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terça-feira, 28 de novembro de 2023

A Embaixada

 

 
Na Madrugada dos Tempos – Parte 16

O que faz que os homens formem um povo é a lembrança das

grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras.

Ernest Renan

Escritor e historiador francês.

(1823-1892)

Os dias estavam mais claros e o frio já não mordia os ossos com a mesma intensidade. Havia um vento suave que acariciava a planície e trazia o cheiro de primavera. As montanhas distantes, porém, continuavam com os cumes alvos, os ursos não deviam aparecer por enquanto, mas não tardariam.

Erem sentia-se cansado e não ficou nada aborrecido quando os caçadores disseram que não havia necessidade de fazer parte dos grupos. Graças à franca colaboração com os estrangeiros residentes e agora reforçados com os companheiros do convalescente Tibaro, havia homens e mulheres suficientes para a caça. Os seus quase quarenta e oito anos pesavam-lhe e o frio do inverno parecia não lhe ter ainda saído dos ossos, mesmo ali, sentado ao sol à porta da sua casa redonda.

Com os olhos fechados, deixando-se levar pela letargia, começou a chegar-lhe ao ouvido um rufar longínquo. Ergueu-se subitamente desperto. Recentemente acordaram que haveria sempre duas pessoas de vigia, durante o dia, no alto de um monte próximo. Quando fosse avistada a aproximação de alguém, faria ressoar com pancadas um enorme tronco oco que arrastaram para lá. Sequências de uma pancada, intervalada com duas batidas rápidas, significava uma pessoa, duas pancadas, três, seriam três ou mais. O batuque era constante e isso era alarmante.

O chefe correu até ao topo da colina onde já tinham chegado outros aldeãos que discutiam acaloradamente. Os vigias, um era uma das suas sobrinhas e outro um neto de Tailan, apontaram nervosamente o extremo norte da planície. Distinguia-se perfeitamente um grupo de cerca de trinta indivíduos armados de lanças que descia o caminho em direção ao casario de Barinak, logo atrás havia mais uns quantos que parecia arrastarem algo. Chegariam primeiro ao agrupamento de casas onde Tailan e a maioria dos estrangeiros residia.

— Depressa, vão ter com Lemi e Tailan, que reúnam os homens que houver por aí e vão para o extremo do povo no caminho da montanha. — Erem enviou os vigias, sentindo-se preocupado por a maioria dos homens se encontrar na caça ou a arrastar as pedras do santuário. — Que levem armas. — Depois voltou-se para outro dos homens: — Corre a avisar Zia do que aqui vimos. Ela que reúna as mulheres capazes de lutar e vão lá ter também.

Acompanhado de vários dos que já se encontravam no alto da colina, Erem apressou-se na direção que indicou ser o ponto de encontro onde esperariam os forasteiros que se aproximavam. Se viessem com más intenções teriam de lutar. O que o preocupava era que, mesmo conseguindo igualar o número de inimigos, seria com mulheres pouco habituadas a usar as armas e os homens que, como ele, já não estavam na melhor das formas. O seu coração apertava-se com a ideia de que viriam em busca dos assaltantes que estavam agora mortos e atirados do penhasco para onde era arremessado o lixo da aldeia.

Atravessou o “bairro” dos estrangeiros, onde já não passava há muito, que era simbolicamente separado do resto do povoado por um pequeno regato, afluente do largo rio que fornecia água e peixe à população. As construções alinhavam-se ao longo do trilho calcado a que chamavam o caminho da montanha que serpenteava até ao limite do casario. Reparou, com admiração, que já havia muitas casas e poucas tendas, desde a sua autorização para que fossem construídas. Como era cada vez mais difícil encontrar pedra suficiente e a pouca distância, para todas as casas, várias delas já eram completamente construídas em adobe e apenas cobertas de colmo; havia-as quadradas, redondas, retangulares, as tradicionais redondas de pedras empilhadas eram uma minoria. Com a utilização dos ângulos retos, havia vários exemplos de habitações geminadas partilhando o telhado. Qualquer uma delas tinha uma área muito superior à da humilde palhota de Erem e possuir mais do que uma divisão. Algumas tinham até as paredes alvas como a neve, cobertas do que parecia ser um pó que, embora sujasse as mãos, não saía da superfície.

