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terça-feira, 28 de maio de 2013

Cronista, um vira-letras de raça


Para ser cronista é preciso pertencer à raça dos “cães vadios, livres farejadores do cotidiano”; é preciso levar jeito para nadifundiário, para “apanhador de desperdícios”.

Com “(...) apenas duas mãos e o sentimento do mundo”, lá vai o cronista, escrevente crônico, “descobrir encanto e encantamento na busca desses brilhos do chão”.

Todo cronista é um homenino que insiste em manter residência fixa na infância e não abre mão de brincar com as patas do bicho alfabeto.

“Porta-voz do prosaico”, o cronista vive de freqüentar os subúrbios soberbos da vida menor e não deixa morrer em si “o desejo de estar disponível para ser encantado”.

Nada alegra mais o cronista do que colecionar “pedrinhas apanhadas no rio do cotidiano”, do que “cobrir de formiguinhas o açúcar do papel”.

Cronista é quem não resiste àquele “gostinho raro, escondido, de mexer com as palavras até que elas dêem uma resposta de si” e dos outros; é quem não se cansa de observar “a vida se vivendo nele e ao redor dele”.

Ser cronista é estar disposto a se entregar ao “imprudente ofício de viver em voz alta”, é deter o poder humílimo de capturar o (extra)ordinário que pousa “no chão breve do cotidiano”.

Porque seu ofício é “catar o mínimo e o escondido”, é “recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano”, o cronista embarca todo dia numa “viagem prazerosa e vadia pelo rés-do-chão, sem preparativos e sem agendas”.

Cronistas são “pequenos Noés que, diante do dilúvio do esquecimento, lutam para salvar em suas frágeis arcas de papel” resíduos da vida que corre sem parar.

Para as galas do papel, o cronista persegue arranjos verbais capazes de provocar “insuportável delícia auditiva”, façanha reservada a todos os grandes desse gênero tido como menor, estando o enorme Rubem Braga na comissão de frente.

Ah, quem dera que eu também pertencesse a essa raça de “cães vadios, livres farejadores do cotidiano”! Não sei se eu, pequenino cão, estou apto a latir algo cronicamente viável e à altura dos latidos de uma linhagem nobilíssima que abriga verdadeiros cães de raça. Não será demasiada pretensão de um vira-letras sem pedigree querer juntar-se a essa linhagem?

O que sei é que devo pedir a bênção de todos os que citei nesta crônica e mais: Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Alcione Araújo, Ivan Ângelo, Conceição Freitas, João Ubaldo Ribeiro, Humberto Werneck, Xico Sá, Joaquim Ferreira dos Santos, Luís Fernando Veríssimo, Antônio Prata, Ana Miranda, Marina Colasanti, entre tantíssimos outros.

Com a bênção de todos esses mestres em guardar fragmentos de vida no estojo das palavras, digo: eu também quero ser cronista. Eu preciso abrigar meus latidos nas margens do papel. É questão de sina, talvez. Repare o raro leitor que trago o verbo “latir” no nome.


(PSiu – Segue a autoria do que está entre aspas, na ordem em que aparece no texto: Marlyse Meyer, Manoel de Barros, Drummond, Mia Couto, Affonso Romano de Sant'Anna, Mia Couto, Eustáquio Gomes, Fabrício Carpinejar, Manoel de Barros, Clarice Lispector, Rubem Braga, Alexandra Rodrigues, Machado de Assis, Fernando Sabino, José Castello, Alberto Manguel, Nelson Rodrigues e Marlyse Meyer. Vale esclarecer que as citações de Manoel de Barros [segunda citação] e Clarice Lispector tiveram de ser ajustadas por causa da estrutura de terceira pessoa em que foram inseridas).    





segunda-feira, 27 de maio de 2013

Psicose

Ilustrado por: Robson Vilalba


Nunca fui de confiar em gente sem pescoço, mas aquele era o único sujeito disposto a levar-me a um bairro tão próximo - no taxímetro dava menos de quinze reais; e os motoristas que rondam a rodoviária costumam idealizar longas idas à Zona Sul ou, num golpe de sorte, à Barra da Tijuca, dando-se ao luxo de desprezar as corridas até o centro.

Ao abrir a porta traseira, reparei que estas poderiam ser mantidas trancadas pelo motorista. Prevendo um possível risco, deixei a mochila no banco de trás e sentei-me na frente. Era melhor mesmo estar perto, caso fosse necessário entrar em um combate corpo a corpo.

Ele ainda deu uma última tragada no cigarro antes de atirá-lo ao meio da rua para partir. Desde que entrou no carro, desleixado, sem nem colocar o cinto, fiquei de olho nos movimentos daquele sujeito mal encarado, meio corcunda para o lado direito - o que deixava o lado esquerdo um pouco abaixado, de barba e bigode por fazer, com um daqueles chapéus que não sei dizer se é uma boina ou um boné sem aba.
Durante o trajeto, tentei ficar em silêncio, mas, após alguns minutos, ele puxou conversa. Com um grunhido emburrado, tentei puxar de volta, mas ele insistiu, achando que eu não tinha entendido, e eu cedi. Acabamos trocando duas ou três frases decoradas sobre a violência na cidade - no dia anterior haviam roubado um cara da TV e deu em tudo que é jornal, os bandidos não respeitavam mais ninguém. Apesar da conversa, eu ficava atento a cada mudança de marcha, quase me precipitei a impedi-lo quando ele foi pegar o rádio para entrar em contato com a central.

Após meu engano, fiquei relaxado por alguns momentos. No entanto, ao olhar pela janela, percebi que estávamos passando por um viaduto pelo qual não deveríamos passar - ao menos não pelo caminho que eu costumava fazer. Em um primeiro momento, cerrei os punhos e contrai cada músculo do corpo, pensei que ainda podíamos tomar o rumo certo, quem sabe cortando por trás do Passeio, ou pela Tiradentes. Mas foi então que ele começou a desacelerar, em pleno viaduto, local desconhecido e perigoso, afastado das ruas mais movimentadas. Eu precisava ser rápido, utilizando as armas que tivesse no momento - que se resumiam a uma caneta esferográfica e um pacote de balas de menta. Em um movimento só, tirei a caneta do bolso, apertei-a contra o pescoço do safado e ordenei que acelerasse. Surpreendido em pleno pulo, ele começou a acelerar e tentou retrucar, disse-me que tinha família e que só estava tentando ganhar a vida. Não me deixei levar por aquele choro falso. Além do mais, para cima de mim é que ele não a ganharia. Ao alcançar quase cem por hora, puxei o volante para o meu lado, com toda a força possível.

O carro bateu no muro de contenção - por muita sorte não caiu do viaduto - e ainda cambaleou até o meio da pista antes de ser atingido pelo carro que vinha logo atrás. Eu, que estava de cinto, saí praticamente ileso. O pilantra, no entanto, que já devia estar de tocaia, pronto para me aplicar algum de seus golpes, morreu na hora, dizem que quebrou o pescoço com o impacto no volante. Eu duvido muito, aquele bandido nem tinha pescoço.







domingo, 26 de maio de 2013

Realidades

“Isto não é real” pensou subitamente enquanto limpava as lágrimas com o lenço já encharcado, “não é real, vem o vento e seca tudo, é como se nunca tivessem existido”.

