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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

(Des)receita de crônica


“Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto” – disse Mário de Andrade. O cronista, fiel à despretensão que comanda seus vôos, poderia dizer: “Não é crônica aquilo que o autor se esquece de chamar de crônica”.

Mas o quê, pra valer, a crônica não é?

A crônica não é uma bula de remédio, mas o cronista pode, sob a forma de uma bula de remédio, contra-indicar-se para almas não-líricas.

A crônica não é um roteiro de cinema, mas o cronista pode roteirizar a rota dos seus descaminhos.

A crônica não é uma lei, mas pode assumir a forma de uma lei. Basta lembrar que Thiago de Mello deu ao lindíssimo poema “Os estatutos do homem” a forma de uma lei.

A crônica não é uma lista de compras, mas o cronista pode compor uma lista dos seus muitos quereres – quereres para si e para todos.

A crônica não é um relatório técnico, mas o cronista pode disparar seus disparates em forma de relatório.

A crônica não é um guia de viagem, mas o cronista pode guiar para o reino do ordinário muitos viajantes desorientados.

A crônica não é uma folha em branco, mas a falta de assunto já foi assunto de várias crônicas de variados cronistas.

A crônica não é uma declaração de bens, mas pode virar, graças à habilidade de um Paulo Mendes Campos, uma inusitada “Declaração de males” dirigida ao “Ilmo. Sr. Diretor do Imposto de Renda”.

A crônica não é uma receita, mas pode render, pelas mãos do já citado Paulo Mendes Campos, uma deliciosa “Receita de domingo”.

A crônica não é uma propaganda, mas o cronista pode ali gorjear seus encantos, sobretudo se ele for um sabiá da crônica.

A crônica não é muita coisa, mas pode vir a ser – isso é próprio de quem traz o tempo em seu DNA. Do mesmo modo que não se consegue imaginar o não-tempo, é quase impossível conceber a não-crônica. A mesma impossibilidade de algo ser uma crônica já anuncia a possibilidade de vir a ser. É só espargir sobre aquela impossibilidade o sopro criador do cronista – e tudo vira crônica.

A cara da crônica é cheia de máscaras. E sempre que alguns tentam colar as máscaras à cara, a crônica aparece de (más)cara nova. Desmascará-la, quem há de?


Vinícius de Morais dizia que a crônica pode ser tudo, menos chata. Mas, cá entre nós, e sem discordar do poeta, tudo o que a crônica não pode ser é anacrônica.





quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Devaneios

Eu ainda era muito pequeno, mas já sabia que eles circulavam por aí, ao nosso redor, ainda que invisíveis.

A princípio, contentava-me em tentar alcançá-los nos raros momentos em que se revelavam, mas, com o tempo, descobri uma maneira de deixá-los expostos: bastava cobrir-lhes de água.

E foi então que comecei, fizesse chuva ou sol, a partir em audaciosas expedições, munido de uma mochila com ferramentas (tesoura, cola e grampeador), kit de primeiros socorros (band-aid e merthiolate), um borrifador, um pequeno carretel de barbante e imensas expectativas. Bem equipado, eu seguia para a beirada do lago e preparava engenhosas armadilhas e traquitanas, cada vez mais enroladas e confusas.

Nunca consegui capturar nenhum, nem chegava perto disso; Mas sempre voltei para casa repleto de histórias para contar, radiante, e com os passos firmes e a postura altiva de um grande caçador de arco-íris.





quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Diálogos desencontrados


    Só faz falta quem cá está…

O homem sensato, calmo, contido, explodiu inesperadamente:

    Só faz falta quem cá está? Só faz falta quem cá está?!?
Mas que frase mais idiota! Se o senhor quer dizer que ninguém faz falta, diga isso mesmo, é obviamente falso mas ao menos é uma frase honesta que não se esconde atrás de um ar filosófico e profundo. Só faz falta quem cá está… Se está cá então não lhe falta e se falta não lhe faz falta? Em última análise, nunca ninguém lhe faz falta pois o senhor é o único que está e estará sempre presente para si próprio. Já pensou na estupidez e arrogância dessa frase? Não, obviamente que não pensou, limita-se a papaguear uma frase que lhe soa bem, e com esse ar entendido de quem sabe retórica. Só faz falta quem cá está…

O homem virou-se, furioso, e saiu da sala a passos largos deixando o interlocutor com o ar interdito de um estudante apanhado a copiar.

………………………………………………

    Mas…
    Nem mas nem meio mas; não lhe admito essa insinuação. Não sei nem me interessa a que tipo de pessoas está habituada mas eu não lhe admito que ponha em dúvida a minha honestidade. Vocês estão aqui para resolver os problemas, é para isso que existem Reclamações, ou não é? Porque, se em vez de resolver os problemas se põem a insinuar que o cliente não é honesto e só vos quer enganar, digo-lhe, que rico serviço vocês têm aqui!
    Mas…
    Não há cá mas nenhum! Era de supor que as pessoas que aqui estão tivessem sido formadas para saberem falar com os clientes mas claro que esta chafarica nem isso faz e a senhora é um bom exemplo: não sabe falar, é mal-educada e em vez de resolver o problema do cliente só lhe ocorre insinuar que é um aldrabão!
    Mas…
    Oiça, eu consigo nem falo mais, chame o seu supervisor, chefe, o que for – um homem com dois dedos de testa, que compreenda as coisas e que não se vista com roupa da feira de Carcavelos!
 
De intervenção em intervenção, a voz ia subindo de tom e neste momento a senhora vestida de roupas caras quase gritava. A rapariga voltou-se e foi lá dentro; voltou acompanhada de um homem de ar espantado.
 
    Em que posso ajudar?
    Essa abécula nem isso lhe disse? Francamente, acho lamentável que uma casa aberta ao público tenha funcionários deste calibre de burrice! Venho reclamar da compra que a minha filha fez aqui na sexta-feira passada: quando fui vestir o vestido para um jantar no sábado verifiquei que tinha uma mancha, aqui, está a ver?
    Vestido? Minha senhora, está equivocada. A loja não tem vestidos de tecido, só malhas e esta senhora é a proprietária. Não foi aqui que comprou o vestido.
    Malhas? Proprietária? Mas o senhor não é o supervisor?
    Eu? Não, eu sou electricista, estava lá dentro a acabar uma instalação.
 





