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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

SAMIZDAT 35


Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
Os Vestígios do Dia, Edweine Loureiro

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
A Herança , Raul Brandão

CONTO
Os números de Lucas, Joaquim Bispo
Anandaiê, Cláudio B. Carlos
O Doutor Adevogado, Henry Alfred Bugalho
A Sala Branca, Erik K. Weber
Tem Pagode no Kibbutz?, Edweine Loureiro
Um Baixo Ruído ao Longe, Fernando Domith
A Arca, Fabio Guimarães Bensoussan
Aspirações, Rodrigo Domit
Há Tanto Carro em Budapeste Hoje em Dia, Luís Felipe Sprotte
Terá Sido..., Maria de Fátima Santos
O Cemitério e o Sanfoneiro, Fábio W. Sousa
Da Utilidade dos Crachás, Zulmar Lopes
Trabalhando com o Batedor de Carne, Silvana Michele Ramos
Aquilo, Homero Gomes
O Transportador, Cinthia Kriemler
Um Pierrô Apaixonado, Otávio Martins

TRADUÇÃO
A Feitoria de Farhaj Bill Alí, Roberto Arlt
E que os Eunucos Bufem, Roberto Arlt
Diálogo de Leiteria, Roberto Arlt
Para Falar e Escrever Bem, Joseph Devlin, M.A.

ARTIGO
O Papel das Revistas Literárias para a Descoberta de Novos Autores, Henry Alfred Bugalho
As Mulheres de Amado, Karline da Costa Batista

CRÔNICA
Todos dizem eu te amo, Mariana Collares
Maxaquenina, Japone Arijuane

POESIA
A Autocomimimiseração das pragas urbanas, Volmar Camargo Junior
A Constelação de Leão, Volmar Camargo Junior
E Agora, José?, Tatiana Alves
Palavra de Pandora, Anna Apolinário
Mater Mare, Helena Barbagelata

Links para a SAMIZDAT 35

Scribd - http://www.scribd.com/doc/122456979/Samizdat-35
Calaméo - http://en.calameo.com/books/000002238ef0d5f7b9ef1





domingo, 27 de janeiro de 2013

O grande domador


O dono do circo, ao perceber que os animais andavam meio desanimados, por terem sido da floresta retirados – e porque agora não conseguiam mais perceber e coletar os frutos de seus esforços, sabiamente repetia, de jaula em jaula, noite e dia, o lema que assim dizia:

– O trabalho dignifica o urso!

– O trabalho dignifica o leão!

– O trabalho dignifica o primata!

Em pouco tempo, os animais já haviam assimilado o ditado e, na porta do circo, os candidatos formavam fila: queriam trocar a insegurança da selva por um emprego fixo, uma jaula de janelas gradeadas e, vez ou outra, um bom prato de comida.








sábado, 26 de janeiro de 2013

Dança morna

Dançai, dançai
A dança da alegria
No parque sem crianças
Na terra vazia

Dançai, dançai
A dança da vitória
No sonho sem gente
Na morte sem história

Dançai, dançai
A dança dos vivos
Na fonte sem água
Na jaula dos cativos

Dançai, dançai
A dança dos clamores
No chão sem pedras
No bosque sem flores

Dançai, dançai
Com energia
O futuro não vem
Venha a magia





sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Os números de Lucas


Joaquim Bispo

Ao José Espírito Santo, que me fez conhecer “Os números de Lucas”



Quando Édouard Lucas, no século XIX, elaborou a sequência numérica que é conhecida como “Os números de Lucas”, poderia ter imaginado também o seguinte episódio, porque não lhe eram estranhos Fibonacci nem os outros protagonistas que, ao longo dos séculos, estudaram as relações numéricas e o inexplicável eflúvio de beleza que algumas emanam, sobretudo a chamada “Divina proporção” ou “Número de ouro”.

