Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

Revista on-line

Participe da próxima edição da Revista SAMIZDAT

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O filho do meu marido



            O filho do meu marido tem a mesma idade que eu. E não pude reprimir o desejo que senti quando entrou em minha casa. É lindo como o pai, é lindo como o seu pai foi quando tinha a idade dele. Sim, meu marido é lindo, eu o amo e ele me completa, mas agora nos meus sonhos haverá um coadjuvante que será também o dublê do protagonista. Poderei sonhar ter nos braços o corpo jovem do filho enquanto acredito estar fantasiando ser o pai dele, rejuvenescido pela água milagrosa da fonte que Ponce de León buscava na Flórida. Ou mentir para mim mesmo afirmando que o desejo que senti pelo jovem é uma extensão do desejo que sinto pelo pai dele.
            Esperei meses por esse dia. Pai e filho estavam meses sem se ver. Ele nem sequer compareceu ao nosso casamento. (Eu quis me casar no dia do aniversário do meu marido.) Respondeu numa mensagem seca e lacônica que não viria por estar em período de provas. Estuda Medicina em Juiz de Fora, não quis seguir a carreira do pai, juiz federal. No que mais eles diferem? – eu me atormentava pensando.
            Torturava-me pensando o que passa na cabeça de um jovem que recebe a notícia de que seu pai planeja casar-se com um homem. E um homem de sua idade. Certamente devia me julgar um aventureiro, um gigolô, um pobre aproveitador que espera tornar-se viúvo de um juiz endinheirado. Por isso mesmo insisti que meu marido deixasse seu apartamento na Barra da Tijuca e viesse morar aqui comigo, nesta pequena casa que herdei de meus avós maternos na Ilha de Paquetá. Disse-lhe que não posso afastar-me de Paquetá, porque são essas as paisagens que gosto de reproduzir em minhas telas. E pedi-lhe que entregasse o apartamento ao filho, como adiantamento de herança. – Pus as cartas na mesa, fui sincero com meu homem: quero seu filho beneficiado hoje mesmo com a propriedade desse apartamento, para que não pense que disputá-lo-emos  um dia quando você falecer. – Como é doloroso falar de morte e de herança com quem amamos!
            Ele acreditará que amo o pai dele? Quem acredita? Eu mesmo acreditaria se me dissessem que um pobre pintor que a custo paga suas contas e sobrevive vendendo telas com paisagens de Paquetá casou-se com um respeitado juiz federal? O retrato de meu marido togado, pintado por minhas apaixonadas mãos, que esperava na parede da sala o momento em que meu enteado levá-lo-ia para casa, bastará para convencê-lo de meus sentimentos? Dificilmente!
            Fiz para ele minha macarronada. Massa caseira, como em poucos e caros restaurantes se encontram. Regada por um molho de tomates orgânicos, cultivados aqui nos fundos da minha casa, adubados com os restos da cozinha – antes era com o esterco dos cavalos, mas os protetores dos animais proibiram as charretes que tanto alegravam os turistas. Ele mastigou em silêncio, e eu observava os traços do seu rosto em busca de uma demonstração de prazer, meus olhos quase implorando um elogio – admita que seu pai casou-se com um excelente cozinheiro!
Durante toda a tarde, quando, silenciosos, jogamos xadrez e buraco, os retratos de meu marido e de meu irmão nos olharam da parede. Agora resta-me só o retrato do meu irmão, que jamais virá aqui para conhecer meu marido. Minha mãe quis passar com ele seus últimos dias. Na Itália. Lá, pintei o retrato dela, que está com ele. O retrato dele eu trouxe para cá. Garboso em sua batina, diante da Igreja de Santa Croce, dentro da qual jaz o meu primeiro amor: Michelangelo Buonarrotti. Essa a explicação que lhe dei para a única pergunta que me fez.
Quando anoitecia, eu quis levar os dois até a estação, despedir-me dele à entrada da barca que o levou para o continente, mas meu marido veio segredar-me que não. Que o filho queria falar com ele a sós. Quando voltou, servi-lhe um chá verde e meu marido sentou-se no sofá – que eu comprei antes de conhecê-lo, com o dinheiro que me pagaram por uma tela que retratava a casa de José Bonifácio, ministro do Império, junto à praia que leva seu nome e cujas águas não são tão límpidas quanto a memória desse Pai da Pátria.
– Meu amor, Gabriel contou-me que eu já sou avô. Ela se chama Sofia. É filha de uma estudante de Arquitetura lá de Juiz de Fora.
– Vão casar? Poderiam morar no apartamento da Barra, que eu insisti para que você colocasse nas mãos dele.
 – Parece que não. Parece que Sofia é fruto de uma aventura de carnaval.
 – Isaías, se ele não disse isso em minha presença, quer dizer que ele jamais me deixará segurar nos braços a sua neta.
Meu marido engoliu junto com o chá adoçado com mel a amarga resposta que não quis me dar.
12-12-2017





quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Por Cada Dia de Amor


Foi furioso e revoltado que, naquela tarde de inverno, fria e chuvosa, dei entrada no hospital para outra e se calhar novamente inútil, operação aos olhos.
Estava farto de hospitais e médicos, farto das vozes de pena dos familiares e amigos… farto da vida… na escuridão.
Há vinte e seis meses que, gradualmente, a luz foi-se desvanecendo, até mergulhar numa eterna noite sem estrelas nem luar.
Para mim, os setenta e seis anos não desculpavam, nem justificavam coisa nenhuma. Sempre fui "são como um pero" e fui assistindo, enquanto os meus amigos, um a um, se iam abaixo pelas pernas, ou pela cabeça, às vezes por ambos, até se irem de todo. Sempre me mantive mais ágil e lúcido, com caminhadas diárias de vários quilómetros. Porque me haveriam de falhar os olhos, impedindo-me de ler os livros que reuni uma vida inteira?
Sentei-me na cama, respondi com um resmungo à despedida da minha nora e submeti-me, em silêncio, à humilhação de ser despido pelas enfermeiras.
— Boa tarde. Meu nome é André. — A voz grave e jovem chegou-me aos ouvidos, quando achava que me encontrava já sozinho. — Sou o seu companheiro de quarto. Voltei o rosto na direção do som, com os olhos a vaguear, perdidos na noite eterna.
— Oh, desculpe… não sabia. — A voz do meu companheiro tremeu e eu percebi que devia estar com a mão estendida, a aguardar que lha apertasse. — Não se desculpe. — Grasnei sem emoção, enquanto tateava pela mão que veio ao meu encontro. — Não é culpado pelo meu estado. Chamo-me Herculano.
Criamos ali uma bela amizade e, fruto da boa disposição do jovem, o meu rancor e desconforto foram-se esbatendo rapidamente numa sã convivência. Debatíamos as notícias da televisão, que eu só podia ouvir, mas que ele dizia não ter perdido nada, porque as imagens eram repetitivas e maçadoras. Discutimos animadamente qualquer tema e eu estava felicíssimo por finalmente encontrar alguém com um nível intelectual e cultural capaz. Penso agora que nunca lhe perguntei a idade, nem dei grande atenção à razão pela sua estadia naquele local.
Até o meu filho e a minha nora, quando me visitaram, ficaram surpreendidos com a boa disposição que aparentava, totalmente diferente de todas as outras estadias naqueles "hotéis" cheios de pessoas doentes.
Inevitavelmente, com os dias a passar e eu a recuperar da primeira de três cirurgias, a conversa acabou por cair sobre o amor, o romance e os livros. Lamentei-me não poder ler e tinha uma enorme biblioteca com os já lidos e uma pilha, dos que ainda não conseguira ler.
Um dia perguntou-me se eu queria que me lesse um romance pois, por acaso, estava a ler um e estava a gostar muito. Assenti, entre o contrafeito e o expectante, nada habituado a que me contassem histórias como se faz às crianças.
Foi para mim uma enorme surpresa, mas, após o primeiro capítulo, estava já aprisionado da narrativa:

