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domingo, 29 de maio de 2022

A Despedida

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O dia estava límpido e temperado. Daqueles dias claros, depois da chuva, em que se conseguem divisar quilómetros, nas poucas áreas das cidades em que se consegue discernir o horizonte.

O local, o campo do repouso final, com os retângulos de mármore ou granito cuidadosamente alinhados em grande extensão para um lado e para o outro.

Uma tumba específica, recente, de granito comum, sem grandes ornamentos, mas completamente nova. Na cabeceira, apenas a fotografia de um homem na casa dos quarenta, moreno de cabelo curto e barba aparada. Como epitáfio apenas o nome e as datas de nascimento e morte, sem saudades, dores ou sofrimentos. Apenas assinalado o local onde depositaram a concha vazia que havia sido aquele homem.

A mulher aproximou-se. Era morena, cabelo castanho forte, pelos ombros e de estatura pequena, de aspeto nervoso. Envergava uma t-shirt branca sem estampagens e umas calças de ganga clara que terminavam em sapatilhas brancas, salpicadas de lama. A roupa folgada pouco conseguia disfarçar os peitos fartos e as ancas bem torneadas, mas pela ausência de maquilhagem e de cuidado em salientar as formas, via-se que não tentava causar impacto nos demais… ou já não se preocupava.

Ela ajoelhou-se sobre a pedra tumular e limpou com os dedos as gotas de água e pó que estavam sobre o esmalte colorido que exibia o rosto sorridente.

— Não podia deixar de vir despedir-me. — Começou ela sem rodeios e esboçando um sorriso triste. — Se calhar não volto aqui. De certeza que não, tão cedo.

Brincou com os dedos sujos de limpar a fotografia, espalhando o pó cinzento e molhado pelos restantes.

— Não vou dizer que não terei saudades. — Recomeçou. — Que não vou sentir falta de ouvir a tua voz logo pela manhã, ou sentir o calor do teu abraço antes do pequeno-almoço. Acho que até sentirei falta das sonoras palmadas com que agraciavas as minhas nádegas que tanto dizias gostar.

Sentada e de olhos fechados, empurrou as mãos entre as pernas numa memória voluptuosa que lhe causou um arrepio.

— Eras tão carinhoso no início. — Observou, perscrutando cada pormenor do rosto na minúscula fotografia. — Nem consigo precisar quando foi que as coisas começaram a mudar. Quando foi a primeira sapatada com força excessiva, o primeiro beliscão a deixar marca ou mesmo o primeiro torção dos mamilos a fazer-me gritar de dor. Acho que foi uma coisa gradual, a que eu fui correspondendo com gritos mais ou menos excitados e joelhadas e dentadas que te pareciam excitar ainda mais.

Ela apertou ainda mais as pernas e soltou um suspiro profundo.

— Sim o sexo era ótimo. — Ela sorriu com a recordação, enquanto deixava correr uma lágrima pelos olhos semicerrados. — Não só quando passávamos horas abraçados a devorarmo-nos mutuamente, mas também depois, quando as coisas começaram a ficar mais brutas e depois violentas. Quando acabávamos os dois esgotados, transpirados, maçados e pisados. — Limpou as lágrimas. — Não percebi quando as coisas passaram de sexo excitado e apaixonado para espancamentos e quase violações. Quando deixei de ter força para te combater e as nossas lutas desiguais acabavam comigo subjugada e forçada onde quisesses, o tempo que precisasses.

Tirou um pacote de lenços de papel do bolso e limpou as lágrimas, assoando-se em seguida.

— Mas não foi isso que me quebrou. — Ela continuou a calma retrospetiva. — Nem mesmo quando a violência começou a extravasar a cama e a visitar-me quando chegavas a casa meio embriagado. Quando te excitavas em dar-me dolorosos socos nos braços ou nas costas, como represália do pontapé nas canelas com que eu respondia ao puxão de cabelos e ferradela canina nos ombros com que me cumprimentavas.

Emitiu um suspiro entrecortado e coçou o cabelo com força, quase como se o tentasse arrancar.

— O que me doeu — Continuou ela. — foi saber que tudo aquilo que agora havia entre nós, que eu achava ser amor descontrolado, não passava de sexo bruto e sem respeito. Fiquei devastada quando soube daquela cabra com quem te consolavas antes de vir para casa… encher-me de porradas.

Limpou a foto da campa com o lenço de papel.

— Eras um cabrão bonito. — Concedeu a mulher. — E sabias fazer bom sexo, mas a partir daquela altura, tudo aquilo que para mim era amor e que suportava por isso, transformou-se em violência sem respeito e numa humilhação. Isso tinha de acabar.

Ela exibiu um sorriso e olhou a fotografia com amor.

— Se pudesse ressuscitar-te, fá-lo-ia. Faria amor contigo novamente e enlouquecer-nos-íamos com pancadas e dentadas. Na cama, no chão, no balcão da cozinha... como antes, não importavam as nódoas negras nem as dolorosas marcas de dentes… seria tudo como antes…, mas… antes que voltasses para a aquela cabra, envenenava-te outra vez.