***

Florença, ano de 1492. Enquanto Fra Domenico não chegava, Tommaso da Fiesole, acompanhado do seu aprendiz, Filippo, aproveitava o tempo na contemplação da Trindade pintada na parede interior da igreja de Sta. Maria Novella. Gostava da sua profissão de arquiteto, que não era fácil, mas admirava a capacidade dos pintores de transmitirem para um plano a ilusão das três dimensões, como Masaccio conseguira neste fresco.
– O Senhor esteja consigo, senhor Tommaso! – Era o frade, no seu hábito preto e branco. Com ele vinha um noviço.
– Como tendes passado, meu irmão? – respondeu, com um sorriso de ternura.
Tommaso sentia sempre alguma estranheza quando cumprimentava o seu conterrâneo e primo por «meu irmão». Tinham sido companheiros de brincadeira, mas cada um seguira o seu caminho – Domenico ingressara no convento de S. Marcos de Florença, e ele tinha feito o percurso dos aprendizes de artes mecânicas até atingir o atual estatuto.
– Ouvi dizer que estais a trabalhar para um sobrinho do senhor Lourenço de Médici.
– Sim, o senhor Ludovico. Saiamos! É mesmo por causa desse projeto que pedi para vos falar. Sei que vos tendes interessado pelo estudo das formas e das relações entre as suas dimensões. Eu, na minha profissão, não posso ignorar o valor exato da secção áurea, para a aplicar aos edifícios, ou não fosse essa relação tão agradável aos sentidos. E sei como, há muito tempo, o grande Fibonacci demonstrou a sua génese, de maneira tão compreensível. – Fez uma pausa a avaliar se Domenico queria responder.
– Sim – assentiu o frade –, partindo dos dois primeiros números, somava-os para obter um terceiro – o 3 – e, para obter o quarto número da sequência, somava os dois anteriores e obtinha o 5. – O frade aproveitava para ilustrar o seu pupilo. – E assim sucessivamente. Obtinha uma sequência que começava por 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. Parece uma brincadeira para obter o interesse de meninos na aritmética, mas a divisão de um número pelo anterior dá o valor da secção áurea ou divina, em que o valor mais pequeno – 5 pés da secção duma parede, por exemplo –, está para a secção maior – 8 pés –, como esta está para a largura total da parede.
O grupo afastava-se do bulício que envolvia a igreja e dirigia-se para o Duomo, através das ruas estreitas bordejadas de vendas, tabernas e oficinas de artífices.
– Ora, essa sequência levanta-me um problema – continuou Tommaso. – Tenho uma igreja para projetar para o meu senhor. As dimensões relativas das fachadas estão decididas. Mas os tamanhos não são tudo. Os elementos que as integram, pela sua forte individualidade, ganham uma força que é preciso ponderar. A fachada lateral, por exemplo, vai ter uma série de arcos monumentais a mascarar a parede da nave. A linha horizontal, que os capitéis das colunas geram, divide a fachada de tal modo que a distância do chão ao topo dos capitéis é exatamente 1,618 vezes maior que do topo dos capitéis à linha do telhado. Está, portanto, de acordo com a secção de ouro: a distância mais estreita está para a mais larga, como esta está para o total, do chão ao telhado. – Parou novamente, desta vez para respirar.
Havia alguma tensão na cidade, porque Lourenço, o magnífico, o patriarca da família mais poderosa de Florença, estava doente e Savonarola, o prior de S. Marcos, não cessava de clamar contra o luxo e o paganismo da sua corte.
– Então, o que vos preocupa? – perguntou o frade.
– O número de arcos que devo projetar. A relação dourada é obtida com números inteiros. Se ponho oito arcos no lado, deveria pôr cinco portas na fachada principal, o que é muito. Para pôr três portas, deveria pôr só cinco arcos, para respeitar a sequência de Fibonacci, mas ficariam demasiado largos. – Agora o sobrolho de Tommaso mostrava-se carregado de preocupação.
– Ponde sete arcos no lado.
Tommaso parou e olhou diretamente para Fra Domenico, tentando descortinar algum sorriso. Mas o rosto do frade estava compenetrado.
– Mas 7 não faz parte da sequência!
– Não faz da de Fibonacci, mas faz da do Senhor. Há milhares de sequências. Quaisquer dois números a que aplicardes essa regra da soma sucessiva, dá sempre o mesmo valor de 1,618, a partir, aí, da décima soma. Todas apontam para esse número sagrado, mas a sequência 1, 3, 4, 7, 11, etc. faz parte das Escrituras. Há 1 só Deus, em 3 pessoas distintas, a cruz tem 4 braços, as virtudes são 7, os apóstolos fiéis são 11.
– Meu irmão, a sequência 1, 2, 3, 5, 8, 13, etc. está em toda a parte: no crescimento das plantas e dos animais, no corpo humano. Sabeis que a relação entre a falange e a falanginha é dourada, assim como a relação entre esta e a falangeta?
– Sim, sei, Deus fala por muitas vias.
Passavam agora por S. Lourenço, a igreja da família Médici. O templo estava cheio e cá fora havia uma pequena multidão a conversar em grupos. O governante estava muito mal, dizia-se.
– Há muito tempo que os Homens se aperceberam dessa relação, sob a qual as formas transmitem um aspeto completo, perfeito – prosseguiu Tommaso. – Pitágoras descobriu-a no seu pentagrama, Vitrúvio aplicou-a aos edifícios dos Romanos, Leonardo encontrou-a no corpo humano. O nosso Piero della Francesca é exímio a aplicá-la nas suas pinturas. Por isso, elas nos parecem tão perfeitamente equilibradas. Conheceriam estes homens a sequência desses vossos números?
– Meus, não! Mas estou certo que um dia alguém lhes dará o nome de um sábio.
– Custa-me muito aceitar que possa ser perfeita uma sequência que não tem o 2, o número do casal, a base da sociedade dos Homens.
– Pode ter, se quiserdes. Tem o seu lugar de direito, mesmo na origem, antes do 1.
Tommaso olhou para cima, pensativo. Via-se que ficara impressionado.
– Antes do 1?! Sabeis o que pensa o vosso prior sobre estes assuntos?
– A crítica dele não atinge especificamente questões estéticas, mas não vê com bons olhos a aproximação cada vez maior que a corte e os artistas, que para ela trabalham, vão fazendo aos textos pagãos dos antigos e à sua licenciosidade.
– Dizei-me, então, Fra Domenico, sete arcos na lateral era uma boa solução, mas como ficaria a frontaria? Não pode ficar com quatro portas, precisa de uma central.
– Como bem dissestes, a individualidade dos elementos é um fator muito forte de visibilidade. Mantende a simetria das três portas, mas fazei sobressair elementos que as enquadrem, colunas volumosas, por exemplo. Reparai que seriam quatro colunas – o 4 de que precisais.
– Interessante, irmão Domenico! – Parou, pensativo. Os seus olhos baixos moviam-se à esquerda e à direita. – Tenho que alterar o projeto. Acho que já sei como vou fazer.  
Estavam a chegar a Santa Maria dei Fiore. Já se ouvia a vozearia habitual. De repente, da esquerda, do palácio Médici, elevaram-se gritos, vários, intensos, angustiados:
– Morreu o senhor Lourenço! Morreu o senhor Lourenço! Deus tenha piedade de nós!
O grupo de Tommaso da Fiesole olhou-se inquieto. Depois, despediram-se rapidamente:
– Adeus, meu irmão. O vosso conselho é precioso; mas não sei se poderá ser concretizado, com os tempos que se avizinham. Temo que o filho de Lourenço não consiga resistir a Savonarola.
– Aqui para nós, senhor Tommaso, até eu! Que Deus vos acompanhe!



Catedral de Rimini, dita Templo Malatestiano, 800 – 1468,
com contributos arquitetónicos fundamentais de Leon Battista Alberti.





quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

ANO NOVO EM QUIOTO


     Templos, meditação, budismo... Esqueçam: fim de ano, o povo japonês quer mesmo é passear, divertir-se, ir às compras. Claro, uma passagem num templo – que em Quioto existe em cada esquina –, para pedir uma força aos deuses para o ano que se aproxima, nunca é demais (e se tiver uma moeda de cinco iénes, melhor ainda: esta moeda, pelo “buraquinho” no centro, tem o significado de abrir portas para a sorte). E cada templo tem um deus com uma finalidade específica. Por exemplo, em Marutamachi, local onde residem meus sogros, há um templo devotado a um deus que cuida de nossas pernas e costas. Eu somente entrei lá uma vez, em 2005, e o que me lembro é que estavam distribuindo saquê gratis. Desta vez, porém, o deus da preguiça dominou minhas pernas. Resultado: tive uma dor nas costas que me deixou prostrado os três dias em que lá fiquei. Na próxima, já decidi: levo uma garrafa de saquê para fazer as pazes com o deus.