"Gabriel, um dos protagonistas, era o filho de um importante comerciante do Porto setecentista e apaixonara-se por uma amiga de sua irmã, de condição francamente inferior, Arabela."

Até aqui, parece um simples romance de cordel, mas as discussões entre pai e filho, eram tão verosímeis, que dava por mim a comentá-las com o meu narrador, como se de um caso real se tratasse.

"Inevitavelmente, Arabela foi proibida de frequentar a casa e o jovem Gabriel incompatibilizou-se de vez com o pai e abandonou o lar familiar, fugindo com a sua amada. Nenhum dos dois estava preparado para viver sem o apoio das respetivas famílias e tiveram de alugar um quarto, numa das zonas mais pobres da cidade, para procurarem trabalho."

Protestei fracamente, quando o meu benemérito pediu para interromper a história, para poder descansar e, tal e qual como uma criança, passei parte da noite a imaginar qual seria o destino dos dois amantes.
No dia seguinte, sentia-me nervoso e irritado com toda a demora, enquanto as enfermeiras nos faziam a higiene diária e recebíamos a visita dos médicos. Foi apenas depois de almoço que foi possível retomar a narrativa com calma.
De novo me deixei envolver na voz sonora e cava de André, enquanto ele relatava:

"Gabriel teve muitas dificuldades para arranjar uma forma de sustento, até conseguir ganhar umas míseras moedas para varrer a oficina de um escultor, que era o trabalho normalmente feito por uma criança de oito anos.
Um dia, o mestre surpreendeu o jovem a esculpir um pequeno anjo em madeira, por cópia de outro que estava a ser preparado para decorar uma igreja. O velho artesão ficou espantadíssimo com a versão melhorada do original. Logo ali o convidou a fazer uma das colunas que iria precisar. Era o estilo barroco, a moda da época e cada coluna de madeira era profundamente trabalhada com anjos e motivos florais, não deixando espaços vazios. Não foi preciso mais e, no espaço de poucos meses, Gabriel deixara de ter de varrer a oficina, para trabalhar a tempo inteiro na escultura em madeira. Cada vez chegavam mais encomendas de clientes que gostaram de outros trabalhos. A vida estava a começar a correr bem para o jovem casal, mesmo Arabela, conseguira um emprego de dama de companhia de uns ricos burgueses onde era muito bem tratada."

Os dias iam-se passando e eu cada vez mais dependente daquela história que se desenrolava aos meus olhos sem luz, intercalada com as saídas, minhas, ou de André, para tratamentos e análises.

"Gabriel era agora o braço direito do mestre e saía com vários aprendizes para fazer as montagens das peças esculpidas com maestria, nas igrejas e capelas por toda a cidade. No entanto, a velha raposa não deixava que se soubesse que era o seu aprendiz, o autor das obras agora tão cobiçadas. Até que um dia, um dos andaimes onde se encontrava Gabriel e um dos ajudantes partiu-se e caíram ambos de grande altura. O ajudante teve morte imediata e o jovem escultor ficou gravemente ferido."

Novas sequências de tratamentos levaram André a estar afastado de mim e a interromper a o desenrolar da narrativa que eu tanto ansiava. O meu companheiro de quarto, sabia-o agora, sofria de um problema do trato digestivo e estava a ser preparado para uma cirurgia complexa.
Por fim chegou o meu grande dia e fui submetido à última operação, que deveria devolver-me a vista. Regressei do recobro, cansado e aborrecido, mas a voz grave e feliz de André trouxe-me de volta à vida. Ofereceu-se de imediato para retomar a narrativa, avisando que, no fim do dia de amanhã seria a vez dele, enfrentar o bisturi.
Retomamos a história onde esta parara.

"Gabriel ficara ferido com gravidade na queda do andaime. Para o seu mestre, foi um grande aborrecimento, pois que teria de ser ele a fazer o trabalho em vez do discípulo e mandou-o para casa, sem mais compensações do que o pagamento dos dois dias que faltavam para acabar a semana. A pobreza em que viviam, atacou de novo o jovem casal, reduzido às parcas moedas que Arabela ganhava. A maior parte era gasta a pagar aos físicos, pouco mais que curandeiros, para aliviar as dores ao marido, que se sumia a olhos vistos.
Entretanto, o pai de Gabriel não estava em paz e decidiu procurar o filho. Estava disposto a aceitar as suas escolhas, fossem quais fossem. Percorreu a cidade fazendo perguntas até ser encaminhado, pelas descrições, ao jovem na oficina de escultura. Quando lá chegou, ouviu da voz dos restantes aprendizes, como Gabriel era explorado pelo velho artesão, que escondia o talento do jovem atrás da sua fama. Quando o encontrou pessoalmente, tratou-o com o desprezo que sentia e exigiu que lhe fossem entregues os pertences do filho e lhe indicassem onde residia.
Ao recolherem as poucas ferramentas que havia comprado e a bata manchada de sangue que envergava. Encontraram, coberta com uma manta, uma estátua em tamanho natural, que só tinha terminada a cabeça e os ombros. Representava inequivocamente Arabela, mas a sua perfeição era tal, que, pai e escultor, choraram de emoção ao apreciá-la.
Ambos feridos pelo arrependimento, foram à humilde casa que habitavam os amantes, para depararem com o jovem moribundo, cujas forças se acabavam rapidamente. Pediram-lhe perdão entre lágrimas, cada um pelos seus pecados e prometeram que cuidariam da sua esposa, para que nada lhe faltasse e vivesse como uma senhora daquele dia em diante. Questionado com o destino a dar à bela estátua, respondeu: "Não façam nada. Não a terminem, deixem-na como está. Comecei-a pelo amor que Deus me deu a conhecer e cada entalhe que lá está feito é um dia de felicidade por a ter a meu lado. Cada entalhe que lá falta, é por cada dia de amor, que Deus me deve ao lado dela."
O jovem morreu passados poucos dias, mas numa cama confortável na residência de seu pai, ao lado da mulher que amava e por quem foi capaz de abdicar de tudo. Arabela, viveu uma vida feliz e desafogada acompanhada da cunhada, de quem era tão amiga. Quanto à estátua, vestiram-lhe roupas de santa e está algures num altar duma igreja da diocese do Porto, recebendo a devoção que merece. Inadvertidamente, cada penitente que a ela se ajoelha, recorda cada dia de amor que Deus é devedor a Gabriel."