Ergueu-se, sorriu com bonomia e colocou um beijo nos dedos que depositou demoradamente no rosto do homem que amava. Em seguida voltou costas à campa e aproximou-se do casal de polícias que a aguardavam pacientemente a alguns metros de distância. Estendeu os braços e deixou que a algemassem.


Manuel Amaro Mendonça

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terça-feira, 24 de maio de 2022

Os brincos

 

O campo! Nas décadas entre guerras, o campo é um território habitado e amanhado por chusmas de gente de inúmeras competências rurais. Pastores, ganhões, quinteiros, terceiras tratam de rebanhos, lavras, ceifas, mondas.

Homens e mulheres aproximados fisicamente, na alegria dos trabalhos estivais, estão disponíveis para dichotes carregados de sensualidade e maiores brincadeiras. As descamisadas à obscuridade lunar, abrandado o calor diurno, são especialmente apetecíveis para jogos e folia. Um beijo por cada espiga de milho-rei funciona como atiçador. Quase sempre aparece um tocador de harmónio e o baile acontece; dança de corpos separados, de braços levantados, o corpo a saltitar, o rosto afogueado de entusiasmo, uns toques corporais — quem pode evitar?, quem quer evitar? As paixões incendeiam os corpos, depois dos rostos e, por vezes, uma escapada rápida é inevitável. Nunca dá para muito, às vezes é o início de um namoro, de um casamento. Quantos casais começam nas eiras? Os casados vão-se deitar, mas um dia tão longo ainda tem de prolongar-se mais uns minutos, para apaziguar os corpos, para o sono ser sossegado.

Os homens — e as mulheres — nunca estão satisfeitos. Mesmo os casados podem ficar a cismar com um olhar cheio de promessas, com outro corpo, com a sua apetência, com a sua disponibilidade. Muitas vezes não passam de devaneios, alguma tentativa tosca facilmente desarmada. O patrão tem outra manha, outro ascendente sobre as assalariadas.

Domingos Saruga não se deixou esquecer de umas coxas brancas, robustas e molhadas, cujos sobrejoelhos vislumbrou na ribeira. “Zabel”, a mulher do ganhão, estava a lavar a roupa, metida na água, com a saia enrolada na cintura, enquanto dois gaiatos andavam por ali a brincar com os seixos. Domingos passava a caminho do rancho, na lida desse dia: desbandeirar parte da beirada de milho. Entre saudações e despedidas, houve tempo para uns gracejos:

— Boas tardes! Tá calor, hã? — fez Domingos, com a bota apoiada num pedregulho.

— Boas tardes! Aqui nã se está mal… — Isabel, sorridente, não deixou de esfregar a barra de sabão azul e branco numas calças encardidas.

— Tamém não me importava de estar aí!… — insinuou Domingos. — nõ sei é se nõ m’aumentava o calor… — arriscou.

— Ó patrão, se o calor é desses, o melhor é ir ter com a patroa, a ver se ela lho tira… — lançou a rapariga, em risada.

No domingo seguinte, na missa, depois dos ora pro nobis e dos miserere, o padre veio com uma prática que parecia feita para ele e lhe deu umas ideias. Era a história do rei David e de Betsabé. O rei vira-a a tomar banho, desejara-a e seduzira-a. Como era casada, o rei mandou o marido, militar, para a frente de batalha para morrer, e ficou com ela. Não havia só a coincidência do banho; o nome Betsabé também fazia lembrar Zabel. E a guerra era ali ao lado, em Espanha, em tempos de avançada nacionalista. Às vezes, ouviam-se tiros. Não era má ideia afastar o ganhão, para se poder aproximar da mulher dele.

Nessa mesma tarde, Domingos comunicou-lhe a ordem:

— Amanhã, vais para o Vale do Espinho, lavrar a encosta do Monte da Anta. Vamos lá semear feijão pequeno.

O dito monte ficava a uns bons dez quilómetros e não passava de um terreno aberto.

— Atão, mas não há lá casa nem nada!

— Está bom tempo. Dormes debaixo do carro!

O dia seguinte era dia de mercado de gado na cidade. Domingos não falhava um. Depois de se inteirar dos preços do gado, de um ou outro bocado de conversa e de comer a bucha que levava, entrou numa das duas ourivesarias da cidade e quis ver brincos. De conversas anteriores, sabia que Isabel ambicionava uns brincos novos para levar a um casamento daí a meses.

— É para a sua senhora ou quer melhor? — perguntou o matreiro ourives.

— Vossemecê arranje-me aí uma coisa em conta! — Apesar da importância do motivo, Domingos não queria gastar muito. Se tinha arranjado algum, não era a esbanjar.

Escolheu uns simples, mas de filigrana fina. A rapariga ia gostar.

No dia seguinte, passou “casualmente” pela pequena horta que cedera ao casal e iniciou a aproximação com conversa mole, tendo o cuidado de esperar que os miúdos se afastassem. Andavam na rega da manhã.

— A aguinha é o que vale à horta, senão secava tudo, nõ é?

— O sol já vai alto. Daqui a bocado nem parece que a horta foi regada.