    Mas claro que, estando numa família japonesa, outros rituais não deixam de existir no ano novo: por exemplo, pela noite, é costume degustarmos sobá – o macarrão japonês mergulhado numa espécie de sopa, acompanhado de tempurá, ou, simplesmente, camarão frito. O prato é chamado de toshikoshi-sobá, e seu simbolismo consiste no fato de que o macarrão, sendo longo, trará a quem o provar a longevidade desejada e, por uma relação de causa e efeito, também a saúde e a prosperidade.

    E, assim, às sete da noite, lá estavam meus sogros, minha esposa e eu degustando sobá e saquê – nunca é demais seguir a tradição, concordam? Mas, à meia-noite, não resistindo à invasão ocidental, optamos mesmo por estourar uma champanhe. E nos confraternizamos, intercambiando frases de Akemashite omedetou gozaimasu (Feliz Ano Novo, após a meia-noite – antes deve dizer-se Yoi o toshi wo, também significando... Feliz Ano Novo). Meu sogro, porém, apenas disse “hum” e voltou a dormir.

    No dia seguinte, meus sogros e minha esposa foram a Teramachi (ou Rua dos Templos). Para fazer compras.

   Eu fiquei em casa, ainda castigado pelo deus do templo vizinho, comendo pão com mel e assistindo a... Friends.

***





quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Crônicas de jornaleiro II

Vocês podem não acreditar mas se aprende muita coisa entregando jornais. Eu aprendi. A primeira coisa foi a sorrir. Ou teria sido dizer bom dia? Não lembro. Talvez, as tenham acontecido juntas porque era uma obrigação sorrir e dizer Good Morning (Bom dia). Estampar aquele sorriso no rosto independente se você estiver triste ou feliz; se alguém tivesse morrido ou nascido; se fizesse sol ou se chovesse. E chove quase sempre em Dublin.

-Good Morning, How are you?
- ‘Bom dia !!’ - respondeu-me Paul e logo perguntou, ‘Como você consegue estar sempre de bom humor. Faça chuva ou faça sol, você esta sempre rindo’.

Eu nunca soube o que responder nesses comentários. Eu apenas dizia obrigado. Mesmo se fosse em português eu não saberia o que dizer. Apenas ficava feliz em ouvir isso. É engraçado eu ‘estar sempre rindo’. Pelo que lembro, de quando trabalhava no escritório em São Paulo, eu tinha uma dificuldade para ser simpático, para sorrir. E hoje recebo elogios por isso, em um trabalho no qual ganho muito menos e pego chuva e frio. Acho é mesmo estranho, esse negócio de gente, esse negócio de ser feliz.

Aprendi outras coisas por aqui. Aprendi a ter horário fixo, acordar cedo. Aprendi que não gosto nem de acordar cedo e nem de ter horário fixo. Mas eu gostava do jornal. Na verdade, o que eu gostava mesmo eram das pessoas porque eu também aprendia com elas.

Logo no início, aprendi que o tempo passa. Percebi olhando para elas, para as pessoas. Percebia que o tempo passava, elas não. Eu dizia para mim, o tempo andava sem que as pessoas percebessem porque elas estavam muito preocupadas em andar e não em parar. E eu percebia porque as olhava de fora e porque parava bastante para elas.

Percebi quando a Lisa, uma grávida maravilhosa, começou a caminhar vagarosamente. Ela nunca pegava o jornal, mas sempre me cumprimentava com um bom dia com vivacidade. E tempos depois quando recebei um prêmio no jornal, ela parou e disse que eu merecia mesmo ter ganho o prêmio.

Certa vez percebi que aqueles eram os últimos dias da Lisa, em pouco tempo eu não a veria mais nas minhas manhãs. Então um dia aconteceu. A Lisa não apareceu. No terceiro dia que senti a sua falta chovia, chovia bastante. E naquela manhã, na chuva eu ria de felicidade. As pessoas deveriam se peguntar porque eu ria tanto, mas a minha felicidade era porque havia percebido porquê a Lisa não estava vindo. O bebê dela tinha nascido.

Que alegria aquela manhã. E tive muitas outras manhãs alegres no trabalho. Mas houve dias em que a felicidade não estava presente.

Uma manhã, fui trabalhar ansiosamente porque o meu afilhado iria nascer. Ele ia nascer longe, lá no Brasil. Na verdade era o padrinho que estava longe, mas mesmo assim estava ansioso. Eu não deveria usar o celular para fins pessoais, mas naquela manhã eu não respeitei a regra. Fiquei com o celular em alerta para receber qualquer notícia. Queria estar ‘presente’ ao nascimento porque eu estava contente, radiante.

Eu começara a trabalhar às 7h. Por das 8:30, recebi uma mensagem. Era no horário do mais fluxo de pessoas, mas eu não podia esperar. Pedi desculpas para algumas pessoas e olhei a mensagem. Parei. E então eu percebi que as vezes o tempo para também, para olhar para gente, para entender o que esta acontecendo. Eu parei por um segundo, mas para mim foi uma eternidade. O meu chão parou, as pessoas em minha volta esperando o jornal e eu não sabia o que fazer, então um deles, dos clientes, percebeu que algo estava acontecendo e puxou o jornal da minha mão. Voltei em cena, mas foi um dos únicos dias em que eu não consegui fingir o sorriso. Eu estava frio, congelado.

Eu só conseguia lembrar da mensagem que dizia ‘o bebe nasceu morto’. Ninguém esperava por aquilo. Eu não esperava por aquilo. Meu chão estava em outro lugar, não eu não tinha mais chão. Aquele foi um dos dias mais tristes para mim. Queria poder rir como quando o filho da Lisa nasceu, mas eu fiquei sem reação quando descobri que a vida que tanto esperávamos estava morta.