“Não é real, são hormonas, é química, um desequilíbrio qualquer entre ácidos e bases, afinal somos todos uns conjuntos de química com bonitas caixinhas coloridas, pelo menos alguns de nós são bonitas caixinhas, mas o que interessa é que somos todos assim, equilíbrios vacilantes entre sais e vitaminas e… e… coisas, não é real, não é real, recompõe-te”.
As lágrimas caiam sem hesitação, inocentes de pensamentos, escorriam pelo rosto de dentes cerrados até o seu caminho ser interrompido pelo lenço húmido.
 “A vida é assim, não há volta para trás, é assim e vai ser assim até ao fim, não adianta nada essa parvoíce, recompõe-te, recompõe-te, se te vêem assim ficam tristes e, se nada podem fazer, porque é que hás-de entristecer quem gosta de ti? Isto não é real, vem o vento e seca tudo, é como se nunca tivesse existido. Recompõe-te, anda, isto não é real e magoa a quem não queres entristecer, recompõe-te, põe o lenço a jeito do vento, com o sol está quase seco, vês? Não é real, não é real, é como se nunca tivesse existido”.
Encolhida no banco do jardim público onde nunca passava ninguém, dobrava e desdobrava o lenço de papel, segurava-o entre dois dedos ao sol e à brisa, à espera do milagre de secagem que daria razão à voz interior.
"Há meses que é assim e agora é que te deu para isto? Que te dói, o gato que passou, o cão que te cheirou, as folhas a abanar na árvore? Nada têm a ver com nada e as coisas são como são. Esse peso não é real, são enzimas, hormonas, o sol põe-se todos os dias e tu não choras por isso"
 “Não adianta, choras, choras e depois? Fica tudo na mesma, é a vida e podia ser pior, tudo pode ser pior do que é agora, já sabes isso. Recompõe-te, recompõe-te, isto não é real, são os sais, as hormonas, sei lá, é uma coisa qualquer, não é real, não é real, vem o vento e seca tudo, não é real, recompõe-te, tens de ir para casa”.

Quando chegou a casa, sorria. A filha não deu por nada.





sábado, 25 de maio de 2013

Santos Populares



Joaquim Bispo

– Foi aqui que nasceu o António, em 1195, onde está agora esta igreja com o nome dele. – O homem, de cabelo crespo e barba, alargava o gesto enquanto caminhava. – Uma fidalga deu-o à luz a 15 de Agosto.
– Então, por que é que lhe fazem a festa a 13 de Junho: amanhã? – estranhava o companheiro, um homem de cabelo ralo e barba curta esbranquiçada.
– É o dia da sua morte aos 36 anos em Pádua. Aproveitou-se para dar cunho religioso a umas festas das colheitas que havia nesta altura. Mas esta noite é que são as grandes festas populares.
– Bonita igreja!
– O povo de Lisboa fez-lhe aqui uma capela, alargada para igreja no século XV. O terramoto deitou-a abaixo, mas foi reconstruída através de peditórios. Montavam tronos com a imagem dele, aí pelas vielas, e pediam umas moedas, como ainda hoje.
– Já era venerado!?
– Sim, e com razão! O António era um grande conhecedor das escrituras e um orador notável. No fim da vida tinha multidões a ouvi-lo e a crerem que fazia milagres. A fama era tão consensual que é, ainda hoje, o santo mais rapidamente canonizado: menos de um ano depois da morte.
O duo, embrenhado na conversa, ia descendo placidamente a Rua das Cruzes da Sé, enquanto a tarde caía, sem se aperceber de alguns olhares irónicos às suas roupagens.
– Ó, João, ele teve alguma formação? – perguntou o mais velho.
– Estás mesmo esquecido! Sim, estudou aqui na Sé até aos quinze anos e esteve mais uns três em S. Vicente de Fora. Depois passou sete anos em Santa Cruz de Coimbra onde foi ordenado sacerdote. O ensino lá era bom!
– Mas ele não era franciscano?
S. João encheu um pouco mais o peito semi-descoberto, sem suspirar.
– Pedro, ele ficou muito exaltado com a fé e o exemplo de cinco franciscanos que foram evangelizar os gentios de Marrocos e foram mortos pouco depois. Ele viu-os partir de Coimbra e viu chegar os seus corpos. Esse acontecimento representou uma viragem na sua vivência religiosa. Só então se mudou para os Franciscanos e mudou também de nome, porque de batismo era Fernando de Bulhões.
– Ah, sim?! – O rosto de S. Pedro adquiria um vivo interesse nas palavras do companheiro.
Agora entravam na Rua de S. João da Praça, embrenhando-se em Alfama. Aqui e ali cheirava a manjerico e a sardinhas assadas.
– Rumou também ele a Marrocos, mas adoeceu e acabou por ir parar a Itália.
– Bela terra! Bem, quando lá cheguei não era flor que se cheirasse, mas agora ninguém me tira Roma!
– Os ideais franciscanos estavam então a atrair vocações e foi o próprio Francisco de Assis que nomeou o António para ensinar Teologia em Bolonha. Também esteve no sul de França onde ganhou fama a converter heréticos.
Já havia muita gente nas ruas, mas ainda se andava bem. Chegaram a um pequeno largo onde estavam montadas duas esplanadas. S. João olhou a procurar mesa e virou-se para S. Pedro:
– Sentamo-nos?
– Sim, sim! Já descansava um bocadinho.
Instalaram-se, pediram caldo verde, sardinhas e vinho tinto.
– Estou impressionado! – S. Pedro avaliava o fluxo de gentes na rua.
– E ainda não viste nada! Nesta noite, há arraiais e bailaricos em todos os bairros e faz-se uma competição de danças marchadas. Há muito em que comparecer. Foi por isto que ele pediu desculpa e se despediu de nós tão cedo. E há também uma cerimónia em que casam, ao mesmo tempo, dezenas de pares de noivos, porque o António ganhou fama de casamenteiro. As solteiras fazem-lhe promessas, se o António lhes arranjar noivo. Quando isso não acontece é que é o diabo! Algumas vingam-se e viram-no de cabeça para baixo ou roubam-lhe o Menino. – S. João não se continha e ria divertido a imaginar a cara de enfado de Santo António quando lhe acontecia tal percalço. – Os pedidos são tantos e, às vezes, tão difíceis de atender, que nem com milagres!
S. Pedro acompanhava-o no riso em notas mais graves.
– Também ouvi dizer que fez carreira militar…
– Essa é a mais engraçada! No século XVII, um regimento de Lagos tomou-o como protetor e incorporou-o. E alguns anos depois promoveu-o a Capitão. Aquando das Invasões Francesas, foi promovido a Tenente-Coronel. Gratidão castrense!
Uma aparelhagem começou a tocar uma música popular.
– Tratam-no bem na arte? – S. Pedro ia tentando comer as sardinhas sem meter parte das largas mangas no prato.
– Sim. Geralmente tem o Menino ao colo e um livro. Também costuma segurar um lírio. Às vezes, tem o Menino sobre o livro, ou sentado ou em pé. Outras vezes representam-no a pregar aos peixes.
A música fizera aumentar a vozearia e era difícil ouvirem-se.
– Aos peixes? Isso não foi aquele padre jesuíta, António Vieira, não é?
– Sim, mas foi inspirado na pregação do António aos peixes, perto de Rimini. Aliás, já o Francisco de Assis falava aos «irmãos pássaros»!
Acabada a refeição, incorporaram-se na enchente de povo que percorria Alfama a comemorar o Santo António. Foi um erro. A progressão era difícil, os mantos de ambos enredavam-se nas outras pessoas, levavam empurrões e as sandálias não os protegiam das pisadelas. Num encontrão mais agressivo, S. Pedro voltou-se, de olhos raiados. S. João agarrou-o, gentil mas firmemente. Olhou-o nos olhos e disse-lhe muito sério:
– Pedro, tem calma! Já passámos por coisas piores, se ainda te lembras!
S. Pedro acalmou, mas resolveram sair rapidamente do meio daquela turba.
Apanharam um táxi e S. João foi acompanhar S. Pedro ao aeroporto. Abraçaram-se:
– Dá cumprimentos ao Chico. Diz-lhe que vou visitá-lo assim que acabarem as festas por aqui.
Depois, rumou à estação do Oriente para apanhar o comboio para o Porto. Ainda tinha três horas de viagem pela frente. Felizmente, não tinha pressa, que as festas em sua honra eram só lá mais para o fim do mês.