— É o calor do tempo. A esta hora é sempre a subir. É cmó meu...

— Ai, patrão, meta os pés na água qu’isso passa.

— Já experimentei de tudo. Não passa de maneira nenhuma. Mas, eu sei como é que ele passava e quem mo fazia passar... E tu também sabes. Dava-te uns brincos, Zabel!

— Nõ diga isso, patrão, que é pecado — reagiu Isabel, com pouco vigor. O malvado tinha encontrado a palavra mágica.

— Hoje à noite no palheiro, quando eu for arraçoar o gado.

— Ó patrão… Não pode ser… Depois o que é que eu dizia ao meu Zé?

— Que é uma paga por ter ido trabalhar para fora.

Isabel ficou o resto do dia em grande inquietação. Não queria fazer aquilo, por mais que lhe agradassem uns brincos novos. Mas como é que podia dizer “não” ao patrão? Alvoroçado como andava, se calhar ia ficar tão danado que era capaz de despedir o seu Zé. Isso não podia acontecer. Não havia assim tanto trabalho na zona. Em desespero, lembrou-se de pedir ajuda à patroa. Talvez ela intercedesse para que o marido não despedisse o Zé.

À tardinha, antes de o patrão regressar a casa, Isabel contou à patroa as encrencas em que o patrão a tinha enredado.

— Ai, o valhaco! — reagiu Assunção, genuinamente arreliada. Ali ao lado da casa, nas barbas dela, salvo seja? — Deixa estar que eu trato disso. Vai descansada, mas fecha-te em casa. E não digas nada a ninguém. Nem ao teu marido, senão há sangue!

Assunção e Domingos cearam normalmente, mas este parecia um pouco ansioso. No fim, levantou-se e anunciou:

— Vou arraçoar o gado!

Logo que o marido saiu, Assunção deixou a candeia acesa, mas escapou-se rapidamente pela porta das traseiras e entrou no palheiro cautelosamente por uma porta secundária, protegida pelo escuro da hora e um lenço pela cabeça. O marido já lá estava e repetia em surdina:

— Zabel! Zabel!

Assunção já tinha escolhido o sítio — uma zona de palha limpa espalhada no chão, na zona mais escura do palheiro. Fez um “ch, ch” suficientemente baixo, que não desse para identificar o timbre de voz. Domingos seguiu o som. Conhecia bem o palheiro. Em menos de nada, chegou ao pé da mulher. Às apalpadelas, encontrou-lhe o busto. Sentiu a macieza das carnes. Em grande excitação, agarrou aquele corpo disponível.

— Amandei-lhe as mãos às tetas, às nalgas, à abêbera — fanfarronaria, na segunda-feira seguinte, para o amigo de confidências, também agricultor.

Arrastou a mulher para o chão e, em urgência, afastou roupas e pernas.

— Boa com’um raio! Aluada que nem uma bezerra! Encavei-lhe o vergalho naqueles entrefolhos e fiquei ali a regalar-me! À patrão! — concluiria Domingos.

O gozo sobreveio antes do diabo esfregar um olho, intenso, avassalador, tempestuoso.

«Tanta pressa! Até parece que passa fome em casa…» — notava Assunção, atenta e um pouco divertida.

«Parece que levei uma marrada!» — pensava Domingos, ainda atordoado. Depois levantou-se e começou a compor-se. Antes que a mulher se afastasse, meteu a mão no bolso das calças e tateou a mão dela:

— Toma os teus brincos. Ganhaste-os bem! Vai, vai lá! Ma nõ digas nada!

Assunção não tinha preparado nenhuma ação especial; nem imaginara como as coisas pudessem passar-se. Uma ideia perversa assaltou-a: podia repetir a farsa mais vezes. Mas logo reconsiderou. Não podia deixar que ele continuasse a pensar que tinha estado com a Zabel.

— Atão! Sabe-te melhor aqui do que lá em casa?

Mergulhada no escuro, Assunção lamentava não poder ver a cara do marido. Seguiu-se um longo e opressivo silêncio. Nem cara, nem voz. Por um momento sentiu apreensão. Se calhar, não devia tê-lo confrontado já. A reação dele demorou, mas, quando chegou, regozijou-a e deu-lhe a certeza da vitória:

— Rais parta as mulheres! — resmungou alto, afastando-se para deitar feno ao cavalo, à burra e a uma junta de vacas.

Em casa, depois de confirmar que não tinha palhas agarradas à roupa, Assunção apreciou os brincos. Já não se lembrava de quando é que ele lhe tinha dado uns. E o entusiasmo? «Só talvez por alturas do casamento» — calculou, despeitada. «O valhaco!» Com jeito, colocou-os e mirou-se num pequeno espelho, à luz da candeia de azeite. «Ficam-me bem! Acho que vou passar a usá-los. E hei de dar à Zabel os que já não uso, para ela levar ao casamento da prima.»

Recomeçou a arrumar a loiça. Domingos ainda demorou um bocado. Quando entrou, encontrou-a ao pé do lume, mas não disse nada e foi logo deitar-se.

