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domingo, 28 de fevereiro de 2016

DOIS MENINOS



         Quando eu era criança, minha mãe adotou um velho. Ele não era diferente das bruxas que assombravam meus sonhos e muito menos de como eu imaginava o homem que havia ― em minhas inventivas crenças pueris ― carregado em um saco os amigos dos amigos de meus amigos.

Conviver com ele, ao menos nos primeiros dias, foi como dividir a casa com um defunto. De carnes engelhadas e estrutura óssea comprometida, o homem não apresentava nenhuma ameaça, e mesmo assim eu o temia. Vê-lo dormir de olhos semiabertos e boca enviesada era como assistir sozinho a um filme de assombração. Sob a pele sem viço de meu assustador irmão adotivo moravam todos os lobisomens, vampiros e fantasmas que passeavam por minha imaginação de menino do interior, nascido em uma cidade que levava o mesmo nome de seu único cemitério: Assunção.

Eu nunca havia convivido com alguém tão parecido com a morte até mamãe recolhê-lo da rua, depois de encontrá-lo perdido na praça, sem saber quem era ou de onde vinha. Ninguém o conhecia ou sabia dizer como ele havia chegado ali. De roupa alinhada e aspecto bem cuidado, não parecia um mendigo. Surgira da noite para o dia, como uma aparição. Não trazia bagagem, identidade ou lembrança capaz de revelar sua origem.

Mamãe resolveu levá-lo à nossa casa para livrá-lo do assédio dos curiosos e oferecer-lhe o desjejum.

― Eu não quero ser comido! ― orei, sob a máquina de costura, agarrado ao burrinho de gesso do presépio. ― Só te devolvo pra Jesus quando esse papão for embora.

Mas o velho tudo recusou. Não quis mingau de farinha de milho e muito menos roer meus frágeis ossinhos. Apenas chorava e queixava-se de saudades, sem saber do quê ou de quem.

Os dias passaram. Papai e mamãe, órfãos desde muito jovens, afeiçoaram-se àquele senhor que havia roubado minha paz de menino. O velho, apesar de quase não falar, procurava a companhia dos adultos e recusava a minha. Já parecia acostumado à rotina da casa, sempre tão silenciosa e estagnada, submersa na ausência do tempo. Enquanto mamãe bordava toalhas e papai cuidava da lavoura, eu me distraía fugindo do velho que se arrastava da sala à cozinha feito um caramujo. Lentidão. Viscosidade.

Com o tempo, meu temor transformou-se em curiosidade. Gostava de vê-lo mastigar fumo, enquanto espiava pela janela do quintal como se buscasse a mais completa cegueira. O velho esvaziava-se através dos olhos compridos e, como suas lembranças, aos poucos deixava de existir.

Uma tarde, tomei coragem e dele me aproximei com meu burrico de gesso, que ofereci em um gesto de paz. O velho esfregou os dedos calejados sobre a imagem e arregalou os olhos como se algo em sua alma se iluminasse. Perguntei:

― O senhor se lembrou de alguma coisa? Sabe de onde veio?

― Não. E você? Sabe de onde veio? ― respondeu-me com a mesma pergunta, enquanto cavalgava o burrinho sobre meus cabelos.

Não. Eu não sabia.


Enfim, percebi que não éramos tão diferentes. Sem pedir licença, sentei-me em seu colo e dormimos juntos a tarde inteira, no balanço da cadeira que ia e vinha, mas que não nos levava a lugar algum, preguiçosa. Creio que foi naquele mesmo dia que o velho se esqueceu de se esquecer e também se tornou menino.  

Emerson Braga





sábado, 27 de fevereiro de 2016

Colcha de Retalhos #18

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


CINZAS

Em uma metrópole qualquer, debaixo de uma chuva fina, mas tão fina que se tornava quase invisível, caminhavam lado a lado, de mãos dadas, o garotinho e a mãe. A mãe ia andando com pressa, sem dar atenção ao filho, arrastando-o pela mão.
Quando pararam em um cruzamento, esperando o sinal abrir, o garotinho girou o pescoço e reparou no mundo à sua volta: nas centenas de pessoas apressadas, nas plantas, pássaros, prédios e tudo o mais. Após uma breve análise, por sinal muito precisa, ele virou-se para a mãe e perguntou:
— Mamãe, se os passarinhos são coloridos, as plantinhas são coloridas, os prédios são coloridos e até mesmo a comida é colorida... Por que é que as pessoas são todas cinza?
E ele ficou olhando, esperando por uma resposta. Enquan¬to o rosto da mãe, por vergonha, passou de cinza para rosa.




SABIA ASSOBIAR

Cabisbaixos ambos, ele e o canário. Ele sentou-se na varan¬da, abaixo da gaiola, e começou a assobiar, lenta e tristemente.
O canário, que até então nunca havia sequer piado, res¬pondeu, com um canto rápido e alegre. Ele então sorriu, como nunca havia sorrido.
Não se sabe até hoje quem ensinou quem.




FAZENDO AS PAZES

Às vezes, tenho lá meus desentendimentos com o mun¬do. Ficamos brigados, ambos emburrados e em silêncio. On¬tem mesmo tivemos uma briga feia. O mundo pode ser bem cruel de vez em quando.
Mas ao final da tarde, uma borboleta pousou ao meu lado na rede. Chegou e por ali ficou, batendo asas como se dançasse. Aceitei as desculpas imediatamente, sem pensar duas vezes.






Passou o dedo pela cabeceira e mostrou para a garotinha deitada na cama ao lado:
— Olha essa sujeira, minha filha, isso aqui está uma vergonha!
— Mas não fui eu que sujei.
— Foi você sim. Está aqui no seu quarto.
— Mas...
— Nada de “mas”. Ainda hoje você pega um paninho e limpa. Quando eu voltar, quero ver isso aqui brilhando.
A garotinha, ainda deitada na cama, refletiu sobre o pó em cima da cabeceira e sua relação de culpa em relação ao pó. E, quando a mãe voltou, a cabeceira ainda estava toda empoei¬rada. Ela então cobrou a filha:
— Por que é que a cabeceira continua toda cheia de pó?
Com um ar de saber só de experiências feito, a garotinha respondeu, até com certo desprezo:
— Não adianta limpar. Vai sujar de novo. É pó de gente.






sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O esporte das epifanias

Até bem pouco tempo atrás, a criatura aqui não tinha, dentre os textos produzidos, um só conto, um só poema, uma só crônica sobre a grande paixão nacional! Pode isso, Arnaldo? Alguém que se autodenomina patriota, atleticana e amante das artes, alguém que vai às lágrimas só de vestir as filhotas de verde-amarelo cometer tamanho crime de lesa-pátria, de lesa-chuteira, de lesa-literatura brasileira? Então, antes que algum juiz me apresentasse um cartão vermelho e me expulsasse de vez da Literatura, pus-me logo a redigir este texto – que pretendo leve como as escapulidas do Neymar e menos enfartante que os jogos da Seleção Brasileira na última Copa.

Como a maioria das mulheres, não sou especialista nas regras do futebol, nem sei de cor os nomes dos jogadores escalados para os grandes campeonatos. Tampouco faço questão de salvar na memória aqueles detalhes importantíssimos que os comentaristas fazem questão de despejar, exibidos – como os anos em que o Galo foi vice-campeão no campeonato estadual; ou o nome do artilheiro do Grêmio que, em 12 de abril de 1965, não foi escalado para uma prova contra o Inter porque havia comido churrasco demais no almoço e, indisposto, teve de se manter sentado no trono, enquanto a equipe perdia o jogo por 3 a 0.

Também devo confessar que não tenho muita sorte em estádios. Para a última Copa, por exemplo, a Copa das Copas, a Copa no meu país, a Copa na minha cidade, não consegui um ingressozinho sequer, nem para assistir ao jogo da Suíça e Equador.