O chefe chegou ao extremo da povoação. Os invasores ainda não se avistavam devido ao relevo do caminho sobre uma suave colina. O seu olhar analítico observou como a linha de árvores não andava longe do casario e como seria fácil um atacante mal-intencionado chegar por ali, em vez de o fazer pelo caminho. Começavam, entretanto, a chegar alguns aldeãos, com ar preocupado, mas todos traziam lanças ou ferramentas com que pudessem causar dano. Olhou o simples punhal de cobre que trazia à cintura e perguntou-se se não deveria ter ido buscar a sua lança também.

O vento suave carregava as nuvens que obscureciam o sol, a espaços; o frio que se fazia sentir lembrava que a primavera ainda era uma criança e o inverno não andava longe.

Quando os invasores chegaram ao alto da elevação, já havia perto de quarenta elementos a esperá-los e eles imobilizaram-se à vista das primeiras casas, parecendo conferenciar.

Zia foi a última a chegar. Trazia um grupo de dez ou quinze crianças armadas de fundas. Numa guerra, toda a ajuda é pouca, dizia o sorriso dela para o olhar interrogativo do chefe.

Àquela distância, já se podiam distinguir os recém-chegados; com exceção de dois deles, todos trajavam igual; a cabeça tapada com chapéus castanhos, túnicas cintadas que desciam até ao joelho, tendo depois as canelas e os pés cobertos por peles. Além da lança, onde reluziam as pontas de cobre, traziam o que parecia ser um pedaço de madeira forrado a pele. Era óbvio que se tratava de gente preparada para combater. Os outros dois aparentavam um aspeto diferente, com longas túnicas; uma cor de sumo-de-uva e a outra preta, cabelos longos a cair até aos ombros e grandes barbas.

Não se ouvia um murmúrio do lado dos defensores de Barinak, quando um dos invasores se afastou dos restantes e caminhou para a povoação em passo largo, mas pausado, erguendo bem as mãos nuas.

— Saudações e paz, vos envia Mirsulo, déms pótis[1] de Hatiweik. — Falou o homem numa voz forte e clara, embora com sotaque carregado. — Que Tarunte, deus da guerra e da paz, vos dê muitos filhos e alimento para todos. — Pousou a mão direita sobre o coração e fez uma curta e respeitosa vénia.

— Saudações e paz, estrangeiro. — Erem adiantou-se. — Que nos quer Mirsulo, com tantos homens preparados para a guerra?

— Peço perdão em nome do meu senhor. — O homem parecia versado em diplomacia. — Os caminhos são perigosos e Hatiweik tem muitos inimigos. Os homens são para proteção e não para a guerra. Mirsulo veio pessoalmente buscar o seu filho Tibaro, para o honrar enterrar junto dos seus antepassados. Disseram-nos que se encontrava com Erem, déms pótis de Barinak.

Levantou-se uma onda de murmúrios felizes entre os atemorizados defensores.

— Eu sou, Erem, filho de Birol. — Continuou o chefe. — Mas o teu senhor está enganado, Tibaro não morreu. Está vivo e recupera dos seus ferimentos.

Após uma rápida expressão de alegria, o emissário perdeu toda a compostura e partiu numa corrida a reunir-se aos seus.

Desta vez foram os dois elementos que se destacaram do grupo e avançaram rapidamente, seguidos de perto pelo emissário. O homem de preto tinha um ar austero e grave por baixo do chapéu de couro entrançado. As espessas barbas pareciam querer fugir em todas as direções de tão desengraçada carranca. O seguinte trazia os cabelos soltos decorados com pequenas esferas e apenas um fio em volta da cabeça suportando um disco reluzente no meio da testa. Iguais discos pendiam em cada uma das orelhas e um ainda maior ao pescoço, pousado sobre a túnica cor de vinho decorada com finos entrançados e pedaços de peles. O seu rosto visível por cima da barba aparada exibia confusão e alegria quando se dirigiu a Erem:

— És o guardião do meu filho e também o seu salvador? — O homem pousou a mão sobre o coração. — Se tal coisa é verdade, pois só acreditarei quando vir com os meus próprios olhos, serás o meu irmão mais querido que aqueles do meu próprio sangue!