Assunção ficou ainda algum tempo a meditar em tudo o que tinha acontecido. O malvado não tinha estado com outra mulher, mas, para o caso, era como se tivesse estado. A traição não tinha comparação com qualquer outra zanga. Era amargosa e verde como os concilhos. Aqueles brincos seriam o lembrete silencioso de um dia em que Domingos tinha posto o pé em ramo verde. E lhe tinha corrido mal. Que ele teria de encarar todos os dias.


Joaquim Bispo

*

Imagem:

José Malhoa, Clara, 1903.

Museu do Chiado, Lisboa.

* * *






terça-feira, 17 de maio de 2022

Três poemas de Rodrigo Luiz P. Vianna




o cabelo seco ao sair das águas

e o pássaro na estante

desperdiçam o azul


***


                                        mar movimenta o desenho da noite


                                        as pérolas presas no peito

                                        ondulando unidas

                                        lembranças da espuma


***


                                                                                                  sussurro à areia

                                                                                                  em tua orelha


                                                                                                  lua


                                                                                                  e se cumpre a pérola

                                                                                                  completa destino


                                                                                                  inúmeras palavras dentro do mesmo corpo



Do livro "Textos para lembrar de ir à praia", Editora Reformatório/Patuá.






sábado, 7 de maio de 2022

A Consulta


 

Sentou-se com o cuidado exagerado de quem está habituado a considerar todos os móveis demasiado frágeis e pequenos para o seu imenso peso. Mesmo assim, a cadeira que escolhera por não ter braços e lhe parecer ser a mais sólida do consultório rangeu bem alto e estremeceu fortemente, ameaçando desmoronar-se. Por meio de alguns movimentos minuciosos e bem ponderados foi-se ajeitando até se sentir confortável e bem apoiado. Deu um grande suspiro de alívio e satisfação e só então contemplou o psiquiatra, que via pela primeira vez.

Fora-lhe altamente recomendado por conhecidos e amigos como sendo um dos melhores especialistas de doenças nervosas. No entanto, o seu aspeto franzino e como que encolhido, a careca rebrilhante, os minúsculos óculos de aros dourados, encavalitados na ponta do nariz e as roupas antiquadas e bastante enrugadas não incutiam muita confiança. Hesitou, mais uma vez. Nunca gostara de psiquiatras e sempre desconfiara de quem os consultava. Confiar totalmente em terceiros para a resolução de problemas íntimos e pessoais parecia-lhe ser um dos muitos exageros perigosos da sociedade atual e algo que devia ser evitado a todo o custo. Mas os seus problemas tinham atingido uma dimensão tal que já não conseguia continuar a trabalhar com a eficiência esperada de quem ocupava um lugar de responsabilidade. Decidiu-se, pois, a falar.

Numa voz inesperadamente melodiosa por provir de tão descomunal corpo, delineou em poucas palavras a situação que o levara a consultar um especialista. Trabalhava desde sempre num dos principais hotéis de luxo da cidade. Colocado no patamar intermédio da enorme escadaria de acesso aos numerosos salões, a sua função era refletir os hóspedes que subiam ou desciam os seus degraus. Durante muitos anos executara fielmente essa missão, com a qualidade exigível a um espelho da mais alta qualidade. Gostava do seu trabalho, sempre variado, agradando-lhe sobretudo as épocas de grande azáfama em que era chamado a intervir continuamente, por vezes durante horas a fio.

Ultimamente, porém, tudo se alterara. Sem que soubesse realmente porquê sentia-se totalmente desmotivado, entrando mesmo em pânico quando detetava a aproximação de alguém. Os grupos, então, deixavam-no num estado de prostração nervosa tal que só muito a custo conseguia cumprir as suas funções. Vivia num estado de angústia permanente devido ao temor de ver chegado o momento em que falharia por completo, tornando-se incapaz de refletir fosse o que fosse. Nos breves momentos de sonolência tinha sonhos cada vez mais frequentes em que entrava um imenso martelo que o estilhaçava, fazendo-o em mil pedaços e acabando de vez com os seus problemas e preocupações. Sentia grande dificuldade em repousar sempre que não era necessário, pois durante esses instantes, por vezes bem longos, só conseguia pensar, com ansiedade, que em breve alguém apareceria, sendo então necessário voltar ao trabalho.

Tentara todo o tipo de medidas e curas recomendadas por amigos e conhecidos: meditação de vários géneros, exercícios respiratórios e de relaxação muscular, auto-hipnose, frases encantatórias repetidas vezes sem conta ao longo do dia e, até, certas ervas supostamente calmantes. Nada resultara. Embora com imensa relutância, decidira-se, por fim, a consultar um especialista. Era a sua última esperança, pois não lhe restavam grandes ilusões: mais cedo ou mais tarde acabaria por falhar nas suas funções, sendo então ignominiosamente despedido ou, até, destruído.