As raras vezes em que estive em estádios para ver partidas de futebol foram meio esquisitas. Num jogo da série B no Serejão, em Taguatinga, entre o Brasiliense e um outro time de que não me recordo o nome, perdi justamente os dois gols da partida. Cheguei ao estádio alguns minutos atrasada, quando o primeiro gol tinha acabado de acontecer. No final do intervalo, resolvi mudar de local na arquibancada e perdi o outro gol, que saiu logo no início do segundo tempo. Meu afilhado, na época com 11 anos de idade, que foi comigo ao jogo, ficou tão desapontado com o 1 a 1 com cara de 0 a 0, que quase me deserdou como madrinha.

Quando me casei, há nove anos, passei a lua de mel em Recife, terra natal do digníssimo. Lá dei a ele uma das mais belas provas de amor de que uma noiva é capaz: fui ao Arrudão assistir com ele a um clássico do Santa Cruz e Sport. Tenso demais! Milhares de torcedores enlouquecidos, balançando a arquibancada, comendo caranguejo, bebendo e xingando em pernambuquês. Para a sorte desta esposa, o jogo terminou em 0 a 0, e ninguém foi espancado. Eu e o marido tricolor saímos de lá vivos, graças a Deus.

Na última vez em que compareci a um estádio, a torcida do Galo estava feliz da vida, depois de meu time forte e vingador haver ganhado a Taça Libertadores, naquele campeonato dos milagres. Fui com a família toda ao Mané Garrincha, numa animação que dava gosto. E não é que o carrasco histórico do Galo, um timeco do Rio chamado Flamengo, goleou o meu time por 3 a 0? Decepção! No meio do jogo, quando o Atlético já havia levado dois gols, minha filha Luana perguntou se não podia torcer para o outro time, já que o nosso estava perdendo.

Outro dia eu via um amigo postar no Facebook que gosta mesmo é do noticiário esportivo imparcial e que só devia haver no telejornalismo futebolístico matérias como as do Ernesto Paglia. Transcrevo aqui o que esse amigo defendia: “Nada daquelas metáforas, dados sem qualquer importância, musiquinhas épicas, típicas da escola Tino Marcos, depois elevadas ao cubo com o Régis Rösing”. Penso o contrário. Adoro textos leves sobre futebol, bem como imagens peculiares do jogo casando com a crônica e a poesia. A crônica, neste caso, me traz bem mais prazer que o jornalismo nu e cru, sem liberdade estilística.

Eu acho o máximo ver o futebol – esta invenção tão importante quanto a roda, o relógio e a lâmpada – alimentando a TV, o rádio, os jornais, os livros e a internet. Quem não consegue ser escalado nem para o time reserva, que entre em campo pelo menos para criar livremente e dar seus pitacos cá fora! O futebol é vivo demais para escapar ao texto. Os dribles dos craques, os chutes certeiros, as reações dos técnicos e árbitros, encrencas, mordidas, o delírio das torcidas, a alegria e a tristeza morando lado a lado e se alternando, o inacreditável tornado realidade no último segundo da prorrogação ou até mesmo na cobrança de pênaltis...

Pode haver algo mais arrebatador para um ser humano? Pode haver algo mais humano? Talvez a literatura! Por isso, parece-me tão necessário traduzir em texto a epifania de um bom jogo de futebol.

Maria Amélia Elói





quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Um enterro em Ornans



Gustave Courbet, Um enterro em Ornans, Museu d'Orsay, Paris, 1849–1850.

O séquito aproximava-se do cemitério encabeçado por duas filas de homens. Enquadravam a carreta, precedida por um sacristão que segurava a longa haste de uma cruz processional. Logo atrás, em passo arrastado, seguia o padre, envolvido pelos restantes sacristães em suas opas brancas. A fechar o cortejo, a massa escura das mulheres. Do ruído surdo de tantos passos e de um leve gemido dos rodados, sobressaía o toque de finados na torre da aldeia, que ficara para trás. Vistos de fora, parecia que caminhavam há horas, mas sem saírem do mesmo sítio. Esse arrastamento do tempo causava um certo desconforto num insuspeito espectador. Apetecia que terminassem logo aquilo a que se propunham: enterrar a Dona Clarisse de oitenta e dois anos.
Finalmente, chegaram aos portões do cemitério. Os portadores retiraram o caixão e começaram a transportá-lo, com a ajuda de faixas de pano que fizeram passar por baixo do féretro e que seguravam sobre os próprios ombros. Agora, o grupo deslocava-se por entre algumas poucas sepulturas em direção a um monte de terra escavada de fresco, onde se encontrava o coveiro em atitude expectante, acompanhado do seu cão. Aí chegados, puderam perceber o vazio da cova, que seria a última morada da defunta. O oficiante aproximou-se, fez uma pausa, a dar tempo aos acompanhantes de se arrumarem em volta da tumba, e começou a ler os trechos litúrgicos adequados ao ato fúnebre.
Então, ouviu-se um longo gemido abafado. O padre parou a leitura, os sacristães entreolharam-se, os portadores que tinham pousado a carga esboçaram um trejeito de desagrado, enquanto os restantes presentes olhavam para o ataúde sem mostrar o mínimo movimento de surpresa. A um gesto do padre, os dois funcionários laicos da igreja levantaram a tampa do caixão e um deles perguntou, impaciente:
O que foi, agora?
Vista de fora, a situação suscitava grande perplexidade. Estendida no seu leito de morte, Dona Clarisse, de olhos fechados e tez lívida, respondeu num longo e lúgubre lamento:
Eu não quero ser enterrada neste cemitério. Quero ficar em Ornans ao pé dos meus pais, do meu filho Jean, e das minhas amigas. Neste meio do nada, não conheço ninguém.
Ouvido isto, todo o grupo de cerca de cinquenta pessoas começou a murmurar e a abanar a cabeça, reprovando a atitude da defunta.
Já lhe dissemos que não pode ser — respondeu o mais alto, que era cordoeiro, imponente na sua vestimenta carmesim. — O cemitério velho esgotou a capacidade com os mortos de há dois anos. Não cabe lá mais ninguém. Tem de ficar neste novo.
Não quero saber — insistia a morta —, onde cabem cem cabem duzentos. Metam-me numa sepultura antiga, onde já só haja ossos.
Não há! — irritava-se agora o outro oficial. — A revolução de 1848 aumentou tragicamente o fluxo normal de mortos. Todas as campas possíveis foram utilizadas. E esses mortos ainda não estão em condições de levantar.
Sei bem o que fizeste, safado! — contra-atacava a falecida. — Deixaste sepultar lá gente de outras terras, a troco de uns quantos “napoleões”.
Estou farto disto! — esbravejou o visado. — Ou que estamos a guardar as campas para os amigos, ou que só as damos a quem paga bem; agora são os mortos de outras terras. Eu vou-me embora.
E, dito isto, retirou-se em grandes passadas. Pouco depois, era a vez do segundo oficial abandonar o cemitério, após Dona Clarisse sugerir que ele exercia estas funções por favorecimento do padre. Este dirigiu-se então à finada com palavras que denunciavam já uma irritação mais própria de um homem dominado pelas emoções primárias do ser humano do que pela sábia serenidade de um intermediário do sagrado.
Ó, Dona Clarisse, eu não lhe admito isso! A senhora não pense que pode dizer o que lhe apetece, só porque está morta. Vamos lá esclarecer uma coisa: nós não vamos ficar aqui a tarde toda a discutir os pequenos caprichos da senhora. Daqui a pouco é noite e, se não se decide depressa, fica aqui mesmo, tal e qual, de tampa aberta. Pode ser que os lobos cá venham fazer-lhe companhia... Agora, escolha!
Você não pense que me assusta, com esse palavreado, seu badameco, que eu de si não tenho medo! — redarguiu Dona Clarisse, de voz alterada. — Você é que tem com que se preocupar, se não me levar já para o cemitério velho. Ou pensa que eu não sei as propostas que fez à minha sobrinha mais nova? Agora é que o povo todo vai ficar a saber a quem se tem andado a confessar!
Estas palavras foram de mais para o pároco de Ornans. As suas mãos largaram o breviário e lançaram-se ao pescoço de Dona Clarisse, numa tentativa vã de estrangular uma morta. O gesto tresloucado foi rapidamente travado por alguns dos presentes, nomeadamente o regedor de Ornans e dois assumidos partidários da I República, o que não impediu que a touca negra da defunta, na confusão, lhe fosse arrancada da cabeça.
Vista de fora, a cena era por demais confrangedora. Qualquer cidadão normal se sentiria angustiado com o desrespeito pelos mortos manifestado por aquela assembleia, e pelo comportamento inesperado e impertinente de um deles.
Terá sido esse desaforo social que fez Gustave Courbet acordar em sobressalto. Envolto pelo escuro do seu quarto de Ornans, mantinha vívidas na retina as imagens violentas a que acabara de assistir. Temeu pela sua obra mais recente — aquela que lhe tinha levado três meses a realizar em condições difíceis. Pintara cinquenta pessoas da aldeia, uma a uma, no espaço esconso do sótão, numa enorme tela de três por mais de seis metros, como memória do funeral da sua velha tia Clarisse.
Em grande agitação, acendeu uma lanterna e subiu ao sótão. Os cinquenta aldeãos aguardavam-no, solenes e calmos, no seu ritual fúnebre: os portadores, segurando o caixão, os sacristães, os funcionários laicos, o padre, o coveiro, os vários homens de aspeto grave, o grande grupo das mulheres de escuro e coifas brancas. Tudo estava no seu lugar, como seria de esperar no mundo real. Mesmo o cão do coveiro mantinha um ar curioso por tão grande ajuntamento. Eram assim os enterros em Ornans. Afinal, fora apenas um sonho, bizarro como todos os sonhos.
Deixou-se envolver por uma reconfortante sensação de alívio. A inquietação de há pouco deu lugar a um consolador relaxamento. Então, reparou no padre: a sua mão direita agarrava ainda a touca amarfanhada da velha tia Clarisse…