sexta-feira, 24 de maio de 2013

MEU AMIGO TURCO

Cheguei ao Japão em 2001, com a mala cheia de esperanças... e medos. Natural: era a primeira vez que saía de meu país e vim parar logo no Oriente, em meio a um povo e cultura sobre os quais conhecia muito pouco. 

Os primeiros dois anos, fiquei num alojamento para estudantes estrangeiros, e lá também minha personalidade retraída em nada contribuiu para que eu fizesse muitos amigos. Porém, houve alguns neste período. E, entre eles, destaco Orhan, um estudante turco que viera cursar o mestrado na Universidade de Osaka. Talvez a semente dessa amizade tenha sido a solidão em comum: eu, longe de meus pais; Orhan, da esposa e dos filhos. Mas prefiro acreditar que o motivo maior tenha sido as conversas sobre a fé. E, mais especificamente, os ensinamentos sobre a religião muçulmana. Sou de uma famílica tipicamente católica não-praticante (termo esdrúxulo, mas real), e o contato que tive em minha infância com a religião muçulmana foi através de uma tia, de origem síria.

Nas conversas com Orhan, meus conhecimentos aumentaram. E pude saber mais sobre o Alcorão e o ritual de jejum do Ramadã, além das mensagens de paz do Profeta Maomé (bem diferentes do que esta imagem distorcida que governos imperialistas tentam passar para vender armamentos, a religião muçulmana tem como princípio a paz e a tolerância). Porém, uma das coisas que mais me chamaram atenção foi a simplicidade do Islamismo: quando perguntei a Orhan o que era necessário para tornar-me muçulmano, ele respondeu-me: basta dizer que aceita a Alá. Simples assim. Simples como deve ser toda fé.





quinta-feira, 23 de maio de 2013

Santa Clara

Não quero ficar só,
ao teu lado.
Tenho medo de ti,
Tenho medo desse desejo que sinto,
Tenho medo de dormir ao teu lado e não acordar mais

Você é doce
embriago-me em teus jogos,
tuas promessas,
tua sedução

Perco-me em ti,
e
já não sei mais quem sou

Tenho medo de ti,
Tenho medo de estar contigo,
Tenho medo de quem sou ao teu lado

Não gosto desse eu contigo,
Mas sou fraco,
não resisto,
e,
mais uma vez,
entrego me a esse desejo,
desejo de estar contigo,
desejo de prazer
esse prazer que anseio cada vez que estamos longe,
esse prazer que só tu despertas em mim

Ao teu lado
Sinto-me cada vez mais vivo,
mas é mentira!
Eu sei que é mentira

é apenas um jogo! O teu jogo!
tua sedução, teus jogos novamente,

Todas essas armadilhas
apenas para que eu não perceba
que estou cada dia
mais morto.






quarta-feira, 22 de maio de 2013

As ervilhas

Tenho aguentado no osso do peito, que nem se fala aqui em casa, deboche, piadinha e uma porção de constrangimentos por causa dos meus pavores. Estou crescido para manter alguns medos, dizem com ar de maturidade, como se assombro fosse dente de leite, exclusividade da infância. Procuro ser reservado para que não notem os efeitos em mim e não tornem a futucar naquilo que julgam ser meu defeito. Particularmente, entendo por precaução o que acusam de falta de coragem. No fundo, acho que tenho azar. Muito azar. Só me ocorre esse nome para a quantidade de situações cheirando a ameaça que me aparecem. Deve haver alguma razão cósmica por trás dessa conversão em ímã de perigo. Faço esforço para não transparecer agonia, escondo o suor das mãos no bolso das calças e engulo a palpitação, mas desconfio que os meus olhos se arregalem e me denunciem. Sou o cagão entre os amigos, o perturbado no trabalho e o maníaco da família.

Quando me dou conta já fui invadido. Não sei onde o terror começa, desisti de explicar como se instala e por que demora a ir embora. Ninguém entende e quem tenta normalmente cria caso, querendo me curar, com exercício físico, terapia, reza, benzedeira, conversa fiada, até simpatia com cordão vermelho e capim já me ensinaram. Perda de tempo sem fim. É que eu pulei de fase. Parei de me rejeitar, de me judiar por sobrar um pouco aqui e ali. Excedo nos receios, é verdade, mas sirvo com justeza para tanta coisa que decidi me apegar à porção cheia do copo. E fico lá, grudado no que é presença, enquanto a próxima onda de temor não me avança e me esvazia outra vez. 

O processo é cíclico e semelhante à fervura do leite na leiteira: estou em paz até que algo se move de forma suspeita e dispara o pânico, que cresce, cresce, cresce e derrama, fazendo uma sujeira impossível de disfarçar, se o fogo não for suspenso. Agora, por exemplo, enquanto elaboro essas justificativas todas para ser do jeito que sou, é meu horário de almoço e estou diante de um prato quente e generoso de risoto. O aroma sobe até o meu nariz de faminto e esse seria um instante valioso de extremo prazer no meio do meu dia se as inúmeras bolinhas verdes que disputam espaço com o frango desfiado e o arroz não me fizessem recordar o caso terrível da mulher que se transformou em grão ao debulhar vagens na Páscoa, longa e aflita história. 

