga que L.H. pediu que ele dê início ao plano. Se fizer isso, daqui há dois dias você será o dono daquela Winchester.

Logo cedo ele apareceu. Levei um susto: era o mesmo sujeito preso na cadeia da cidade. Como havia dito, os revólveres tinham as iniciais R.H.

– Como foi que saiu da cadeia? – perguntei ao sujeito, que me entregava as rédeas do cavalo.

– Eu lhe conheço?

– Ontem você, me pediu que quando um sujeito com as iniciais R.H. no cabo do revólver chegasse eu deveria lhe contar que você estava preso. Pelo jeito conseguiu resolver o problema sozinho. Matou o Xerife?

– Então L.H. já está preso. Quando foi?

– Há dois dias. Espere, se você não é o sujeito que está preso, só pode ser um irmão gêmeo!

– Se você está me dizendo isso é porque meu irmão confia em você. Me diga, em que horário há menos gente vigiando a cadeia?

– Na hora do jantar. O Xerife fica sozinho. Ele espera que um de seus ajudantes volte e só depois ele sai para o jantar.

– O que meu irmão lhe prometeu para que você o ajude?

– A Winchester que guardo para ele.

– Pois bem, se fizer o que eu lhe pedir, lhe dou uma pistola igual a essa.

– Claro, mas nunca vi uma assim antes. Quem a fabrica?

– Eu as modifico. Que iniciais quer nela?

– J.H., de Jason Howard. Mas espere, não sei se posso fazer o que me pede!

– A única coisa que precisa fazer é, ao meu sinal, no horário do jantar, correr até um dos ajudantes do Xerife dizer a ele que o forasteiro escapou da cadeia e está bebendo no saloon.

Concordei com a proposta. Não desconfiariam da minha ajuda, pois, hipoteticamente, eu estaria ajudando o Xerife a prender um fugitivo.

No horário combinado, aguardei o sinal de R.H. e corri até a casa de Jhonny Caolho. O homem correu em direção a cadeia, quando encontrou R.H. montado em seu cavalo e atirando para o alto, Jhonny Caolho, rastejou até a cadeia, temendo ser atingido.

Quando avisou, o Xerife apanhou o rifle e foi ver o que acontecia. Não acreditou no que via. R.H. atirou contra o cavalo do Xerife, sem atingi-lo. O animal se assustou e fugiu em velocidade. Provavelmente R.H. havia deixado as amarras frouxas.

O Xerife ordenou que os ajudantes perseguissem o fugitivo. Voltou para a cadeia incrédulo. Acho que ficou ainda mais curioso quando percebeu que alguém dormia na cela, chapéu sobre a cabeça, cobrindo rosto. Chamou pelo forasteiro, que não respondeu. De arma em punho, abriu a porta da cela e cutucou o sujeito. L.H. virou-se rapidamente, apontando uma pistola para o nariz do Xerife.
Segurei-me para não rir.

Só então, comecei a e entender o que acontecia.

– Muito bem Xerife O’Brian! Ou prefere que eu o chame de Louco O’Brien de Kansas City?

– Isto já foi há muito tempo. Você já havia nascido?

– Já era crescido o suficiente para assistir o enforcamento de meu pai. Você não tinha motivos para matá-lo. Você e seu bando estavam todos bêbados. O único erro de meu pai foi sair à rua para buscar ajuda para a minha mãe, que também morreu naquela noite, por falta de assistência.

– Não me lembro disso!

– E da morte do Reverendo Windsor? Lembra?

– Ele se colocou entre mim e dos dois garotinhos. Eu não queria atingi-lo. Espere, então o sujeito lá fora era o seu irmão gêmeo?

– Então não estava tão bêbado assim. Eu, meu irmão e nosso pai não significávamos nada, não é mesmo?

– Seu pai foi incompetente, um ferreiro que mal conseguia ferrar um cavalo! Perdi meu melhor animal após uma infecção na pata.

– Pois bem, os filhos do ferreiro cresceram. Vamos até lá fora! Vê esta arma, igual as que me tomou naquela noite? Foram feitas com todo o cuidado pelas mãos dos dois filhos do ferreiro, especialmente para lhe dar uma morte digna, um fim que não foi concedido ao nosso pai.

