Dormia calmamente quando senti o toque fresco da tua mão no meu rosto em total contraste com o calor que fazia no quarto.
Manuel Amaro Mendonça
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Geralmente, o queijeiro fazia a ronda das quintas sozinho, mas, depois do tiro que um peixeiro levara para lhe roubarem a bicicleta a motor, passou a levar o filho ou a mulher na carroça. Sempre eram mais dois olhos atentos a qualquer perigo.
Naquele dia de início de primavera, depois de ter carregado as caixas dos queijos da Tapada das Naves, deve ter achado que a carga podia resultar em atolamento, se voltasse pelo mesmo caminho, e perguntou ao agricultor por uma alternativa.
— Vomecê vai por este caminho, passa além ao pé daquele pinhal, depois vira para a direita, sobe uma barreira e logo a seguir encontra o caminho do Sobral. Ó Zé, vai aqui com o ti Alfredo para lhe ensinares o caminho pró Sobral.
Zé, moço de uns catorze anos, filho do pastor, já ia dando ajuda no que fosse preciso, geralmente com o gado. Subiu para a carroça e sentou-se ao lado da mulher do queijeiro. Não havia que enganar, mas estava contente por poder ajudar.
Já no fim do trajeto junto ao pinhal, ouviram-se relinchos vivos da égua do patrão, que pastava no lameiro próximo, presa por uma corda longa, ao contrário das peias habituais. O cavalo respondeu com igual vigor. O queijeiro incitava o cavalo, para que avançasse e ultrapassasse aquele ponto crítico, mas mais altos interesses se levantavam. A égua, que devia estar no cio, começou a correr às voltas até aonde a corda permitia, mas num puxão arrancou a espia que prendia a corda e partiu a galope para junto do cavalo, arrastando a corda.
Ali chegada, os animais cumprimentaram-se com relinchos e toques de focinhos, para grande preocupação do queijeiro que já previa sarilhos. Saltou da carroça e tentou afastar a égua, mas ela só tinha um intento. Rodou e virou a traseira para o cavalo que não se fez rogado. Cheirando-a, redobrou o desvario de entusiasmo. Mesmo preso à carroça, empinou-se para montar a égua recetiva. Ao queijeiro não devia interessar a situação, porque passou a bater com o cabo do chicote no cavalo, mas em vão. O cavalo, que já apresentava uma ereção de mais de meio metro, tateava, em tentativas de cópula, que não demorou. Perante o constrangimento da mulher do queijeiro, que ria para esconder o mal-estar, e do rapaz, também intimidado pela presença da mulher, o cavalo não tardou a acertar e a completar a cobrição, em sucessivos empolgamentos enérgicos. Desmontou, enfim, enquanto uma cascata de esperma se despenhava da égua e se esparramava no chão.
Todos devem ter pensado que, finalmente, terminara aquele desacato, enquanto o queijeiro tentava enxotar a égua, mas ela não arredava casco. O cavalo, que não devia saber o que era período refratário, voltou a alçar-se e a tentar penetrar a égua, mas o queijeiro puxava-lhe o membro para o lado, grosso como um braço, teso como um tronco, frustrando o encaixe. Então, todos assistiram, atónitos, à ejaculação torrencial do cavalo para o chão. Golfadas consecutivas de esperma. Parecia o cano da bomba manual do poço da quinta.
— Isto é que vai aqui uma pouca vergonha! — ria-se a mulher, tentando quebrar ou esbater o embaraço.
O moço não tinha nada adequado para dizer naquela situação e fazia um sorriso comprometido, mas os sentimentos eram de assombro e talvez de alguma inveja inconfessada.