De volta à realidade, eram já altas horas da noite. Chorei com André a infelicidade do jovem casal, que tanto prometia e tanto merecia e, extasiado com a beleza da história, pedi que me dissesse quem era o autor. Respondeu-me que o livro era velho e o nome estava apagado.
Despedi-me distraidamente do meu companheiro quando partiu para a sua cirurgia mas pensei esperar que regressasse para lhe pedir para tocar no livro.
Acabei por adormecer, só acordando de manhã para a higiene e a visita do médico, que me veio retirar as ligaduras. Um brilho imenso e doloroso atingiu-me apesar de ele dizer que o quarto estava na penumbra. Era um bom sinal, porém: já não viveria na total escuridão.
Foi então que me apercebi que André ainda não regressara e questionei o médico, que foi evasivo. Acabei por me enervar e exigi que me dissesse onde estava e como se encontrava. Acedeu e contou-me que tinha sido submetido a uma extensa cirurgia para extração de um cancro no intestino. A situação estava muito pior do que todos esperavam e tinha-se ficado na mesa de operações.
Não quis ouvir mais. Atirei-me para a cama, com os olhos a rebentar, com as lágrimas e a mágoa de perder um amigo e companheiro, do qual nunca tinha visto o rosto.
Quando me acalmei, percebi que conseguia divisar os contornos dos objetos, na escuridão total do quarto. Acendi a luz, tendo o cuidado de fechar os olhos com força e abri-los muito devagar.
O mundo que perdera há muitos anos estava de volta: o mobiliário, as cores das cortinas, das paredes e das camas estavam lá novamente. Mas não era isso que me preocupava naquele momento; dirigi-me avidamente à mesa de cabeceira do meu infeliz companheiro e abri a gaveta da mesa de cabeceira, como tantas vezes o ouvi fazer nos últimos dias.
Lá dentro, havia apenas uma capa, comportando um grande número de folhas em desalinho, garatujadas numa escrita alongada e quase ilegível, de quem está habituado a escrever muito. Por todas as páginas havia secções riscadas e apontamentos laterais. Consegui decifrar as últimas frases:

"Quanto à estátua, vestiram-lhe roupas de santa e está algures num altar duma igreja da diocese do Porto, recebendo a devoção que merece. Inadvertidamente, cada penitente que a ela se ajoelha, recorda cada dia de amor que Deus é devedor a Gabriel."

Procurei rapidamente a primeira página onde estavam bem legíveis três linhas:

"Por Cada dia de Amor"
de André Matos
Dedicado ao meu amigo Herculano, sem o qual esta história não seria terminada."