Mirsulo, felicíssimo, agarrou e abraçou um atordoado Erem, antes que qualquer pessoa pudesse reagir. Ato contínuo, os soldados soltaram grandes gritos de alegria, embora mantendo a distância.

Confundido, mas agradado, ao mesmo tempo, Erem sorriu e pediu-lhe que o seguisse até ao convalescente. O acompanhante de Mirsulo, sem perder o seu ar austero, seguiu-os como uma sombra silenciosa. O caminhar dos dois chefes lado a lado foi o mote para o “desmobilizar das hostes” e os defensores dividiram-se, uns atrás deles e outros para junto dos soldados, a saciar a curiosidade.

Nehir, que se recusava sempre a participar nas atividades que envolvessem mortos e feridos, aguardava na sua tenda, tristemente, que começassem a chegar as primeiras vítimas. Qual não é o seu espanto, vê chegar o pai e um estrangeiro vestido com roupas estranhas, a conversar alegremente, logo seguidos por quase toda a aldeia misturada com outros estrangeiros.

O encontro entre Mirsulo e Tibaro foi comovente, o chefe estrangeiro não conseguiu deixar de verter uma lágrima. Apesar de ter dez filhos, aquele era o mais velho e o que ele esperava que lhe sucedesse. Não o conseguia dissuadir de participar nas caçadas… e esta quase lhe tinha sido fatal.

Apesar de quase não se conseguir ouvir, Tibaro falou com o pai e acalmou-o, dizendo que se sentia bem melhor e tecendo elogios à curandeira, à sacerdotisa, ao extraordinário chefe de Barinak e ao seu povo acolhedor. Foi o momento do silencioso companheiro de Mirsulo intervir e questionar diretamente o doente sobre o tipo de tratamentos que lhe fizeram.

Ao ver o esforço que Tibaro fazia para falar e notar que a sua respiração ficava cada vez mais ofegante, Nehir tocou no braço do estranho e pediu-lhe que não o maçasse mais; ela responderia a todas as perguntas.

O homem, que estava curvado sobre o doente, ergueu-se e deu um passo atrás, olhando-a com um misto de desdém e escândalo: — Quieta, mulher! — Ordenou rispidamente numa voz de barítono. — Quem te deu ordem para falar?

Imediatamente, qual leoa a defender a cria, Zia colocou-se ao lado da filha: — Tu é que precisas de autorização para falar, homem! — Ela apontou-lhe o dedo ao peito. — És um convidado na tenda dela e nesta aldeia!

— Parem! — Interveio Erem olhando interrogativamente para Mirsulo.

— Elas têm razão, Savírio. — O chefe estrangeiro advertiu sem sorrir. — És um convidado aqui. Tens de respeitar os costumes. — Depois olhou diretamente para Erem e explicou. — Não estamos acostumados que as mulheres desempenhem estas funções e muito menos interpelem diretamente os homens.



[1] Proto-indo-europeu: “Senhor de sua casa”, derivará em déspota.

Manuel Amaro Mendonça

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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Ímpeto

 






sábado, 25 de novembro de 2023

O plano

 


Era no tempo em que os animais falavam. As espécies tinham-se espalhado pela Terra, ocupando todos os nichos passíveis de sobrevivência. As predadoras caçavam as outras, ocupavam-lhes o território e ficavam por ali a acasalar, a multiplicar-se e a banquetear-se com os corpos estraçalhados das presas que iam apanhando, de cada vez que a fome rosnava. Se os indivíduos das espécies alimentícias se tornassem escassos para as necessidades de uma espécie predadora, esta migrava para territórios mais abundantes em caça.

Esta fábula conta a história dos Breus e dos Listeus, raças muito semelhantes de bípedes caçadores, ferozes e territoriais, aparentados com as hienas. Talvez por serem bípedes, ambas as raças se reclamavam de terem os Homens como ascendentes primordiais e emulavam os seus mitos e as suas formas de organização.