Eu tentava imaginar como estaria a minha amiga. Tentava imaginar a dor de você ver nascer; de sentir a vida dentro de você por meses e perceber que foi um sonho, que aquela vida não existe mais. Naquele dia que percebi que o maior risco da vida não é você morrer. O maior risco da vida é não viver.

Eu não podia fazer muito daquela hora. Só podia fazer o que tinha que fazer. Fingir um sorriso, dizer bom dia e continuar o trabalho. 





terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Sobre deus e maçãs

Vejo deus com certa frequência. Há alguns anos reparei que ele gosta de chegar pela manhã, ali entre nove e meia e dez e quinze, nos dias de sol. Não é dado a cerimônias, como as bocas ortodoxas insistem em sustentar. Estou convencida de que fazem dele um péssimo juízo e isso, no final das contas, atrapalha a todos nós, que temos obsessão por referências estáveis. Seria melhor, mais eficiente e decente se rezássemos diante de pilares de concreto, se o que nos interessa são crenças vagas e arremedos de espiritualidade. A questão da ilusão, aliás, é um tema recorrente em nossas conversas. Refaço sempre a pergunta sobre fé: o que tu ganhas com isso? Ele usa uma mesma reação, olha para a janela, sorri, então me olha de novo e convida a dividir uma maçã. Não gosto de maçãs, mas procuro tê-las em casa por dois motivos: por ele e pela minha úlcera. Costumo brincar que o estímulo divino mantém minha saúde gástrica: vai tudo bem, graças a deus! Não fosse pela lembrança dele, meu estômago murcharia tanto quanto a fruta esquecida na geladeira. Sim, ele prefere suas maçãs geladas.

Acho até charmoso deus assim, sentado no chão, as costas escoradas no sofá, uma faca a retirar a casca, partir a polpa ao meio e aparar as sementes antes de levar à boca nacos miúdos de maçã. O cara não tem pressa. Fica horas ali, comendo e falando e me ouvindo. Muitas vezes a fruta escurece na mão dele enquanto aguarda que eu fale alguma coisa útil. Coitado. Mas o homem vem porque quer. Nunca convidei. Percebi que quando chove ou venta, ou quando chove e venta, ele não aparece. Coincidência ou não, nesses dias é quando me vejo mais agoniada. Já falamos sobre isso também. De agonias. Não imaginava que deus tivesse palpitações, que sentisse a garganta fechando, que sua cabeça latejasse de preocupação ou ansiedade, que tivesse herpes ou aftas de aflição. Segundo ele, acontece seguidamente. São mazelas humanas, fiz gracinha. Não retrucou. Sacudiu a cabeça, apenas, e manteve-se em silêncio.

Da última vez que veio, coloquei meu cd do Gil naquela música “Se eu quiser falar com Deus”, certa de que estava surpreendendo. Pelo visto não agradei. A expressão do rosto de deus mudou de um jeito. A pele da testa fez três vincos na horizontal e tudo nele de repente ficou meio transparente. Disse que era a minha vez de ouvir. Tudo bem, consenti, e fui me acomodando ao lado dele no chão da sala. Grave, curto e grosso, confessou não ser quem eu pensava: de deus não tenho nada, querida. Estatelei, perdi a reação, as pontas dos meus dedos roxos de susto. Eu estava encostada em deus, perna com perna, como assim, não era ele? Não sou. Venho e permaneço até que te distraias e não lembres mais de te ferir com a faca das maçãs. Se nosso papo é bom, te fortaleces o suficiente até os próximos dias ensolarados e estás a salvo de ti. Deus de verdade tem um poder sem fim. Eu nem sei evitar temporais. Dependo do tempo aberto para cruzar a tua janela. Entendi tudo. Desde então chuvisca todas as manhãs até perto do meio-dia.





segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Aqui Jaz Lameque


Sujo, pervertido grotesco e bonachão, Lameque foi o pior poeta que eu já tive o desprazer em ler. Uma cópia mal ajambrada de Gregório de Matos. Contudo, diziam que seus contos eram bonzinhos, um Bukowiski mezzo-tupiniquim, mezzo-carioca com uma lábia forjada nos botequins fétidos de Copacabana. As personagens eram quase sempre oriundas do underground: bandidos, prostitutas, cafetões, desempregados, etc. Eu detestava seu estilo mas, como há gosto para tudo...

Lameque se foi. Dizem uns que morreu após devorar uma panqueca da carne (sua iguaria predileta) supostamente envenenada por um marido traído. Outros afirmam ter ele sofrido um ataque cardíaco em pleno ato dentro de um bordel copacabaniano. Nunca saberemos mas, ele deixou um legado, um pequeno e nada singelo livro de contos que, sabe-se lá porque, eu posto o link abaixo.





domingo, 20 de janeiro de 2013

Na fila


Encontraram-se no aeroporto.

- Você por aqui?
- Coincidência boa.
- Semana passada, fila do consulado americano, certo?
- Era eu mesma, atrás de você. Muito prazer: Rosana.
- Muito prazer: Leo. Conseguiu o visto?
- Consegui. Na verdade, não estava ali por causa de visto.
- Como assim? Você é como eu? Gosta de filas?
- Sou antropóloga. Estudo o comportamento das pessoas em filas.
A passividade, a indiferença, a ansiedade, o respeito, o desrespeito,
fila tem de tudo.
- Também sou um observador do ser humano. Escrevo livros de bolso
ordinários. Olho para as pessoas e fico imaginando um monte de histórias.
- Sabia que até as Olimpíadas de Pequim não existia fila na China?
- Li sobre isso. Imagina. Uma muvuca de chineses querendo entrar no
coletivo de uma vez só.
- E você? Vai viajar para onde? Leonardo, não?
- Infelizmente o Leo é de Leovaldo, mas deixa pra lá.
Vou viajar para lugar nenhum. Vou até o check-in e volto.
- Eu também tenho essa mania. Achei que era a única doida no mundo.
Encontrei minha alma gêmea.
- Olha aquele executivo apressadinho. Vai comer o celular.
- E aquela ali, com cara de artista plástica deprimida. Que tal?
- Aquele tem cara de mágico de festa de criança.
- Onde?
- Atrás do baixinho, tipo corretor de seguros e bandeirinha
nas horas vagas. Está de óculos escuros porque levou um soco do
atacante. Impedimento mal marcado.
- Ih …aquela acabou de botar botox.
- É, Rosana, a boquinha arreganhada não nega.
- Ali. A mulher riponga com criança no colo querendo furar fila.
É mole?
- Não vai colar. O menino deve ter uns dez anos. A Janis Joplin esperta
vai voltar pro fim da fila.
- Ôpa! Chegou a nossa vez. Meia volta!
- Sai você na frente, Rosana, por favor.
- Obrigada pela gentileza. E agora, vai para onde?
- Banco e você?
- Previdência.
- Essa é das boas. Ótima fila.
- São pessoas idosas, curvadas e humildes, carcomidas pela vida,
sem esperança, sem futuro, só passado. Me sinto bem quando estou
perto delas.
- O que você faz, distribui sanduíches?
- Converso. Aliás, ouço mais do que falo. O que essas pessoas querem
é atenção, falar com alguém, reclamar, resmungar, contar suas vidas.
- Boa menina. Invejo seu espírito generoso. Mudando rumo da prosa,
topa um cinema à noite?
Tem um novo do Woody Allen.
- O filme é bom, já vi. Mas a fila é ótima.
- Combinado.