Na rua, R.R. aguardava, após despistar os homens do Xerife.

– Morte digna? Isto é covardia: dois contra um homem desarmado!

– Dizem que o senhor é rápido no gatilho, Louco O’Brian. Escolha: R.H. ou L.H.

– Que diabos! Qual a diferença?

– Left-hand ou Right-Rand. Prefere morrer pelas minhas mãos ou prefere a mão direita de meu irmão.

– Um duelo a luz da Lua Cheia. No mínimo diferentes, não é? – questionou R.H.

L.H. jogou a pistola de O’Brian no meio da rua. O Xerife, sem saída e ainda confiando em suas habilidades com a pistola apanhou a arma e se posicionou para o duelo.

Sorrateiramente, Johnny Caolho chegou por detrás do armazém geral e apontou o rifle para a cabeça de R.H. Ele ia apertar o gatilho quando se ouviu um tiro vindo debaixo do assoalho do saloon. Foi meu primeiro tiro em direção a um homem, um tiro de sorte. Acertei a perna de Jhonny. Então R.H. conclui o serviço acertando uma bala no outro olho do caolho.

L.H. caminhou lentamente e se colocou no lado oposto da rua. Ajeitou o chapéu e pela primeira vez deixou os olhos azuis à mostra. R.H. tirou uma gaita de boca do bolso e começou a soprar uma suave balada. Na porta do salloon Jeannie suspirava e já sonhava com os braços do forasteiro.

O’Brian esperou o momento em que uma nuvem encobriu a Lua para atirar. De nada adiantou, o pistoleiro canhoto atirou pela primeira vez arrancando a arma das mãos de O’Brian. No segundo tiro acertou o joelho direito e na segunda o esquerdo. Quando O’Brian caia, a terceira bala atingiu diretamente o coração do Xerife.

Abraçados, os dois irmãos caminharam em direção ao estábulo. L.R. encilhou seu cavalo, enquanto R.R. colocava Jeannie em sua garupa.

Eu já havia escondido a Winchester quando cheguei ao estábulo. L.R. tirou a arma do coldre. Eu recuei. Ele segurou a arma com a qual havia atirado em O’Brian pelo cano e entregou-a para mim. No cabo, as iniciais J.H.

Nunca mais se ouviu falar dos dois irmãos e de Jeannie.

Depois daquele dia, comecei meu negócio de compra e venda de armas. Comecei com a Winchester e prosperei, também comecei a criar algumas cabeças de gado. Tenho até hoje a pistola fabricada pelos gêmeos sem nome. Com a chegada dos Earp, os negócios de armas faliram e mantenho apenas uma loja de ferragens e um pouco de gado.


Não gosto dos Earp. Me faz bem quando dizem que Wyatt Earp, nos seus pesadelos, vê os gêmeos voltando à Dodge em noites de Lua Cheia, cobrando-o por seus pecados.





sábado, 8 de abril de 2023

Gótico Enluarado

 


Desde que descobrira o estilo gótico, não o arquitetónico, claro, mas sim o “estilo de vida”, Beatriz mudara completamente. De “menina doce”, de roupas discretas e sem maquilhagem que se visse, passara a vestir-se de negro da cabeça aos pés, olhos cheios de Kohl e sombras escuras, unhas negras e toneladas de correntes, anéis, cruzes e outra quinquilharia a imitar prata, uma vez que esta estava muito para além das suas posses.

E não pensem que era fácil, na pequena vila em que morava estas coisas não eram exatamente populares e, com a recusa formal dos pais em autorizarem compras via Internet, era forçada a improvisar quase tudo.

Mas lá diz o ditado, quem quer sempre alcança e Beatriz, ou antes, Bea, nome que decidira adotar mas que, infelizmente todos os seus conhecidos e família se recusavam a usar, Bea, repito, lá se ia governando o melhor que podia.

Do ponto de vista da mãe, a única vantagem desta mudança radical era a filha ter finalmente aprendido as bases da costura. É que sem dinheiro para roupa nova, muito menos do género que queria, andara a rebuscar em malas e baús tendo tido a sorte de encontrar algumas roupas antigas de luto que fora autorizada a adaptar à sua vontade, desde que isso não custasse mais do que a sua parca mesada permitia.