sábado, 25 de janeiro de 2020

Abraão e o GPS



Abraão nunca aceitara bem aquele filho nascido fora de tempo. Quando o Senhor lhe anunciou que ia ser pai, Sara já tinha alguma idade. Como podia ainda gerar descendência?
Sara tivera uma série de abortos espontâneos. O ambiente insalubre em que toda a gente vivia no século XXI, não ajudava. A carne estava carregada de hormonas, o peixe, de mercúrio e outros venenos, as verduras, de agrotóxicos e chumbo dos fumos de escape. Aquela estada em terra estrangeira também fora traumática. Fora vítima de violação e sabe-se lá se apanhara alguma doença. Depois de todas as provações, e já sem esperanças, veio aquela voz pausada e grave anunciar-lhe o que parecia impossível:
«Corta o teu prepúcio e daqui a um ano serás pai» — ordenara a voz do Senhor, em tom assertivo, vinda do telemóvel desligado.
Abraão não percebeu porque é que o prepúcio vinha ao caso — embora tivesse lido umas coisas sobre DST na Internet —, mas obedeceu e nasceu Isaac. Inacreditável; o Senhor prometera e cumprira, não havia dúvidas. Quase tão inacreditável foi a criança nascer com aqueles caracóis ruivos que não existiam na família. Por isso, Abraão sempre olhou o filho de través. «Crê e viverás!» — ameaçou Ele, certa vez, em voz austera vinda do robô de cozinha. Isso foi fácil. Abraão tinha vontade de acreditar.
A psicologia já vai tentando explicar — sem grande aceitação —, como é que o imaginado toma conta do racional e docilmente o conduz pelos meandros de efabulações puramente mentais, como se fossem eventos acontecidos. O pensamento desejoso, que entretanto foi dominando Abraão, teria talvez origem na sua convicção de que Isaac não era seu filho, e aliciava-o com a possibilidade de ele ser filho do Senhor. Mais valia que Isaac fosse filho de um ser sobrenatural, do que de algum vizinho dissimulado. Ser trapaceado nesta matéria por alguém próximo ou amigo de casa era intolerável.
Com o tempo, nem tal estratagema mental concedia ainda descanso. Já andava Isaac pelos onze anos quando o Senhor, usando a voz modulada de Celestino, na aplicação de GPS do telemóvel, comunicou a ordem fatídica:
«Vai à Peninha, constrói um altar sobre a Pedra da Visão e imola o teu filho Isaac.»
Abraão não resistiu muito, nem perguntou por quê. Se era o Senhor que mandava… Como sempre, a ordem não o constrangia e até vinha ao encontro de um pensamento acarinhado, mas mantido íntimo, e explicável talvez por essa animosidade escondida para com Isaac. Mas não deixava de ser uma ordem. Mandava-o matar o filho, num ritual de adoração comandado pelo próprio Senhor e não iria contra ela. Nem contra essa, nem contra nenhuma outra.
Dias depois, muito cedo, Abraão obrigou o filho a sair da cama e a acompanhá-lo. Numa mochila, meteu uma faca de cozinha, um isqueiro piezoelétrico e uma caixa de acendalhas ecológicas. Na bagageira do Jeep, já tinha uma saca de lenha do Aki.
Meio ensonado, Isaac demorou a estranhar a excursão matinal, até porque o pai, não sendo madrugador, de vez em quando tinha assim repentes inesperados.
«A 400 metros, entre na rotunda e saia na segunda saída» — dirigia Celestino, do telemóvel que Abraão fixara no interior do para-brisas.
Aonde vamos, pai?
Abraão não respondeu. Não gostava de ter de se explicar.
Pai! — insistiu Isaac.
Tá calado! Vamos ver o teu avô ao lar da Azóia. Mas primeiro passamos na Peninha, para ver a vista.
A esta hora? Com este nevoeiro? Porque é que a mãe não veio?
Seguiam então pela estrada secundária junto a Barcarena, quando Isaac deu um grito:
Cuidado! Pai!
O que foi? — assustou-se Abraão.
A ponte não está lá… Para, pai!
«A 200 metros vire à esquerda e entre na ponte!» — comandava impávido Celestino.
Estás parvo? É do nevoeiro! Não ouviste o que o Senhor disse? — ralhou Abraão, abrandando.
E tu não viste as placas? Para!
Arre, que é chato! Queres saber mais do que o Senhor?
Para, já! — gritou o miúdo, muito mais alto do que alguma vez gritara com o pai.
Abraão parou. Através da neblina matinal, nada de anormal parecia haver com a ponte. Saíram do carro e aproximaram-se do que devia ser a balaustrada. Afinal, era só um resto. Antes, uma grande placa horizontal derrubada por algum carro por sobre uns blocos de cimento esbranquiçado pela geada avisava: “Ponte destruída. Utilize a variante de Leceia”. Aproximaram-se mais. Lá em baixo a água rosnava irada e inquietante.
Tás a ver pai, eu não te disse? Havia placas de perigo desde lá atrás.
Mas o Senhor…
O GPS? É uma máquina, pai! Nem sequer está online. E há quanto tempo não o atualizas? Queres que eu te ensine a tirar isso da net?
Está atualizado — resmungou Abraão, desconfortável. — Tem-me dado bons conselhos. Confio mais no Celestino, como lhe chamas, do que nos mapas.
Ia-nos tramando de vez...
«Vire à esquerda e entre na ponte!» — continuava Celestino.
Ajustado o itinerário e ultrapassado o conflito motivado pelas condições rodoviárias, pai e filho seguiram o seu destino, sob o conselho sábio de Celestino:
«O abate deve ser rápido e a sangria total, conforme o procedimento ritual». Abraão atrapalhou-se, mas Isaac não pareceu aperceber-se. Ia entretido com o seu próprio smartphone, mas atento a se o pai não se enganava no caminho.
Em menos de meia hora, passaram o Guincho e chegaram à Peninha. O tempo continuava encoberto, mas já se avistavam pedaços da costa e do Cabo da Roca. Abraão pegou na mochila e na saca de lenha e chamou Isaac. Sobre uma rocha que culminava um esporão do barrocal, e depois de uns gestos rituais que aprendera, Abraão dispôs os cavacos sobre as acendalhas e começou a acender o lume.
Pai, o que estás a fazer? Uma fogueira aqui, sem a mãe, à hora do pequeno almoço... E o entrecosto? O que se passa contigo? — disparou Isaac, apreensivo.
É um sacrifício, uma ordem do Senhor. Não posso desobedecer.
Pai, foste outra vez aos saca-dízimos?
Não, rapaz, foi o Senhor mesmo que me disse para te imolar — anunciou Abraão em voz grave, enquanto tirava a faca da mochila.
Embora aterrorizado, Isaac acionou as três teclas de emergência-criança do seu smartphone, que ele sabia que enviavam um pedido de socorro e as coordenadas do aparelho.
Vais-me matar? O teu filho? — choramingou.
Tu não és meu filho. Basta olhar para essas melenas vermelhas!
Em estupefação, Isaac hesitava entre tentar fugir e argumentar. Nesse momento, o seu telemóvel começou a vibrar. Abraão arrancou-lho das mãos e atirou-o para a ribanceira de penedos.
Isaac nunca tinha visto o pai assim. Virou-se para fugir, mas a manápula do pai agarrou-o.
Larga-me, pai! Larga-me!
Já disse que não sou teu pai. Tá quieto! Eu tenho de oferecer este sacrifício ao Senhor, para que eu encontre graça diante d’Ele, me proteja e me torne feliz.
Tás louco, pai. HELP! Que conversa é essa? Essa voz do telemóvel são só gravações. Não é nenhum sábio, nenhum deus — gritava Isaac, tentando ganhar tempo como única saída do labirinto do medo. — Os primitivos é que sacrificavam animais e pessoas. Pensavam que assim tinham mais caça ou colheitas. Estamos no século XXI, pai!
Não quero ouvir mais tretas desta sociedade que não respeita os valores da tradição e da família — ripostou Abraão, enquanto arrastava o filho para junto da fogueira que já ardia bem. Tolheu-lhe os movimentos e dobrou-lhe o pescoço sobre a parte mais lisa da pedra.
Nesse momento, ouviu-se o sibilar característico de um drone, que deu uma volta larga, mas rápida, sobre os penhascos da Peninha. Era de tipo octogonal, tinha envergadura de um metro e apresentava câmaras e vários outros instrumentos apontados para baixo. Um altifalante berrou:
«Largue a criança. Já!»
Abraão não esperava esta interferência. Tentou prosseguir. O altifalante do drone, que agora pairava a uns quinze metros sobre o grupo, voltou à carga:
«Pare já ou disparamos!»
Larga-me, pai! Cuidado! Eles disparam! — gritou Isaac.
Abraão levantou a faca, mas, antes de desferir o golpe fatal no pescoço de Isaac, foi atingido por um dardo junto à clavícula. O efeito do entorpecente foi imediato. Deixou cair a faca, oscilou uns segundos e afundou-se no chão pedregoso. Isaac afastou-se do volume do pai, aliviado, mas meio confuso. Chegou-se à beira do rochedo e espreitou lá para baixo, tentando localizar o smartphone. Quinze minutos depois, chegou a Polícia e o Socorro médico. Duas estações televisivas de atualidade criminal chegaram logo a seguir.

Joaquim Bispo
*
Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 104 a 107 — a 18ª edição (novembro/dezembro de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