Ensaio sobre a infidelidade

A palavra “adulterar” tem sido usada a torto e a direito. Já viu como os apresentadores de telejornais enchem a boca para dar manchetes tais como “Posto X adulterava gasolina”, “Farmacêuticos adulteravam medicamentos”, ou “Hackers invadiram computador do romancista Z e adulteraram o último capítulo”? Quando se fala em falsificar, corromper ou agir como mau-caráter, lá está o verbo promovido a genérico cumprindo seu papel. Mas esta crônica quer tratar do referido verbo em seu significado primeiro: cometer adultério, praticar infidelidade conjugal, ou – como preferem os falantes brasileiros – trair, manter um caso, ter um amante, pular a cerca, cornear, meter chifres, botar galhos, entre outras expressões menos polidas.

Assunto doloroso, que traz à tona sentimentos como decepção, angústia, amor-próprio ferido, perda da confiança no companheiro, pessimismo, mágoa, culpa, desejo de vingança. Tema compreendido – no papel e na pele, na teoria e na prática, na tela e no quintal de casa – por PhDs, universitários, analfabetos, misses, galãs, sedentários, esportistas, eleitores, governantes, big brothers e até por cronistas. Todo mundo parece saber opinar sobre chifres. Impressionante! Quando não falam dos próprios cornos – daqueles que com algum prazer colocaram, ou daqueles que com algum sofrimento receberam –, opinam sobre as relações ilícitas dos outros.

Outro dia, vi a deputada Manuela D´ávila confessando, no programa CQC, da Band, que seu ex-namorado, o atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, não foi fiel a ela durante o relacionamento. Se o maior gestor da Justiça do nosso país é afeito a relações ilegais com suas parceiras, o que sobra para os cidadãos comuns?

Em 2008, a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da USP, fez uma pesquisa sobre a infidelidade dos brasileiros. De acordo com o estudo, 68% dos homens e 42% das mulheres confessaram já ter traído o parceiro no namoro ou no casamento. E a percentagem parece estar só aumentando, hein? Em 2003, os que se confessavam infiéis eram 51% dos homens e 26% das mulheres. E, pelo que andei lendo aqui e acolá, só tende a crescer o índice de puladas de cerca elétrica – em grande parte por culpa da internet, que ajuda as pessoas a perderem a timidez e saciarem seus desejos mais libidinosos tanto no mundo virtual quanto no real.

Concordo com você. Não é apenas no Brasil que esse pecadinho é assim tão frequente. Parodiando Chico Buarque na música Façamos, lepidamente interpretada por Elza Soares: “Os espanhóis, os lapões fazem / Lituanos e letões fazem / Façamos, vamos chifrar / Nisseis, nikeis e sanseis fazem / Lá em São Francisco muitos gays fazem / Façamos, vamos cornear”...

Severamente punido em algumas partes do mundo – com penas de apedrejamento e até de morte –, o adultério foi considerado crime até 2005 aqui no Brasil. Mas apenas pela letra fria da lei, é claro. A regra, que previa pena de detenção de 15 dias a 6 meses para os criminosos, virou piada há décadas. Melhor assim. Já pensou se todo traidor fosse para a cadeia? Haveria muito pai de família trabalhador e dona de casa prendada atrás das grades. Quiçá a sua mãe e o meu tio. De repente até o ex-presidente e a presidenta, sei lá. Provavelmente você e o(a) vizinho(a) da direita, sei lá. Ou até mesmo o seu cônjuge e o(a) vizinho(a) da esquerda. Eu, não. Não levante falso contra minha pessoa. Sou esposa casta e direita.

Na verdade, quem me inspirou mesmo a escrever este texto foi um dos maiores adúlteros da História: o rei Davi, que se perdeu de amores por Betsabá, tendo desrespeitado a lei dos homens e a lei de Deus para se deitar com a bela senhora. Poderoso, o grande comandante do exército de Israel não conseguiu manter-se fiel a seu amigo e nobre guerreiro Urias nem a seu povo. Ao adultério, Davi acrescentou mentiras, acreditando que conseguiria encobrir seu erro. Por causa da tentação, Davi só conseguiu multiplicar seus pecados e a maldição sobre pessoas queridas. Aquele que tinha o coração voltado a Deus maculou Betsabá, causou a ruína de Urias, desvirtuou a si próprio, foi castigado por Deus, viveu muitas tragédias familiares. Sua escorregadela moral se tornou um exemplo histórico para a humanidade de que o adultério não é um mero pecadinho, não, e que deve ser evitado.

É, caro leitor. Assim como no passado distante, nos dias de hoje ainda parece não valer muito a pena meter galhos, não. O adultério tem causado guerra, morte, perda da guarda dos filhos, gravidez indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, gastos com testes de DNA e com pensões alimentícias, entre outros probleminhas emocionais, jurídicos, financeiros. Será que também políticos e até sociais? Não sei. O cargo do ministro da Justiça parece não ter sofrido abalo, depois da declaração da bela deputada. Mas talvez haja vários casos de incesto por aí – consequência de vizinhos desleais que não confessaram seu pecadinho aos filhos. Por via das dúvidas, aconselho você a não adulterar a torto e a direito. Em nenhuma acepção da palavra. Contenha-se. Mantenha a postura. Seja fiel. Esta cronista conservadora suplica: “Façamos, vamos amar. Façamos, mas sem chifrar”.