O encontro destas raças, em tempos distantes, foi dramático e sangrento: os Breus, incapazes de prevalecer na zona que habitavam, ocupada por uma raça mais bem adaptada, migraram para uma zona prometedora que os adivinhos indicaram e resolveram instalar-se. O facto de o território já estar ocupado pelos Listeus não constituiu um dilema: atacaram-nos massivamente, matando-os onde quer que os encontravam. Não era para comer; era só para desocupar o território da raça rival. Apesar das aspirações humanas, mantinham a animalidade intacta.

Reagindo às matanças substanciais, os Listeus sobreviventes organizaram-se e deram combate aos invasores. Iniciou-se assim um guerra de limpeza étnica mútua, que foi produzindo extensos morticínios de ambos os lados. A posse completa e indivisa daquele território justificava todos os sacrifícios. Era uma posse que cada raça tinha como promessa associada à mitologia das origens humanas. À vontade de o possuir, juntava-se, com toda a veemência, a ordem divina. Mais do que uma necessidade, era uma obrigação.

Então, cada raça já se tinha estruturado política e socialmente e ia organizando estratégias para suplantar a inimiga, mas nenhuma conseguia o intento assumido de eliminar por completo a outra. Muitos massacres mútuos depois, sem se revelar um claro vencedor, chegou-se a um período de beligerância de aparente baixa intensidade, em que a demografia apareceu como arma a não ser negligenciada. “Se muitos dos nossos morrem nos confrontos cíclicos, há que fazer nascer muitos outros, para que o inimigo nunca consiga fazer-nos extinguir."

A guerra quente continuou a estalar a intervalos. Produzia um massacre, que era depois retaliado exponencialmente pela outra raça, até se chegar a novo período de cansaço. A escravatura foi surgindo, aqui e ali, como estratégia de sobrevivência para os vencidos e como mais-valia para os vencedores. Então, as proximidades entre vencedores e vencidos, embora assimétricas em termos de poder e direitos, criavam tolerâncias, cumplicidades, até amizades, numa espécie de promiscuidade rácica. Era a coexistência possível, que, às vezes, imitava e dava a ilusão de uma sociedade igualitária, mas que não era vista com bons olhos pelas castas dominantes de cada raça.

Conta-se que, certa vez, muitos anos depois dos enfrentamentos iniciais, uma fêmea breia foi queixar-se a Fauce, o governante local, de que uma sua escrava, cuja cria tinha morrido, estava a tentar apoderar-se da cria da dona, a sua. E arrastara perante o soberano a fêmea listeia, que carregava às costas uma cria com poucas semanas de vida. O governador, assumindo as funções de juiz por inerência, em atitude grave, mandou que ambas defendessem a sua razão, apesar de uma ser dona e breia, e a outra escrava e listeia. Havia que manter uma aparência de justiça.

Cada uma defendeu a sua maternidade com toda a veemência. Não parecia fácil aquela decisão. Em pé, perto de Fauce, o vizir aproximou-se do rosto daquele e ciciou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O dirigente, embora em atitude judiciosa, assentiu ligeiramente. Lembrava-se bem do episódio evocado pelo vizir e da decisão do seu antepassado humano, que fazia parte da jurisprudência dos decisores daquela raça. Após meditar um momento, mandou chamar o carrasco e ordenou-lhe que talhasse a cria em duas partes iguais, “para que nenhuma mãe receba mais do que a outra”, como fizera o antigo governante humano.

Logo a fêmea listeia se lançou ao chão, pedindo que, em vez de tão sábia decisão, a cria fosse entregue à fêmea breia.

Estava encontrada a verdadeira mãe. Só a mãe real teria tal atitude de salvamento da cria, como bem deduzira o humano que Fauce emulava.

O antepassado mítico entregara a cria à verdadeira mãe, mas, e agora? Entregar a cria listeia à fêmea listeia? Nada de mais insensato. Havia que estar atento a muitos aspetos. Os tempos iam lassos, mas não se podia perder de vista o plano inicial. Chamou o vizir e perguntou-lhe se tinha alguma informação importante sobre o caso. “É muito provável que a cria seja filha do macho da breia”, informou ele, em surdina.