Rosana chega esbaforida.

- Desculpe a demora, Leo. Passei em uma noite de autógrafos.
Fila com vinho branco vagabundo.
- Relaxa. A lotação está esgotada. Só na última sessão.
- Maravilha. Temos fila de sobra.
- E depois, boa menina?
- Fila de restaurante!
- Topo! Tem um japa que inaugurou ali na praça.
Restaurante da moda. Vive cheio.
- É esse.

Leo consegue falar com a recepcionista com cara de gueixa.

- Mesa para dois, por favor.
- Cinquenta minutos de espera, senhor.
- Sem problema. Pode colocar meu nome no fim da fila.

Rosana está embevecida.

- Você é o máximo, Leo.
- Temos todo tempo do mundo.
- Coitado daquele sujeito sozinho. Sabe, tenho uma dó danada de
quem numa sexta-feira sai para jantar sem ninguém.
- Que nada, Rosana, ele vai encher a carranca de saquê e mexer
com a garçonete nissei. O sushiman, que tem caso com a garçonete,
vai passar a faca na orelha dele. E servir com shoyo no papel laminado.
- Você é mau, Leo. Me mata de rir.
- Olha o casal ali. Ela impaciente, ele com cara de saco cheio.
Não trocam uma palavra.
- Por que se arrumam e saem para jantar com essas caras amarradas?
Casamento arrastado. Não tem mais assunto. Nem para brigar.
- Mas jantar fora sexta-feira é sagrado.
- Pois é, amigo. Tem louco para tudo.
- Ao contrário dos entediados, aquele casalzinho não para de se beijar.
- Também reparei, Leo. Beijos demorados, intensos. Só de olhar,
fico excitada. Por que não vão direto para um motel?
- O que você disse, boa menina?
- Sei lá…beijos intensos… excitada… motel… sei lá.
- Você me deu ideia. Depois de uma barca de afrodisíacos japoneses…
- Assim, sem mais nem menos?
- Por que não? Sexta-feira os motéis estão cheios. Fila automotiva
que não acaba mais. Dá tempo de sobra pra gente se conhecer.
- Você e seus argumentos. Temos muita fila para pensar no seu caso.

O carro para. Os dois recostam o banco e se viram um para o outro.
Ela tira a sandália, dobra as pernas, subindo acidentalmente a saia.

- Pronto. Quarenta minutos até pegar a chave da suíte.
- Melhor impossível, Leo.
- Acho engraçado ver os carros saindo.
- Reparou? Saiu um casal de óculos escuros. Uma hora da manhã. Pode?
- Lá vem mais um. Ó, é a mulher quem dirige.
- Vai ver que ela é quem paga o motel. Safado.
- Olha no retrovisor, Rosana. O casal de trás não para de gesticular.
Estão brigando?
- Nada mais reconciliador que um motel.
- Ou não. Vão entrar e brigar até ela enfiar o garfo na jugular dele.
Ela vai esconder o corpo no porta mala e sair sozinha cantando pneu.
- Olha lá. O carro da frente. O cara também está sozinho. Cadê a mulher?
- A mulher está com a cabeça abaixada, Rosana. Não dá pra ver.
Repara como o braço dele sobe e desce.
- Meu Deus, como sou tolinha!
- Tolinha… tolinha… que nada! Você deve ter uma fila de caras rastejantes,
um atrás do outro, esperando a vez.
- Eu, hein? Acho que você nem tem fila. Tem uma muvuca igual na China,
só de fêmea sedenta se estapeando, se pisoteando, para ver quem chega
primeiro.
- Fêmea sedenta é bom. Gosto disso.
- Precisa falar assim? Tão pertinho da minha boca?
- Pre-ciiiii-sa, vem cá, fê-me-a se-den-ta.

Enfim.
Foi Rosana quem retomou a palavra. Aos suspiros, ao pé do ouvido.

- Hummmm beijo gostoso, abraço gostoso, mão gostosa, gosto gostoso.
- Desconfiava disso desde a fila do consulado, boa menina.
- A fila andou.
- A minha ou a sua?
- A nossa! Olha pra frente, Leo! Não tem ninguém.
O cara de trás está piscando farol.
- Inveja.
- Stress.
- Gente maluca.
- Não sabem aproveitar a vida.

E ali mesmo, na cancela do motel, encostaram o carro no recuo da
calçada à meia luz, deixando passar uma fila imensa de casais convencionais
e apressados. Nem se perturbaram com os olhares curiosos.





sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

UM PIERRÔ APAIXONADO


Otávio Martins

Um pierrô apaixonado/ Que vivia só cantando / Por causa de uma colombina/Acabou chorando/ Acabou chorando... (Marchinha de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres – carnaval de 1936)
   
Já era o quinto ano que ele não saía para brincar os bailes de carnaval. Nos tempos de solteiro, quantos Bola Preta! Nesses cinco anos de casado, somente assistia o carnaval pela televisão. Ele e a sua mulher.
 