Joaquim Bispo

* * *

(Este conto integra a coletânea resultante da edição de 2015 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente.)

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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

SÉRIE: TROVAS PREMIADAS (V)






segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Olho por ele

Quando a professora deu a tarefa para casa tive certeza de que estava na hora de apresentá-lo a todo mundo. Era para a gente escrever no caderno o nome completo de um amigo especial e no dia seguinte, na roda da conversa, mostrar a folha com a anotação e falar um pouquinho sobre a pessoa que cada um escolheu.

Eu conheço uma porção de gente legal, mas amigos mesmo só tenho três. A Nina, que é uma guria engraçada da minha turma, o meu primo Lucas, que não fala direito porque ainda é um bebê, e ele. Eu poderia escolher a Nina, que é quem mais brinca comigo, mas ela é tão cheia de fãs que é bem capaz de o nome dela se repetir na lição dos colegas. Além do mais, ela tem um nome curto, muito fácil para o meu gosto. É só colocar o êne, o i, depois o êne de novo e o a. O sobrenome é outra barbada, ême, ó, te de tomate, e a. Mota. 

Não sei, e a Nina também não, porque ela só tem um sobrenome. Eu tenho dois e já aprendi a escrevê-los com as letras de mãozinha, assim:


Fica bonito o meu nome desse jeito, todo junto no papel. Mas o meu nome os colegas de aula estão carecas de saber. Eles também sabem quem é o meu primo Lucas, pois a tia Laura de vez em quando me busca na escola e leva o guri no carrinho, e sabem tudo o que ele faz: chora, mama, dorme e faz xixi e cocô. Como faz! 

Dos três, quis ele. E daí reparei que tem um problema: eu não sei o nome dele. Nunca me disse. A gente quando se encontra conversa tanto e ri e fala de como vai ser quando eu for adulto e ele me conta que os passarinhos e as árvores de onde ele vem são perfumados e que a água é fresca e transparente e corre num rio pertinho do canto em que ele dorme, e é tão bom papear, que eu me esqueço de perguntar que nome ele tem. Hoje vou perguntar.

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Quando nos conhecemos, ele aparecia sempre na hora de deitar, depois que a minha mãe ou o meu pai apagavam a luz e saiam. Então, o quarto era invadido por criaturas estranhas e fedidas, que ficavam encostadas nas paredes, olhando para mim. Algumas às vezes gritavam, às vezes tentavam abrir a janela, às vezes queriam puxar as minhas cobertas. Eu ficava apavorado e chorava até meus pais me socorrerem. Era ligar a luz para sumirem todos, de uma vez só, puft, e eu passar por inventador.

A mãe e o pai, quando contei da presença dos estranhos, fizeram umas caras, franziram testas, levantaram sobrancelhas. Disseram que era normal meninos da minha idade fantasiarem com monstros e terem amigos invisíveis, imaginários, impossíveis. Ficariam de olho em mim de madrugada e gastariam uma fortuna com conta de luz no final do mês para eu dormir na claridade, tranquilo.

Ele era esverdeado e cheirava um pouco mal, mas não me dava medo. Sentava na ponta da cama, próximo aos meus pés e, com o dedo indicador colado na boca, fazia shhhhhh, para eu parar de chorar, que ia ficar tudo bem. Tinha razão. Com o tempo, ele foi espantando uma por uma aquelas pessoas da noite do meu quarto e logo descobriu um jeito de ficar apesar da luz acesa.

Naquele dia esperei por ele tudo o que pude. A minha mãe até brigou, que era tarde para criança estar acordada, fervendo. Disse que se eu quisesse crescer tinha que dormir bastante, que eu ficasse com meu anjo da guarda. Deu um beijo na minha bochecha, puxou a colcha até o meu nariz e fechou a porta. Deixou a luz do abajur acesa, porque eu não gosto do escuro. Nunca gostei.

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As tarefas da escola eu faço pela manhã assim que levanto da cama. Tomo meu leite morno ou o meu iogurte com rodelas de banana e já me agarro aos lápis e cadernos. Adoro. Acordei preocupado. Como fazer a tarefa sem o mais importante, sem saber o nome do meu amigo especial? Desde a história dos estranhos no meu quarto que as pessoas aqui em casa me ouvem com desconfiança, acham que eu invento. Detesto que não acreditem em mim e tenho o maior cuidado para fazer as minhas coisas com muita verdade. Pensei em criar um nome, já que meu amigo não me disse o seu. Antônio, Marcelino, Vicente, um bom que só de dizer já mostrasse o cara sério e calmo que ele é. 

A ideia era boa, mas eu não minto. Mais. Então desenhei o meu amigo especial para a professora ver. Fiz um retrato só do rosto. Usei poucas cores, porque apesar de esperto e conversador ele não é uma pessoa muito colorida. Pintei com os três verdes que eu tinha e coloquei cinza perto do nariz e da boca. Demorei demais nos olhos, a parte mais difícil de fazer, porque são muito diferentes dos meus. Não têm os cabelinhos naquelas peles finas que abrem e fecham. Não têm também as bolinhas de dentro, a preta menor do meio do olho e aquela que pode ser azul, marrom, verde... Ele tem olhos sem enfeites. É só uma bolotona branca, que nem ovo frito sem gema. Risquei a boca, rapidinho coloquei ouvidos e cabelos e pronto. Tarefa terminada. 

Lembrei das vezes que ele vinha me ver e jogávamos dominó até entrar sol pela fresta da janela. Ele gostava da peça zero-zero, com os dois lados vazios e eu preferia a seis-seis, lados cheinhos. A mãe encucava com as minhas olheiras no dia seguinte. Tem coisa errada aí, se o guri dorme as noites redondas, ué. Não tinha nada de errado. A gente jogava e conversava. Eu mostrava as letras novas que aprendia na escola empilhando dominós sobre a colcha. O K saiu desengonçado. Ele dizia que nem sempre podia viver no canto com os passarinhos perfumados e árvores e a água fresca e transparente. É que aquele era um lugar feliz, por onde só andavam pessoas com felicidade, explicou. Enquanto arrumava a mochila, fiquei pensando e entendi: ele não cabia no canto feliz quando estava sem felicidade. Vou dizer ao meu amigo sem olhos que ele cabe no meu quarto para sempre, que é um bom lugar para morar.