Fauce voltou a baixar a cabeça, em aparência de trabalho de justiça. “Nada de relevante. Entregar a cria à fêmea breia? Filho de mãe listeia, ainda que filho de pai breu e criado pela fêmea breia, sempre manteria a semente da insurreição listeia”, concluiu para si. “Pior: como mestiço, poderia vir a arvorar-se em paladino da concórdia das duas raças.” E, com um sinal inequívoco para o verdugo, indicou: «Corta!».

Enquanto o sangue da cria espirrava, sob os uivos da fêmea listeia e o silêncio apaziguado da fêmea breia, o governante, na pose solene que a dignidade do cargo exigia, confortava-se com o orgulho do dever cumprido. Por agora, era um animal, com um plano a executar. A humanidade fazia parte do mito, mas podia esperar.

Joaquim Bispo

*

Imagem:

Almada Negreiros, A Sentença de Salomão, tapeçaria, 1962.

Tribunal Judicial de Aveiro.

* * *





quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Vadia Liberdade

 


Ostentava Virgínia um olhar de abismal e cósmica depravação, efeito de sobrancelhas tão assombrosas em seus contornos quanto as sinuosidades das galáxias; e de olhos arregalados como astros cuja iluminação, ao invés de eclipsar os corpos celestes, evidenciava a graça de suas formas e traços; e, também e por último, de lábios delineados por vermelhos como a cauda dos cometas.

Enfim, ostentava um rosto de pervertida.

Tal caráter ninguém acusava, nem os amigos, com receio de ofenderem-na, nem os inimigos, com receio de, mediante a verdade, despertarem-na para transformações benéficas a ela e inconvenientes a eles. Pois malgrado a máscara do vício não representasse um erro si, tampouco a obscenidade, aliados e adversários reconheciam em sua face o pecado original, nossa sina de uso e abuso, estigma discernido em percepções efêmeras e meditações sigilosas, temorosos eles de manifestar as íntimas ponderações e apreciações de valor e, pela via e vida das palavras, identificar princípios não agradáveis e alusivos à si.

Alheia à expressão era a própria Virgínia, e em sua narrativa interior ela descrevia-se como casta e correta, adepta do ascetismo, modelo nem tanto de moralidade como de insanidade, afinal desconsiderava os seus melhores instintos ao almejar uma existência de abnegações e renúncias, de fastidiosos meios-termos. E era alheia a despeito do habitual contemplar-se no reflexo de espelhos ou no confinamento das fotografias, do assistir-se nas filmagens de um casamento em que valsava com os primos, na pista e no semblante a desfilar com os lábios entreabertos e vermelhos, olhos ornados por rímel, o quadril além das curvas. Não aferira sua condição de pervertida nem ao analisar os numerosos e impudicos sonhos e o permanente fantasiar, reputando-os como resultado das mais saudáveis, e superiores, psicologias. 

Mas o recorrente existir acua-nos frente à verdade, e apesar de Virgínia, no passado, furtar-se às evidências e depreciar as graças do acaso, logrou a sorte última de convergirem as circunstâncias para o reconhecimento precoce de sua devassidão. E assim descobriu-se impressa na fotografia de um jornal: a imagem apresentava um casal de idosos e, em segundo plano, imprecisa em curvas, Virgínia. Ou melhor, na cena percebia-se somente Virgínia a despeito do enfoque nos vetustos bailarinos, como se numa concordância de equívocos competisse à silhueta revelar seu caráter de libertina.

A visão da imagem e a epifania resultante ocorreram no café da manhã seguinte. Lambia a manteiga do dedo quando abriu o periódico e reconheceu-se na fotografia. Virgínia ingeriu a revelação, lançou as folhas no mero ar. Deus dos céus, alarmou-se ela. Não sou assim, não fui assim; mas sou. Como, indagou ela, como jamais vira-se em sua verdadeira face, e à mente assomou-lhe a recordação das ilusões de óticas que, se desmistificadas, jamais retornavam à condição de enigma.

Ergueu-se.