*
Imagem: Giovanni Battista Tiepolo, O Sacrifício de Isaac, 1726–1729.
Afresco, 400 cm x 500 cm [?], Palácio Patriarcal, Udine, Itália.
* * *






quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

EPITÁFIO




         Domitila sentou-se novamente ao lado do minúsculo túmulo, debruçou o corpo sobre ele, como se o abraçasse. Fechou os olhos e sentiu uma paz que havia muito não sentia. Não tinha mais cansaço, nem dor, não havia mais agonia. Cumprira a missão.
         Tudo começou por ali, nos arredores daquela vila. Ali viveram seus pais, e ali elas nasceram. Tempos difíceis, sem qualquer recurso. Lembrava-se dos olhos tristonhos da mãe ao falar sobre o encanto da filha mais velha. Da vivacidade dos seus oito meses de vida, da alegria, da pele rosada, dos olhos cristalinos, das coxas roliças.
         E, num repente, na extensão de apenas um dia, ela se foi. Começou com um pequeno desarranjo, julgado como reação pelo despontar dos dentes, e no começo da noite agravou-se com uma febre incontrolável. Mesmo com a débil claridade da lamparina, ficava visível nas pequenas bochechas rubras a intensidade da febre. E a prostração do amado corpinho evidenciava a gravidade do quadro. Tudo muito rápido, sem tempo algum para qualquer acudimento. Na verdade, acudimento não existia. Ali, naquele fim de mundo, não havia nada. Ninguém além deles...
         Quanta dor quando perceberam que nada mais poderia ser feito! A vida da filha havia partido. Ainda com a madrugada escura, com o fosco prateado do início da lua crescente, a mãe e o pai seguiram em direção à vila, carregando nos braços e na alma aquela que seria a maior dor da vida. E tudo foi feito. Nem sabiam como. A papelada foi providenciada, e a filha enterrada. De início, uma pequena carneira de ripas fora erguida, mas depois o pai providenciou uma lápide de tijolos com uma cruz de madeira. Tudo caiado de branco.
         Dois anos depois, nasceu Domitila. Igualmente formosa, mas de saúde delicada. Da mesma maneira, amada. Por ali viveram mais uns poucos anos e, esperançosos, partiram para terras mineiras, dadas como promissoras para os roceiros. Passaram por duas fazendas de café, e na última ficaram até a morte do pai.
         Domitila e a mãe mudaram-se para Lavras, cidade mais próxima da fazenda onde viviam. Alugaram três cômodos. Sobreviviam com a pensão que a mãe recebia pela morte do pai, e mais uns caraminguás que conseguiam defender com o trabalho de lavar e passar roupas.
A mãe já estava fisicamente debilitada. Idosa e judiada pela vida, pouco ajudava. Mas, para Domitila, era uma companhia prazerosa. Sempre se deram bem. Ambas possuíam almas nobres, eram mansas na lida com a vida. A rudeza e as tristezas não as endureceram... Faziam ótima companhia uma à outra. Conversavam demoradamente sobre todos os acontecimentos, sobre todas as saudades. Não havia nenhum planejamento para o futuro. Apenas a esperança de um dia voltar à vila onde Virgínia estava sepultada. Por opção, Domitila nunca se casou. De saúde frágil durante toda a vida, padecia constantemente com agudas crises de asma.
         E assim os anos corriam mansos, simples. O passeio semanal de mãe e filha era a missa domingueira na capelinha próxima da casa em que viviam. Até que um dia, a mãe se cansou. Não queria mais comer, não queria mais tomar banho, não queria mais ir à igreja. Prostrada, definhada, não conseguia mais sair da cama. Domitila cuidava dela como se cuidasse de uma criança. Com paciência, com dedicação, com todo o amor do mundo. Mas os seus cuidados perderam a batalha para outra força. A morte levou a mãe.
         Sentiu a mais dura solidão. Nunca pensara em ficar só. Não sabia como administrar a vida assim, sem ouvir uma única voz na casa. Entristecida, sem recursos para sobreviver, com a alimentação minguada e a falta de cuidados, as crises de asma intensificaram-se a ponto de os vizinhos procurarem a assistência social. E Domitila conseguiu, além de uma pensão vitalícia, tratamento médico dispensado pela equipe do posto de saúde.
         Recuperou-se. Passou a fazer uso diário de muitos medicamentos que minimizavam os vários problemas de saúde desconhecidos até então. Passava os dias sem maiores preocupações, apenas atenta aos horários e doses dos seus medicamentos. O único propósito, no qual pensava e repensava ao longo do dia e durante as noites insones, era a viagem de volta à vila onde nascera, a visita ao túmulo da irmã. Era um desejo, uma missão. Prometera à mãe que não morreria sem lá voltar. E essa era a vontade mais velada.
         Mesmo com todos os cuidados, a saúde de Domitila ficava mais comprometida a cada dia. E chegou um momento em que precisou deixar a casa que alugava. Foi levada para um asilo. Lugar aconchegante, apinhado de velhinhos amigos, cheio de cuidadores, de comida cheirosa, de cama limpa, de banhos refrescantes. Estava feliz. O jardim era lindo, com todas as flores da infância. Muitas dálias, cravos, rosas, flores de capitão...
         Domitila não lembrava mais de qualquer tristeza. Preenchia os seus dias com as atividades de pintura, de bordados, de crochê, de jardinagem. E conversava muito. Tantos amigos, tantas histórias. Umas alegres, outras tristes... E nessas conversas soube que as pessoas idosas poderiam viajar de ônibus sem pagar. Não sabia! Isso lhe abriu caminhos... A parca pensão vitalícia não chegava a suas mãos. Quase a totalidade ficava com aadministração do asilo, o que era muito justo, assim ela pensava. A ela eram repassados uns trocados a cada mês, mas não tinha nem como gastar! Tinha tudo, tinha mais do que precisava...
         O inverno chegou de forma inclemente. Frio que doía nos ossos, e que trouxe gripe a quase todos os idosos do asilo. Domitila ficou mal. Noites e noites de febre causticante, de tosses agudas, de falta de ar. E sempre, amorosamente cuidada. Pedia silenciosamente por saúde, pedia para que fosse dada a ela a possibilidade de viajar até a terra em que havia nascido. Era o seu mais intrínseco e único desejo. Nada mais queria da vida. Só isso...