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A roda da conversa começa a aula. O que a gente faz no resto da tarde depende do que a turma combina ali, sentada no chão, joelho com joelho. A professora organiza quem fala primeiro e quem fala depois, e diz que ouvir com atenção o que cada colega conta é importante, é respeito. Eu acho que eu gosto de respeito, porque quando é a minha vez de falar alguma coisa prefiro que não me interrompam. Foi a minha vez depois da Renata, da Roberta, da Nina e do Tiago. Mostrei o retrato que fiz do meu amigo sem olhos. A professora queria saber onde havia escrito o nome completo do amigo especial. Contei o motivo para não ter o nome escrito. Ela disse que o meu trabalho estava caprichado e quis saber quem me ajudou a fazer. Fiz tudo sozinho. Ela quis saber mais dele. Contei. Contei do escuro, dos estranhos fedidos e de como ele os espantou, do dominó, da falta de felicidade que ele tinha e da minha vontade de ter o meu amigo sem olhos morando para sempre no meu quarto. 

Terminou, Tadeu? Sim, terminei. Esperava que a professora fosse gostar tanto da minha tarefa que penduraria meu desenho no varal dos artistas, no fundo da sala, mas não. Ela respirou bem fundo, arregalando os olhos, e pediu aos colegas que restavam que apresentassem suas escritas. A professora conversou com a minha mãe longe de mim na saída. No caminho para casa a mãe andou em silêncio comigo pela mão, olhando para um longe tão longe que parecia perdida. E parecendo perdida ficou até que meu pai chegasse do trabalho. Mandou que eu tomasse banho e esperasse no quarto, pois precisávamos ter uma conversa. Fui.

Eu tomo banho sozinho faz tempo. Não consigo ainda lavar direito atrás das orelhas e no umbigo, mas isso a mãe resolve depois com cotonetes. Meus pais me esperavam sentados na minha cama, muito sérios, quando saí do banheiro. Queriam saber por que eu tinha voltado falar sobre homens sem olhos e estranhos fedidos. Porque tinha voltado a contar mentiras. Por quê? Estavam decepcionados.

- Mas eu não minto, mãe. O meu amigo sem olhos existe. Ainda não sei o nome dele. Vou perguntar assim que ele aparecer.

- Meu filho, que amigo é esse que a gente não vê? Nunca? E se é teu amigo, vamos supor que ele exista, como podes não saber o nome dele?

- Pois é, mãe. Acho que não tenho sido um bom amigo. O nome é importante, mesmo, né? É a primeira coisa que se pergunta de alguém. Eu me esqueci. E ele sempre me chamou pelo meu nome, como se já soubesse, se já me conhecesse. Eu prometo que vou perguntar e levo anotado no caderno amanhã para a escola.

- Tadeu, a tarefa é o de menos, agora. Vamos refazer junto contigo, está bem?. O que não pode, de jeito nenhum, é tu voltares com as mentiras, filho. Quem vai acreditar quando disseres a verdade? Quando for um assunto sério?

- Mãe, eu não minto mais. Eu não menti. Eu juro. E assunto de amigos especiais não é sério?

Recontei a história umas quantas vezes, repeti detalhes, insisti por muito tempo com meus pais, mas não arredaram pé: para eles era tudo invenção minha. Teu amiguinho é cego, Tadeu? Se não tem olhos, como enxerga? É um adulto, esse amigo? Porque ele não conversa comigo e com a tua mãe, meu pai queria entender. 

---

Meu amigo sem olhos ouviu a conversa que tive com meus pais. Ficou do outro lado do quarto imóvel, até que eles fossem embora, me deixando pronto para o sono, coberto até o nariz, luz do abajur acesa.

- Tadeu, não fica assim. Eu entendo que eles não acreditem em mim. Não podem mesmo me ver. Eu, na verdade, não os vejo também. Não os vejo por mim. Todas as coisas deste mundo só posso ver com a ajuda dos teus olhos. Reparou nos meus olhos?

- Sim. Os teus olhos são duas bolotas brancas, sem as bolinhas de enfeite. Como assim, não vês? Não podes me ver? Não sabes que os meus cabelos são curtinhos e marrons? Que eu tenho orelhas grandes? Que o meu cobertor é amarelo?

- Eu sei. E eu te vejo dessa forma: chego muito perto de ti, encosto as minhas mãos na tua pele e aí consigo ver com os teus olhos. A mesma coisa que tu vês. É muito bonito o jeito que tu olhas e o tanto que tu vês, sabias?

- Então é assim? Tu colas em mim para ver o que eu vejo?

- É. Distante de ti não vejo nada.

- Ah. Entendi.

- O que foi? Porque essa carinha?

- É que eu nunca vou poder falar de ti para ninguém. As pessoas acham que é mentira. Não te enxergam e logo pensam que não existes. Não sei o que fazer.

- E se tu também não me visses mais?

- Não queres mais ser meu amigo, Sem Olhos?

- Não é isso. Amigos como nós não se deixam, não vão embora. Mas se a minha figura atrapalha, essa é uma questão a resolver. Posso existir para ti sem que me vejas e então a minha presença não será mais um problema, entendes?

- Mais ou menos.

- Criamos um código: quando eu vier, invisível, toco no teu ombro assim e vais saber que estou aqui pela sensação. Pela proximidade. Pelo calor da minha mão. Vou aproveitar essas ocasiões para ver. Contigo. Está bem assim?

- Tá bem.

---

Acordei cedo para refazer a tarefa com a ajuda da minha mãe. Foi rápido. Escrevi Nina Mota com letras de pauzinho e de mãozinha. Sobrou tempo para desenhar a minha amiga com o vestido azul estrelado, o preferido dela. Na roda da conversa, a professora elogiou a minha tarefa: as letras bonitas, as cores do retrato, o esforço, tudo confirmava o tanto de especial que a minha amiga era. Era, sim.

No recreio, a Nina me deu um abraço apertado por eu ter escrito o nome dela. 

- Não tem de quê.

- Tem sim, Tadeu. E eu acredito no teu amigo sem olhos. Acredito em ti. Vocês ainda jogam dominó? Ainda se vêem? Posso ser amiga dele também?

- Se a gente ainda se vê? É complicado, Nina. Agora eu olho por ele. É melhor assim.

Antes de correr até o campo de futebol senti meu ombro aquecer e a Nina comentou de uns arrepios perto da nuca. Ele estava ali, olhando o pátio, conosco, o meu amigo sem olhos.