Novamente o cavalo desmontava e novamente remontava, o que causava sobressalto nos dois ocupantes da carroça, que dava súbitos solavancos e parecia que ia tombar para trás, de cada vez que o animal se animava. À ordem do homem, ambos desceram, aliviados. Mas a égua não se dava por satisfeita e o cavalo não deixava de corresponder. Apesar dos esforços vãos do queijeiro, puxando com quanta força tinha o membro do cavalo para fora da égua, sucediam-se os jorros, quer fora, para o chão, quer dentro, que depois vazava também para o chão. Parecia que tinha sido ali entornado um caldeiro de leite. Mesmo vivendo no campo, José nunca tinha assistido à cobrição de uma égua e não suspeitava que um cavalo pudesse ser tão fecundo. Nem esperava que uma fêmea pudesse ter desejos sexuais tão veementes e manifestá-los a ponto de tomar a iniciativa. A sua experiência de vida ainda era pouca.
Finalmente, a égua afastou-se, e o cavalo também já ia dando sinais de cansaço.
Daí a pouco, a carroça partiu, puxada por um cavalo cabisbaixo, regressado à rotina de servidão, depois de um episódio exaltante e irreverente. Certamente que tinha sido um dia excecional, mas agora só lhe restava conformar-se e esperar por outra prenda da sorte. O rapazote foi reprender a égua, agora sossegada a comer erva.
Chegado ao pé do patrão, contou-lhe o que tinha acontecido. Este não se mostrou zangado, nem preocupado, como estava o queijeiro, e até se interessou por tentar perceber se a égua teria ficado coberta. Ao fim e ao cabo, uma cobrição implicava levar a égua a quatro léguas de distância. E pagar vinte escudos, o que, em princípios de 60, não era nada pouco.
Para José, o episódio fora marcante. O entusiasmo da égua, a pujança do cavalo e aqueles inacreditáveis jorros de esperma foram relembrados várias vezes ao longo do dia. O seu desabrochar juvenil era pródigo em autogratificações, mas, mesmo no auge dos maiores desvarios, em que chegava a passar-lhe pela cabeça experimentar um buraco na terra quente, uma melancia madura, uma ovelha, o resultado era sempre assaz modesto. Tal como nessa tarde, entre giestas, beijado pelo sol e exposto ao universo.
Pouco antes da alvorada seguinte, na sua enxerga de palha, José começou a emergir da nebulosa do sono, naquele estado em que os níveis de consciência do mundo envolvente passam por uma fase muito incipiente e o estado do próprio corpo ocupa preponderância global. A vascular ereção matinal transmitia de si ao orgulhoso semiadormecido — de barriga para cima e pernas abertas — a sensação de massas e volumes grandiosos, imensos. Naquele nível de consciência ilusório, sentia que possuía magnitude para encher qualquer espaço, ainda que descomunal, ainda que de proporção sobre-humana. Qual cavalo, qual elefante? Nenhum menir, obelisco ou outra metáfora arquitetónica da virilidade podiam comparar-se com aquela magnificência gloriosa, cósmica. Partia de si como que o basilar eixo do mundo que, penetrando nas profundezas do espaço, semeava vias lácteas por todo o firmamento, em espasmos de êxtase. O contentamento e o orgulho que tais desmedidas lhe transmitiam eram igualmente incomensuráveis, de plenitude mística. Aleluia! Glória a Deus nas alturas!
Durante um tempo suspenso, que não quer que acabe, José desfruta o estado de graça. Mas, aos poucos, o nível de consciência do mundo que o rodeia aumenta e ele pressente que se aproxima alguém. Lembra-se que pode ser a mulher do queijeiro. Como é que vai explicar tamanho despudor? Não consegue esconder a atrapalhação. A experiência de beatitude omnipotente esvai-se e ele apercebe-se de que, afinal, cabe facilmente nas próprias ceroulas.
Abre os olhos; é a mãe:
— Zé, filho, acorda! Está a nascer o sol. Vá, que o teu pai já está à espera para irem ordenhar as ovelhas!
Levanta-se ainda ensonado, veste-se às apalpadelas, sai para o lusco-fusco, alumiado pela lembrança boa dos últimos minutos do sono, um archote aceso para todo o dia.
Joaquim Bispo
*
Imagem:
Almada Negreiros, Centauros, (tapeçaria), 1959.