Antes graciosa qual os felinos de seus sonhos, então movimentou-se com outra sensualidade, consciente de suas muitas curvas e graças e do libidinoso potencial da carne. Nos aposentos da casa não se ouvia vivalma, e na rua o silêncio sobrepunha-se ao cotidiano. Frente ao espelho do quarto, olhou-se, e ao olhar-se mal se percebeu, como se houvesse nela o de sempre, o mesmíssimo, e agora evidente, sempre. Virgínia encarou-se, confidenciou ao reflexo.

Vadia, eu sou uma vadia.

Sentia-se plena.






domingo, 19 de novembro de 2023

Sufoco

 



Estava de cabeça baixa, alheio, e fui surpreendido por uma mão pesada que tocou o meu ombro esquerdo. Era Ernesto, com a sua incrível disposição para o tumulto. Logo, da sala se fez ouvir a sua voz cavernosa, pelo que pedi que amenizasse o tom. Ele não me deu os pêsames; como de costume, profundamente indiscreto e curioso, quis saber a razão da morte. Não sei que morbidez é essa das pessoas se interessarem tanto na causa mortis. Querem encontrar alguma justificativa, perversão oculta, é isso? Disse a ele que não tinha ideia. Eu havia sido informado do fato há pouco mais de cinco horas. No fim da noite, João, nosso amigo em comum, ligou para me informar sobre o ocorrido, que o corpo de Nara teria sido encontrado por um familiar, já em estado de decomposição. Pelos cálculos, segundo o legista, teria morrido há dois dias. A causa ainda era uma incógnita. No tempo em que namorávamos, a minha preocupação era com o cigarro: ela fumava um atrás do outro. Segundo João, ela teria diminuído sensivelmente o consumo, por uma gravidade adquirida no pulmão, de que ele não sabia precisar. Lembrei, automático, de nossas caminhadas no Parque Rio Branco, nos sábados e domingos à tarde, em que ela pedia arrego, alegando extremo cansaço. Afora isso, Nara tinha receio de ir ao médico – decerto por medo de desvendar uma doença fatal. Sim, ela tinha temor da morte prematura; sua mãe morrera de um mal súbito aos vinte e oito anos. Nunca usara drogas na minha presença, a não ser maconha (que não considero droga) e uns comprimidos para ansiedade. Ela era craque em abandonar terapias. Sendo doutora em Artes, alegava que os psicólogos, pelo menos os que ela teria consultado, eram “fracos”, mal entendiam de filosofia. “Como pode, Júnior, filosofia é a mãe das ciências!”, falava exaltada e cansada de uma tal peregrinação, até que encontrou o Dr. Augusto Proença, psicólogo e professor universitário. Após, não sei se por excitação dos sentidos, Nara pediu um tempo e logo acabou o relacionamento. Nunca falou, mas talvez me achasse mínimo para a função de seu acompanhante – em se tratando de estudos, só fiz uma pós-graduação em Estética da Arte… Quando voltei a mim, Ernesto insistia que a morte de Nara teria sido por problema no coração, que uma vez ela se queixou de dor no peito – ora, pelo que sei, Ernesto era um “amigo” ausente, não era de ligar ou marcar encontro, sempre esteve muito ocupado com as suas finanças. Levantei-me e fui ao banheiro, para me safar do inconveniente. Foi o momento em que vi, de relance, o rosto de Nara. Estava inchado, e a pele aparentava estar muito fina; um balão d’água prestes a explodir. Já não era Nara. Passei um longo tempo chorando no banheiro, pensando que poderia ter feito algo. O namorado de Nara, segundo soube dias depois do sepultamento, alega união estável e quer ficar com o apartamento. Ela conhecera o boa bisca há somente cinco meses. Julgo que por carência e bondade excessivas, até ingenuidade, porque ele alegava dificuldades financeiras, colocou-o em casa, razão que a fez discutir com a mãe, e não mais se falavam. A família de Nara pediu na Justiça a reintegração da posse e uma nova exumação/perícia do corpo. Meu Deus, que sufoco, só peço a que deixem em paz.






sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Uma simples assinatura

 






sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Pássaro Negro

 


Avó e neta cruzaram o Callejón del infierno para acessar a Plaza Mayor. Tereza esperava ansiosa pela coincidência. Num outubro do Século XVIII, noutra noite de Lua Cheia, a praça ardeu em chamas e o arco de entrada da praça transformou-se num portal para o inferno.