         Alavancada pela missão a cumprir, recuperava-se, ainda que lentamente. A febre cedera. Apenas a tosse a incomodava. Dava-lhe uma canseira danada no peito, uma inapetência, e atrapalhava o sono. Com a diminuição dos remédios, passava mais horas acordada, e tinha mais tempo para maquinar a sua viagem. Sabia que se falasse sobre isso com alguém seria desencorajada, e se a administração porventura ficasse sabendo, ela seria impedida de ir de qualquer maneira. Por isso, tramava tudo silenciosamente. Dentro da cabeça, tinha toda a trajetória a percorrer. Em detalhes... Sairia do asilo à noitinha, no horário em que todos se recolhem. A sua companheira de quarto era dorminhoca. Bastava entrar nas cobertas e já estava ressonando. Iria bem agasalhada, levaria os remédios na bolsa, juntamente com a carteira de documentos e o pouco dinheiro que guardara por todo tempo. O nome da cidade ela sabia, e usaria do direito a passagens de idosos.
         Tudo arquitetado, cuidadosamente planejado. Domitila ainda se sentia fraca, mas temia adoecer novamente e não ter a oportunidade de realizar o desejo arraigado na alma e cumprir a missão que combinara com a mãe. Não poderia fraquejar agora, talvez essa fosse a última, a única chance.
         No dia escolhido, uma segunda-feira, reorganizou a bolsa, conferiu tudo, separou uma troca de roupa e a acondicionou numa pequena sacola plástica. Colocou tudo sobre os cobertores, no seu guarda-roupa.
         Naquele dia, saboreou o café da manhã como nunca, passou os olhos em cada um dos amigos, conversou com muitos. Almoçou e jantou com eles, numa alegria imensa. Já estava com saudades antes mesmo de partir. E não pretendia demorar nessa viagem... Logo estaria de volta, e sabia que levaria uma bronca danada! Passeou pelo jardim olhando detalhadamente cada flor, que agora eram poucas. Ali o frio também havia castigado.
         Depois do jantar, voltou ao quarto. Pegou uma folha de papel, uma caneta, e começou a desenhar umas letras. Mal sabia escrever, estudara muito pouco. Como ela mesma dizia, não escrevia, apenas desenhava algumas letras. Acabou de escrever e guardou a folha na bolsa. Não era um bilhete para a amiga de quarto. Cumpriria religiosamente o que havia esboçado em sua mente. Não diria nada a ninguém.
         Ficou sentada na cama, esperando a chegada da parceira. Quando ela entrou foi direto ao banheiro. Voltou já de camisola, pronta para entrar nas cobertas. E assim fez. Domitila fez a oração da noite com ela, e em seguida entrou no banheiro. Tomou um banho demorado, estava imensamente feliz. Quando saiu, a companheira já ressonava. Deixou a porta do banheiro entreaberta para clarear um pouco o quarto. Pegou a melhor roupa, vestiu-se calmamente. Agasalhou-se bem, colocando até uma touca preta de lã. Escolheu um cachecol bem longo, deu duas voltas no pescoço. Calçou as grossas luvas, meias de lã, e confortáveis sapatos. Pronto. Estava preparada para partir. Aguardava apenas as luzes serem apagadas e o silêncio envolver tudo.
         Para esperar, sentou-se novamente na cama. Com a pouca claridade que passava pela fresta da porta do banheiro, olhou cada detalhe do quarto. Quatro paredes que acolheram o seu sono nos últimos oito anos. Tempo bom... Olhava a amiga que dormia santamente. Companheira de tantas orações, de tantas prosas, de tantas risadas, de tantos dias bem vividos.
         Finalmente tudo quieto. Tudo apagado. Domitila pegou a bolsa, o saco plástico, olhou para a amiga e deu um sorriso. Apagou a luz do banheiro, abriu a porta do quarto devagarinho, saiu, e com o mesmo cuidado a fechou. Seguiu passo a passo, com muito cuidado, como se pisasse em plumas. Não podia fazer qualquer barulho. Atravessou o pátio, e saiu pelo portão dos fundos. O único que era fechado com trava somente por dentro. Imprudente, irresponsavelmente deixou o portão destrancado, mas não havia outro jeito.
         Quando se viu na rua, teve vontade de rir. Estava fazendo a maior peripécia de toda a sua vida! A maior, não! A única! Olhou a rua vazia, escura, um vento frio, cortante. Ajeitou os óculos, ergueu a dobra do cachecol até cobrir a boca e seguiu em frente. A rodoviária não ficava longe. Bastava andar por mais alguns quarteirões, e a primeira etapa estaria vencida.
         Chegando à rodoviária, pediu informações e dirigiu-se ao balcão da empresa de transporte que fazia a rota. Pediu para comprar a passagem de idoso. Foi avisada de que o ônibus partiria às 23h, que iria até São José do Rio Preto, e que lá teria que pegar outro ônibus para chegar ao destino. Teria de esperar pouco mais de uma hora, mas estava feliz. Muito feliz. Sentia um frio intenso. Acomodou-se em uma poltrona bem recuada, fora da corrente de ar. Ali, quietinha, silenciosamente se pôs a rezar. Sentiu a presença da mãe. Sabia que ela estava ali, a lhe guiar. E sentia-se ainda mais feliz.
         No horário marcado, o ônibus partiu. Que sensação prazerosa! Domitila nem se dava conta de quantos anos fazia desde a última viagem em um ônibus de carreira. Ainda era menina, isso mesmo! As luzes do ônibus se apagaram, a poltrona ao lado estava vazia. Nenhum idoso havia solicitado a outra passagem. Sobrava espaço para colocar a bolsa e a sacola plástica. Sentia muito frio, e pensou que deveria ter trazido a manta. Tinha pensado nisso, mas não quis fazer volume na bagagem. Tentava pensar em outra coisa, esquecer o frio. Em vão... Em poucas horas estava tremelicando, e o ar frio do ônibus piorava tudo. Percebeu que estava com febre. Tinha sede, muita sede.
         Quando o ônibus fez a primeira parada, já era madrugada, Domitila pediu ao motorista que lhe comprasse uma garrafinha com água. Além da sede insana, queria tomar um remédio para baixar a febre. Sentia muito frio, e muito desconforto. E, para piorar, o gentil motorista trouxe água gelada. Coitado, foi tão solícito!
         Tomou o remédio, bebeu toda a água. Não conseguia dormir. Não sabia se pela ansiedade ou se pelo mal-estar, mas não pregou os olhos. Na segunda parada, desceu cuidadosamente do ônibus, foi ao banheiro, comprou outra água, agora sem gelo, e voltou ao ônibus. O dia amanheceu e a encontrou exausta. Sentia-se cansada e doente. A tosse começou a incomodar. Estava gelada. Os pés, quase insensíveis.