Percebo que estou imóvel diante da refeição. As pessoas das mesas próximas reparam e cochicham e me apontam. Calculo mentalmente o que fazer e decido pela estratégia que me proteja e afaste o apuro. Abro espaço com o garfo na lateral do prato e empurro cada ervilha para longe. Como o risoto com nojo, desprezando a ilha de bolinhas, cheio de náusea. Melhor seria não vê-las. Não tocá-las, sequer com a ponta dos talheres. Nem imaginar o estrago em contaminação de que são capazes. Melhor seria esquecer a mulher-ervilha, mas não consigo. Levo tanto tempo nessa cruzada que sou o último cliente no restaurante. A moça quer saber se estou satisfeito. Sacudo a cabeça que sim. Ela retira meus restos e segue ao pátio por uma porta lateral, onde despeja tudo. Um cão parrudo devora em segundos meu medo mais recente, e bebe água e baba. Então é tarde demais. Sinto minhas costas encurvarem, já sou quase todo ervilha, e nada pode ser mais assustador do que o cachorro que me espia pela fresta da porta.





terça-feira, 21 de maio de 2013

Noite

Gatos pardos
letreiros neon
Ilusões coloridas





segunda-feira, 20 de maio de 2013

O vento que bate no dente aberto


Sentaram-se na sala de espera do dentista. Eram os únicos.
- Walter?
- Moacir?
- Está me reconhecendo?
- Áiiiinnnffff! Infelizmente: Moacir Dantas Tomé.
- O mesmo digo eu: Walter Bentes Avelino, aiiiinnnffff!,
- Que coincidência dos infernos. Depois de tantos anos,
ficar lado a lado com você.
- O pior: na antessala do dentista. Muito azar.
Minha dor de dente é maior que a vontade de ir embora.
- Áááiiiinfff! Só de falar bate vento. Molar superior esquerdo.
Ou escapo de ver a sua cara. Ou escapo de um tratamento de canal.
- Seja homem uma vez na vida, Walter. Encare a minha presença,
o barulho do motorzinho e o vucovuco do ferrinho no dente.
- Ááááiiinnfff! Não me ofenda, Moacir. O tempo passou.
Agora o que temos em comum é dor de dente.
- Peraí, não começa, Walter. Nunca tivemos nada em comum.
- Não foi o que você pensou há tantos anos, Moacir.
- Você é um ressentido. E injusto. E sempre mal informado.
- Mal informado, é? Quer dizer que, depois de tanto tempo,
você nega que assediava minha secretária? Sabendo que eu era seu chefe
e que ela era minha amante?Áiiiinnnffff!
- Não nego. Mas também não tivemos caso algum. Já se passaram 22 anos,
Walter. De lá pra cá, eu e você juramos nunca mais nos encontrar.
Por que isso atormenta tanto sua alma diminuta?
- Porque a Belinha é minha mulher! Mãe dos meus filhos!
- Áiiiinnnffff!Você se casou com ela?
- Casei, e daí?
- Patife! Casou com a amante do trabalho, largou a mulher!
- Patife é você, que foi visto entrando num motel… depois do
expediente… áiiinnff!
- Prova.
- Detetive. Tive acesso a fotos. Você, num Fusca, com uma morena
de cabelo Chanel parecida com a Belinha. Parando na portaria, pegando a chave,
entrando na suíte 34. Você saltando, olhando para um lado e para o outro,
fechando a porta de esteira com cara de songamonga.
- Mau detetive, se quer saber. Considere a hipótese de não ter sido a Belinha.
E, se eu tivesse saído com uma garota de programa que era a cara da Belinha?
- Mais uma ofensa: Belinha nunca teve cara de piranha. Áiiiinnnffff!
- Considere que a piranha tinha cara de Belinha. Considere que poderia
ter sido um fetiche meu. Transar com uma sósia da amante do chefe,
do todo-poderoso Walter Bentes Avelino, arrá! E... aiiiinnnffff!
- Foi por isso que botei você no olho da rua. De um jeito ou de outro,
você foi punido pela intenção.
- Talvez sim, talvez não.
- Como talvez não?
- E se tivesse sido a Belinha mesmo?
- Belinha nunca teria dado bola para um subalterno.
- E me demitiu por quê? Me humilhou por quê?
Espalhou que eu vivia espiando meninos no banheiro, disse que eu era a
desonra da firma. Por quê?
- Já disse. Você foi castigado pela sua intenção atrevida. Áiiiinnnffff!
- E se eu e Belinha tivéssemos vivido um tórrido romance clandestino?
Será que não foi isso? Pense bem: eu e sua amante numa fornicação selvagem,
arrasadora e enlouquecida, de explodir em gemidos, juras roucas de amor,
súplicas ao tempo que se estanque, êxtases e mais êxtases até cansar, até enjoar.
Não enjoar dela, claro, mas de ver sua cara coitada de homem casado, adúltero,
macho otário, traído pela própria amante.
- Para de me atormentar! Áááiinnnfff! O detetive não me garantiu que era ela.
Era pa-re-ci-da com ela! Você é que é um delirante covarde e incompetente
com as mulheres.
- Talvez sim, talvez não.
- Como assim?
- Bom, meu caro Walter, se quiser saber mesmo, chegue em casa hoje
e diga à Belinha que me encontrou no dentista. Se ela disser:
“O Moacir? Há quanto tempo?”, pense o que quiser. Se ele disser que não se lembra
de nenhum Moacir, piorou. Mas se ela silenciar, desconversar, fizer cara de bidê,
tire suas conclusões. A gente nunca sabe quando uma mulher está ou não está fingindo.
Diferente dos homens que gaguejam, a mulher faz cara de que nem está aí para a suspeita.
Lamento, mas sua dúvida continua.
- Você é um desgraçado!Áiiiinnnffff!
- Desgraçado e vingativo. Precisava o destino resolver nos colocar nesta sala de espera
para eu dizer essas verdades. Ou melhor, colocar mais dúvidas na sua testa.
- Você é bem filho daquela madame que espalhou doença para o batalhão inteiro
dos fuzileiros navais!
- Que é isso, Walter? Olha o que um ciúme requentado é capaz de fazer! Perdeu a compostura?
Deixa minha santa mãe no céu! Com licença, a atendente já está me chamando, cheguei primeiro.
- Vai, traste! Quero ouvir seus urros de dor! Verme! Purulento! Áááiinnnfff!!
- Com certeza não vou sentir nada. Já ganhei o dia, meu caro Walter. Sabendo que o próximo é você,
vou acabar com o estoque da anestesia.






domingo, 19 de maio de 2013

Contos premiados (sugestão de leitura)

(Maristela Scheuer Deves)

Intensos, precisos. E, em certos momentos, cruéis - como o é a própria vida, muitas vezes. Assim são os contos de Enquanto Água (Record, 160págs., R$ 27,90), do escritor gaúcho Altair Martins, livro que recebeu na última semana o 2º Prêmio Moacyr Scliar de Literatura.

As 18 histórias que compõem a obra estão divididas em quatro blocos - Chuva na Cara, Depois da Chuva, Garoa e Água com Gás -, e todas incluem algum elemento que remete à água do título. Cada texto é exato naquilo que quer contar, praticamente sem excessos, mas ao mesmo tempo criando cenários na mente do leitor.

O primeiro conto, Da Margem Futura, apresenta uma mulher que sofre com o marido, um pescador que sempre está bêbado. Antevendo um futuro triste para sua filha, ainda bebê, ela fica tentada a aceitar a proposta de Rubem, dono de uma fruteira, que quer que ela deixe o marido e atravesse o rio à noite para encontrá-lo na Argentina. A trama, aparentemente simples, é entremeada de angústias, indecisões, cheiros e esperanças - e com um final, no mínimo, inesperado.