domingo, 21 de fevereiro de 2016

A Mulher e o Gorila

... e o segredo é a sincronização. A mulher e o gorila têm que estar em marcações certinhas, para que a imagem de um sobreponha a do outro no reflexo do vidro. Só não é um truque mais velho do que o circo porque a lâmpada foi inventada por Thomas Edson somente no século 19, meu camarada. Mas é claro que é necessário ter luz! Eu te explico o funcionamento: em um cubículo fica a garota, trajes sumários, bem sensual, em outro, num ângulo de 90 graus e de frente para a plateia fica o cara fantasiado de gorila. No meio, perfazendo um ângulo de 45 graus, um vidro. No mais, basta um bom iluminador. No início, o público vê a imagem da mocinha de biquíni refletida no vidro. Quando a luz vai se apagando e simultaneamente vai se acendendo a do cubículo do gorila tem-se a impressão que a menina está se transformando no primata. É... primata. Um lance de escala zoológica, não estudou isso na escola? Desculpe, não quis ofendê-lo. Mas, onde é que eu estava? Ah... depois que o público está vendo só o gorila, remove-se o vidro, ele rompe o cadeado da jaula, sai correndo atrás dos expectadores, é contido pelo domador e o número acaba. Acho que essa gente que mora no cu do mundo — quando aparece um cirquinho mequetrefe é um acontecimento para a cidade — acredita realmente na mulher-gorila. Povinho ingênuo, hein? Como é que eu sei tudo isso? Fui o gorila durante anos em um espetáculo circense, ora.
Calor aqui, né? Que espelunca. Bebida horrível, música mais brega que Reginaldo Rossi. Mais uma branquinha? Por minha conta. Obrigado por me ouvir. As pessoas perderam a paciência de escutarem umas as outras. Sim, sou novo na cidade, difícil de me enturmar. Como eu ia dizendo, fiz o gorila durante um tempo no Circo Irmãos Graziani cujos proprietários na verdade eram dois paraguaios que usavam o nome de um atacante perna-de-pau da seleção italiana de 82. Vida boa, comida mais ou menos, trailer para dormir e um salariozinho para gastar na zona de cada cidade onde parávamos. Trabalho fácil. Bastava fazer uns ruídos de gorila, socar o peito e correr atrás dos idiotas. O que estragou foi quando a Giovana deu um chilique, deixou o circo e contrataram uma nova mulher-gorila. Mulherão, altona, cabelão descendo em cascata pelas costas, pele de marfim, peitões de americana de filme pornô e uma bunda incomensurável, bunda brasileira, carnuda, redonda, algo divinal. Gamei na hora. Foi uma merda. Todo dia ela de biquíni rebolando na câmara ao lado e eu de fantasia de gorila, transbordando tesão por todos os poros. Ela era safada, me dava trela e depois fugia, escorregadia feito um peixe ensaboado. Não sei por que esse negócio de peixe ensaboado. É verdade, fico divagando, fugindo da narrativa. Bom, fiquei meses nessa lenga-lenga, me declarei, disse estar apaixonado, o diabo a quatro. O máximo que ela me deixava era tocar naquelas mamonas assassinas, mas por cima do sutiã do biquíni antes da apresentação e mesmo assim tinha que pagar vinte contos para a ordinária. Isso, uma grandíssima piranha, você tem razão.
Meu mundo ruiu quando eu descobri que ela era amante de um dos Irmãos Graziani, o Paquito, se eu não me engano. Eram gêmeos idênticos. Envenenado de ciúmes, julgando-me traído toquei fogo no circo, literalmente. Um prejuízo enorme. Não, não morreu ninguém. Apenas dois pôneis e a pombinha do mágico. Do circo, não sobrou nada para contar história. Julgado, peguei cinco anos de tranca. Saí com dois. Réu primário, bom comportamento. O processo civil ainda corre na justiça. Temo pagar milhões de indenização para aqueles italianos de araque com sotaque espanhol.
Agora, estou aqui, dentro desse cabaré infame, com a infeliz ali, razão da minha perdição, ex-mulher-gorila dos infernos, pendurada no poste, se rebolando para os clientes. Se chama pole dance? Esquisito. É inglês? Qual é o nome de guerra da vagabunda? Gigi? No circo se chamava Laurinda. Sei lá se esse é o nome verdadeiro da desgraçada. Soube que ela está de rabicho com um mágico, um tal de Mondrique, de um circo mais chinfrim que o Irmãos Graziani armado por estas bandas. Quer saber? Pego mais trinta anos mas me vingo desta mulher. Dizem que o novo macho dela tem poderes sobrenaturais? Pago pra ver!
Obs: terceiro conto publicado na antologia "Respeitável Público - Histórias de Circo e Outras  Tragédias" - Editora Penalux





sábado, 20 de fevereiro de 2016

CALA A BOCA, ORESTES.

                                             (conto reconstruído pelo próprio autor)

Pelava-se Orestes de medo morrer. Na antessala do centro cirúrgico,
tinha certeza de que a súbita crise de apendicite era o sinal que
sua vez havia chegado. Já estava à mercê dos primeiros efeitos de
um coquetel intravenoso à base de uma substância rara e curiosa, que,
além de provocar um torpor delicioso, tem a propriedade de gerar um
efeito colateral esporádico, que leva o paciente a ser dominado pelas
forças do inconsciente, a ponto de dizer o que não se diz, entregar
rapaduras indigestas, entre outras saias das mais justas e indiscretas.
Foi o que aconteceu com o apavorado Orestes. Entre o grogue e lúcido,
língua enrolada e voz pastosa, foi acometido dos rompantes de afeto
extremado dos bêbados mansos.  Pediu com delicadeza que enfermeiras
e assistentes se retirassem, e agarrou a mão da mulher Leda Maria,
bradando repetidos "Eu te amo!", "Mulher da minha vida!", "Mãe 
amantíssima de meu adorável filho!", "Esteio moral de nosso santo lar!",
entre diversas baboseiras.

- Fica quietinho, Orestes. O cirurgião já vai chegar.

Quanto mais surgiam pérolas da pieguice, mais elevava o tom da voz de
baixa rotação e alto teor de sinceridade. Leda Maria, sem jeito,
passava a mão nas sobrancelhas enviesadas do marido, olhando para
os lados, vigiando a chegada de alguém.
Dos manifestos amorosos veementes passou a confessar o inconfessável.
Dessa vez, trouxe os ouvidos da mulher à sua boca torta, baixando a voz,
balbuciando um texto tão farto de franquezas e rococós, quanto capenga
em sua construção atabalhoada:

- Leda Maria, minha vida, diante da iminência do meu fim, preciso lhe 
dizer que por trás deste meu jeito austero e bonachão, provedor e dedicado, 
existe um cafajeste.

- Que cafajeste, Orestes? Você está delirando.

- É a pura verdade! Nunca deixei passar um rabo de saia que sassaricasse 
aos meus olhos, desculpe amor, preciso lhe fazer de sacerdotisa confessora 
e ao mesmo tempo vítima do meu pecado.

- Fala baixo, Orestes.

- Confesso, confesso, admito e assino com essa voz claudicante que fui com 
secretárias da firma, balconistas jeitosas, garçonetes assanhadas, recepcionistas 
simplórias, transeuntes de rebolados estonteantes, aeromoças solicitas, assistentes 
de clientes, e até, cá entre nós, enfermeiras de dentistas, formosas como estas 
que me rodeiam.

- Orestes, deixa de dizer bobagens. É tudo efeito dessa injeção que te deram.

- Meu Deus, como eu não presto! Todas caiam no meu conto de homem abandonado 
pelo destino, casado, sim, jamais neguei, mas com uma mulher entrevada 
e desenganada pela medicina. 

- Eu entrevada? Seu patife!

- Leda Maria, me perdoe, você nunca me mereceu, quantas vezes a inventei 
moribunda numa maca de UTI como esta em que me encontro, perdão Leda Maria, 
minha vidinha, por este meu vício incontrolável, que me levou a extremos da traição.

- Cala a boca, Orestes. Vou chamar a enfermeira.

- A gostosinha que me raspou os pelos? Bonitinha como aquela babá do Orestinho, 
que acusamos de ter roubado uma lata de leite condensado. Lembra dela?

- A Bernadete?! 

- Ela mesma, coitada, injustiçada. Seu crime foi ter caído nas minhas garras 
e se dado ao patrão numa noite de folga, nos bancos do Chevrolet, bem atrás da 
pracinha mal iluminada, onde horas antes, ela balançava nosso filho. Paguei uma 
fortuna para que a safadinha se calasse, sem que você nunca soubesse...

- Chega Orestes!!!

Leda Maria foi tão severa que médicos e enfermeiras apareceram às pressas.

- Chega, Orestes! Vou fingir que não ouvi nada. Doutor, enfermeira...  
levem este traste e me entreguem como o destino quiser.

E Leda Maria saiu do recinto rasgando os aventais assépticos, espargindo a
toquinha e sapatilhas pelos corredores do hospital. Encontrou o filho e futura
nora na sala de espera, onde ficou calada e circunspeta, com um olhar distante
pela janela, horas a fio, mirando as montanhas na paisagem que se apresentava
em cores de crepúsculo de verão. Até que sentiu uma mão amiga pousar sobre
seu ombro esquerdo.

- Dona Leda, foi tudo bem.  Não houve intercorrências, a anestesia já vai passar. 
Talvez ele tenha náuseas, mas não é desta vez que a senhora vai ficar viúva.