Maria Amélia Elói, 40 anos, é brasiliense. Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, ela foi premiada em 2009 no III Concurso Literatura para Todos, do Ministério da Educação, com a obra Poesia Torta, no prelo. Em 2001, ganhou o Prêmio Nestlé/MEC pelo ensaio Idéias a Mais!: a crítica literária no JB e na Folha de S.Paulo no ano 2000. Há nove anos, é servidora da Câmara dos Deputados.





terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Desdémona


Joaquim Bispo

Quando Iago chegou a casa, a mulher, Emília, apressou-se a dar-lhe as novidades:
– Já se começa a perceber muito bem qual vai ser o aspeto final do retrato da minha senhora. Ela está deitada num leito, toda nua, e do alto tomba uma chuva de ouro. Ao lado da cama, há uma velha que tenta apanhar algum desse ouro. Mestre Ticiano diz que o conjunto representa a figura mitológica de Dánae, engravidada por Júpiter sob a forma de chuva dourada.
– Excelente! – rejubilou Iago. – Quando volta Desdémona a posar?
– De hoje a uma semana. A minha senhora não quer dar azo a que o marido desconfie de nada.
«Ah! Mal posso esperar para insinuar indignidades aos ouvidos de Otelo», congeminava Iago. «Se eu for bastante persuasivo, Desdémona será repudiada e não ficará em posição de ser insensível aos avanços de Rodrigo.»

Uma semana depois, em casa de Otelo, este desvenda a Iago alguns dos aspetos militares que o preocupam:
– O Turco está cada vez mais atrevido. Veneza está a pontos de perder Chipre e até de deixar de ser senhora do Adriático. O Conselho está a ultimar uma aliança com o Papa e com Filipe II de Espanha. Se esta aliança conseguir reunir uma grande armada, partiremos, a confrontar os asquerosos otomanos, nem que tenhamos de lhes dar batalha nas costas da Grécia. – Pensativo, continuou: – Não temo a batalha, mas constrange-me ficar tanto tempo longe da minha adorada.
– Podeis ir descansado que ela não se sentirá infeliz, isto é – gaguejava Iago –, terá o coração choroso, mas tudo faremos para que não pense muito em vós, isto é, que se distraia e só pense em coisas agradáveis, isto é, outras que não vós.
– Meu bom Iago – esclarecia Otelo –, ela ficará bem com certeza, mas vós ireis comigo. Não vos esqueçais que sois o meu alferes.
– Sim, ficará bem. Disso não duvido. Ficará até muito bem. Não que eu tenha alguma notícia que vós não saibais…
– Que quereis insinuar? – espevitava-se o general. – Que sabeis, que eu não saiba?
– Eu? Nada. Falei por falar. E mesmo que soubesse – espicaçava Iago –, jamais a minha boca se abriria para denunciar a senhora da minha esposa.
– A maneira como falais parece indicar que algo menos honroso se passa. Pela obediência que me deveis, dizei: o que sabeis? – impacientava-se Otelo. – E não temais pela vossa esposa, que sempre terá fidalgas a quem assistir.
– Se assim me intimais – condescendia Iago – só vos posso confidenciar que Desdémona se tem encontrado com um velho, a quem se expõe como Deus a deitou ao mundo. Não sei por que o faz, se por lascívia, se por comércio.
– Quê? – esbracejou Otelo, sentindo-se atraiçoado. – Pois ela entrega-se a outrem? Provai o que dizeis ou despedi-vos da vida.
– Não mateis o mensageiro, senhor! Perguntai antes à vossa amada onde vai todas as semanas, neste dia.
– Sim, sim, chamai-a já, que quero esclarecer este caso!
– É inútil chamá-la – devolvia Iago – porque neste momento está ela a ser acariciada pelo olhar de Mestre Ticiano na Scuola Grande de S. Rocco. Parece que o Mestre tem predileção por corpos jovens e manifesta mesmo algum entusiasmo quando os seus pincéis acariciam a superfície da pintura, talvez fantasiando que acaricia a própria pele branca e sedosa de vossa esposa.
– Pintura? Ticiano? Mas, pelas bombardas de popa, o que é que o velho quer de minha mulher? – surpreendia-se o general.
– Os velhos, às vezes, são os piores – aproveitava Iago. – Ele está a retratar vossa esposa como Dánae, engravidada pela chuva dourada de Júpiter. Isto não parece muito decoroso.
– Oh, com mil raios da procela, que indignidade! Vou expor esse quadro na praça de S. Marcos, para que Veneza abomine essa devassa.

De regresso a casa, Desdémona vê-se confrontada com a ira do marido:
– Muito folgo de vos ver vestida – ironizou Otelo. – Tanto quanto sei, ainda há pouco oferecíeis o vosso corpo à lascívia dos olhares de quem o deve conhecer melhor do que eu.
Desdémona quedou-se muda e de olhar perplexo. Olhou em volta à procura da criada que lhe recusou o olhar.
– Contai-me vós – continuou Otelo – por que vos expondes nua ao olhar de Ticiano!
– Nua? – contrapôs Desdémona. – Nunca Mestre Ticiano viu o meu corpo. O meu rosto aparece num corpo nu, mas esse corpo foi o que preferi, num conjunto de desenhos e gravuras que Mestre Ticiano me deu a escolher, quando contratei a feitura do meu retrato. Só vou a S. Rocco para que ele retrate o meu rosto aplicado ao corpo escolhido.
Agora, era a vez de Otelo ficar sem palavras. Mas, logo quis saber:
– Afinal, por que bizarria andais nessas andanças? Por quê, esse retrato?
– Era para ser um segredo – explicou Desdémona, voltando a passar o olhar por Emília. – Vai fazer um ano que eu e vós nos unimos pela carne. Essa união do viço duma jovem como eu, com a força de um deus como vós, frutificou. Estou grávida. Sim, grávida – confirmou sorridente, perante o olhar assombrado do marido. – Quis fazer-vos uma surpresa e oferecer-vos uma imagem alegórica que evoque, todos os dias, esse primeiro encontro dos nossos corpos, e o que dele resultou. O tema de Dánae foi ideia de Ticiano.
Otelo ficou um bocado em estupor. Depois, berrou:
– Iago! Estareis sempre na proa do barco dianteiro. Quero que os otomanos fiquem a conhecer as vossas feições. Podeis precisar dessas amizades no Inferno!

Caprichosamente, quem não voltou da batalha foi Otelo, trespassado por uma bombarda turca. Desdémona, desgostosa, não resistiu à perda do seu amado. O seu corpo foi encontrado a boiar no Canal Grande. O quadro, no qual ela punha tanto empenho, acabou por ir parar a Madrid, oferecido por Ticiano a Filipe II, em agradecimento pelo apoio militar a Veneza.





Imagem: Ticiano, Dánae recebendo a chuva de ouro, Museu do Prado, c. 1553.