No momento em que se preparava para um ritual, a mulher acusada de prejudicar o herdeiro do trono espanhol Carlos II - O Enfeitiçado, foi capturada pela Inquisição e enviada imediatamente para a fogueira. Ela tentou, mas o rei não tinha cura.

Conta a história que o fogo ateado não queimava a mulher. Ela irradiava muito calor a partir do centro de sua testa, o que provocou ainda mais fogo, levado pelo vento e incendiando a praça.

– Vó, se temos costumes diferentes, por que usamos fantasia hoje?

– Aproveitamos os costumes deles para nos mantermos incógnitas, parecendo pessoas comuns, brincando com todas as outras que se vestem de bruxas, fadas, duendes e tudo mais.

– Mas por que no passado eles perseguiam as feiticeiras? – questionou a curiosa Anna.

– A ignorância, a ânsia pelo poder motivou as perseguições. Quando não sabiam como explicar algo, transferiam o seu ódio para aqueles que faziam experimentações e buscavam repostas, cura para aquilo que afetava a vida das pessoas. Achavam que sempre tínhamos más intenções. Apenas invocamos as forças da natureza, o destino escolhe os caminhos. É a nossa missão.

– O que vamos fazer, vovó?

– Hoje, a luz da Lua Cheia nos ajudará a criar um perfume capaz de encantar qualquer pessoa. Basta uma gotinha dele para que aquele que escolhermos faça tudo que desejarmos, ao menos por um dia. Se ingerida, a mesma gotinha será capaz de prorrogar a vida de quem a absorve.

– É por isso que você vive faz tanto tempo?

– Acho, minha pequena, que você precisa saber mais sobre a minha, sobre a nossa história. Já atravessei muitos séculos. Em 1672, também numa noite de Lua Cheia, na véspera do Dia de Todos os Santos ou do antigo festival do Samhain eu estive aqui, para fazer a mesma coisa que você fara hoje pela primeira vez. Esta noite me rendeu a cicatriz em minha testa, similar a esta que você carrega. Não fosse o encantamento de minha mãe, eu teria perecido.

– Eu vou ser perseguida também?

– Talvez não, hoje todos são mais tolerantes. Apesar de, no passado, muitos inquisidores terem pago com a vida pelos seus pecados nas perseguições, alguns escaparam e aprenderam o segredo da vida prolongada. Também, com o passar do tempo, o dia preferido das feiticeiras foi transformado pela Igreja Católica, na véspera do Dia de Todos os Santos e muitos povos aproveitam os três dias para homenagear os seus mortos, em paz. Nós, comemoramos a vida.

– Já está na hora?

– Quase. Preste bem atenção, pois uma noite de Lua Cheia, num 31 de outubro, só acontecerá novamente daqui a dezenove anos, em 1939. Você terá vinte e sete anos e deve trazer a sua filha aqui, da mesma forma que faço hoje. Juntas preparem a poção.

Tereza tirou da bolsa algumas pétalas de gerânio-rosa, uma ametista e uma garrafa com água mineral. Anna levava uma pequena bacia de cobre. Tudo foi colocado na vasilha e por fim, Tereza agitou a água com um galhinho de alecrim. Os raios da lua intensificaram-se enquanto projetados sob a mistura. Anna, quase sussurrando, pronunciou uma espécie de oração, numa antiga língua Celta. Tereza a repetia. Não perceberam o sujeito de capuz que se aproximava.

Depois de alguns minutos exposta à luz da lua, a água apresentou tons de lilás e as pétalas se dissolveram por completo. Anna retirou a pedra e colocou tudo na garrafa.

Quando saiam, o homem, que carregava uma pesada Bíblia, segurou o braço de Tereza.

- Então, bruxa, pensou que escaparia! Não morreu pelo fogo, vai morrer pela minha adaga.

Anna, que segurava o frasco, o abriu com cuidado, molhou o dedo e passou pela marca na testa. Depois ordenou:

- Suba na torre da Real Casa de Correos e salte de lá.