Hotel Ritz Four Seasons, Lisboa.
* * *
No silêncio da madrugada, da outra
casa, parede-meia, eu conseguia ouvir desaforos sussurrados, choro abafado,
gemidos de dor. E isso acontecia amiúde. No claro do dia, eu via um casal
normal, afora o olhar esquivo da mulher. Reticente, evitei a aproximação. Era o
comportamento costumeiro, não cabia invasão da privacidade. O relacionamento,
unidade blindada, pertencia apenas aos envolvidos. E, da crueldade velada, da
violência reiterada, nunca ouvi pedido de socorro. Apenas o estampido.
Regina Ruth
Rincon Caires
Uns
declaram o universo como se feito e efeito do nada, outros acreditam-no o corolário
de relações ocultas e desconhecidas, ou obra de seres divinos, ou, mais então,
resultado de transformações a nós inescrutáveis e inomináveis. Mistério
semelhante dá-se com a atividade artística e seus ânimos criativos, e se muitos
a presumem mero, e fortuito, acontecimento, entre os arautos desta convicção
não figurava Diones. Pois a arte tem sua origem na destruição, declarava ele, e
até os casuais esboços ou linhas hão de reivindicar, para existir, a extinção
de entes e objetos, de formas e essências associadas ou não às obras
concebidas. Tal elo destrutivo é personificado, de modo evidente, na figura do
artista vitimado por seus próprios excessos, o artista cujo sacrifício resulta
em perspectivas inéditas e obras grandiosas, e todavia as mesmas leis de
aniquilação e gênese regem a vida dos criadores e criadoras harmoniosos e
saudáveis, dos homens e mulheres exemplares – em comum às duas classes, e aos
muitos outros artífices de sonhos, o desconhecimento quanto a esse nefasto
mecanismo.
Assim
refletia Diones e, com suas palavras, anotava os raciocínios e observações num
caderninho de couro. Paisagista renomado, contrariava a sensibilidade de seu
intelecto a constituição taurina, as mãos grossas e calejadas e o maxilar
definido, e malgrado agora, após muito meditar acerca da arte, não mais
ignorasse as condições para a concepção de suas obras, desconhecia os elementos
específicos que foram, eram e seriam sacrificados ao conceber um quadro ou
tela.
Pertencente
à classe dos regrados e ordenados, antes de levantar-se calçou os chinelos, e
ao avivar o lume da lareira sobrevinham-lhe pensamentos relativos não só ao
reconhecimento de padrões mas, também, às medidas e limites desta faculdade; e
almejava, como o fogo de certa forma almeja o céu, descobrir as especificidades
do sistema de pesos e contrapesos a si imposto pelas musas. Estagnado frente ao
obstáculo de um enigma metafísico, aprisionado por muralhas insensíveis às suas
virtudes, a saber, a imaginação e a invenção, Diones postou-se em frente ao
cavalete e, antes de iniciar a próxima pintura, antes da primeira pincelada, suplicou
às suas outras versões, e aos seus outros e silenciosos eus suplicou uma
revelação.
Assim
fez, assim foi.
E
terminou a paisagem em quatro meses.
Suas
reflexões eram, então, distintas, e sentado no sofá, ao abrir o jornal como há
tempos não abria, leu acerca de dois infantes falecidos em um acidente. A
notícia atingiu-o no espírito. Soube, como só se sabem as verdades, não através
de argumentos, números ou palavras, mas mediante certezas interiores, dir-se-ia
a inefável linguagem da alma, que ambas foram sacrificadas em benefício de sua
última tela, e já de pé e caminhando, nem tanto se culpando, para certificar-se
da relação decidiu por iniciar outro painel.