(Este conto foi publicado anteriormente no nº 31 da revista Samizdat)

Inspirações: Otelo, de Shakespeare; Dánae, de Ticiano.






segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

APAGÃO OLÍMPICO

Assistindo à Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos de Sochi, uma pergunta não me saía da cabeça: o que apresentaremos em 2016?

Os russos, por exemplo, possuidores de uma História riquíssima, mostraram-nos desde as aventuras marítimas do Czar Pedro, o Grande, até a aventura espacial de Yuri Gagarin; além, claro, de mais uma linda exibição do Balé Bolshoi, entre outras atrações. Está certo: houve a falha de um dos anéis olímpicos, mas nada que prejudicasse a beleza do espetáculo.

Já em relação a 2016, minha preocupação, além das questões técnicas, refere-se também ao tipo de “espetáculo artístico” que apresentaremos ao planeta: axé, funk... Não, por favor: “pare o mundo que eu quero descer” ― faço minhas as palavras do eterno Raulzito, para não ter de sequer imaginar tais apresentações musicais.

E nossos artistas? Cláudia Leitte, Anitta (?), Luan Santana... E, enquanto isso, milhões de embasbacados, frente à tevê, perguntando-se: QUEM É?

Dos reis brasileiros, podem ter certeza que o mundo só identificará um: Pelé. Quanto a Roberto Carlos, nem a Globo pode forçar o “milagre do reconhecimento internacional”. Roberto Carlos? O jogador? Também canta? ― será provavelmente a pergunta feita, na ocasião, pelos jornalistas estrangeiros.

E, para os ufanistas que acham que RC está no mesmo patamar de Frank Sinatra, deixo aqui as lembranças recentes de Londres: Paul McCartney, Pet Shop Boys, Oasis, e até Mr. Bean ao piano. Alguém não os conhece?

E agora, falando de tecnologia. Ah, a maravilhosa tecnologia brasileira! Melhor não rirmos dos anéis olímpicos de Sochi, considerando o que poderá vir em 2016: furto de medalhas, sequestro de atletas e “apagão” da tocha olímpica... Tudo pode acontecer pelas mãos de um gigante adormecido. 

Um gigante que, em 2016, provavelmente estará mais uma vez embriagado, sem dar-se conta, é claro, da realidade ao redor, e cantando:

♪Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo...♫





domingo, 23 de fevereiro de 2014

Fragmento de romance - Clarissa


Abaixo segue o fragmento de um romance que teve sua primeira versão escrita no mês de novembro, durante o projeto do NaNoWriMo, e que desde então vem sendo reescrito.

Aproveitem.

***


Quando criança gostava de acordar cedo, antes dos pais. Ir para fora de casa, escutar os sons dos pássaros, sentir o vento no rosto, o calor dos raios do sol que aqueciam sua pele. Fechava os olhos e imaginava estar em lugares diferentes. Acima de tudo, imaginava ser feliz. Nos dias de chuva, proibida de ir para rua brincar com a água, consolava-se ao brincar com as gotas d''água que escorria pela janela. E da mesma maneira que nos dias de sol, nos dias de chuva ela também fechava os olhos e deixava a imaginação fluir, deixava-se invadir por aquela sensação de felicidade.  Tinha os olhos brilhantes. E imaginava sempre ser feliz.

Para Clarissa era fácil imaginar-se feliz. Ela era criança e era feliz. A sua ideia de felicidade era estar com sua mãe e com o seu pai. Quando a mãe lhe chamava para o café, às vezes, parecia que os olhos brilhavam mais, mais do que quando estava imaginando, porque agora ela deixava de brincar de ideias, de imaginar felicidade. Ela podia aproveitar e gozar dessa felicidade que ela imaginara.
O pai só trabalhava a tarde, mas sempre acordava cedo para preparar o café da manhã para ela e para sua mãe. Ele gostava, principalmente, de olhar pela janela da cozinha, o pátio com a grama verde brilhante e Clarissa correndo e brincando. No início, ele não sabia ao certo o que ela fazia todos os dias de manhã, na rua. Um dia, porém, com uma xícara de café em um das mãos Roberto caminhou o pequeno percurso de onde estava, diante da janela e foi até a porta da rua, onde podia ouvir e falar com Clarissa. A menina não percebeu que o pai se aproximava.
- O que você faz aí Clarissa? Se continuar se rodeando você vai cair.
- Não vou não pai. To só aqui, tendo ideias.
- Ideias boas - Roberto comentou não se aguentou e sorriu para a filha. Sorriu para si.
- Sim, ideias de ser feliz.

O pai parece surpreso com a resposta, franziu a testa, pensou no que iria falar.
- Ideias de ser feliz? Você esta triste?
- Eu não. Como ia estar triste se tenho ideia de ser feliz. Ah papai.
- Mas então por que essas ideias de ser feliz?
- Ora, pra continuar sendo feliz com você e com a mamãe.

Clarissa parava de rodear, o pai deixando os pensamentos de lado, pousou a xícara sobre o balcão, próximo a porta, e correu para pegar a filha no colo, antes que ela começasse a perder o equilíbrio. Então a rodeou mais algumas vezes, antes que ele próprio ficasse tonto.
Maria Alicia, a mãe de Clarissa, aproximava-se da cozinha nesse instante, arrumava o cabelo e começara a falar com Roberto, quando percebeu que estava sozinha no ambiente. Ouviu algumas risadas. Dirigiu-se até a mesma porta, que se podia ver o pátio da casa, e viu pai e filha rindo um para o outro. Ela deixou os cabelos soltos, que selvagemente se ajeitaram, e perguntou-lhes:
- O que vocês estão fazendo?
- Ora mamãe, a gente esta sendo feliz
Maria Alicia olhou para Roberto e ambos riram. E resolveu também ser feliz, correu para eles e os abraçou.
- Viu papai, como é.





sábado, 22 de fevereiro de 2014

Autodeclaração

Mal ou bem, já nos acostumamos. Cada vez que se tenta entrar numa rede social na internet é necessário prestar contas, minimamente, sobre quem se é. É o nome, o sobrenome, o jeito como deseja ser chamado, a data de nascimento, o trabalho ou a ocupação, interesses, preferências, restrições, e e-mails: o principal, o alternativo, o de segurança, etc. Depois de completar campos marcados com asteriscos e ficar em dúvida se gasta tempo ou não com os opcionais, a pessoa precisa ainda digitar como vê uma sequência de letras, números e outros símbolos misturados dentro de um retângulo editável. Para provar que não é um robô. Está assim de gente recorrendo a terapias para curar a crise existencial que momentos decisivos como esse disparam. Se na rotina virtual é dessa maneira, imagina na vida, ordinária, nessa, de todo dia?