A mesma angústia está presente em praticamente todos os outros contos, em maior ou menor grau. As temáticas, entretanto, variam. Há o homem que sofre com a separação da mulher e das filhas e que se torna vítima de ataques de pânico, em Presença. O advogado que pode ou não ter tido um filho, em O Vão Esquerdo da Ponte. Os rios que somem, no curto Quase Oceano, Quase Vômito. A mulher acusada de causar tempestades devido a uma traição, em A Última Mulher Adúltera. Essas e outras histórias são contadas em tom muito vívido, de forma que o leitor se vê partilhando os anseios, sofrimentos e expectativas dos personagens.

Tal qualidade, por certo, foi decisiva para Enquanto Água ser escolhida como vencedora do prêmio, concedido pelo Instituo Estadual do Livro (IEL), ligado à Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul, e pela Associação Lígia Averbruck. Vale, entretanto, dizer que esse não é o primeiro prêmio recebido por Altair Martins. Com o mesmo livro, ele já havia vencido o Açorianos e sido finalista do Jabuti, na categoria Contos. E, anteriormente, com outras obras, venceu duas vezes o Prêmio Guimarães Rosa (1994 e 1999), outro Açorianos (2000), o Josué Guimarães (2001), o Luiz Vilela (2000) e o São Paulo de Literatura (2009), este último com o romance A Parede no Escuro.

Qualificativos mais do que suficientes para garantir que vale a pena a leitura dos contos premiados.

***

Em tempo: o prêmio para Altair Martins foi de R$ 150 mil, além de uma edição especial da obra, pela Corag, a ser distribuída gratuitamente em bibliotecas e pontos de cultura gaúchos.





sábado, 18 de maio de 2013

A PRIMEIRA BICICLETA


Otávio Martins

    A primeira bicicleta era apenas uma referência a certo período da sua infância.  Somente foi aprender a andar em uma, quando já era adolescente, lá pelos seus doze ou treze anos de idade.

   Quando tinha sete anos, seu pai perguntou o que é que ele gostaria de ganhar naquele Natal, do Papai Noel. Não titubeou em responder-lhe que queria ganhar uma bicicleta.

   Toda a tarde costumava ir para frente da sua casa e ficar, por um bom tempo, a olhar a passagem dos bondes – alguns com reboque – quase todos superlotados; a maioria dos passageiros era de operários que voltavam para as suas casas. Os que não vinham nos bondes usavam bicicletas como meio de transporte. De bonde ele já tinha andado várias vezes, o que lhe fascinava era a possibilidade de um dia poder manejar uma bicicleta, igual àquelas dos operários que passavam todos os finais de tarde, bem ali à sua frente.

   Seu pai só voltava da marcenaria do avô - pai de sua mãe – onde trabalhava, no início da noite. Com o irmão, costumava brincar de escolher uma bicicleta dentre as tantas que passavam. Quem visse primeiro seria o “dono”. Tinha que ter o olhar atento para gritar de pronto: “Aquela é minha!” Seu irmão era mais velho e quase sempre conseguia ficar com as mais bacanas e mais bem equipadas: dínamo, farol, bagageiro e até umas com aro de corrida e pneus de borracha maciça – sem câmara; campainha inoxidável e tudo. Tinha uma Halley Sport prateada, que era o seu xodó. Só uma vez conseguiu ganhar do seu irmão e ficar com ela. O sujeito passava o mais próximo possível de onde ele costumava ficar sentado, numa marcha muito lenta, dando a impressão que assim o fazia só para aguçar a sua evidente admiração e inveja.

   Ao lado da casa onde morava, tinha uma fábrica de inseticida, o qual era acondicionado em vidros pequenos, médios e grandes. Para usá-lo era necessário que fosse colocado naquelas máquinas de flits - bombas como costumavam chamar. Era, literalmente, uma fábrica de fundo de quintal.  As entregas dos produtos eram feitas em bicicletas. Tinha como cinco ou seis equipadas com grandes bagageiros; uns traseiros e outros – com as quais ele mais se adaptava – acima da roda dianteira, que parecia proporcionarem mais equilíbrio. Foi numa dessas que o filho do dono da fábrica ensinou-lhe a andar. Depois, para arranjar alguns trocados, escondido do seu pai, passou a fazer, principalmente aos sábados, algumas entregas ali por perto. Foi o primeiro e melhor trabalho de toda a sua vida. Sua mãe, provavelmente sabia, o cheiro de inseticida ficava impregnado na roupa. Era assim que ele garantia algum trocado extra para o cinema, aos domingos de tarde.

   No Sete de Setembro morria de inveja de alguns de seus colegas que desfilavam em suas bicicletas enfeitadas com pequenas bandeiras brasileiras, uma de cada lado do guidão; entrelaçadas com os raios, as tiras de papel crepom verde e amarelo refaziam o desenho das rodas, formando espirais que lembravam cata-ventos, produzindo um efeito de embaralhar a vista. E ele, lá atrás, marchando feito um pequeno soldado.

  Mais tarde, já no ginásio, passou a sair na banda, que desfilava logo depois da apresentação da escola. Na frente, os ciclistas, faixas, estandartes, bandeiras... Foi salvo pelo ouvido; tocava flautim – ou flauta doce. O fardamento era um luxo: Quepe, túnica com botões e galões dourados, polainas de couro brancas. Porém, o pelotão das bicicletas – que era o sonho guardado - jamais alcançou.

   Naquele Natal, ganhou um caminhãozinho todo feito de madeira, com carroceria alta, molas e, até, estepe; réplica perfeita de um caminhão de verdade, toda envernizada. Reconhecia que era uma jóia – seu pai era ótimo nesse tipo de trabalho – mas não

poderia se comparar à sua tão esperada bicicleta. Jamais falou isso para o pai.

      A partir daquele Natal nunca mais esperou nada do Papai Noel.





sexta-feira, 17 de maio de 2013
















                 Admiro o pé de bambu. Tudo aquilo, sai de um lugar só.
   





quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pele de cordeiro, bafo de lobo