- Obrigado, Doutor.

Leda Maria não demonstrou nada além de uma formalidade bem-educada. Pediu ao filho e
à futura nora que esperassem pelo pai no quarto, que passassem a noite com ele,
deixando um pacote de biscoitos e um cheque em branco, para qualquer eventualidade.
E de lá mesmo pegou o carro, ligou o rádio bem alto e subiu a montanha cantarolando a vida.
Duas horas depois, estava no topo da serra, serpenteando por uma estradinha de pedras,
entre eucaliptos e ruídos de sapos e grilos. Era um sítio de rosas, cultivadas por
um artista plástico de nome Gregor, que entre outras manias, recebia senhoras quarentonas
bonitas para posar como modelo vivo. Nas suas obras, algumas telas de Leda Maria nua,
em posições onde a arte se confunde com o vulgar.

- Leda Maria, você por aqui, numa hora dessas? O que houve com seu marido?

- Deve estar bem. Deve ficar bem. 

E despiu-se a Gregor como se fosse em nome da arte. Naquela noite, entregou-se
ao artista, não pela primeira vez, mas pela primeira vez inteira, livre, aliviada,
feliz que só ela sabia como e porquê. Gozou em quantidade e qualidade, gozos plenos
e variados, reconfortantes e restauradores. E repetiu doses e doses madrugada adentro,
buscando o tempo perdido, despida da culpa e entregue ao inebriante elixir
da felicidade secreta.





quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Uma questão de ritmo

                                                         (desenho de Milo Manara)



Cris era professora do primário e gostava muito do que fazia. Desde que nos conhecemos ela disse gastar energia demais com as crianças e, por isso, não ter o menor desejo de ser mãe. No começo nem me preocupei, nem quando nossa transa foi ficando mais séria, nem quando ela passou a dormir mais noites na minha casa, nem quando trouxe de vez a gata Alice e as tralhas todas. Eu já tinha morado com duas mulheres e as duas traziam filhos, por isso já tinha sido um pouco pai. Isso de um lado. De outro, com quarenta e cinco anos, tinha como certo que o lance de ter filhos tinha passado. E nem sentia vontade, criança dá trabalho, é confusão pra vida inteira.
Só que a negativa da Cris, esse pavor que ela tinha à idéia, foi me dando um desespero. Três dias antes do meu aniversário tomei um porre daqueles miraculosos, reveladores. Ali eu vi. Não queria morrer sem a porra de um filho meu. Os dois que eu tinha criado por um tempo nunca mais travaram contato, mesmo eu tendo convivido seis anos e meio com o André. Até hoje acho que foi a impossibilidade de ter filhos que foi me tirando o tesão da Cris. Claro, eu podia sair por aí e fazer um filho em alguma mulher. Mas não era só o filho em si. Eu queria a criança com uma mulher que estivesse perto, queria ver esse filho, ter certeza de que ele existia.
Pra ser bem sincero, nem sei se era de fato pelo bebê. Acho mais é que trepar a Cris sem sentir que poderia fecundá-la me capava. A cada vez lembrava o maldito araminho no útero, com seus íons destruindo meu exército. Eu virava um fraco assim. Tudo foi se juntando: morte, medo, filho, fazer nenê na barriga dela, raiva. Fui me desinteressando. Mal começávamos a nos pegar mais forte e lá vinha a imagem, o araminho, crescendo na minha cabeça à proporção que eu murchava. Ela já tinha notado e por duas vezes veio me falar a respeito, toda compreensiva, da primeira, dizendo que sabia que com uma certa idade a coisa pode não funcionar sempre com perfeição, que ela não se preocupava nem nada, pra eu ficar tranquilo. Da segunda, alguns fracassos depois, ela veio diferente, cobrando, querendo saber que lance tava na parada, quem era a mulher, que merda era aquela. Catou a Alice no colo e passou uma semana fora, enfiada na casa de não sei quem. Aí que eu vi melhor. Nos primeiros dois dias fiquei até mais alegre, era bom ter o espaço todo pra mim, cantar sozinho, largar chinelo no meio da cozinha, roupa na cadeira do escritório, deixar a louça abarrotada. Mas depois fui lembrando. A merda é que eu gostava da Cris.
Quando por fim ela resolveu voltar, toda linda e arrependida, eu estava melhor. Tinha dado umas saídas, levantado o moral, confirmado que ainda tinha muita mulher que, se não fácil fácil, com certo capricho vinha comigo. Eu não era um decrépito. Ajeitava minha barba no espelho, tirava os pelos que cresciam a mais no nariz, e ainda dava pra conseguir muita coisa na vida, se dava. Com ela de novo em casa, ampliei as investidas virtuais, porque aguçar a imaginação certamente ia me fazer esquentar mais com a Cris. Umas conversinhas com câmera e consultas ao material de incentivo que existe aos montes nas mídias atuais. Enquanto ela ensinava o bê-a-bá às criancinhas, eu brincava de me excitar constatando cada vez mais extasiado que não tinha nenhuma questão orgânica: a irrigação estava boa, o membro rijo, e as mulheres pra quem cheguei a mostrar imploravam e ainda elogiavam o tamanho. Sempre o tive generoso, é fato.
Procurava não exagerar nessas conversas porque não queria correr o risco de ser pego em flagrante. Mantive, mas fui dando mais espaço pra velha prática das revistas, fotos, vídeos, agora tudo na rede, à mão. A Cris saía pra dar aula, os cabelos quase sempre presos num coque no alto da cabeça que eu precisava me esforçar pra não desmanchar, porque sempre gostei dos cabelos castanhos e de reflexos dourados dela, me dava um beijo enquanto eu ainda estava na cama, e assim que trancava a porta eu acendia um cigarro e começava o meu divertimento. Só depois pensava em café, muito depois em trabalho. Logo que almoçava, era hora do cochilo, mas antes mais uma gastada de energia. Perto de seis horas eu queria ver mais um pouco (ao longo da tarde, enquanto trabalhava, eu abria vez ou outra uma fotinho, só pra espantar o sono), mas me limitava a um vídeo rápido, duração máxima três minutos e meio, e me impunha a obrigação de não usar as mãos pra nada, assim ficava a ponto de bala quando a Cris chegava. Contenção, sempre ajuda. Eu atrapalhava o banho dela de tanta fome, mas ela estava mais alegre e isso me animava a prosseguir com meu ritmo de pesquisas. Gostava de fazê-la feliz. Queria conseguir cada vez mais, até que ela se libertasse do pavor de ter bebê e mandasse o médico botar fora o arame, pro esperma nadar solto, minha potência liberta e forte.
Tudo seguia cada vez melhor, os meses passando e eu sempre mais animado. Fui intensificando minhas práticas e, agora, se acordava de madrugada, já ia pro banheiro com o celular na mão e batia uma vendo algumas fotos, muito raro pegava alguma mulher também acordada pra papear e me mostrar suas coisas, depois voltava quentinho pra cama com a Cris. Ela nunca mais tinha reclamado nada, nosso único problema era que eu estava recebendo um pouco menos, porque com a minha prática não conseguia mais manter a mesma produtividade. Sem perceber direito, fui aumentando as consultas. No meio da manhã a necessidade vinha e eu me divertia um pouco, pensava logo voltar pra labuta mas às vezes pegava num papo forte e a coisa demorava mais que o previsto, a manhã já tinha ido embora e eu recorria a um miojo pra sentir que tinha cumprido o horário do almoço e já podia ver uns filminhos pra cochilar e então pegar no pesado.
Mesmo assim, não posso dizer que tínhamos problemas, e eu concentrava meu pensamento em fazer a Cris se desesperar de amor e tesão por mim. Era meu objetivo principal, minha meta, que eu cumpriria mesmo que precisasse sacrificar um pouco mais os trabalhos. Só que aí surgiu um convite pra um frila interno, na redação de uma revista de Odontologia. Coisa de boca me dá nojo, mas a Cris falou tanto que ia ser bom eu poder voltar ao convívio profissional que vi que teria que aceitar. A grana ainda por cima era boa, então juntei coragem e fui, tocava enfrentar o contato diário com chefes e companhia, sair da toca.
Antes de começar nem imaginei outro tipo de problemas que não aguentar chateações típicas de empresas. Mas passei a ter que sair bem cedo e não tinha chance de olhar nada. No trabalho, mesmo quando havia pausas mínimas, não podia arriscar, os computadores eram todos monitorados. Se fosse pego acessando material adulto perdia não só o trampo, mas arriscava a reputação de jornalista que vinha procurando reconstruir. Tentei usar a hora do almoço, mas nunca conseguia ir sozinho, os colegas estavam sempre junto, comendo, falando dos filhos, reclamando da mulher, aquele troço me embrulhava e eu não podia nem comer a mousse de limão que o restaurante sempre lançava como sobremesa grátis. Precisava de alguma recompensa pra recuperar meus dias, minha autoestima.
Começava a redigir as matérias sobre os encontros internacionais dos dentistas e só pensava em tetas, cabelos, bundas. Mas pelas primeiras duas semanas suportei firme. Quando chegava em casa, sempre antes da Cris, o plano era segurar, mas era tão complicado que eu levava um vídeo só, ou às vezes apenas umas fotos, coisa rápida. Até que naquela terça-feira me vi na premência total. Uma dentista veio à redação e passou a manhã lá, falando, lendo as coisas escritas, dando sugestões. Ela era toda autoritária e se achava entendida em português, mas nem dava pra ligar pra nada disso, porque o que ela mostrava era muito melhor – sensacional, em verdade. O pau crescia sem controle debaixo da mesa, porém fui firme. Segurei até a hora do almoço, tentei escapar sozinho, tinha vindo até aviso no meu celular de uma mocinha do Sul que às vezes falava comigo, mas dois malas vieram junto almoçar. Pretextei dor de barriga e voltei logo pra redação, sem botar quase nada da comida pra dentro. Sabia que as salas estariam quase todas vazias. Se não sem ninguém, ao menos o povo da minha sala não voltava antes das duas.
Corri pro banheiro, celular numa mão, fone de ouvido na outra. Nem precisava de muito estímulo, o negócio é que curtia ver, era importante pra eu me sentir inteiro. Entrei com os fones grudados nas orelhas. Tranquei a porta e o vídeo já tinha carregado, era só soltar o play, seria coisa rápida. Com a mão agindo, encostado aos azulejos bege-claro daquele banheiro velho, o celular apoiado na pia, um olho nas duas peitudas da tela e outro nos meus movimentos refletidos no espelho em frente, sinto no canto inferior do espelho um mexer ligeiro de algo amarelo. Tinha uma porra de uma pessoa ali dentro, atrás de mim. Na cabine. Devia estar cagando, quem seria? Será que o Paulão já tinha voltado do almoço no maior silêncio pra vir pro banheiro?
Precisava sair dali, só que minha mão não obedecia, a loira agora enfiava a boca na bunda da morena, faltava pouco, mas o amarelo apareceu de novo, desta vez movimentando-se mais lentamente. Consegui ver melhor. Era uma merda de uma bota de plástico. Não dava pra parar a cena da morena socando um dildo atrás da loira, mas era a moça da faxina que estava ali. Os dois olhos quase estourando, a boca meio aberta, a língua solta escorregando em cima do lábio inferior. Ela me via, eu tinha que parar tudo, eu queria parar tudo, de vergonha e medo, mas não tinha mais como. A porra já subia e ia sair e a cara dela não era de recato. A filha da puta estava gostando. Minha hesitação durou nem meio segundo. Abri a porta da cabine e catei-a pela toca que lhe cobria os cabelos, mandando Enfia a boca aí, ao que ela obedeceu, os olhos tesudos mas também temerosos. Depois que ela engoliu tudo, soltei aquela touca verde-claro e mandei ficar no banheiro, sair só bem depois de mim. Prometi uma grana que me faria falta, mas achei melhor. Que pegasse logo e sumisse, fosse limpar qualquer outro canto da empresa.