Valéria vivia passando recibo a respeito de si, mas nem percebia de tão envolvida que sempre esteve com o futuro. Tudo nela parecia acusar, revelar, apresentar, dizer. Em parte. Em uma parte visível e fácil de lidar. Queria ser médica e andar pelo mundo tratando de doenças em regiões de onde normalmente tinha notícia somente pela televisão. Era cabeça, tronco, membros, pele, órgãos, células, sangue, oxigênio, bisturi, medicamentos, livros e mais livros sobre saúde e sobre como funcionam os corpos humanos, um interesse sem fim e o mesmo assunto compulsivamente, feito vinil arranhado, repetindo e repetindo e repetindo o mesmo trecho. Além da que tinha na escola, sabia o rumo das bibliotecas da cidade e da universidade e fazia desses lugares pontos estratégicos de concentração. Falta pouco para os exames de admissão e preciso estar pronta, dizia para dentro pelo menos uma dúzia de vezes, diariamente, como uma reza, um mantra particular, enquanto cumpria à risca seu plano de estudos. 

Prestaria provas em oito instituições de ensino superior, todas com seus calhamaços de exigências e formulários, curiosidades estapafúrdias - ô palavrinha que gostava de pronunciar: es-ta-pa-fúr-dia e suas variações – e prazos de inscrições abertos. Cheia de esperanças, juntou documentos e começou a preencher os requisitos da primeira. Com os novos rearranjos do governo para o ingresso nas universidades, as combinações poderiam ou não dar certo para Valéria. Andava sobre a linha que separa ou amarra esforço e sorte quando percebeu que, na verdade, não entendia o jogo. Havia estudado mais do que bastante, mas nem chegara perto do todo, do infinito.

Autodeclarar-se isto ou aquilo não era problema, o caso é que realmente não sabia. As certezas resvalando pelas teclas do computador. Olhou para as mãos abertas, correu os olhos pelos braços e. Não era preta, nem branca, nem amarela, que raio significava o termo “pardo”? Só lembrava do rolo de papel que na escola usavam para fazer cartazes. E sexo? Nunca tinha feito. Nasceu com vagina, mas não tinha tempo para desejar ninguém, podia muito bem gostar de mulheres e/ou de homens, tinha um apreço tão grande por gente, em especial por crianças e velhos. E que diferença fazia contar do salário da mãe e do pai, um morto outro sumido, se era ela e não eles quem auscultaria peitos e diagnosticaria dores dali para frente? Seria indígena? Compartilhava de cabelos lisos e negros e selvagens e de uma vontade inexplicável de verde com povos distantes. Por que não? Na dúvida, Valéria rasurou os espaços em branco e escreveu “sou um robô” em letras bem maiúsculas no espaço “observações”. Confusa, vestiu o cansaço, suspirou intenção e dúvida, e guardou a médica no bolso.





sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Água

Fora um dia  próximo do improdutivo. Parcas moedas haviam pingado em suas mãos carcomidas. Já os olhares de nojo e desprezo, estes tinham se multiplicado  com a passagem das horas. Noite. Para sentir-se um pouco gente, o mendigo quase se afogou em goles da garrafa de Perrier  roubada de um supermercado próximo. Naquele momento, gozou de um luxo que poucos da mesquinha classe média ousaram experimentar. Saciado, dormiu o sono dos reis e sonhou que uma chuva de água da fonte francesa inundava a cidade. As vítimas morriam felizes. Consumidores ao menos na hora derradeira. Acordou com a garrafa vazia. Sentiu tristeza. Pegou o engradado elegante e foi até a pastelaria mais próxima. O chinês demorou a entender que mendigo queria encher o recipiente esmeralda. As aparências enganam, mas entorpecem.





quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A primeira vez

Queria se livrar do marido. Escondeu chumbinho de rato entre as pernas.

Meia noite e quarenta. Ele, bêbado, chegou fazendo bagunça, tropeçou na cama
e veio se chegando entre os lençóis.

- Abre as pernas, Almerinda. Tô na maior secura. 
- Venha, Josias, venha. Venha curar sua ressaca no seu poço da felicidade.

E tal como um urso lambendo mel, Josias mergulhou fundo no pote de Almerinda.
Nem demorou, começou a fraquejar a respiração. Aos urros teve um espasmo,
ali mesmo, sem deixar seu posto.

Almerinda prendeu com as coxas a cabeça do homem estrebuchante,
até sentir a língua sôfrega do marido parar de saracotear. Certa de ouvir um último suspiro,
olhou para o teto, sorriu saciada. Sem fingir.

Pela primeira vez gozou duplamente.





quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Sublimando

Um contato indelicado com o mundo.
Vapor deixando a água salgada com dificuldade.
As entranhas pegajosas, deslizando... calmamente... o sangue.
Sobreviver ao ímpeto de olhar a pior face da profecia.
Manter algo no coração, que não é fé, nem esperança ou amor.
Manter o vento, pois por pior que tudo seja, seja inteiro e é o vento que revolve a vida e faz o bom ficar ruim e o ruim ficar bom.
Se perder nos imperativos: levante, durma, faça. Evitar o talvez, querer o sempre com algumas doses de hoje não.
Tirar da retina a próxima película para olhar a paisagem local. Acalmar o coração, pois a tua mão já está escrevendo ansiedade.
Acalma, afinal a morte não é para hoje.
Ainda há um verso para escrever, um aroma de café para sonhar, um livro se abrindo para a vida.
Caminhando, mesmo imóvel, a vida segue sublime, sublimando.



Imagem: Arquivo pessoal, Moleskine das horas vagas.







segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dez perguntas para Fernanda Pacheco

1 – Para começar, quem é Fernanda Pacheco?