Na véspera das suas férias, uma sexta-feira, foi dispensado mais cedo. Passou no bar onde costumava na saída do escritório tomar um uisquinho ou uma cervejinha com os colegas, pediu um duplo. “Bastante gelo e bastante uísque!”. O suficiente para que tomasse coragem.

  Depois, saiu direto a uma loja ali do centro, a qual alugava trajes de todos os tipos e que, também, funcionava um brechó, lá no fundo. Na seção de aluguel, encontrou exatamente o que procurava: uma fantasia de pierrô. Acabamento e modelo dignos de uma peça da mais alta-costura. Era assim que costumava sair em outros carnavais. Com a intuição de que dali pra frente voltaria aos bailes do Bola, propôs ao dono da loja que vendesse aquela fantasia para ele. Valorizando a mercadoria, o proprietário argumentou que aquela roupa, ao contrário de muitas outras que ali estavam expostas, nunca fora preciso qualquer restauração ou reparo; estava “como nova”. Ele achou salgado o preço, a princípio, mas, acabaram por chegar a um acordo; bom para os interesses dos dois. Numa outra loja, logo mais a frente, comprou serpentina, confete e lança-perfume, além de alguns adereços e uma mochilinha, a qual serviria para carregar os seus pertences.
     
Ao sair do metrô, a dois quarteirões da sua casa, atravessou a rua e, no bar onde
costumava tomar a saideira, mais um duplo. Agora, seria preciso coragem para comunicar à sua mulher que, naquela noite, como nos velhos tempos, voltaria ao Bola Preta e que só retornaria a casa, como fora seu costume, na quarta-feira de cinzas.
 
Dona Melissa nem levantava os olhos, para não ter de cruzá-los com os do Aristeu, que, àquela altura, estavam totalmente ocupados com a maquilagem e os últimos preparativos para o seu grande retorno como autêntico folião do carnaval.
 
Quando voltou para casa, quase na hora do almoço, na quarta-feira de cinzas, com uma mistura de odores – lança-perfume, talco, desodorante vencido e outros – difícil de suportar e, também, de definir, desabou no sofá. Na quinta-feira, com a naturalidade de mais um dia de trabalho, levantou-se, tomou um banho, colocou o seu terno azul marinho, apanhou a 007 e saiu. Havia esquecido, completamente, das suas férias.                      
 
Essa agenda carnavalesca do Aristeu repetiu-se pelos próximos cinco anos, até que dona Melissa resolveu investigar qual era o balacobaco do Aristeu. Apesar de todos aqueles dias fora, nenhuma marca de batom, nenhum perfume ou qualquer outro cheiro que não fosse o seu (dela) ou daqueles que há muito tempo ele costumava usar, os quais ela já bem os conhecia. Nada, aparentemente, que pudesse comprometê-lo, ou “incriminá-lo”. E era justamente isso o que tornava aquelas suas incursões carnavalescas mais intrigantes ainda.
 
Com uma peruca loira, uma belíssima fantasia de colombina, uma máscara cobrindo-lhe quase todo o rosto, sapatilhas e pochete rosas, logo na sexta-feira, arriscou, de prima, o Bola Preta.
 
Do mezanino, vasculhou com o olhar, praticamente, todo o salão. O Aristeu, com todos os seus apetrechos, dançava, com visível entusiasmo, sozinho. Deu para perceber que não procurava qualquer companhia; não fustigava nenhuma foliona; não participava de nenhum daqueles cordões de salão, tipo trenzinho. Não paquerava ninguém. Alegremente, jogava confete e serpentina para todos os lados, em todos os foliões. Era, por assim dizer, um caso à parte.
 
Dona Melissa, então, resolveu aproximar-se - com todos os cuidados necessários para que não fosse reconhecida - e começou a insinuar-se para o Aristeu. Quando ele botou os olhos naquela colombina, a qual ele não conhecia de nenhum dos bailes anteriores, ensaiou, ao seu redor, alguns passos, como daqueles dos mestres-salas de Escolas de Samba e foi-se aproximando, aproximando, até que pegou em sua mão, cavalheirescamente. E não se desgrudaram mais por quase toda a noite. Quando muito, uma paradinha para ir ao banheiro, retomar o fôlego e, na passada, mais uma bebidinha, com o pretexto de manterem o ânimo que o reinado de Momo exigia.
 
Conversaram muito pouco; Aristeu fez algumas perguntas sem a menor importância, só pra puxar assunto, mesmo. Falou um pouco de si, que trabalhava muito e, como contador da firma, aquele serviço maçante... Os “benditos” balancetes mensais... Precisava, mesmo, tirar uns dias, lavar a alma... Que já estava no décimo ano de casamento... Quando foi interrompido pela colombina, que lhe perguntou por que não trazia a sua mulher para os bailes do Bola Preta? Afinal – palavras dela – “ali era um lugar familiar”. O Aristeu respondeu que sua mulher era uma pessoa muito recatada e, até mesmo para o baile do Bola, não tinha coragem de convidá-la. E continuaram dançando. Já estava um pouco embalado pelas caprichadas doses de uísque e inúmeras cervejinhas. De repente, olhou em volta e depois por todo o salão, a colombina tinha simplesmente desaparecido, como por encanto.
 
Desatinado, procurou-a por todos os cantos, depois, em outros bailes; não só naquele final de noite, no Bola, mas, também, pelas madrugadas do sábado e do domingo. Uma busca inútil.
 
Na segunda-feira voltou pra casa logo depois que amanheceu o dia, com a sua mochila, onde costumava carregar todo o seu material, cansado, desiludido com o carnaval. Não conseguia esconder a tristeza, em plena véspera da terça-feira gorda. Juntou tudo, inclusive a sua fantasia de pierrô e, com visível desprezo, enfiou tudo numa daquelas sacolas plásticas grandes de supermercado, jogando-a num canto qualquer do sótão.                                          
 
A partir daquela noite, voltaram, ele e a dona Melissa, a assistir o carnaval pela televisão.  Quando chegava a sexta-feira de carnaval, ele enchia quase meia geladeira de latinhas de cerveja, além de um litro de uísque sobre a mesinha da sala - para rebater – o que ele costumava chamar de quebra-gelo.
 