Foram
mais três, quatro meses, e concluiu-o. Ao fim do quadro, e do seguinte, tomou
conhecimento de mais acidentes com crianças, todos eles fatais: a primeira,
decapitada por um trem de carga; a segunda, atropelada pelo triciclo de um
palhaço de circo. Suando frio, mordendo os lábios, enfim deslindara-se o macabro
mecanismo de seu criar, e para além do fato de esta descoberta demandar um
número insignificante de acontecimentos, ou de provas, abismava-o a
circunstância de como certos eventos, quando esclarecidos, afiguravam-se tão
simples, tão simples e tão terríveis, a ele não apresentando-se alternativa
senão a de abandonar a arte, deixar de viver e deixar-se ficar. Fiel à
resolução, ordenou os pincéis e vasilhas, espátulas e paletas e, pelo período
de dois meses, aposentou-se – e só tornou a pintar quando uma criança malcriada
lhe chutou a canela.
Dois adolescentes chegam do colégio. Um amigo na casa do outro.
- Porra, caiu minha lente de contato. Me ajuda aqui.
- Ajudo nada. Olha lá. A vizinha do prédio em frente chegou.
- Pede para ela esperar.
- Tá maluco? Se eu gritar ela descobre e se esconde.
- Peraí, não encontro a porra da lente. Não tô vendo nada.
A vizinha acaba de abrir a porta do apartamento.
Enquanto um amigo se desespera passando a mão pelo
carpete do quarto, o outro pega o binóculo no armário.
- Entrou na sala!
- Sacanagem, não vou ver nada!
- Colocou a bolsa no sofá, tirou as sandália e jogou longe.
- Como ela tá vestida?
- Um vestido justo, estampado, colado no corpo.
O amigo sem lente se aproxima da janela. O dono do
binóculo reage feroz.
- Sai pra lá. Já que não enxerga nada, não me atrapalha.
- Então, me diz.
- Foi pra outra janela. No quarto. Descalça, soltou os cabelos.
- E?
- Abriu o armário, se olhou no espelho.
- Diz, diz...
- Tirou o vestido de baixo pra cima.
- Sem sutiã?
- Com sutiã.
- Porra, essa lente... cadê essa lente?
- Fica quieto, senão ela me vê.
O amigo do binóculo fecha a cortina. Só deixa uma fresta para
não ser descoberto. O que perdeu a lente perde também qualquer
possibilidade de assistir ao espetáculo.
- E aí, fala, fala...
- Acho que ligou o som do celular. Botou o fone de ouvido.
Tá dançando de frente pro espelho.
- Conta, conta...
- Tirou o sutiã. Tá rebolando devagarinho e rodopiando o sutiã.
- Ela tá provocando. Será que ela viu você?
- De binóculo, na tocaia? É ruim, hein?
- E aí, e aí...
- Cara, é agora!
- O quê? O quê!
- Que rosto mais lindo! Narizinho arrebitado!
Que boca maravilhosa, que sorriso foda!
- Porra, cadê minha lente?
- Que lábios!
- Que foi? Tirou a calcinha?
- Que calcinha, cara? Muito melhor. Tirou a máscara.