Eu refletia muito sobre esse tipo de pergunta até o dia em que um pombo cagou nas minhas costas. De verdade. Parei de filosofar muito sobre esse tipo de coisa. Hoje eu sou uma poeta-mirim, de vinte anos, formada em história e que sobrevive de aula. Tive uma infância simples e fantástica que serviu de base pra tudo que sou hoje. Tive um grande amigo que incentivava minhas viagens, mesmo sem querer: meu avô Geraldo. Ele foi um cearense carinhoso que me levava pra andar pelo bairro, que me ensinou que comer arroz, feijão e banana é bom pra cacete, que sentava na calçada comigo pra ouvir Tião Carreiro e Pardinho enquanto tomava a cachacinha dele [peguei esse gosto], que falava de coisas simples e que me chamava de narizinho. Até os oito anos de idade acreditei cegamente que eu era a personagem do Monteiro Lobato, que a minha boneca falava e ele entrava nessa comigo numa boa. Eu me enfiava em tudo quanto era jardim pra caçar caracol, levava pra escola, pegava filhote de gato na rua e levava escondido pra casa. Ia pra chácara de uns tios e ficava atiçando a fúria dos marrecos, aí quando eles partiam pra cima de mim eu saia correndo pro colo do meu avô. Minha mãe é pedagoga, então livro infantil nunca faltou em casa e nisso eu tive sorte porque cresci longe de televisão e de computador. Isso tudo me ensinou a ter gosto pelas coisas mais simples, mas de um jeito muito inocente. Com oito anos perdi meu avô dentro de um contexto muito desagradável e a morte dele me fez ver as coisas de outro jeito, com o pé mais no concreto, de um jeito mais aborrecido, mas ainda com o filtro poético da coisa. Costumo dizer que ele foi o meu abrir de cortinas pro mundo. Nunca fui muito de sair de casa e por isso os livros sempre serviram como refúgio. Com 14 anos eu trabalhava na padaria do meu pai (português e padeiro, vê se pode) e curtia ver os bêbados pedindo maria-mole – coisa simples pra mim virou isso. Lia Aldous Huxley, George Orwell, Henry Miller, Hemingway, pirava no “Feliz ano velho” do Marcelo Rubens Paiva, não lia poesia, etc., e óbvio que tive que retomar todos eles anos depois (e vou ter que retomar daqui uns anos com certeza) porque com essa idade eu não compreendia o que eles diziam por completo. Só passei a entender um escritor pra valer com quinze anos quando conheci os escritos do Bukowski. Eu escapava das aulas pra ir até a biblioteca da escola e ficava por lá um tempo, aí acabei ganhando a confiança da bibliotecária. Ela tinha um armário onde guardava os livros “especiais” que não podiam ficar nas prateleiras e durante uma conversa e outra, abri o tal armário e comecei a fuçar no que tinha lá até que achei o livro “A mulher mais linda da cidade” do velho. Li em minutos e depois comecei a caçar outros livros dele nos sebos porque tudo que ele escrevia tinha essa tal simplicidade e ele dava voz às pessoas mais comuns que sempre são esquecidas, àquelas situações que eu via frequentemente quando era mais nova. Me identifiquei na hora e continuo me identificando com ele. Nessa mesma época um amigo me deu o clássico On the Road do Kerouac e aí a coisa desandou de vez.

2 – Por onde sua poesia anda?
Ela é andarilha. Anda por tudo quanto é canto faminta. Existem dois sujeitos que eu leio muito mais que os outros: Walt Whitman e claro, o Bukowski. Além dos dois eu tô sempre agarrada no Borges, Pessoa, Mário Faustino, Piva, Claudio Willer, Glauco Mattoso, Torquato, Chacal, Ginsberg, Ferlinghetti, na Pita Amor, Wislawa Szymborska, Diane di Prima, Hilda Hilst, Ana Camelo, etc. Recentemente conheci os poemas da Carolina Maria de Jesus que me tiraram o fôlego. Dos mais “novos” eu acompanho o Lucas Reis Gonçalves, o Marcelo Pierotti, o Junior Bellé e a Vanessa Carvalho. Fora da poesia, Gabriel García Marquez e Samuel Beckett talvez sejam os maiores companheiros. Mas eu procuro não ficar só na literatura. O cinema e a pintura também me influenciam bastante. E às vezes acho que a música me influencia muito mais que tudo, sabe? Uma vez o Hélio Flanders, vocalista da banda Vanguart, me disse o contrário: falou que se pega mais com a literatura do que com a música. Deve ser por isso que ele é meu compositor brasileiro favorito desses últimos anos. E é aquela coisa: tropeço com mais frequência no Tom Waits, no Dylan, no Sérgio Sampaio, no Itamar Assumpção, na Patti Smith, no John Cage, na Cida Moreira, no Chet Baker, nos Racionais, no Cartola. Aliás, assisti um documentário sobre o Sixto Rodriguez dias atrás que me impactou demais também. Coisas que não tem nome próprio também me alimentam.
Poesia é uma miscelânea.

3 – Quais as dificuldades de escrever poesia, literatura, hoje?
Esse “hoje” cai pesado! As dificuldades são aquelas entre o escritor e as palavras, dentro da relação dos dois, e não acho que sejam problemas só de hoje. Aliás, difícil mesmo é justamente sair do hoje. Eu não posso falar muito porque tenho muito chão pela frente ainda, mas a agonia, ansiedade, medo, aqueles momentos que a cabeça quase explode e você não consegue pôr em letras o que sente e não consegue formar nada com as palavras. Essas coisas acontecem com bastante frequência e dificultam ali na hora, mas isso é normal. Poeta vive com crise. A síndrome do eu-sozinho também complica: essa coisa de se isolar e de não querer conversar sobre o que se escreve com outras pessoas, de se fechar, de não querer ouvir, de não querer ler o outro, de não querer falar. Mas de tudo isso nada se compara com o depois da escrita. A leitura da poesia [da literatura de modo geral] deveria coexistir com ela, mas não é o que a gente vê por aí.