Tendo dito tudo o que lhe parecia ser necessário para a análise da situação, calou-se. Alguns minutos se passaram, num silêncio total e bastante incómodo para o paciente. O imenso vulto retangular do pesado espelho movia-se nervosamente na cadeira, apesar dos protestos audíveis desta e do perigo, bastante real, de uma queda. Olhava com fixidez para o psiquiatra como se esperasse que uma simples palavra deste chegasse para o libertar dos seus problemas. Era óbvio que esperava um milagre, apesar da sua alegada desconfiança. Mas este nada dizia, limitando-se a olhar para o tampo da secretária e para os vários papeis que colocara à sua frente.

Começava a arrepender-se de ter vindo. As suas ideias sobre o que se passava neste tipo de consultas eram bastante vagas, mas mesmo assim nada decorrera de acordo com as suas expectativas. Pensara encontrar um pessoa decidida e incisiva que uma vez ouvida a sua breve narrativa dos factos propusesse de imediato uma solução simples e eficaz. Algo que o salvasse, devolvendo-lhe a tranquilidade e a paz de espírito que conhecera durante tantos anos e que tão necessárias lhe eram. Suspeitava, porém, que isso não iria acontecer.

O psiquiatra decidiu-se, finalmente, a falar. Lentamente e com uma voz monocórdica e demasiado baixa para poder ser escutada sem esforço, começou a fazer-lhe perguntas. Era evidente que não ficara satisfeito com o que ouvira, querendo mais detalhes sobre a vida do grande espelho e o modo como ocupava os seus dias. Este tentou satisfazê-lo o mais completamente possível, embora não lhe agradasse devassar deste modo a sua intimidade.

Não se lembrava lá muito bem da sua infância. Apenas sabia que fora uma encomenda especial, executada com as mil precauções e cuidados exigidos pelas suas enormes dimensões. Uma vez acabado, fora de imediato instalado no seu local de trabalho, muito antes do final das obras, ajustando-se sem problemas ao espaço que lhe fora destinado. Apesar das inúmeras, e por vezes bem profundas remodelações sofridas pelo hotel, nunca fora mudado para outro lado, nem mesmo a título provisório. A sua qualidade era das melhores e nunca necessitara de tratamentos ou ajustes de qualquer espécie. Era limpo diariamente e podia gabar-se de apesar da sua provecta idade não ter falhas, zonas baças ou riscos.

A sua primeira recordação mais precisa remontava ao dia da inauguração do hotel. Lembrava-se muito bem do nervosismo e excitação que sentira nas horas de azáfama que tinham antecedido tão momentoso evento, horas essas que passara perguntando a si mesmo se seria capaz de executar devidamente as suas funções, se estaria à altura de tão importante cargo. É claro que já fora testado vezes sem conta, na fábrica donde saíra e ali mesmo, refletindo perfeitamente os operários e empregados que se apressavam nos últimos preparativos.

Só que agora era mesmo a sério. Sabia que uma imensa multidão em breve invadiria a escadaria que estava a seu cargo, dirigindo-se para as variadíssimas festas e cerimónias previstas para aquele dia. Seria necessário trabalhar sem parar durante horas e horas, tanto mais que haveria inúmeros curiosos interessados em observar de perto a parte pública do primeiro hotel de luxo da cidade.

Mas tudo correra o melhor possível naquele primeiro dia de trabalho e quando o último hóspede se retirara pudera descansar com a satisfação do dever bem cumprido. Sentia-se completamente exausto, mas em paz consigo e com o mundo.

Não se lembrava de muitos detalhes daquele dia, pois a novidade e a excitação sentidas eram demasiado grandes para isso. Mas com o passar dos tempos aprendeu a manter a calma, podendo, então, dedicar a sua máxima atenção às pessoas que o utilizavam. Descobriu que isso o divertia bastante, pois naquele imenso hotel havia todos os dias acontecimentos novos, frequentados por todo o tipo de pessoas vestidas das mais diversas maneiras. As modas iam mudando ao longo dos tempos, sendo umas mais elegantes do que outras, mas tudo era novidade para quem nunca saía dali, tendo de esperar que fosse o mundo a vir ter com ele.

A princípio limitara as suas atividades a refletir o mais fielmente possível a imagem dos clientes que frequentavam o hotel. Apercebia-se, é claro, dos sons que faziam quando se deslocavam em conjunto e do barulho, por vezes, ensurdecedor dos grupos numerosos que subiam e desciam a escadaria. Mas estes eram totalmente ininteligíveis. Nem lhe ocorria perguntar-se o porquê de tal atividade sonora, que estava muito para além das suas capacidades.

Um dia, porém, colocaram no seu patamar um painel de madeira escura, que anunciava em bem desenhadas letras brancas as várias atividades disponíveis nos diversos salões do hotel. Era um painel quadrado, bastante grande e apoiado em três pés demasiado finos e deselegantes. Estava um pouco de viés e afastado da parede, mas mesmo assim o seu conteúdo era bem visível para quem subia os degraus. O espelho não gostou muito da sua vinda, pois achava que destoava do ambiente elegante e sofisticado da bela escadaria. Além disso, cortava-lhe um pouco a visão, pois o reflexo das suas costas ocupava um dos cantos da imagem, até aí desimpedida, que era permanentemente refletida pelo imponente espelho.