Chegou
o momento de dizer a verdade. Estou prestes a me tornar um espantalho mutilado,
com o calor carcomendo as fibras todas. Era manhã de uma segunda azul, em 2009,
no mês de março. Antes que me fujam as ideias, vomito logo o essencial: matei
Tolentino. Pronto, falei. Matei e mataria de novo. Sem conversinha de
arrependimento. Eu tinha e tenho os meus motivos. Tolentino, por vontade
própria, arrumou de ser o vigia da rua. Dona Clarisse, uma velhinha xexelenta,
encrenqueira, fazia as vezes de gestora e apurava uma cota, toda semana, para
comprar o alimento do pobre coitado. Eu me recusei; não pedi para ninguém ficar
de guarda na minha porta. Andira, sem disfarçar, tirava dinheiro do nosso
mísero sustento para alimentar o desgraçado. “Olha, o pobrezinho precisa da
gente, ele não tem onde ficar. E é tão bonzinho…”. Foda-se, caralho. Parece que
quanto mais o odiava, mais ele se mostrava sereno e afável. Um bosta de um
fingido. Tinha as manhas de se fazer de coitado. Ainda mais, aquela velha
apurava uma dinheirama para fazer sabe-se lá Deus o quê. Por que não o levava
pra casa? Quando percebi, já havia cama, café da manhã, almoço, jantar e outras
regalias, muito bem alojado na calçada, perto de nossa casa. Era um desplante,
uma agressão à minha inteligência. Dar comidinha de mão beijada é coisa de
comunista safado. Tem de ensinar a pescar e não dar o peixe, como diz o sábio
ditado. Nesse belíssimo dia, estando de folga do serviço, com atestado frio,
mais saudável que burro no campo, levantei às cinco, fiz o café e fui dar uma
volta no bairro para averiguação. Não havia ninguém, só uns dois ou três gatos
pingados, que passavam lá embaixo, na Avenida Central, para pegar o busão. O
boteco do Jonas estava aberto, mas o cabra é meu camarada e não ia dar com a
língua nos dentes. Ah, no dia anterior tinha preparado uma comidinha com
capricho, um monte de carne moída com chumbinho. Levei o preparo no bolso.
Sentindo uma tranquilidade mórbida e um êxtase sobrenatural, chamei-o para o
canto, do lado do terreno baldio, e entreguei o petisco matinal. Caiu como um
patinho, ou como um bobo Tolentino. Nunca me livrei de algo tão facilmente.
Quando o bicho começou a se estrebuchar, fui para o boteco do Jonas e pedi uma
cerveja gelada. Jonas perguntou a razão de minha felicidade. Respondi que havia
ganhado o dia e que precisava comemorar. Jonas, dessa vez, quis me acompanhar,
mas ficou meio aturdido com a vista do camarote. “Jonas, larga de besteira! O
cachorrinho está velho demais, uma hora ou outra ia morrer. Viveu bem, comeu do
bom e do melhor. Chega mais, aqui. Vamos brindar a santa passagem do infeliz!”.
Ele me olhou com olhos de suprema condenação.
Não cantarei derrotas de uma vida frustrada,
Não lamentarei os filhos que não tive,
O testamento que não fiz,
Nem os gatos que criei.
Não olharei para o passado com perdão,
Nem deixarei calar a voz que diz.
Não serei a hipocrisia que chora o silêncio e a casa vazia,
Se a abracei por vontade.
Não há expectativas nem pressão,
Nem imagina a paz que me atormenta.
Do livro Um tanto mais que hoje, Editora Libertinagem.
O Sonho do Poeta
O Poeta vagueava pensativo junto à rebentação, sentindo o doce perfume a maresia e o gostoso sabor a noite fresca e salgada. Ia perdido de ideias e buscava, no mar batido pela lua cheia, a palavra certa para aquele poema que andava a desenhar havia tempo. O mar cansado não lhe deu a palavra certa, antes vomitou para a praia muitas coisas sem préstimo. O vómito jorrou uma perfeita inutilidade que tinha sido lançada em tempos idos ao mar e agora era devolvida por uma forte vaga. Tombada na areia molhada, a inútil coisa quedou-se por ali, fria como a morte. Era uma bicicleta desconjuntada, sem selim, com raios partidos, que vinha sem um pedal, com as rodas tortas, sem pneus e com o farol partido.
Sob a luz da lua aquele espécime espelhava, apesar das graves mazelas, uma dignidade própria dum exemplar que em tempos fez o furor entre os amantes da velocipedia.
O Poeta acercou-se da desconchavada maquineta, passeou carinhosamente as mãos pelos restos da maltratada máquina e sonhou. Ainda sonhando, poisou os olhos na lua que brilhantemente branca contrastava com a imensidão negra do espaço e sentiu as lágrimas a saberem-lhe a saudade.
Lembrou-se de uma história que a mãe lhe tinha embalado ao adormecer. Contava ela, para o encantar, que nas noites de luar via-se um homem na lua a pedalar em cima duma bicicleta.