- O Inquisidor não questionou e seguiu a passas largos em direção a Puerta del Sol.

Mãos dadas, Tereza e Anna saiam da praça. No beco, um rapaz tocava Blackbird ao violão.





quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Sangue é vida

      


Uma pessoa a querer ajudar e só se mete em sarilhos! 

Como vi que o meu riquinho andava com um ar debilitado, por não andar a comer devidamente, decidi ser simpática e arranjar-lhe uma bela refeição, bem a seu gosto. Telefonei, pois, a um talho que me tinham recomendado recentemente por ter coisas que outros não têm ou, aqui para nós, que não são lá muito legais, como certos tipos de mioleiras.

Bem sei que era de manhã muito cedo e não sou propriamente uma pessoa matinal e os números de telefone até eram parecidos, o que justifica a chamada errada, mas continuo sem conseguir entender como me meti nesta tremenda confusão. Muito francamente, culpo quem me atendeu por não se ter identificado devidamente.

A conversa começou até muito bem. Perguntei se tinham sangue e responderam-me que não mas que podiam arranjar se fosse urgente e de que tipo era. Respondi, claro, que sim, que era bastante urgente, mas um qualquer serviria, uns dois litrinhos para entrega ao domicílio no próprio dia ou, quando muito, no dia seguinte. Não,, responderam prontamente, não podia ser, não enviavam, tinha de ser no próprio local e só com atendimento pessoal.

Bom, isso estragava-me um pouco a surpresa, mas se tinha de ser assim, paciência, sempre era melhor do que nada. Pedi, pois, o endereço exato e o horário de funcionamento e, quando o riquinho acordou bem ao fim da tarde, lá o convenci, com grande custo, a ir até lá buscar o seu petisco.

O resto soube-o pelos noticiários, “Louco invade clínica veterinária a exigir sangue!”, “Violência numa clínica veterinária!”, “Caos animal numa clínica veterinária.” Resumindo, o riquinho entrou, viu toda uma série de animais e pensou que eu lhe tinha preparado um belo banquete.

Foi logo direto a um Serra da Estrela, que apesar de velhote e pacato não se deixou ficar. E, claro, a sua excitação alastrou rapidamente a quanto cão e gato ali estava, até mesmo a um macaco que a dona tinha tirado da gaiola de transporte para o amimar um bocadinho.

Resumindo, animais feridos, alguns por obra de outros da mesma espécie ou de variedades “inimigas, ataques de histeria de donos e empregados ali presentes e alguns ferimentos ao tentarem acalmar todo aquele caos e, claro, o riquinho preso. Tenho andado a tentar resolver o assunto com a ajuda de um advogado manhoso, o único que consegui arranjar, mas nem com ele consigo falar, está “em observação e em greve de fome”, é a resposta usual. Enfim, o que seria de esperar.

O verdadeiro problema vai ser quando ele sair, sim, porque mesmo que o condenem a pena não será grande, sobretudo se o seu estado de saúde se continuar a agravar, algo mais do que inevitável. A questão é, como é que se convence um vampiro de que tudo isto não p





sexta-feira, 3 de novembro de 2023

AUTORRETRATO IV

 


Eu sou aquele

que teve que recolher

o corpo da multidão sorridente

para não ser pisoteado por suas botas.

Eu sou aquele

que teve que lamber

as próprias feridas

para poder seguir em frente.

Eu sou aquele

que teve que enfrentar

o convívio cotidiano com a morte

por não ser adaptável às normas.

Eu sou aquele

que teve que se libertar

da imaginação literária

para poder sobreviver.

Eu sou aquele

que teve que aturar

um sorriso sardônico

no ambiente de trabalho.

Eu sou aquele

que se escondeu do palco

bem na hora da apresentação

por não saber representar.

Eu sou aquele

que viveu pelo caminho

com a consciência embotada

em consequência das pancadas.

Eu sou aquele

que digeriu todos os sapos

na falta de melhor cardápio.

Eu sou aquele

fantasma embolorado do armário

que mesmo revestido das melhores intenções

ainda assim foi recusado.