         Quando o ônibus chegou a São José do Rio Preto, Domitila perguntou ao motorista como deveria proceder para comprar a outra passagem. Orientada, conseguiu a passagem e só precisava esperar pelo embarque para o seu destino. Depois de um tempo, acomodada no assento reservado, e com o ônibus a caminho da vila da sua infância, Domitila começou a pensar nos amigos do asilo. A essa altura eles deveriam estar alvoroçados com a sua falta, as freiras deveriam estar preocupadíssimas com o seu sumiço. Na volta, ela explicaria, e a bronca seria retumbante. Deu um sorriso. Sentia saudades.
         A missão estava quase finalizada. Faltava muito pouco. Sentia um mal-estar tremendo, muito desconforto, uma fraqueza sem limite. Percebeu que a febre havia voltado, a tosse estava se intensificando, doía-lhe o peito. Deus! Aquele ônibus precisava chegar logo ao destino. Talvez quando descesse, tomaria um café com leite e comeria um pão, tudo ficaria bem. Queria chegar, isso era o que desejava. Nada mais.
         Quando o ônibus chegou à rodoviária da vila, Domitila começou a chorar. Não sabia definir se chorava de alegria ou de dor. Sentia-se feliz, mas fragilizada. Tinha medo de que as forças a abandonassem. Já no saguão, foi ao bar, tomou um café reforçado e engoliu os remédios do dia. Foi ao banheiro. Antes de sair, lavou o rosto e passou uma escova nos cabelos. Seguiu a orientação do rapaz que a levava ao táxi. Passando pelas ruas, tudo lhe era totalmente desconhecido, nada familiar. Não possuía lembrança de nada, era muito pequena quando partira. Uma vila que agora era uma cidade, e cheia de ladeiras. O táxi subiu e desceu, virou aqui e virou ali, e em poucos minutos parou diante do cemitério.
         Uma entrada acanhada. Domitila passou pelo portão de ferro, olhou adiante e viu uma imensidão de área. Não havia ninguém no atendimento. O cemitério era enorme. Tudo muito diferente do que a mãe lhe descrevera. Os túmulos eram gigantescos, modernos, suntuosos. Não havia nada da singeleza contada pela mãe. Foi caminhando em zigue-zague, procurando com os olhos alguma evidência, algo similar a todas as narrativas da mãe. A tosse impiedosa não a abandonava. Tinha calafrios sucessivos. Andou muito, viu muitos túmulos de crianças, enquanto procurava avidamente por uma lápide pequena, rústica, com uma cruz de madeira. Muito cansada, sentou-se em um banco que ficava sob uma árvore, pediu a Deus que a orientasse, que abreviasse a sua busca. Estava mal, sabia que iria precisar de cuidados médicos, mas não naquele momento.
         Voltou à portaria, havia um homem lá. Logo ele se apresentou como coveiro e responsável pelo cemitério. Domitila contou a ele toda a sua história, e o que buscava. Estendeu a ele o seu documento e disse que o nome da irmã era Virgínia, e que o sobrenome era o mesmo dela. O homem nem pegou o documento. Declarou que trabalhava ali havia mais de 40 anos, que não existia qualquer registro anterior a 1950. Então Domitila disse a ele que talvez o túmulo da irmã nem existisse mais. Mas ele garantiu a ela que todos os corpos sepultados até 1950 possuíam sepulturas perpétuas, definitivas. Todos continuavam no mesmo lugar. Explicou que os túmulos mais antigos ocupavam a área no entorno da capela. E como o cemitério fora ampliado posteriormente, os sepultamentos, quanto mais recentes, mais distanciados da capela ficaram.
         Percebendo que Domitila não estava muito bem, o homem ofereceu a ela água e café. Ela aceitou, agradeceu e recomeçou a sua busca. Parou junto à calçada da capela e procurou buscar na memória a direção que a sua mãe havia descrito. Seguiu em linha reta, depois retornou ao mesmo lugar. Refez a caminhada na diagonal. Muitas crianças sepultadas, muitas fotos, o que simplificava a busca. O túmulo da sua irmã não tinha foto. Buscava um túmulo simples, com uma cruz de madeira. E não conseguia encontrar. Sentia tanto frio, tossia incessantemente, tinha vontade de deitar, mas estava ali, pronta a realizar o seu desejo. Não recuaria, nunca...
         A tarde ia caminhando sem pena. E ela não encontrava o túmulo da irmã. Prostrada, chorando baixinho, sentindo a febre cada vez mais elevada, com a tosse a lhe castigar o peito, retornou novamente ao ponto de partida: a velha e minúscula capela. E desta vez seguiu sem rumo, novamente ziguezagueando entre os túmulos. Tropeçava aqui, pisava em falso ali, já não sentia os pés. O sol estava a descer, e ela continuava a busca. O encarregado do cemitério havia terminado o expediente. Pensara que Domitila tivesse desistido, e se foi. Além dela, não havia mais ninguém por ali.
         Não tendo mais forças para continuar, Domitila sentou-se na estreita calçada de um túmulo. Começou a chorar copiosamente. Sentia-se doente, incapaz de seguir a caminhada, e extremamente desolada. Não encontrara o túmulo da irmã. Voltou os olhos para o céu, o sol quase sumira por completo. Pensou na mãe. Olhou em frente, e depois desviou os olhos para o lado. Prestou atenção à lápide margeada pela calçada onde estava sentada. Com muito esforço, colocou-se de pé. Era um túmulo pequeno, antigo, com uma pequena elevação na cabeceira e um buraco no centro. Percebeu que aquele buraco não fora feito em vão. Sim, ali ficava a cruz de madeira. Certamente havia se desfeito com o tempo. Sentiu que finalmente havia encontrado o túmulo da irmã. E chorou, chorou como nunca havia chorado na vida. Chorou gritado. Nem soube por quantos minutos... Estava exaurida.
         Domitila sentou-se novamente ao lado do minúsculo túmulo, debruçou o corpo sobre ele, como se o abraçasse. Fechou os olhos e sentiu uma paz que há muito não sentia. Não havia mais cansaço, nem dor, não havia mais agonia. Cumprira a missão.
         Com a cabeça recostada na fria lápide, e com o rosto em brasa, Domitila guardava no pensamento a figura da mãe, dos amigos do asilo, do pai. De repente, o frio cessara, não havia desconforto, nem tosse, nem dor no peito. Tudo ficara muito leve, flutuava...
         Na manhã, Domitila foi encontrada.
         Sem saber o que fazer, e lembrando toda a história contada por ela, o coveiro conferiu a bolsa, procurou pelos documentos. Encontrou a folha de papel dobrada, toda amassada. Abriu rapidamente o papel e nele viu desenhado: QUERO FICAR AQUI. ESTE É O MEU LUGAR.
         E assim foi feito.