Quanto à maquilhagem, bom, uma prima mais velha dera-lhe uns conjuntos de sombras antigas, dos que tinham várias cores nada populares juntamente com uma ou duas mais usáveis, digamos. Alguns eram até tão velhos que fora forçada a deitá-los fora por lhe terem causado uma forte inflamação na pele. Mas quem quer ser bela tem de sofrer por isso e Bea estava disposta a tudo para ser a única gótica da zona, mesmo que isso implicasse passar horas a criar acessórios que as felizardas que viviam em cidades grandes ou tinham pais mais compreensivos podiam muito simplesmente comprar.

Mas não se limitara ao visual. Tinha ideias muito vagas sobre o que significava ser gótico, mas criara a convicção de que isso envolvia “artes negras”, o que quer que fossem, uma visão muito pessimista da vida e de tudo e uma certa paixão pela morte e por tudo o que com ela estivesse relacionado.

Mas como os pais tinham sido formais na proibição de velas negras e outras coisitas desse estilo, como traçar um grande pentagrama na parede do quarto, Bea ficara reduzida a andar pelos cantos sempre com um ar macambúzio, a suspirar constantemente e a lançar para o ar frases lapidares como “a vida são dois dias” e “a única certeza é a morte” ou, ainda, a sua grande favorita, “nascer é uma doença fatal”.

O problema é que ninguém lhe ligava nenhuma e tudo o que dizia e fazia caía em saco roto, desde que não afetasse as finanças da família ou fosse deliberadamente mau. Davam-lhe, até, uma certa latitude no seu comportamento desde que em certas alturas se portasse como toda a gente, como uma ida semanal à missa de domingo vestida “como deve ser”.

Um belo dia, tendo visto na televisão um documentário sobre o Dia dos Mortos no México e os verdadeiros festins que se faziam nos cemitérios nessa noite, Bea teve uma ideia brilhante: passar parte da noite de Halloween na parte antiga do cemitério da vila!

Ao contrário do que sabia acontecer noutros locais, em que os cemitérios estavam rodeados de muros altos e com um grande portão fechado ao fim do dia, aquele tinha apenas um murete e uma entrada sempre aberta, o que, diga-se de passagem, fazia bem mais sentido para Bea.

Melhor ainda, ficava já nos limites da povoação, por isso a sua presença ali já de noite não seria notada. Mesmo assim, iria instalar-se na zona de campas tão antigas que já ninguém sabia quem ali estava enterrado. É que um restinho de superstição levava-a a querer evitar os túmulos dos seus familiares e gente sua conhecida, não fosse o diabo tecê-las...

E Bea passou umas semanas a preparar o seu esquema. Sabia que havia uma festa na vila para gente da sua idade para celebrar o Dia das Bruxas, com máscaras e tudo isso. Não fora convidada, claro, uma vez que cortara com todos os amigos e conhecidos quando mudara de vida. Mas os pais não sabiam disso e seria, pois, um bom pretexto para se ausentar uma boa parte da noite.

Arranjou também umas tantas velas, bom, brancas, inevitavelmente, mas de noite todos os gatos são pardos, Até porque eram mais para decoração do que outra coisa uma vez que tinha uma boa lanterna e ia ser uma noite de Lua Cheia. E para o festim, umas bolachas e chocolates fariam a sua vez.

Na véspera, Bea mal conseguiu pregar olho, estava entusiasmadíssima e tinha a certeza de que aquela noite a iria mudar para sempre.

Ao fim da tarde, vestiu-se com a sua melhor roupa negra, adornou-se com todas as suas “joias” e pintou-se o melhor que pôde. Era uma pena o cabelo ser tão claro, mas um gorro resolveu a questão.

E ao escurecer saiu de casa, levando na sacola que lhe servia de carteira todo o seu equipamento. Se os pais notaram que não se mascarara nada disseram sobre isso, pelo que lhes dizia respeito, mascarada andava sempre ela.