A solidão das inúmeras horas em que nada tinham para fazer levou-o, contudo, a conversar um pouco um com o outro, primeiro com uma certa desconfiança mútua, depois com um entusiasmo sempre crescente. O painel já ocupara diversas posições no hotel, podendo-se mesmo dizer que passara por todos os andares e situações. Tinha, por isso, muito mais para contar que o pesado espelho, que nunca dali saíra e cuja experiência se limitava ao que se passara naquela escadaria ao longo dos anos, por muito interessante que isso pudesse ser, em particular para o historiador que o painel dizia ser.

À força de ouvir ler os anúncios que lhe eram confiados o painel aprendera, até, a entender o que diziam as pessoas, pelo menos a maior parte delas. Foi assim que o espelho descobriu que os sons emitidos pelos seus clientes tinham um significado, uma razão de ser. Encantado com a hipótese de ampliar as suas capacidades apressou-se a aceitar com gratidão o oferecimento do painel de anúncios, que se propôs ensinar-lhe tudo o que sabia a esse respeito durante o tempo, breve ou longo, da sua estadia naquele local.

O espelho era um aluno atento e aplicado, aprendendo com uma rapidez surpreendente em alguém já de certa idade e com tão pouca experiência do ensino. Por isso em breve sabia tanto como o seu mestre, embora tivesse ainda alguma dificuldade com as palavras ditas demasiado depressa ou com uma entoação mais estranha. E ainda bem que assim foi, pois o painel de madeira foi removido ao fim de poucas semanas passando a executar as suas tão necessárias funções no amplo átrio do hotel.

De novo só, o nosso herói decidiu pôr em prática os conhecimentos recentemente adquiridos, ficando imediatamente fascinado com o mundo que se lhe abria graças a esta nova habilidade. E não lhe faltavam oportunidades para testar as suas novas capacidades. Pela primeira vez apercebeu-se do imenso mundo sonoro que o envolvia permanentemente. Tantos sons diversos, tanto barulho! O silêncio passou a ser a exceção, pois mesmo quando estava desocupado havia sempre um certo ruído de fundo, que só com dificuldade conseguia ignorar. Parecia-lhe que as pessoas eram totalmente incapazes de subir ou descer em silêncio, tendo sempre algo a dizer, a comentar. Por várias vezes detetou, até, seres isolados que apesar disso falavam para o ar ou, quem sabe, lhe dirigiam a palavra.

Era realmente maravilhoso. Parecia-lhe impossível ter vivido tantos anos ignorando por completo uma parte tão grande da realidade que o rodeava, limitando a sua experiência à parte visual que, sentia-o agora, era apenas uma parcela bem pequena do todo que era este complexo universo de seres e de sons. Sentia-se imensamente grato ao painel de madeira, tão detestado de início, que lhe possibilitara este aumento de conhecimentos e, também, de distração.

Durante algum tempo limitou-se a ouvir isoladamente as palavras pronunciadas na sua presença, esforçando-se sempre por compreender as que desconhecia e que armazenava com todo o cuidado para futura referência. As frases só lhe interessavam quando precisava de interpretar novos vocábulos e não prestava grande atenção ao seu conjunto, nem ao que poderiam representar de sentimentos e emoções.

Uma vez passada a novidade, porém, dedicou-se cada vez mais a este novo aspeto do mundo dos sons, que lhe abria perspetivas desconhecidas e absolutamente fascinantes sobre as pessoas que sempre considerara como sendo apenas algo a refletir com a máxima fidelidade. E assim nasceu uma obsessão que lhe ocupava todos os pensamentos e os momentos disponíveis.

Com o enorme número de exemplares humanos ao seu dispor e a tagarelice sem fim que lhes parecia ser absolutamente indispensável, em breve se tornou um verdadeiro especialista da natureza humana. Sentia por tão frágeis seres uma atração sem limites e que o absorvia por completo. Como eram complicados! E tão diferentes uns dos outros, mesmo quando se assemelhavam fisicamente!

Uma noite, porém, ouviu uma frase que lhe desagradou e o chocou profundamente. Havia uma grande festa num dos salões e os convivas tinham-se esmerado nos trajes e joias que usavam. O nosso espelho estava encantado com as ricas imagens que refletia e recordava com uma certa nostalgia outras noites igualmente magnificentes, algumas delas já bem distantes. Um grupo de três mulheres parou, por instantes, mesmo à sua frente. Nada havia de inédito em tal facto, pois o enorme espelho estava colocado num sítio bastante conveniente para as últimas verificações e ajustes na aparência dos hóspedes. O que o transtornou, porém, foi ouvir uma delas dizer:

- Mas que espelho tão horrível! Vejam só como me torna amarela!

Apressou-se a verificar a sua capacidade de reflexão e a qualidade da imagem, mas tudo estava em ordem. A convidada tinha um tom de pele verdadeiramente amarelado, mas que culpa tinha ele disso? Mesmo assim, ficou preocupado. Parecia-lhe que, embora sem qualquer culpa direta, era ele o responsável pela tristeza e desânimo sentidos por aquela convidada. Apressou-se a afastar tal pensamento mas não o conseguiu. A imagem odiada fora da sua responsabilidade, por isso devia ser ele o culpado.