Regina Ruth Rincon Caires
                                         





domingo, 19 de janeiro de 2020

Estigmas



Talvez não devesse ter suscitado isso. Tenho consciência da desordem que provoquei. Mesmo que entalado por anos, não podia ter partido para a irresponsabilidade – assim como ele sempre o fez. Fiz um propósito, de não me misturar com a laia dos Borges. Não sou desse sangue sujo. Renego, veementemente. Lutei toda a minha vida para sair do estigma de ser filho de quem sou; e ser um igual. Agora, me sinto como um coco seco boiando em um rio caudaloso. Não sei se bem ou mal.
O coração é um poço de desejos, de contrações irresistíveis, à procura de luz. Fui me esgueirando, para sobreviver, desde quando mãe morreu. Silvia. Silvia Brandão. Uma mulher que veio e partiu do nada. Sem admitir, claro, o velho ficou em pé de guerra com a consciência; um querer-dominação velado, doentio, criminoso. Mas, antes disso, fez mãe sofrer demasiado. Quem sabe, e é esse instinto que me atormenta, não foi ele quem a matou de desgosto? Simplesmente a desprezou. Era a criada. Não, burro de carga mesmo. Sem voz nem vez. Foi angariando a dor; avultando em seu peito, a ponto de arfar a morte, pouco a pouco.
Jerônimo mexia com “acertos”; assim qualificava. Mãe já se afobava por isso, palavras de tia Luzia. Eu, muito pequeno, ainda assim sentia esse rarear de vida. Abafava-me, contorcia-me. Éramos dois. Jerônimo, do mundo; dos Borges. Foi num desses acertos que armou a tocaia. Resolveu apagar um antigo parceiro, o Dionísio, com um tiro seco na nuca, dentro de nossa casa. Falava para quem quisesse ouvir que mãe era puta, safada; que seria a próxima; que não olhasse para o lado, se quisesse estar viva. Condenava-a por ter gerado aquele mal-estar. Para Jerônimo, mãe tinha um caso com Dionísio. Talvez soubesse que não tinham nada; mas, como desejava suprimir a concorrência nos serviços, e para deixar vivo o aviso à mãe, decidiu eliminar o sujeito.
Frágil como um beija-flor – aliás, cheirava a rosas; leite de rosas, mais especificamente –, mãe amofinava com o tormento e com a violência da chegada de Jerônimo. Entrava, porta adentro, para dizer, aos gritos, que um dia ia pegá-la de surpresa; que se preparasse, que o coro ia comer; que a esfolaria viva e deixaria a carniça para os urubus comerem. Nas investidas, dava-lhe golpes fortíssimos, com o que aparecesse pela frente, panelas, cadeiras e mesas; que também infligiam a mim, eu com cinco ou seis anos.
Vi mãe se despregar da vida, literalmente. Não tendo acesso a médico, ou a qualquer tipo de assistência, prisioneira que era, sem conseguir respirar, por seguidas gripes, problemas de respiração, e uma progressiva e severa tuberculose, confirmada depois pelo laudo cadavérico; sem poder ver sequer um raio do sol, respirar ar puro, agonizou nos meus braços, enquanto lhe dava água com bolacha, pensando eu, ingênuo, que padecia de fome ou fraqueza.
Dia 12.05.2008 mãe morreu. E Jerônimo sentiu por não ter pegado ela no flagra. Vociferou que ela fugia, arredia, “de suas obrigações”. Chamou-a de covarde, ingrata. Enquanto eu ouvia as barbaridades, me penitenciava por não ter feito mais, sem entender. O velho ainda tentou me seduzir para o poder dos Borges; que eu seria famoso e respeitado; seguiria a sina dos grandes homens da região; que era um tratado que eu deveria respeitar; que não iria me forçar, mas que tinha um prazo, quinze anos, idade em que saberia empunhar faca, revólver, espingarda. Veio tia Luzia e me resgatou, escondido numa mala, do destino assombroso que se desenhava. Fomos embora para São Paulo.
O velho hoje é evangélico. Disse que pediu perdão a Deus, “que é Pai misericordioso”. Que eu, humano, devia perdoar. Que eu não devia guardar rancor de um homem maluco, criado no meio dos Borges; sem alternativa, teve de ganhar a vida na justiçagem. Que eu o perdoasse para ter paz. E aí, justo nesse ponto, quando quis usar de suas artimanhas para me amarrar, sentir remorso, estourei o horror que era ser seu filho; ter seu sangue. Que ele havia matado minha mãe de desgosto; de seguidas moléstias, físicas e da alma. Que nos tratou como animais, enquanto ficamos sob seu jugo. Que ele merecia morrer da morte mais penosa. Que eu não teria nada a ver com isso. Saí, e o velho continuou falando; resmungando baixo, cara de coitado, soturno.
Poucos dias depois, a notícia: Jerônimo foi tragado para as profundezas do inferno. Viveu e não deu conta de nada. Nunca foi penalizado pelos seus crimes, imensos. Houve a condescendência de um Estado falho; que nunca chegou àquele lugar, no interior do interior do Ceará. Abandonou-nos à sorte. Todos sabiam, mas ninguém se metia. Tinham medo, talvez. Mais provável que não estivessem nem aí. Admitiam uma suposta profissão de “justiceiro”. Seguro, o tinhoso levantava ares de poder, provocava respeito. Nem padre, nem delegado, nem prefeito, nem nada. Todos aos seus pés.
Falei tudo e talvez não devesse ter falado. Mas não me penalizo mais. Pelo menos me esvaziei. De tudo, restou o cheiro de rosas, que hoje me guia pelos caminhos incertos da vida; longe, muito longe dos estigmas do passado.





sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A foto embaixo do armário








           Achei embaixo do armário uma pequena foto. Eu estava muito novo. Olhar essa foto me fez triste pelas flores que deixei de apreciar e pelos pores-do-sol que deixei de ver. Ainda assim, guardo a mesma inocência de gostar de flores e a ausência de ver o crepúsculo que ilumina o jovem que não sou.





Do livro A Estante Deslocada









quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Acalanto de passagem


Escultura: Johnson Tsang


A profissão, escolheu cedo. Nenhum acaso, nenhuma hesitação. Apenas um desejo de estar lá. De estar lá inteira, com mãos de afagos, lágrimas honestas. E um dó imenso daquele silêncio obrigado, daquela hora repleta de ninguém, do frio permanente. Quis ser o que era. Tinha de ser. Foi feita para a despedida, para o momento em que os remorsos e a saudade e todos os duelos tramados entre razão e emoção se tornam inúteis.
Quem mais entenderia o nada como ela? Ela que sempre foi nada. Um cisco escondido atrás das portas. Tão leve que sob o seu corpo se recusavam a ranger as tábuas velhas do soalho. Ela e sua presença ignorada. Sem chamados, sem vozes de afeto, sem abraços de carinho, sem direito a querer, doer, gritar. Quem mais enxergaria o nada? Esse não ser que ainda assim se desconforma. Esse não ter que ainda assim cobiça. 
Por isso se entregava a eles. Para lhes dar o impensado: atenção. Uma ou duas carícias leves no rosto frio, na cabeça fria, nas mãos postas em entrelaçamento de oração. Tivessem ou não fé. Para lhes recitar um monólogo curto de acalanto. Um acalanto de passagem. 
Ela escolheu. Em cada ida ao quarto apertado e sem janelas da avó doente, esquecida sobre a cama suja. Em cada poço escuro que viu no fundo dos olhos da mãe traída, abandonada. Escolheu que morrer devia ser sem solidão. 
Quando começou na profissão de preparar os mortos, ninguém ligou. Não houve desprezo, nojo, deboche. Ela não valia opinião. Não rangia tábuas. Então, ficou sozinha com o primeiro corpo. Depois com outro, e mais outro, e mais tantos que os anos trouxeram. Iguais em sua última presença visível. Nus. Marcados. Solitários. 
Imaginava-os em medo, angústia, ansiedade. Espíritos, energias, matérias, o que quer que fossem. Presos ainda à tensão da vida. Procurando por um rosto conhecido na sala impessoal com cheiro de substâncias fortes. Buscando suas gentes de afeto. Não havia. Ali, só mesmo ela. Para limpá-los, vesti-los, pôr-lhes um terço entre os dedos, pentear-lhes os cabelos. Para fazê-los se sentir um pouco mais que inquilinos em vias de despejo. 
Ela escolheu.