E lá foi Bea, toda satisfeita, a caminho da “sua” noite especial. Chegou ao cemitério sem qualquer percalço e não teve a menor dificuldade em encontrar uma boa zona para se instalar. Apesar de aquela secção estar abandonada há muito tempo, continuava a receber alguns cuidados, as ervas daninhas eram retiradas regularmente, enfim, fazia-se o possível para que não destoasse demasiado da parte nova e cuidada.

De início tudo correu às mil maravilhas, era uma experiência nova e há muito desejada. Mas Bea teve alguma dificuldade em manter as velas acesas, o murete baixo que lhe permitira a entrada não cortava o vento, bastante forte nessa noite. E, apesar de saber que a Lua estava cheia, de nada lhe adiantava uma vez que o céu estava totalmente coberto de nuvens.

Felizmente tinha a lanterna, apesar de o seu uso diminuir um pouco o ambiente romântico que tinha imaginado. E esquecera-se de trazer uma manta ou algo em que se pudesse sentar e a terra estava bastante fria.

Mesmo assim, não iria desistir à primeira dificuldade. Instalou-se o melhor que pôde sobre uma pedra tumular caída, colocou a lanterna de modo a dar-lhe alguma luz indireta e começou a petiscar enquanto tentava concentrar a mente na curta duração da vida humana, no “pó és e ao pó voltarás” e outras ideias igualmente felizes.

Por volta das 9 da noite estava pronta para dar a “noitada” por concluída, mas isso seria dar parte de fraca. Até porque ninguém contava com o seu regresso antes da meia-noite ou algo assim. Decidiu, pois, estirar-se sobre a dita pedra tumular e tentar imaginar que jazia ali morta, tarefa menos fácil do que imaginara.

Apesar do frio e do incómodo da cama improvisada estava quase a adormecer e nem notou que a lanterna se apagara por ter as pilhas esgotadas. Teria dormido uma boa soneca, se não fosse ter ouvido uma voz rouca e forte a articular uns tantos palavrões.

Sobressaltada, sentou-se à escuta. O som continuava e, pior ainda, aproximava-se de onde estava. E apesar de conhecer praticamente toda a gente da vila, não conseguia identificar aquela voz.

E veio-lhe à mente tudo o que tinha ouvido sobre esta data, coisas muito no género de “a noite em que os fantasmas andam à solta”, fora os muitos contos de terror que fora lendo nos últimos meses graças à biblioteca de uns seus tios que nem faziam ideia do que tinham herdado em termos literários – felizmente, ou ter-lhe-iam proibido o acesso...

Esquecido o gótico, a festa mexicana e tudo o mais, Bea só teve uma ideia, fugir dali o mais rapidamente possível e refugiar-se no abrigo do seu lar. E se os pais estranhassem ter chegado tão cedo da festa onde supostamente fora, azar, tudo era preferível a ver-se frente a frente sabe-se lá com quê.

E assim fez, batendo todos os seus recordes de velocidade apesar da escuridão daquela noite a dar para o tempestuoso.

O Sr. Jorge, coveiro a tempo parcial, nunca veio a saber como o seu hábito de curtir a bebedeira ocasional no cemitério, para não incomodar a mulher, mudou uma vida. É que aquela noite mudara realmente Bea. Ou antes, fizera-a desaparecer, dando lugar, novamente, à Beatriz de outrora, nada gótica, que evita até usar seja o que for negro.

Luísa Lopes

Imagem criada com QuickWrite





segunda-feira, 3 de abril de 2023

ENQUANTO A CHUVA NÃO PASSA

 


Os dias acalmaram o sonho,

como se para isso não bastasse

a ausência de teus olhos.

Mas na noite um verso simples

brotava do silêncio para dar

uma esperança menos triste

ao cotidiano.

Ao longe eu visualizava uma imagem

pensativa que acreditava estar

preenchendo o hálito da noite

e a chuva no telhado com teu

sorriso mágico. Mas a distância

não me permitia tais conclusões.

Seria necessária a palavra e a

tua presença para restabelecer a paz

e aquela sensação confiante que

tínhamos quando crianças.

Coordenar as coisas e arrumar

a casa num ambiente tranquilo

para receber a realidade,

dissipar os sonhos

e adormecer em teu gesto.