"Se os fatos são contra mim, pior para os fatos".
 [Nelson Rodrigues] 
Domingo. O senhor Romualdo esperava numa poltrona confortável que o carro do neto estacionasse na porta da frente. Iria à missa matinal, sentaria no banco da frente, de cara para o celebrante, levantaria o corpo minguado para as orações e se recostaria no banco de madeira para a preleção, como os demais fiéis, sem se importar com as pessoas piedosas que lhe diziam para não fazer tanto esforço. Aos 82 anos, ainda tinha vigor.
Na igreja, olharia com orgulho para o neto ao seu lado. O filho, Alberto, nunca gostara de missa nem de religião, mas o neto, Lucas, havia puxado a ele, que era carola desde menino. E sentir-se-ia feliz quando o rapaz o amparasse para não deixá-lo cambalear. Que paciência tem este meu neto! Sempre cuidando de mim, repetiria um pensamento.  Em seguida, se concentraria para saborear a rotina da missa até que, ao final da cerimônia, o padre se aproximaria do seu banco e lhe daria a comunhão antes dos demais, numa deferência à sua idade avançada.  
O velho Romualdo era mesmo um homem de igreja. Aos sete anos, idade exigida na sua época, tomou-se de tal fervor para receber a primeira eucaristia sem nenhuma mancha de pecado que decidiu, por vontade própria, suspender o futebol e os passeios que o pai lhe concedia aos fins de semana. Nada de distrações até o dia especial.
— Preciso estar puro, mamãe, puro para receber o corpo de Cristo — dizia ele, mãozinhas postas e olhos no céu.
— Mas Rominho — ponderava ela, orgulhosa — desse jeito teremos um sacerdote na família!
O menino, porém, continuava a recusar-se às idas ao jardim zoológico, à cachoeira, ou a qualquer outro lugar em que a intenção fosse divertimento. E no dia da primeira comunhão, vestido de branco, terço entre os dedos e cabelo fixado por gomalina, Romualdo abriu a boca ao consumo da hóstia como as virgens se entregam ao primeiro beijo.
Quando conheceu sua primeira esposa, Idalina, Romualdo já tinha 28 anos e os pais lhe cobravam, havia algum tempo, esposa e netos. Apaixonou-se mais pela beatitude da moça que por seus dotes de quituteira, bordadeira e pianista. "Posso saciar o estômago, os olhos e os ouvidos com alimentos mundanos, mas é a consistência da alma que me sacia os sentidos", disse à dona Ester, mãe daquela jovem de 18 anos que se encantou de imediato por ele. Desde então, tornou-se o pretendente ideal para Idalina, com todas as bênçãos da sogra. Firmaram compromisso e casaram-se três anos depois.
Dona Ester, aos 35 anos, era de uma beleza madura. Já o sogro, que aproximava-se dos 60 anos, não era nem mesmo simpático. Romualdo, no entanto, identificara-se desde o início da vida marital com aquele homem sisudo, evitando de forma quase indelicada a mãe de sua esposa, de quem dizia não gostar sem explicar por quê. Aos amigos, vira e mexe confessava não entender como Idalina, “quase uma santinha”, pudera ter nascido de uma mãe como aquela. E calava-se, atiçando a curiosidade de todos. Por isso, o espanto foi imenso quando, por ocasião da viuvez da sogra, acontecida logo após o casamento dos dois jovens, Rominho a convidou para morar com eles. E insistiu.
Idalina irradiava alegria com a presença da mãe, a quem amava e respeitava como boa filha, e passou a cobrir Rominho com mais mimos ainda, em agradecimento.
— Agora, meus dias são mais curtos até a hora em que você volta do escritório, meu bem — dizia-lhe constantemente, olhos brilhantes — Mamãe me faz companhia, me ajuda a costurar, a fazer compras, a preparar o seu jantar.
E assim foi. Até que Idalina morreu de parto prematuro, deixando vivo o pequeno Alberto. Primogênito e filho único, o menino entrou em casa no colo de dona Ester, ladeada por um Rominho entristecido e pensativo. Atrás deles, com ar de tédio, uma enfermeira vestida de branco esperava sem saber o que fazer.
— Quer segurar seu filho?
— Não, dona Ester. Não quero pôr as mãos na criatura que me tirou Idalina! — respondeu com um soluço.
— Mas a criança é inocente — ela retrucou.
— E por acaso eu tenho culpa de ter ficado sem a minha mulher?
A enfermeira, olhos virados para o lado, fingia não ouvir o diálogo entre eles, mas o excesso de desinteresse a traía, demonstrando que seus ouvidos engoliam as palavras trocadas ali para fazê-las jorrar, mais tarde, nas rodas de mexericos do bairro onde morava.
— Chamou o filho de assassino! — diria.
— Coitadinho! — se apiedariam os vizinhos.
Encerrando o curto diálogo com a sogra, Rominho deixou-se cair na chaise longue onde Idalina costumava tirar pequenos cochilos ou ler revistas para senhoras, e dona Ester retirou-se com a enfermeira e o bebê para o andar de cima. 
A campainha da porta tocou. Dois policiais procuravam “pelo senhor Romualdo Diniz”, como informou a empregada a Rominho, que se levantou lentamente para atendê-los.
— O que os traz aqui? — perguntou, com cara de poucos amigos.
— Uma denúncia — respondeu o mais velho — uma denúncia do hospital-maternidade.
Sobressaltado, Rominho buscou o apoio da mesa.
— Do que se trata? — quis saber, cauteloso.
— Maus-tratos seguidos de morte.
— Como?!
— Dona Idalina Diniz veio a óbito em razão de espancamento. O obstetra que a atendeu nos informou que o parto foi prematuro porque ela já apresentava um quadro recente e agudo de hemorragia interna — explicou o mais calmo dos dois.
— Espancamento? Como? Os senhores estão dizendo que...
— Senhor Romualdo, nós precisamos que o senhor nos acompanhe até a delegacia para algumas declarações — cortou-o o outro policial.