Durante os dias que se seguiram debateu incessantemente consigo próprio este problema. Fora criado para refletir o mais fielmente possível o mundo que o rodeava e sempre se sentira satisfeito por saber que o fazia com o máximo de qualidade e eficiência. Mas isto não parecia ser o suficiente, uma vez que desagradara a um dos seres humanos que tanta importância tinham ultimamente adquirido aos seus olhos.

Ainda teve esperanças de que o descontentamento que ouvira se limitasse àquela pobre mulher. Mas agora que este assunto fora trazido à sua atenção reparou que muitos outros se sentiam aborrecidos com o que viam refletido no espelho, culpando-o muitas vezes pelas suas próprias imperfeições e defeitos. Era verdadeiramente inacreditável! Como podiam os seres humanos ser tão ilógicos e injustos?

Aos poucos, porém, um sentimento de preocupação sobrepôs-se à irritação sentida perante tão infundadas críticas. Com razão ou sem ela, justa ou injustamente, estava a causar sofrimento a outros seres. E isso era absolutamente inaceitável. Tinha de começar a fazer algo para remediar tal estado de coisas.

Com base nos inúmeros comentários e frases que ouvira ao longo dos tempos tinha criado uma imagem mental bastante precisa sobre o que a maior parte dos humanos considerava uma aparência física interessante e desejável. Embora sentindo graves dúvidas a esse respeito decidiu-se a intervir no sentido de melhorar ligeiramente a imagem nele refletida pelos diversos clientes do hotel.

A sua primeira mentira teve lugar quando viu aproximar-se uma rapariga bastante deselegante, rodeada por outras bastante mais belas. A sua experiência dizia-lhe que ela iria ficar triste e culpá-lo pela diferença que não deixaria de notar ao ficar de frente para a parede espelhada. Contorceu-se, pois, um pouco nos locais certos e a imagem que nele surgiu só muito vagamente fazia lembrar o vulto da rapariga que se encaminhava para ali. Esta, porém, ficou completamente satisfeita com a sua reflexão no espelho, fazendo vários comentários sobre o bom aspeto que apresentava nessa noite.

O espelho sentiu o seu espírito ainda mais dividido. Por um lado, sabia que estava a trair a missão para que fora criado, deturpando os factos e mentindo de uma forma bastante crua e descarada. Por outro lado, era indiscutível que o seu ato causara grande prazer e satisfação. Se até aí sentira grandes dúvidas sobre o que fazer no futuro, estas só aumentaram em vez de diminuir.

Com o passar do tempo, porém, e o sempre constante acumular de modificações e alterações introduzidas nas até então fieis imagens que refletia, os seus escrúpulos foram desaparecendo. É claro que fora criado para servir os humanos e devia-lhes o máximo de fidelidade possível. A honestidade era uma coisa muito bonita, mas de que servia se só causava dor e insatisfação?

Era até com uma certa despreocupação que emagrecia daqui, alteava dali, atenuava dacolá, sempre na procura do melhor efeito possível, na tentativa de obter um resultado próximo do ideal humano de beleza. E não se pense que isso era fácil! É claro que quando tinha de lidar apenas com uma ou duas pessoas de cada vez o esforço exigido era insignificante, quase nulo. O caso era bem diferente quando chegava um grupo numeroso. Aí, sim, tinha de recorrer a toda a sua habilidade para conseguir satisfazer os anseios de todos, ou de quase todos. Era um trabalho esgotante, que exigia grande habilidade e uma atenção minuciosa aos detalhes, mas que lhe dava uma grande satisfação e a sensação de ser um verdadeiro artista.

As coisas continuaram assim durante bastante tempo. As suas funções pareciam ter mudado, embora por iniciativa própria, mas eram executadas com a mesma eficiência e qualidade de outrora. O espelho sentia-se bem, tendo deixado de se preocupar com especulações inúteis sobre a verdade e a mentira, a realidade e a aparência.

Ficou, por isso, muito surpreendido quando se começou a sentir esgotado, nervoso e em pânico. Não compreendia o que se estava a passar com ele, nem porque se sentia tão mal numa altura em que o seu trabalho corria melhor que nunca. Dava grande satisfação a numerosas pessoas e ouvira dizer, por mais de uma vez, que fazer bem aos outros era um ato desejável e de louvar. Devia pois considerar-se um verdadeiro benemérito, um benfeitor da humanidade! E em vez disso ...

Esgotado de tanto falar, o pesado espelho afundou-se ainda mais na cadeira, remetendo-se a uma meditação profunda. Solidamente instalado por detrás da sua secretária, o psiquiatra olhava-o sem nada dizer, como que esperando que o paciente chegasse por si próprio à inevitável solução do problema. Os minutos seguintes decorreram num silêncio pesado e prenhe de possibilidades. Por fim, o espelho levantou os olhos perturbados e balbuciou muito a custo:

- E se eu voltasse a dizer a verdade? ...

Não havia dúvidas. Sofria de um severo ataque de consciência!!!