4 – Pergunta indigesta: como é seu processo criativo?
Não tenho processo pra escrever. E nem é papo blasé, não. É que eu não tenho mesmo. Muitas vezes opto por ficar sozinha, em silêncio, ouvindo algum som como o do John Cage e outras vezes, quando posso, vou ao MASP pra inventar história pra algum quadro. Tenho uns momentos de introspecção que me ajudam muito a criar. Às vezes fico obcecada por algo e começo a escrever tentando me basear na sensação que aquilo que me causa, como o mar por exemplo. Mas por outro lado, tem dias que gosto de andar por aí pra observar as pessoas (o jeito que elas andam, falam, choram, riem, jogam lixo no chão, pedem ajuda, rezam, etc.). Sem querer elas se tornam personagens dos meus poemas (putas, carteiros, viciados). Sou do tipo que vai à casa da avó a ouvir contar coisa do passado, reclamar do café frio, fofocar sobre a vizinha. Uma coisa em comum entre esses hábitos é que eu raramente falo, só ouço e observo. Não à toa, na faculdade, eu passei três anos estudando um cronista, o flâneur João do Rio. Com essas impressões e sensações os versos vão saindo, sem o compromisso de falar sobre as coisas óbvias do que eu vi e ouvi. O que conforta, acomoda e traz sossego não faz parte da minha escrita. Não é algo que eu busque pra escrever até porque não me instiga nem um pouco. E o mais importante de tudo: não forço verso. Posso enlouquecer com a cabeça a mil por hora, mas se a caneta não consegue rabiscar uma palavra, então eu largo e sei lá, tomo uma cerveja, assisto desenho animado russo, tiro a cutícula. Volto ao poema só quando tiver que ser.

5 – O nome de seu livro (A Culpa é do Chet Baker) refere-se à um cantor americano. A música tem um papel em seu processo poético?
Tem um papel enorme! Como eu disse, às vezes acho que a música me pega mais que a literatura. Cresci ouvindo música! E era doido porque durante um tempo fui vizinha dos meus avós, aí era Tião Carreiro, Teodoro e Sampaio, Tonico e Tinoco o tempo todo junto com os vinis do Queen da minha mãe. O Chet é um caso especial porque ele personifica o que eu tento escrever... Ele era uma melancolia convulsionada sem fim. Era o diabo cantando e tocando como um anjo! Não sei se isso soa contraditório, mas um dos raros momentos que não ouço música é quando escrevo. Música cozinha.

6 – Rilke fez a seguinte pergunta no seu livro Cartas a um jovem poeta: morreria, se lhe fosse vedada escrever?
Não. Você vem com o Rilke e eu vou com o Hampate Bá, um escritor africano importantíssimo pra mim. Ele diz (dentro de certo contexto, claro) que onde não há escrita, mas sim tradição oral, a relação do homem com a palavra é mais forte. Eu mais escrevo do que falo e devaneio mais do que escrevo. Se eu parasse de escrever, talvez criasse até mais.

7 – Existe diferença entre a poesia escrita por um homem e por uma mulher?
Pensei nisso dias atrás numa ida ao banheiro e digo isso sem querer banalizar sua pergunta. Fiquei pensando no que me impedia de escrever um poema sobre um diálogo mudo entre mim e as baratas paulistinhas que frequentam a pia de madrugada, por exemplo. Um diálogo desses durante uma necessidade humana tão imbecil como a de cagar. Digo isso porque se eu fosse um homem, certamente não teria problema. E não há problema mesmo, mas no mínimo uma estranheza. Mas falando mais sério agora, acho que tem diferença, sim, no âmbito da liberdade, se é que eu posso usar essa palavra. Há também uma expectativa romântica em relação ao que uma mulher escreve e quando a gente quebra isso, vem a frase besta “essa mulher escreve como um homem!” – um amigo meu lembrou desse dito absurdo durante uma conversa e cabe muito aqui. E porra, não tenho a intenção de escrever como um homem e nem como uma mulher. Só um imbecil pensaria “ah, hoje eu quero escrever poema como uma mulher/homem”. Na real, a questão não é sobre o que mulher e homem escrevem, mas sim a reação de quem os lê.

8 – O amor ajuda ou atrapalha na hora de escrever?
Ajuda. É um mal necessário. Amor é doido e doído.

9 – Você está sempre escrevendo ou tem mais o que fazer?
Eu vivo escrevendo por causa da minha formação que é em história e agora entrei naquela neura de começar o mestrado. Além das aulas que eu preciso montar. Escrever é o que eu mais tenho pra fazer, sem dúvida. Agora, sobre escrever poesia, eu não vivo porque senão eu iria perder tempo demais, mas tô aproveitando pra estudar a bendita (“O ser e o tempo da poesia” do Alfredo Bosi anda me ensinando muito) e pra ler/conhecer outros autores. Enfim, sabe aquela frase do Buk ,“dedicação sem talento é inútil”? E como eu já disse: não forço. Passo meses sem escrever poemas.

10 – Para terminar, gostaria de dizer algo?
Vamos tomar uma cerveja? 