Sentado na minha mesa, fui recompondo a respiração. Andei até a máquina de café e mandei ver num puro, enquanto tudo ia desacelerando. Botei a cabeça pra funcionar, essa porra dessa mulher provavelmente ficaria até sexta no escritório, toda semana vinha equipe nova de limpeza, pelo que eu tinha sacado, logo eu nunca mais a veria. Em minutos decidi que estava fora de perigo, afinal, ela tinha gostado. Naquela noite, comi Cris de todo jeito, até fazê-la, rastejando, emocionada de amor, prometer tirar a porcaria do DIU. Devo ter-lhe feito o Mateus uns três ou quatro dias depois. Isso faz quase dois anos. Ela entrou de licença e voltou a trabalhar quando ele tinha seis meses. Eu que fico com ele, a maior parte do tempo. Boto no cercadinho e vou fazendo meus frilas em casa, interno não quis mais de jeito nenhum. Aqui tenho tudo e não precisamos gastar com babá. Os bebês são tão inocentes que o Mateus se enche de rir ao me ver batendo uma com a cara quase colada no monitor. Algumas vezes, quando vou explodir, viro pra ele e mostro, pra já ir ensinando. Ele ri um montão. Depois limpo tudo com uma toalhinha e volto pro trabalho, que até dar a papinha dele tem tempo.





quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A dama das trevas, poema de Jovino Machado




a dama das trevas

sabe dançar a falsa valsa
seu voo é um presságio sombrio
no impulso lúdico caiu da torre
e perdeu a terceira perna
pode andar sem ela com muletas
mas vai sentir muito a sua falta
fala baixinho como uma fada
mas fere fundo como uma bruxa
sua saliva é venenosa e cruel
anda com passo de gazela
para não despertar os cães
deu um salto trapezista
quando o cupido se abaixou
para apanhar a flecha
sabe fingir em alemão
ou sabe-se lá qual idioma
demônio medieval
disfarçada de anjo barroco
pode ser vista ao lado de satã
na divina comédia de dante
ou rezando uma ave-maria
aos pés de nossa senhora do desterro
no altar da igreja do pilar
numa estranha alquimia
entre o sagrado e o profano
vai passar a eternidade
no nono círculo do inferno
ao lado de caim e judas
virgilio vai lhe virar a cara
sua beleza é uma cadela
que me envia em seus latidos
um ganido de socorro
que a vingança transformou
em cantiga de maldizer

jovino machado, sobras completas, 2015, estúdio guayabo, páginas 329,330





terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vigília



A velha sentada na varanda suspensa de madeira não mexe mais os olhos para ver o que acontece no chão, cinco metros abaixo. Ela não respira. Para não sentir o cheiro da podridão que vai além das fezes dos animais e do mijo dos bêbados e da porra dos homens que trepam com as prostitutas no beco e das línguas que envenenam histórias nos ouvidos fracos e do tabaco vagabundo dos operários. Ela não está morta. Mas é como se estivesse. E talvez esteja. Não da morte que deita no caixão e põe nas narinas algodões para aparar os fluidos fétidos do corpo. Ela morreu de inexistência. Do dia após dia em que ganhar nunca foi opção. Ela perdeu. Tudo. Os dentes da boca infectada; os cabelos brancos fracos e finos que os anos trouxeram antes ainda da velhice; o tesão que aliviou tantas noites cansadas de dias de trabalho insano; os filhos que não vingaram na barriga por causa da fome e das doenças; o companheiro que foi embora deixando uma cria doente para ela alimentar e quatro tíquetes de refeição que recebeu em pagamento por um serviço de pedreiro. Além da cria que virou anjinho, ainda ficou para trás uma solidão que também tinha fome. A única que ela conseguiu nutrir até que os farelos se acabaram. 
Inerte na varanda. É assim que ela vive. Na cabeça, um pano encardido para esconder a calvície. E um vestido preto que não é de luto, mas da sobra dos sacos de caridade da igreja. Um dos olhos já quase não se abre; e o outro não se importa. Ela não sente nada. Nem alívio. Ao lado, um prato de comida que alguém traz quando pode. Vazio. E uma caneca de água pela metade. Ela sempre come tudo. E bebe aos goles. Deixa que mãos estranhas a banhem numa bacia de água fria, a vistam com o mesmo vestido preto, envolvam a sua cabeça no mesmo pano encardido, e a levem de volta à cadeira na varanda. Ela come e bebe porque quer ficar forte para continuar a vigília. E se esquecer de tudo o que fede e grita cinco metros abaixo. Quer se aprumar para caminhar com a morte quando ela chegar. Na direção do céu que só existe bem longe. Lá, ela vai rever a cria, o pai funileiro, a mãe costureira. Gente que a saudade desassossegada nunca deixou partir do pensamento. E vai ganhar vestido novo. Todo branco. E uma tiara brilhante para prender os cabelos pretos, longos, cheios. Essas coisas que só Deus dá. No céu. 





segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

podias ser minha vizinha



Não sabias ainda o que ia suceder.
Não podias prever.
Preparavas um caldo de osso de borrego com nabiça e tinhas ouvido a porta de entrada e, já nem davas por isso, tinha-se-te descompassado o modo de sorver o ar que respiravas.
O corpo dele ficou a ocupar a porta que da cozinha levava à salinha de entrada que servia também de sala de jantar e sala de ver televisão, e que era onde deitavas a mais velhinha que, quando tinham alugado o T1, nem tinham pensado em fazer família, que a bem dizer nem tu nem ele nunca tinham pensado coisa nenhuma, apaixonados, doidos de quererem o corpo um do outro, e casaram poucos meses depois da noite em que se tinham visto pela primeira vez e tu nunca tinhas ouvido dizer dele, e havia tantos outros no grupo de colegas de trabalho e amigos, mas ou seria o destino a comandar-te ou terá sido o modo de ele te ter olhado, ou terás sido tu insinuante e ele nem mais te deixou, que assim to repetiria: “essas mamas redondas deram comigo em doido”; e tu embevecida do seu porte atlético, do cabelo já a ficar grisalho nas fontes apesar de tão jovem; ou terá sido o modo como te colocou a mão no ombro a pedir, soprando-te desasossegos em cada sílaba, a boca bem chegada ao lóbulo da tua orelha esquerda: “passas-me esse copo, por favor”. Ficaram nesse transe de estar apaixonados, ainda, e ainda mais, depois de terem passado juntos o início desse dia e o dia inteiro que era um dia de trabalho e ele terá dito: ”que se lixe” e disseste também tu, ou nenhum disse, ficaram sem sequer dar acordo do nascer do sol nem do cair da noite, tu e ele a rebolar desejos no tugúrio que era o quarto onde ele vivia emigrante de uma outra zona do país a fazer um serviço para a empresa onde era soldador.
E depois passaram a encontrar-se, a viver juntos quase sempre, até ao dia em que disseram um ao outro: “e se juntássemos os haveres que não temos?” e a rirem alto para o ar quente dum final de Maio. E tu terás olhado as casas que assomavam na outra margem a esconderem o bairro em que tinhas vivido até seres a namorada dele: tu a querer esquecer, a querer lembrar apenas que agora serias tu a comandar a tua vida.
Casaram sem cerimónia nem padrinhos nem convidados: “apenas eu e tu” tinhas dito, e em casa participaste que não voltavas num bilhete que deixaste na sala, e nenhum deles, mãe e padrasto, terá acreditado, tanto que nunca te procuraram, nem quando deixaste uma mensagem em que dizias: nasceu uma menina, nem quando escreveste num SMS: nasceu outra menina.
Casaram, e tu nunca tinhas reparado que ele te telefonava vezes demasiadas: “aonde estás, agora? estás sozinha? tomaste café com quem?” Nunca tinhas reparado, porque tu achavas que ele apenas vivia na ânsia de te ver ao final do teu dia de escritório naquela bomba de gasolina à saída da cidade, tal e qual como te acontecia, a ti que apanhavas o autocarro e demoravas hora e meia até caíres nos braços dele que te amava demasiado, e tu a ele, e por isso nem reparavas que nem eram mimos, e nem era de ele ser nervoso ou andar cansado, eram mesmo bofetadas por isto ou por aquilo, como seja por teres apanhado outro autocarro pois ficaras a conferir umas facturas. 
E nem quando ele te pontapeou o corpo, e nem quando te assentou a mão inteira por diversas vezes. 
Tu sabias que não era brincadeira, e ainda assim desentendias-te.
E um dia o corpo inchou-se-te desmesurado.
Sim, tu sabias, mas envergonhavas-te, que tu não querias fazer ruir o teu castelo de sonho.
E esperaste.
Tapaste-te, ferida, com mangas e encharpes e deixaste de usar decotes, até essa vez em que o rosto te ficou desfigurado, um dos olhos roxo e negro e a boca rasgada num canto.
Só então lhe gritaste: “nunca mais.”
Ou terás gritado outras vezes mas nem pensando que seria de má-fé que ele fazia aquilo.
Dessa vez, e daí em diante, ripostaste e ele quase te partiu o pulso, ou virou-se a ti armado com uma faca ou um pau, e tu passaste a não saber se lhe tinhas amor ou medo, ou misturavas sentimentos desejosa de que fosse tudo um pesadelo e um dia acordasses.
E silenciaste. 
E mentiste-te: que talvez ele andasse stressado; que talvez se tu o tratasses com desvelos.
E ficaste grávida. E tiveste a menina. E foste ficando cada vez mais tu e ele e ela, e depois tu sem emprego, e depois os ciúmes que nem que saísses para levar a filha ao médico ou buscar umas compras, ou ainda que ficasses em casa o dia inteiro.
E engravidaste uma segunda vez que ele era tão gentil, tão amoroso, tão o homem que tu desejavas a dizer-te: “e se tivéssemos uma rapazito? “
Ele que inventava histórias para adormecer a filha e chorou e riu e ficou louco de alegria no dia em que nasceu outra menina.
E no entanto, os tetos do apartamento foram demasiado altos e as paredes demasiado grossas para que alguém ouvisse os teus gritos. 
Ou tu nem gritaste que eles ouvissem ou, se viessem em socorro, mentirias a defender o sonho que querias não desfeito.
 Até ao dia em que percebeste que as histórias que ele contava à filha traziam outros príncipes e outros brinquedos. 
Tinha sido uns dias antes de ele ficar ali pespegado. Desconfiaste. Achaste estranho. 
Quando ele entrou estavas de unhas em riste.
Ele ali na porta da cozinha e a mais velhinha a desejar o que tu não sabias que sempre lhe prometia.
Ele sorrindo a dar-lhe a consola e tu a querer que fosse mentira.
Terás chorado o sangue todo que tinhas nas veias, mas nem assim disseste uma palavra a não querer estragar o contentamento da menina.
Triste.
Tão amargurada que tu estavas.
Só então contaste. 
Ao dia seguinte, contaste o que sabias ser verdade e espantaste-te de estar descobrindo o horror que tinha sido.
Só então enfrentaste o desfazer do teu imenso sonho.
Na Segurança Social prometeram, e sondaram, e fizeram relatórios.
Terão feito o possível, mas apenas o possível e não o necessário.
Também a polícia se interessou pela tua causa. Também eles quiseram ajudar, mas tardaram.
Tão desesperada que tu foste ficando.
E na tarde em que saíste com as duas, nem sabias onde ias, e nem sabias se irias a algum lado. Sabias que nunca mais regressarias e trouxeste um saco com roupa e pouco mais trouxeste.
Fazia frio, mas o sol estava morninho e a mais velhinha correu pela areia como se fosse em passeio. E ria.
Tinhas percebido que podias ir com elas, passeando, calmas, tu e as meninas: muito calmas e de mão dada, e tudo ficaria resolvido. 
Acreditaste.
Tu e elas mar adentro, que tu não tinhas para onde ir, tu que sabias o que era ser-se muito querida: tão querida que tu tinhas sido do pai delas, tão querida que tu tinhas sido do teu padrasto.