Luísa Lopes

Imagem de Gordon Johnson por Pixabay 






terça-feira, 3 de maio de 2022

Beatles Forever

 

         Estamos no ano de 1967, mais precisamente em junho de 1967 e o mundo acaba de ser abalado por um cataclismo poético-sonoro cujos efeitos ainda hoje não foram totalmente rastreados ou compreendidos. Sabe-se, no entanto, que o efeito imediato foi devastador e que os efeitos secundários se estenderão ao longo do tempo enquanto o tempo tiver essa denominação.

         Este abalo musical tinha um nome comprido como longa e tortuosa e trabalhada foi sua elaboração. Era um objeto de vinil envolto por uma capa repleta de personalidades e de flores e que se chamava Sgtº Peppers Lonely Hearts Club Band. O Lp em questão havia sido gravado por um grupo de rock (não por acaso o mais famoso) conhecido como Beatles ou The Beatles ou The Silver Beatles ou Long John and the Silver Beatles ou Johnny and the Moondogs ou ainda e finalmente The Quarryman. Este último nome foi na verdade a primeira denominação do grupo, em 1957, portanto dez anos antes do divisor-de-águas ocasionado pelo Sgtº Peppers. Naquela época a formação dos Beatles trazia Pete Best na bateria e somente em 1962 é que Ringo Starr veio se juntar a John Lennon, Paul McCartney e George Harrison; formando então o famoso Fab(ulous) Four de Liverpool, cidade natal de todos eles, situada no noroeste da Inglaterra, às margens do rio Mersey.

         O que se seguiu ao encontro destes quatro rapazes já é história. Primeiro foram as importantes presenças do empresário Brian Epstein (que chegou a ser chamado de “o quinto Beatle”) e do produtor George Martin. Depois vieram os inúmeros shows por toda a Europa, as turnês americanas, a instalação da beatlemania em todo o mundo e, paralelamente a toda essa loucura, as gravações em estúdio.

         A estreia se dá com o Lp Please Please Me (1963), logo depois aparece With The Beatles (1963); seguido por A Hard Day’s Night (1964) – também transformado em filme por Richard Lester e Beatles For Sale (1964). Em 1965 é gravado o disco Help! Com um filme homônimo também dirigido por Lester. A partir de 1966, com o Lp Revolver, os Beatles começam a consolidar uma nova e forte tendência musical-evolutiva delineada no Lp anterior Rubber Soul (1965) e que iria culminar em 1967 com a exuberância sonora & poética do Lp Sgtº Peppers Lonely Hearts Club Band, que significou uma ruptura definitiva com a música que eles mesmos faziam até então e com a própria música, tomada como um todo, que era feita na época pelos conjuntos de rock, daí sua importância como um marco deflagrador de todo um processo rico em criatividade que se seguiu. Ainda em 1967 sai o Lp Magical Mystery Tour (trilha sonora de um filme a cores realizado especialmente para a televisão). No ano seguinte foram lançados dois Lps: Hey Jude e o álbum duplo The Beatles ou White Álbum ou mais simplesmente ainda “Álbum Branco” como ficou conhecido no Brasil. Em 1969, já com todos os problemas se agravando e com um prenúncio de dissolução do grupo, os Beatles voltam aos estúdios da Apple e destilam seus talentos em mais dois Lps de excelente qualidade: Abbey Road e Yellow Submarine, este último transformado em um desenho animado para o cinema com trilha sonora composta e orquestrada por George Martin (lado 2 do disco). Em 1970, ano da separação oficial do grupo, foi lançado o Lp Let it Be juntamente com o filme que levava o mesmo nome. Foi, na verdade, um lançamento patrocinado pela gravadora EMI e produzido por Phil Spector sem o conhecimento e a aprovação formal dos Beatles e inclusive com críticas destes quanto ao resultado final. Mas os Beatles já não existiam mais como conjunto e o disco acabou saindo. Apesar de tudo Let it Be é muito bom e digno de constar com igualdade de condições na discografia oficial.

         Depois disso veio o fim do grupo, o fim do sonho (“the dream is over”), mas com o direito de ainda prolongar a noite em que se sonhava por mais um Lp: Beatles Forever (1972), lançado somente no Brasil, Argentina e Espanha, contendo algumas das suas melhores músicas.

         Mesmo para alguém que não tenha vivido aquela época (aquela mágica década de 60 e seus desdobramentos nos anos 70) basta uma simples audição das músicas dos Beatles para compreender que o legado deste conjunto é permanente e imune à corrosão do tempo (este elemento que realmente define o “quem é quem” nas artes no fim das contas).

         Cinquenta e quatro anos depois da explosão do grupo nós podemos perceber ainda hoje sinais evidentes da permanência e até mesmo de um novo ressurgimento (“eterno retorno”) do fenômeno Beatles. Aquele final da música A Day in the Life idealizado por Lennon nos estúdios de gravação, pode ser estendido e aplicado aos próprios Beatles, ou seja, a ideia de “um som evoluindo do nada até o fim do mundo”. Esta frase diz bem da trajetória e é uma síntese musical do grupo. Os Beatles serão sempre este som evoluindo do nada até o fim do mundo, até o fim de tudo. Sempre.