O menino, filho de sua mãe, então sonhou que entrou pela lua dentro viajando em cima daquela desengonçada duas rodas e que cá em baixo na sua aldeia, junto ao largo principal, a sua mãe e todos os meninos olhavam a lua e diziam em alegre coro: lá anda ele a passear na lua em cima de uma bicicleta.
E os meninos também sonharam que andavam na lua pedalando, fazendo corridas e piruetas, enquanto cá em baixo na terra os pais e amigos e até os desconhecidos riam de satisfação com tantos malabarismos.
O Poeta sabe que as letras dão vida às histórias e que estas são feitas dos sonhos que dão asas às bicicletas, que constroem barcos navegando por longínquos mares, que dão vida a aventureiros comandantes solitários de barcos à vela, que lançam satélites por sobre as nuvens e que desembarcam em foguetão num qualquer mar da tranquilidade. O Poeta também sabe que é pelos sonhos que se pode viajar pelo espaço, em direcção a Vénus, a Mercúrio ou até outro planeta, percorrendo a Via Láctea, cruzando outras galáxias e saltando para lá dos limites da imaginação.
Limpou as lágrimas à pressa quando ouviu parar
o carro, grata por a gripe que a atacara nos últimos dias servir de desculpa,
mesmo esfarrapada, para os seus olhos avermelhados. Não que receasse uma sua
reação adversa ou que a criticasse, mas por saber que se sentiria certamente magoado
ao vê-la assim triste e suspeitar da causa da sua mágoa.
Era um bom filho, sempre o fora desde
criança, atencioso, prestável, sem ele estaria provavelmente morta de carência,
de solidão e abandono há muitos anos. Amava-o, claro, mas era mais por dever de
mãe do que por gostar verdadeiramente dele. Sim, pode-se amar uma pessoa e não
gostar dela, chegara há muito a essa conclusão.
Era uma boa pessoa, todos o diziam, muito
trabalhador, honestíssimo, sempre afável e pronto a ajudar, sem sequer esperar
que lho pedissem, mas brando, apagado, pouco ou nada emotivo. Totalmente
diferente do outro...
Ah, o outro! Custava a crer que fossem
irmãos, tão diferentes eram as suas personalidades. Onde um era retraído,
calado, o outro era extrovertido, com as emoções à flor da pele, sempre a
explodir por tudo e por nada.
Com este, nunca se sabia verdadeiramente o
que pensava ou sentia, sempre muito controlado, sem cenas ou fitas. Nunca lhe
conhecera uma birra, nem mesmo em pequeno, nunca o vira chorar de desgosto ou berrar
de alegria. Ou rir desbragadamente. O máximo que lhe vira fora um pequeno
sorriso, tão pequeno que se não estivéssemos atentos nem sequer o veríamos.
O outro, não, todo o mundo e arredores ficava
imediatamente ciente do que sentia, fosse bom ou mau. Nunca passava
despercebido, estivesse onde estivesse, mesmo em situações que exigiriam um
certo decoro. Envergonhara-a repetidas vezes em público com as suas birras ou
bom humor exagerado, mas mesmo nessas alturas sentira uma pontinha de orgulho
por aquele filho tão diferente do resto da família.
Não, ele nunca suportaria a vida deste
irmão, tão regrada, tão cheia de deveres zelosamente cumpridos, em que até as
raras distrações eram programadas com muita antecedência e quase sempre mais para
agradarem a outros do que a si.
Até nos amores eram totalmente opostos. Este
casara discretamente com a primeira e única namorada que tivera, boa moça, sim,
nada a dizer contra ela, mas não muito interessante nem particularmente bonita.
E que nunca vira como filha, mesmo ao fim de tantos anos, não se dando até lá
muito bem com ela, apesar de lhe ter dado os seus únicos netos (que soubesse).
Nem sabia se era um casamento feliz, sempre suspeitara que nesse lar era ela
quem mandava e tudo decidia, mas nunca pudera ter a certeza de que assim era.