Sempre que a televisão mostrava alguns flashes dos grandes bailes, principalmente do Bola Preta, o seu olho corria ágil pelos quatro cantos da telinha, sob o soslaio de dona Melissa, na inútil tentativa de encontrar a colombina, pela qual havia, perdidamente, se apaixonado.





quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Amor, Beligerância
















Em minha casa tenho bilhas de água.
A sede não é tanta; plantas, só uma palma.
Tenho essas bilhas de água desde o dia
em que você nadou no rio dizendo que não voltaria.




***




Se é a melhor solução? Não sei ao certo, mas para mim existe um propósito próprio, uma lógica própria, um motivo e uma razão: não mais falar com você. Por que? Porque você já não faz mais parte da minha vida. Naquele dia em que você falou com as mais claras palavras: “eu não quero mais falar com você” eu não soube onde encaixá-la mais em meu coração. Aquelas não eram palavras, era aço afiado que cortou e arrancou. Então, dia após noite, lua após sol, após tanto tempo de mágoa contida, você se foi. Pensei que eu não pudesse, mas pude, e a cada dia que vivi sem você, percebi que eu vivia. Eu vivia, sim. Como seria viver sem você? Eu acabara de descobrir, e descobri, também, que nada mudara. Eu disse adeus e vivi. Viver, morrer, nascer, fazer sexo, gritar, apertar os punhos. Ora, sou apenas um homem, desses que passam em catracas de ônibus, que sonham e pulam buracos. Não sei das coisas óbvias da vida, sei que vivo sem você (e que alegria saber!) e saber que isso, agora, é óbvio, faria eu levantar, encher um copo com água e beber. Ou comer, ou dormir, ou trabalhar. Uma cura, sim, posso pensar em uma cura. Eu estou curado. Saudável. Mas você não é uma doença, um mal, uma peste. Ah, não, definitivamente um mal você não é. E quem disse que não adoecemos de coisas boas? Pudera eu saber das outras pessoas, mas eu sei apenas que adoeci de você e demorei muito tempo para me recuperar. Um momento. Meu coração não deixou de bater, não deixei de amar, nem de novamente sofrer. Por que digo para todos os lados que você tanto machucou? Porque assim eu desboto as últimas lembranças de você. Guardei seu olhar amoroso, seu sorriso, suas palavras que diziam meu nome, havia algo sincero nos dias que compartilhamos juntos. Olhei para trás, nos anos que vieram depois de você. Eles foram bons. Bons como os anos que vieram antes de você. Eu sou feliz por eles, por todos esses anos. Mesmo os seus anos foram bons. Surpresa. Você foi igual às outras, nem melhor, nem pior, foi uma das. Uma das. Uma delas. Aquelas pessoas tão seletas, que fizeram tanto amar como entristecer. Aquelas pessoas chamadas passado, que não voltam. Por que você não foi, por que você insistiu tanto para não ir? Eu que não desamarrava o barco do cais. Sendo assim, soltei o que prendia você e não quis ver a partida, fechei os olhos para não ver o rumo tomado nem dizer adeus. Era assim que decidi que fosse. Sem despedidas. Só aqui, no papel. Dizer adeus é para ser grafado e pintado na página em branco. Se você foi para o norte, para o sul, para o leste ou oeste, meu adeus é para todas essas direções. Quis apenas o adeus para todas as direções. Acenar como um doido para todos os lados, sem ao menos ver para onde você foi. Meu adeus é para todas as direções. Devo ser isso sim, um doido que não sabe para onde acenar e que acena de olhos fechados. Sem olhos eu não posso ver para onde você foi, e sem olhos não posso chorar, e sem chorar não posso sofrer. Sei agora como tudo é óbvio, e não lutarei mais contra ele. O óbvio. A lógica. A continuidade. Viva aos ponteiros do relógio que só param por falta de corda ou por pilhas gastas. Verei que o ângulo de noventa graus marca as nove horas, as vinte e uma horas, as três horas, as quinze horas. Todo dia, toda a noite, toda a noite, todo o dia. Não há comida em casa, é preciso comprá-la e fazê-la. É preciso jornal para ler, roupas para vestir. Ou ao menos tomar banho. Sei que debaixo do chuveiro suas lembranças não serão levadas com a água, porque elas não existem mais. Viva o ceticismo das coisas. Viva para quem acredita no tempo como solução. Eu acredito no tempo como solução, um viva para mim. Viva, para que? Saí machucado de tudo isso. O tempo é a melhor resposta, o meu O Tempo e o Vento. Tudo passou, passou de olhos fechados. Quando eu os abri, vi o mar, o céu, nuvens rápidas. Antes de mim, diante de mim, e depois de mim.




***




Comecei, lentamente, a esvaziar as bilhas de água que eu tinha aqui em casa. Peguei-as para aguar as plantas, depois misturei com sabão e limpei a casa. Limpei cada canto, cada fresta. Lavei os vidros, as janelas. Desci à lavanderia e desliguei a máquina da torneira, enchendo-a várias vezes para as minhas roupas. Preparei toda a comida que eu tinha, para que durasse semanas sem eu ter que cozinhar. Quando estava tudo limpo, seco, passado, brilhando, sem pó nem sujeira, com o almoço pronto, sobrou uma última bilha. Alcancei um copo e bebi-a. Toda. Sentia sede.




***




Tout passe, tout casse, tout lasse.*

Victor Hugo


De repente, o meu amor, esse amor ora tão profundo, descansou. Deus ensurdeceu de tanto ouvir minhas orações.


 * - Tudo passa, tudo quebra, tudo cansa.





***





Esperei um sorriso seu. Esperei uma mensagem sua. Esperei um telefonema seu. Esperei uma carta sua. Esperei um beijo seu. Esperei uma resposta sua. Esperei um gesto seu. Esperei uma fotografia sua. Esperei um olhar seu. Esperei uma declaração sua.
A campainha tocou. Não era você. Era outra pessoa. Abri a porta, e ela entrou.




***




Seios. Umbigo. Pelos. Beijei-a. Toquei-a. Quando ver outros seios, umbigos, pelos, a mesma coisa farei; como homem não me privo de sentir prazer. Tampouco dá-lo a quem deitar-se comigo.