Idalina havia mesmo morrido em virtude de violência. Empurrões, sacudidelas, pancadas com objeto arredondado — leu o promotor, durante o julgamento. Mas nada foi provado contra Rominho, que se safou de qualquer responsabilidade pelas mãos de um advogado experiente. Os amigos, os empregados, os sócios do escritório calaram-se. Alguns por desacreditarem mesmo que ele pudesse cometer tal barbárie. Outros porque lhe deviam favores ou dinheiro e não queriam aborrecê-lo. Porém, o que mais os impelia a confiar na inocência de Rominho era que dona Ester o apoiara durante todo o julgamento e, ainda por cima, continuava a morar com ele e o pequeno Alberto.
Dois anos depois de enviuvar, Rominho conheceu Marialva, uma cópia moral da falecida. Igualmente recatada e mansa, a moça possuía, ainda, um grande predicado: era rica, muito rica. Casaram-se. E Marialva seguiu feliz em sua rotina de dona de casa apaixonada, até que um médico lhe tirou de vez a esperança de ser mãe: era estéril. Desse exato dia em diante, perdeu o juízo e desligou-se da realidade. Deixou de cuidar do pequeno Alberto, passou a agredir dona Ester, a espiar as empregadas atrás das portas, a rasgar as roupas de Rominho e a repetir para os vizinhos e transeuntes, aos berros, da sacada de seu quarto: "Eles querem me matar! Eles querem o meu dinheiro". O próprio pai internou-a, condoído pelo estado lastimável da moça. E no dia seguinte, para relaxar, como aconselhou Rominho, partiu com o genro para uma pescaria prolongada, onde os dois se consolaram e prometeram fazer de tudo para ajudar Marialva a melhorar. Isso nunca aconteceu.
Com os anos, o menino Alberto, que brincava e ria e cantava para o pai e para avó perdeu seu viço, tornando-se subitamente um homem amargo e desconfiado. Saiu de casa e só voltou para apresentar ao pai sua esposa e o pequeno Lucas, desaparecendo de novo, em seguida, por muito tempo. Aos 18 anos, Lucas procurou o avô e pediu para morar com ele. Desentendia-se com a rudeza do pai. Desde então, avô e neto tornaram-se unha e carne. E o rapaz era a alegria de Rominho. 
A missa terminou. Avô e neto partiram sem pressa para outro ritual dominical: visitar dona Ester no asilo elegante para doentes mentais. A visita seria de meia-hora, seguida de um farto almoço, cujo cardápio era sempre escolhido por Rominho. Naquele domingo, porém, encontraram a idosa arquejante.
— Não completo os 90 anos, Rominho! — disse ela, voz fraca, ao genro.
— Que bobagem bisa! — atalhou-a Lucas — A senhora ainda vai pegar no colo um filho meu!
Olhos esbranquiçados pelo tempo, trêmula, dona Ester pediu ao bisneto que pegasse uma pequena bolsa sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama. Com a respiração entrecortada, disse ao rapaz:
— O que está aí dentro lhe pertence. 
Perdeu a consciência de imediato e nem o médico de plantão, nem os equipamentos modernos daquele asilo de luxo a puderam salvar. Rominho, estranhamente calmo, parecia aliviado pela morte da sogra com quem dividira, por anos, o mesmo teto.
Em casa, naquela noite, Lucas lembrou-se da bolsa que jogara sobre a cama ao chegar em casa. Dentro, folhas de papel amareladas e dobradas, que ele colocou esticadas sobre a escrivaninha. Reconheceu de imediato a letra irregular da bisavó materna:                
Lucas,
 Quando você ler esta carta, já estarei morta. Escrevo para lhe contar algumas coisas sobre o seu tão amado avô Romualdo. Não acredito que ele tenha coragem de lhe dizer que fui eu quem matou a minha filha, sua avó Idalina. Mas tenho medo de que ele o engane com meias verdades e siga sendo essa criatura que o mundo julga inocente e honesta. Ofereço a você a verdade inteira.
Idalina morreu em consequência da surra que eu lhe dei. Foram socos, pontapés e muitas pancadas com a escova de cabelo. Eu não tinha intenção de matar a minha filha. Mas matei. Não contava com a hemorragia. Seu avô se salvou por milagre das acusações que quase o incriminaram como assassino. E você deve estar agora horrorizado, perguntando-se por que foi que eu fiz isso.
Rominho e eu nos tornamos amantes desde o primeiro dia em que nos vimos, antes mesmo de ele se casar com Idalina. No dia em que ela nos pegou fazendo sexo, de madrugada, avançou sobre mim, desesperada. Eu apenas revidei. Disse a ela que Rominho era meu, só meu! Mas ela avançou de novo sobre mim. Então, eu lhe dei uma surra. Idalina passou mal, foi levada às pressas para o hospital, seu pai nasceu e ela morreu de hemorragia interna. A polícia fechou o inquérito como “inconcluso”. Segundo eles, não havia provas suficientes para condenar seu avô. Rominho calou-se, com medo que eu contasse que ele era meu amante. Covarde! Seguimos morando juntos, sogra e genro. Seguimos amantes. Cúmplices. Até que aquela outra mulherzinha se meteu entre nós, e eu tive que me livrar dela também.
No mesmo dia em que Marialva soube pelo médico que era estéril, eu contei a ela esta mesma história que lhe conto agora. Disse a ela que Rominho e eu iríamos nos livrar dela como havíamos nos livrado de Idalina. Aquela idiota correu e perguntou ao seu avô se era verdade. Ele não negou. Apenas calou-se, como sempre, medroso. Ela começou, então, a enlouquecer, dia após dia, antevendo que teria o mesmo fim que Idalina. Patética! Depressão, disseram os médicos. Mas não é o que eles sempre dizem? 
Quando seu pai descobriu, foi diferente. Não era para ele saber de nada, mas nos pegou juntos na cama e avançou sobre nós, como a mãe dele fizera anos antes. Pensei que teria que acabar com ele, mas não foi preciso. Ele recuou e, depois disso, fechou-se em si mesmo e tornou-se uma criatura silenciosa; até que um dia partiu. E eu soube que Rominho e eu nunca estivéramos em perigo. Seu pai era tão covarde quanto o seu avô.
Há poucos anos, com a desculpa da minha doença, Rominho me internou aqui, nesta prisão de luxo. Pena que eu já estava debilitada e não tive forças para matá-lo. 
Estes são os fatos. Não escrevo para pedir perdão. Não me arrependo de nada. Fiz o que queria fazer e sou feliz por isso. Mas quero que você saiba de tudo. Porque Rominho, agora, não está mais em minhas mãos. Está nas suas.