E os dois netos eram certamente crianças
bem-educadas, demonstravam-no, pelo menos, sempre que os via, e sabia que eram
bons alunos. E, felizmente, davam sinais de terem alguma personalidade,
cuidadosamente controlada na sua presença, “para não incomodarem a avó”, embora
não chegassem aos calcanhares do tio, mas quem o conseguiria?
Não, este vivia ao sabor dos seus
caprichos, sempre metido em esquemas de enriquecimento rápido e confiante em
conseguir sair-se bem graças ao encanto que tão bem sabia usar quando lhe
convinha. Nunca tivera um emprego, apenas “ocupações” e “negócios em
perspetiva”. E escapava-se sempre na altura certa, deixando atrás de si caos e
problemas, muitas vezes para o irmão resolver a fim de lhe evitar dissabores,
ou, como em tempos ouvira dizer, até uma possível pena de prisão.
No amor, era a mesma coisa. Nunca lhe
apresentara uma namorada, mas vira-o num desfile permanente com todas as
beldades da vila e conhecia algumas histórias, apesar de suspeitar que lhe
escondiam as menos abonatórias. Também aí nunca assentara, apesar de muitas o
terem tentado, fascinadas pelo seu encanto e reputação de inacessível. Mas não,
era sempre livre e totalmente senhor de si.
Pelo menos supunha que tudo continuava
assim, há uns seis anos que nada sabia dele, desde que desaparecera depois de a
convencer a investir as poupanças de anos num “esquema seguro” que deixaria
ambos ricos — e que dera em nada, claro, exceto deixá-la sem nada para os
últimos anos de vida.
Anos, Natal, nem um telefonema, nem uma
mensagem ou um simples cartão. Silêncio total. Nem sabia se estava vivo ou
morto, apesar de querer acreditar que se tivesse morrido alguém teria
notificado a família.
Mas isso não a impedia de passar as
vésperas desses dias festivos num alvoroço, esperançada de que dessa vez seria
diferente, que haveria um contacto, por muito breve e impessoal que fosse.
Fora por isso que passara o dia a chorar.
Fizera 65 anos na véspera, um marco importante na vida de uma pessoa, e acordara
com a convicção absoluta de que desta vez é que era. Mas o dia passara-se e...
nada! Fora um tremendo esforço mostrar-se alegre e satisfeita na festinha que este
filho organizara com as poucas amigas que ainda lhe restavam. Ou com os
presentes que ele e os netos lhe tinham dado, bem ao encontro das suas
necessidades, mas sem aquele toque de loucura, de extravagância, porque ansiava
secretamente, mesmo sem o saber.
Com o outro, bom, com o outro teria sido
tudo bem diferente, nada de chazinho e amigas de longa data, teriam ido os dois
a um lugar bem caro e muitíssimo chique —
esquecendo-se muito provavelmente da carteira em casa e deixando-lhe o ónus da
conta com a usual promessa de “eu depois pago-te”. E ter-lhe-ia oferecido algo
totalmente inútil, mas lindo, deslumbrante, até.
Estranho, em miúda, na Catequese, nunca
entendera a parábola do filho pródigo, achara horrível o modo como aquele pai
tratara o filho cumpridor, o bom filho, o que sempre se mantivera no seu posto
e o ajudara, guardando festim e acolhimento caloroso para o outro, o mau filho,
o que partira à aventura e desbaratara os seus bens sem pensar no velho pai ou
no futuro.
E aqui estava ela, tantos anos depois, a
fazer exatamente o mesmo, ou antes, a ansiar poder fazer o mesmo. Se ao menos
pudesse ver o seu!
Luísa Lopes
Imagem de Christian Dorn por Pixabay
“Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o eu morto,
Eu morto, eu morto, eu morto.
Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o milton
morto,
Milton morto,
milton morto, milton morto.
Eu morto, eu descomedido,
Eu espantosamente, eu
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é milton morto,
Eu morto, milton
morto, boi morto”.