***




好き、好きだよ

                              
                              
                              

                                                      
                                                      
                                                      
                                                      
                                                      
                                                      

  
(suki, suki da yo

itsumo kiboo o motte)




gosto, gosto sim


                                  s
                                  e
                                  m
                                  p
                                  r
                                  e

                                  t
                                  e
                                  r
                                  e
                                  i

                                                                  e
                                                                  s
                                                                  p
                                                                  e
                                                                  r
                                                                  a
                                                                  n
                                                                  ç
                                                                  a 








quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Loba





 “Não importa onde estejamos,

a sombra que corre atrás de nós tem decididamente quatro patas.”

[CLARISSA PINKOLA ESTÉS. Mulheres que correm com os lobos]

Vês como me afasto do sol sem remorsos? Vês como carrego comigo, para longe desse rei enfatuado, as minhas vontades viciadas? É meu espírito imperfeito que anseia pela honestidade de uma sombra, a equilibrada ilusionista que distorce em igualdade mazelas e virtudes.
Ah, como me enfurecem as criaturas mentirosas que se refugiam na luz! Sempre inspirando o mesmo ar com máscaras apropriadas. Como se o excremento dos bichos nas calçadas e o fedor dos mendigos bêbados e o hálito de esperma das prostitutas obreiras não estivessem lá, aqui, em toda a parte, misturando-se, sobrepondo-se a essa cegueira hipócrita que a todos nos é ensinada no ventre!
Olho-te daqui e pergunto-me se acaso a tua alienação, que passeia por essas praças e becos em permanente negação da miséria, não supera a podridão do menor dos meus pensamentos. Esses meus pensamentos que abominas e que, tão diferentes dos teus que condescendem, a mim não permitem alheamento ou trégua.
Acaso basta dizeres que és do bem — façanha que realizas acumpliciando-te com fés irresponsáveis e bênçãos corruptoras — para que sejas do bem?  É mesmo assim tão leviana a tua moral?
Pois que saibas que a mim, criatura de raízes negras, foi-me proibida qualquer complacência ou cegueira moral. O fardo espesso da maldade nunca alivia meus ombros do peso.  E se o carrego sem gemidos é porque mil vezes mais dores eu sentiria em minhas entranhas antes de render-me ao cabresto das benesses que me ofertas, mansamente, apenas para depois me obrigares por meio de cobranças.
Não, eu não me curvo às culpas que não sinto, nem aos perdões que não pedi. Não perco do meu tempo — sorte ou maldição — imaginando o que é certo ou errado, verdade ou fantasia. Incomodam-me as criaturas para as quais tudo carece ser tragicamente do bem. Incomoda-me que o alvorecer e o poente sejam previsíveis divisões em luz e trevas. O sol querendo ser escuridão; a noite invejando as manhãs.  Acomodando-se, ambas, em desejos não cumpridos.
Não percebes que no mundo do bem tudo sempre antagoniza, cobiça, decompõe? Pois eu quero apenas livrar-me de tudo isso! Livrar-me de ser o animal domesticado cujo destino todos querem decidir. Livrar-me do bem espelhado ao feitio dos que o impõem. Livrar-me do que tenho sido até hoje, um cão treinado.
Não mais! Não quero esta saliva viciada que se doa em lambidas por afagos casuais. Não quero o alimento fracionado que recebo apenas quando sou o que se espera de mim.  Quero rosnar e avançar, amassar as flores dos jardins perfeitos, deitar-me sobre a lama imunda das poças frias, revirar os lixos, derrubar as grades... Não, não, não!  O que estou dizendo!  Pois que se rosno e avanço — inferno! —, serei sempre um cão! Um cão medroso. Que se submete, troca, negocia. E eu não sou um cão!
Mas devo-te, ao menos, gratidão. Que foi por meio dos teus pontapés, da tua censura, do teu torpe julgamento que matei aquele cão domesticado que se deixava apenas ficar ao sol. Devo-te gratidão por teres apressado a minha entrega à fêmea selvagem que me cortejava. Ah, como te devo tanto por deixar-me ser a loba que antes apenas me aguardava à distância, olhos fixos nos meus. Ela sabia, antes de mim, que éramos uma. Eu, não sabia de nada.
Acabou-se o tempo da separação. Somos, agora, aqui dentro destas veias alteradas, duas feras que não cedem. Uma delas devolve-me, por vezes, o caminhar em dois pés, para que eu possa, fêmea humana, fartar-me da corrupção e dos vícios e das caçadas em meio à alcateia dos homens. A outra reverte-me às patas que marcam terra e mato nos territórios que me consentem seu domínio, para que eu possa estripar e sangrar carnes que alimentem minha fome de besta. Numa e noutra sou o que sou, predadora.
Mas basta de confissões! Que se mais te fizer ouvir, mais exasperação te infligirei. E tu acabarás por enxergar pelo remorso essa tua alma tão vil que acreditas ser boa. Não é minha intenção. Guarda teu zelo de feitor; cessa a tua inveja. Permite que eu mesma declare o que queres ouvir: eu sou o mal! E tu o sabes, pois que os iguais se reconhecem.  
É de minha escolha ser fera. A que encontra os rios à noite sem precisar que o sol escreva trilhas. A que toma, sem pedir, comida, sexo, pouso, pradaria. Afinal, não está tudo, sempre, no caminho? A busca, o medo, a posse, a solidão... Fantasmas que me disputam, agora, sob o céu nublado das monções. Vês que nos espreitamos, farejando-nos no ar pesado? Ouves que me convidam, dissimulados, a esconder-me com eles naquela caverna escura e úmida, naquele lugar de breu e de labirintos estreitos que conduzem apenas a si mesmos?
Tolos! Pensam que serei eu a presa na armadilha! Não sabem que aprendi com o mofo a agarrar-me às paredes, às coisas, às pessoas — bem mais escuras e úmidas que as cavernas. Não sabem que sou, por opção, criatura das sombras. Não sabem que mulher e loba seguirão com eles para emboscá-los e matá-los. Para que deixem de ser busca que inquieta, medo que acovarda, posse que aprisiona, solidão que corrompe. Não, não sabem.