domingo, 16 de fevereiro de 2014

O homem perfeito


A decisão estava tomada. Ele se mataria naquela noite. Estava orgulhoso de si mesmo. Afinal, ia se matar pelo motivo certo. Pensou nos homens que conhecera e que haviam decidido tirar a própria vida. Motivo: falência, chifre, doença terminal. Não, ele não era um desses que se matam por dinheiro. Ou porque são cornos. Ou ainda porque não aguentam sentir dor. Ele era, por assim dizer, completamente normal.
Não deixaria um bilhete. Homens que deixam bilhetes são todos uns dramáticos. Morrem querendo deixar para trás uma dezena de culpados. A mãe que devia ter entendido os sinais; a esposa que não devia ter gastado tanto; a amante que não devia tê-lo trocado pelo garotão mais novo; os amigos que deviam ter oferecido um ombro em vez de deboche. Não, homens que escrevem palavras de adeus são vingativos. Sempre querendo semear o remorso, infernizar os vivos.
Ele morreria de forma muito digna. Morte com planejamento. Já tinha pagado até pelo caixão e pela cremação. E por uma corbeille grande, com faixa escrita e tudo. Uma corbeille... Mas afinal o que era a porra de uma corbeille? Não sabia. Alguma coisa que se usa em enterros, com certeza. E que é chique. Senão a mocinha da funerária não teria lhe vendido com tanto orgulho o pacote 3C Primeira Classe, ou 3C-PC, como era carinhosamente chamado. Bem, isso ele sabia explicar o que era. Um pacote 3C-PC significava caixão-corbeille-cremação. Aliás, essa tinha sido uma das razões que o haviam levado a escolher entre ser enterrado ou  virar cinzas. Explica-se. É que havia dois pacotes 3C disponíveis. O de Primeira Classe, composto por caixão-corbeille-cremação, como já se disse. E o Executivo, ou 3C-E, oferecido com caixão-corbeille-cova. A propaganda impactante feita pela Boutique do Último Leito (sim, mortais, funerária é coisa do passado) contribuiu decididamente para a escolha. Do pó vieste, ao pó retornarás. Mas tu decides como,  dizia o folheto com letra em negrito. Embaixo dos dizeres, duas fotos: em uma delas, um caixão sendo baixado à terra por homens circunspectos; na outra, uma urna de porcelana magnífica, nas mãos de uma pessoa sorridente. Na verdade, ele havia achado o sorriso um tanto excessivo. Mas a mocinha das vendas logo o fizera mudar de ideia. "Veja bem que é o sorriso de alguém feliz por poder levar consigo as cinzas da pessoa amada." Como é que ele não tinha pensado nisso? De um lado o chão frio e úmido dos vermes, de outro o frescor da porcelana acolhendo as suas cinzas. Tudo bem que essa frase também era da mocinha, mas serviu bem naquele momento de decisão. 
Fez tudo sozinho. Não podia envolver no processo as secretárias, nem a família, nem os amigos. Não se imaginava dizendo "Eu gostaria da sua ajuda para organizar a minha morte". Não, eles não entenderiam. Como explicar que se mataria porque era feliz? Que não havia nada que já não tivesse feito na vida? Que tinha alcançado o que todos os homens desejam: a plena realização — e que, exatamente por isso, estava na hora de morrer?
Tudo em sua vida era perfeito. Tinha sido uma criança feliz, sem traumas. Um adolescente bem sucedido, bom aluno, cheio de amigos e namoradas. Adulto, tinha ficado rico. Muito rico. De um tipo de rico que não se vê, só se ouve falar. Antes dos 40 anos, já conhecia 24 países. Em 10 deles comprou propriedades luxuosas e estabeleceu-se em negócios diversificados. Casou-se com uma mulher linda e gostosa. Deus, como era gostosa! Mas não o bastante para impedi-lo de ter todas as amantes que quis, loiras, morenas, roliças, magras, negras, asiáticas. Mulheres discretas que sabiam como chegar e quando ir embora. Teve dois filhos. Lindos como a mãe. Inteligentes como ele. E até mesmo o divórcio foi feito sem mágoas. Separou-se da esposa enquanto ainda a achava bonita e excitante. Porque não queria permitir a si mesmo vê-la definhar com a idade. Porque não deixaria que ela se fosse quando já não a desejasse, ou quando não houvesse mais homens para cortejá-la. Ele a amava demais para esperar ao seu lado o desgaste da relação.
Tinha saúde. E como tinha. Os médicos repetiam a todo instante que ele era um exemplo de homem no cuidado consigo mesmo. Um dos filhos já estava ao seu lado nos negócios e o outro fizera sua própria fortuna. Eles o amavam e respeitavam. E haviam lhe dados netos. Crianças educadas, rosadas e bonitas. 
Sem pendências, portanto. Vida perfeita. Podia morrer pelo motivo certo: plenitude. E na noite certa. Estrelada, silenciosa, cheia de uma brisa fresca com cheiro de bos... Bosta?! De onde vinha aquele cheiro de merda insuportável? Aquele fedor de embrulhar o estômago? Alarmado, pensou que nada, nada podia quebrar o clima perfeito da noite da sua morte. 
Descendo as escadas com rapidez, saiu correndo, transtornado, pelo jardim meio escuro, buscando a fonte do cheiro fétido. Na pressa, tropeçou nos instrumentos deixados na grama pelos homens que haviam trabalhado à tarde na abertura do buraco da nova piscina. Uma piscina olímpica longa e funda. A topada o jogou para a frente com força e ele se sentiu voando até que estatelou-se em alguma coisa malcheirosa e gosmenta. E nada teria acontecido não fosse o azar de ter batido a cabeça em outro objeto qualquer deixado ali por descuido. Maldito objeto.
Enquanto morria, sentindo o cheiro de merda que, agora percebia, vinha da lama úmida que servia de chão ao buraco, e sem conseguir mover nem um único membro do corpo grande, lembrou-se de que não tivera tempo de escrever as instruções sobre o pacote 3C-PC para deixar sobre a cômoda. Lembrou-se também de que não havia escrito cartas ou bilhetes se despedindo, porque isso era coisa de homens dramáticos. Por fim, lembrou-se de que dissera à mocinha da Boutique do Último Leito para esperar até ser procurada por alguém com instruções. Não seria. E ele não seria cremado. E os vermes lhe fariam companhia. E ele ficaria na terra fria, ossos amontoados, distante de tudo o que amava, sem o frescor da urna de porcelana envolvendo suas cinzas.
Enquanto o sereno descia sobre o seu corpo imóvel, pensou em como gostaria de processar aquela empresa maldita, aqueles operários relapsos. Se ele não morresse, talvez ficasse paralítico. E teria que depender das pessoas e contratar enfermeiras e reformar a casa. Todas as casas. Em 10 países. Se ele não morresse, e ficasse paralítico, se tornaria incapaz para o trabalho, para o sexo. Se ele não morresse, veria, em poucas horas, aquele jardim repleto de policiais colhendo evidências, confiscando os objetos malditos. Se ele não morresse...
Ainda pensava nas possibilidades quando policiais e paramédicos chegaram para salvá-lo, na manhã seguinte. Agora sim. Infeliz, miserável, incompleto, não tinha mais nenhum motivo para querer morrer. Era, finalmente, dono de uma vida imperfeita.

Imagem: O Homem Vitruviano, de Leonardo Da Vinci