Ester






quarta-feira, 15 de maio de 2013

o terceiro dia





          Cristiano tinha aquela ovelha e não tinha outra. Naquele dia a ovelha adoeceu, revirou os olhos, caiu de lado em frente ao meloal e, ali mesmo, Cristiano a considerou morta. E ali a deixou ao sol.
Cristiano semeava o meloal. Nunca o deixava por fazer, um ano após outro ano. Prometera ao pai. Vendia os melões na berma da estrada. Vivia disso, era o que diziam.
A ovelha morta ficou carcaça e encheu-se de moscas e de larvas e de odores pestilentos. Cristiano nem deu uma cavadela a enterrá-la, nem lhe jogou por cima uma pá de terra, e o que tinha sido bicho apodreceria.

****

Naquele dia, a preta tinha posto.
A preta era uma galinha. Cristiano tinha um galinheiro com um galo e umas quantas galinhas, mas poedeira e preta era só aquela.
Estaria o ovo algures pelas redondezas, que Cristiano ouvira o cacarejo da galinha anunciando.
O ovo estaria em qualquer sítio e daria um jantar e tanto, mas Cristiano não se mexeu a ir procurá-lo.
Atirou um pedaço de pau, e o Galego correu. O cachorro trouxe o pau nos dentes, e colocou-o aos pés de Cristiano que lhe deu o esperado afago e tornou a atirar.
A preta tinha posto.
Cristiano não irá procurar o ovo, que lhe custa muito ir por esse terreno abaixo, que ele nem sabe onde a preta faz ninho.
Que a galinha pusesse esse, e mais uns tantos, e um dia destes sairiam pintainhos. Cristiano havia de vê-la chocar e ficaria sabendo o que agora não sabe.
E Cristiano tornou a afagar o Galego que tinha ido buscar o pau e o colocava de novo ali ao lado.
O sol estava quase a rasar o horizonte.
Cristiano levantou-se, uma mão no chão e a outra no gargalo do poço onde estava encostado, e lá colocou na vertical o corpo escanzelado, quase só pele e osso. Ali ao lado dobravam-se, prenhes de frutos, uns pés de fava, que as senhoras tinham vindo ajudá-lo este ano a fazer o faval.
– Cristiano, a terra deste quintal é um encanto. Se tratasse dela tinha aqui de tudo.
– Além do meloal podia ter muito mais.
Eram assim as falas da Dona Ermelinda e das senhoras do Projecto designado assim tal e qual: “Dá-lhe uma enxada e ensina-o a pescar”. As senhoras que tinham vindo em dois dias: uma manhã e uma tarde em dias separados, e tinham-lhe dado sementes, e tinham deixado o terreno limpo. E na casa tinham também dado um belo arrumo.
Agora, as favas estavam cheias e haveria já por ali ervilhas e a salsa alastrara pelo canteiro por baixo da laranjeira.
Cristiano ficou de pé ao lado do poço. Tinha muito mais que metro e meio. É uma trave, diziam-lhe, ainda a mãe dele era viva. E Cristiano que não, que não lhe apetecia ir com eles jogar basquetebol. E os eles todos que o chamavam, a pouco e pouco, tinham desistido. Não falhava uma única bola, e era difícil negar-lhe um jeito inato para detectar uma avaria, fosse motor de mota ou de carro, ou o trator que o pai usava para revolver a terra depois de levantar o meloal.
Mas, se o chamavam, Cristiano dizia que não, que logo ia, que amanhã, que depois, e nunca arranjava nem que fosse uma avaria simples, e na oficina onde o pai tinha pedido: “o meu Cristiano tem jeitinho, é só ensiná-lo” tinham desistido.
Que é uma pena, mas a preguiça dá cabo do rapaz, diziam uns e outros.
Um dia o senhor padre disse-lhe, sem rodeios:
– Tu sabes, Cristiano que é pecado muito grave o que tu fazes. A subsistires nesse rumo, vais um dia arder nas chamas do inferno.
Mas Cristiano apenas quando está com fome se lembra desse dito que o padre deitou em cima dele. Apenas quando aparece o bicho que lhe rata uma parte interior do corpo. É só então Cristiano se dispõe a fazer alguma coisa que não seja passar os dias a atirar o pau ao cachorro ou andar pelas redondezas, sem rumo nem destino, uma palavra a um, uma palavra a outro, ou nem isso, apenas andar andando.
É assim Cristiano que nunca foi parvo.
Na escola a professora dizia: “o seu filho é inteligente, mas muito preguiçoso”.
Às vezes pensa se esta sua falta de vontade, esta preguiça imensa, será mesmo pecado. Se não será antes defeito com que ele tenha sido concebido, mal formação vinda nos genes. Coisa de um avô muito antigo. Herança que podia ter-se-lhe dado em zumbido nos ouvidos, ou mal formação no funcionamento de um dos rins, e que a ele tinha dado naquele anulamento com o que quer que fosse que necessitasse esforço.
Cristiano sem vontade de apanhar umas favas, tirar-lhes a casca e colocá-las num tacho com água. Água apenas, que sal não haveria, que ele nem foi comprar depois de ter gasto o que trouxeram as senhoras. Não aquelas do Projecto, mas as outras que vêm mensalmente. Trazem o leite que muitas vezes azedava. Cristiano não gosta de leite frio e aborrece-lhe fazer lume e o leite ali fica, e estraga-se. Cria uma crosta amarelada de tanto que o deixa na vasilha. E se o quisesse nem que fosse morno, não haveria gás. A garrafa acaba-se e é uma trabalheira ir buscar outra, cerro acima, cerro abaixo, que o depósito de reabastecimento fica, lá, no cucurito da Vila.
Cristiano nem gasta o dinheiro da venda dos melões, ou de uma ou outra galinha e de alguns ovos que encontre por acaso debaixo do nariz. Paga a luz e a água, mas nem arranja a casa que foi dos pais e está a cair de velha. Nem telhas novas, nem uma pintura.
Compra pacotes de ração para o cachorro e milho para as galinhas, e pouco mais gasta.
– Parece mentira, Cristiano! Com um terreno destes e nem milho aqui cresce para alimentar os animais.
Ainda anda por ali a ovelha.
As senhoras do Projecto também disseram:
– Mas deixe lá, daqui em diante vai tudo mudar, não é Cristiano?
Eram muito simpáticas, a Dona Ermelinda e as outras pessoas que tinham vindo com ela. E as favas tinham até crescido. E as ervilhas, e a salsa que parecia erva.
Mas Cristiano não colhe.
Preguiçoso. Mandrião.
Dizem assim uns e outros. Ou já nem dizem senão as velhas, aquelas senhoras que sabem todos os pecados. Os mortais e os outros.
Que ele um dia terá o pago, murmuram elas na falta de mais em que se ocupem. Que um dia Cristiano terá o castigo merecido por estar assim, a vida inteira, em pecado grave. E a dizerem deste modo, benzem-se e rezam-lhe pela salvação da alma.

****

Quando a ovelha morrer, Cristiano deixará que o bicho vá apodrecendo tal e qual deixa tudo.
O que ele faz em cada ano é o campo de melões.
Isso, ele tinha prometido e cumpre. E colhe-os e vende-os no mercado.
Mas não vai em busca dum ninho de galinha nem mesmo que seja a preta, e não arranja uma telha ou uma torneira. Nem apanha as favas, nem acende o lume a aquecer um leite, e frio nem vê-lo.
Hoje deitou-se com um ninho de ratos a mordê-lo por dentro.
Cristiano hoje abusou da sorte.
E terá sido este o terceiro dia de Cristiano. Que é ao terceiro dia que Deus toma decisões. Deus que é Nosso Senhor que está no Céu e alumia tudo, e escurece a noite, e envia a luz da lua. Esse mesmo que decretou que a preguiça fosse pecado mortal, decide sempre ao terceiro dia, dizem assim os livros.
E viria já Nosso Senhor matutando seriamente, de tal modo que o perfazer do terceiro dia terá calhado na madrugada do próprio dia em que a galinha preta colocou um ovo sabe-se lá onde. Precisamente dois dias depois de ter morrido o borrego. E no dia seguinte a Cristiano nem ter colhido sequer um pé de favas.
E Nosso Senhor lá do firmamento terá também notado aquela tineta de Cristiano em não aquecer o leite e deixar que azedasse. E terá dado pela falta de gás, e pela sujidade.
Terá sido de tudo isso que Deus decidiu, ao raiar do sol deste mês em que o meloal está quase, quase, e num tempo tal que, se as senhoras que tinham vindo em outros dias, as do Projecto e as outras, tivessem vindo assim tão cedo teriam visto o resultado da decisão d’Ele, que era Cristiano tão imensamente preguiçoso, que nem o cão a trazer-lhe o graveto, nem o sol a bater-lhe em cheio no rosto, nem o pingo-pingo da torneira do lavatório, nem o odor fétido do leite apodrecendo.
Ao terceiro dia, quando Deus decidiu, nada naquela casa tinha retirado Cristiano daquele seu viver para toda a eternidade em pecado mortal.

E eu que escrevo e conto, ainda assim me interrogo se Deus terá decidido do melhor modo. Se não seria precisamente esta a madrugada do dia em que um outro ser celeste, um outro ser igualmente poderoso e igualmente amante dos homens, urdisse o milagre de fazer de Cristiano um homem diligente. Que fosse esse o dia em que ele até cozinhasse uma perdiz trazida pelo Galego, ou fizesse lume para aquecer um leite, ou finalmente procurasse o ovo da galinha e arranjasse a torneira e desse um fim àquele pingo-pingo.