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domingo, 28 de dezembro de 2014

Tecendo amanhãs

(Bordado da artesã Maristela Santos)

Dia a dia, bordamos um fio de nossas vidas no tecido do tempo. Daqui a pouco, o que bordamos de nós em 2014 estará completo. E já será hora de ajeitar a agulha para os novos fios que, tecendo nosso amanhã, nos manterão na linha do tempo. Enquanto o tempo nos der linha, nossa sina é tecer. Assim até o fim do nosso bordado. Porque a inescapável verdade é que a gente vive do que tece. Mesmo sabendo que o fio da vida vai se romper em alguma curva do tempo, não renunciamos ao ofício de tecer amanhãs. E faz parte do ofício sempre voltar o olhar para o bordado que vamos fazendo. Embora a maioria de nós já esteja voltada para o ano-novo, é tempo de olhar para o bordado do ano que finda.

De minha parte, não hesito em me inclinar agradecido para o bordado que pude fazer de mim, certo de que tive um feliz ano velho. Gostamos tanto de saudar o novo – ainda uma promessa – que nos esquecemos de agradecer o que passou – já uma certeza. Meu ano foi feliz por vários – e sempre os mesmos – motivos: pela saúde, pela paz, pela alegria, pela família, pelas amizades etc. Essa pequena amostra é bastante para garantir o sentimento de felicidade que permeou os dias findos – e lindos. Para além disso, há o fato de eu não ter deixado escapar das mãos a agulha com que, obstinado, costuro em páginas baldias os fios da vida que vivo recolhendo. Não fosse isso, o que cada um tece de si correria o risco de perder-se no esquecimento. É espantoso que alguém que se move sempre na zona da preguiça venha conseguindo tal proeza. Convém pontuar que devo parte da obstinação em alinhavar os fios da vida à preciosa atenção de meia-dúzia de leitores fiéis. Esse embate quase diário com a palavra, esse desnudamento de alma que o papel em branco propicia, esse “gostinho raro, escondido, de mexer com palavras até que elas dêem uma resposta de mim” (Manoel de Barros) e de todos (somos, em essência, palavras), devo tudo isso ao raro leitor. E sou mais que feliz por isso. Tanto que só isso bastaria para eu repetir, pleno de gratidão, que tive um feliz ano velho.

Acertados os pontos com o ano que finda, é hora de saudar o ano que daqui a pouco se desdobrará novinho em folha, pronto para nele bordarmos nossas dores e delícias. A saudação vem acompanhada de uns imperativos bem-vindos na vida de todos nós. Decalquei-os da letra da canção Do it (pode ser ouvida aqui), parceria de Lenine e Ivan Santos. Eis o decalque:

Se é pra rir, role.
Se é pra fazer, desenrole.
Tá com pressa, acalme.
Tá com calma, mantenha.

Se tem dinheiro, gaste.
Se tem dívida, resgate.
Se é de graça, aproveite.
Se é caro, encare.

Tá contente, espalhe.
Tá triste, disfarce.
Se tem muito, reparta.
Se tem pouco, reparta.

Se acordou, levante.
Se dormiu, sonhe.
Se tá vivo, viva!
Se tá certo, lute.

Se tá errado, não relute.
“Se tem festa, dance”.
Se tá bom, celebre.
Se tem música, requebre.

Se tiver de apelar, espere.
Se tiver de esperar, não apele.
Se tá na chuva, molhe.
Se tá na sombra, peça água fresca.

Se tem saúde, agradeça.
Se tem paz, agradeça e reze.
Se tem tempo, desperdice.
Se tem espaço, espreguice.

Se quer ser feliz, tente.
Se quer ser mais feliz, invente.
Se quer ser sempre feliz, reinvente.
Se acredita, experimente.


Se é ano-novo – feliz ano-novo!





sábado, 27 de dezembro de 2014


לבה

Sua primeira arma foi de uma espingarda de chumbinho, que utilizara por toda a infância na caça a pardais e colibris incautos, estivessem eles em pleno voo ou zelando, no conforto de seus ninhos, pelas crias mal saídas dos delicados ovinhos. Desde cedo, perdera totalmente o respeito pela vida de toda e qualquer criatura que não partilhasse de sua própria imagem e semelhança. Não tardou em também caçar coelhos e pequenas raposas; levava os frágeis cadáveres pendurados sobre seus ombros, como mórbidos troféus. Era um caçador, sim, e dos melhores. Porém, antes de tudo, era um pastor. Daí a necessidade do treino precoce na arte de manusear armas, pois o pai havia destinado-lhe a missão de manter o rebanho livre do ataque violento de predadores, a fim de que nenhuma ovelha fosse trucidada ou se desgarrasse de suas iguais.

O primeiro passarinho que abatera levou-o às lágrimas. Talvez aquele tenha sido o único momento em sua vida em que se sentira, diante do severo olhar paterno, pouco merecedor de respeito.

Passados os anos, as lágrimas não voltaram a envergonhá-lo, porém, matar pássaros havia se tornado uma tarefa molesta e desagradável. Não. Não se tratava de piedade. Era mais uma sensação de pouco valer à pena tirar a vida de criaturas pequeninas, vulneráveis, que por nada lutavam, incapazes de revidar. Já as onças da região, ah, como gostava de abatê-las sempre que se aventuravam sobre seu rebanho. Mirava sobre uma das pintas castanhas e disparava o tiro fatal, seguido de um grunhido angustiado e de uma fuga desastrada e inútil através do mato que circundava o pasto onde as ovelhas se espremiam umas contra as outras, tolas, como toda vítima. Dia e noite, guardadas por um pastor incansável e de pontaria extraordinária, aquelas tolas ovelhas.

A verdade é que sua dedicação não se devia à fragilidade de seu rebanho, nem à sua busca por aprovação paterna. A bala fumegante nunca errava o destino, pois seu trajeto orientava-se pela sanha mortal daquele moço. Assistir a vida escoar do corpo de suas presas causava-lhe um prazer quase sexual, sentia uma quentura libidinosa percorrer-lhe as coxas e o sexo sempre que um grande felino tombava morto: A língua posta para fora da boca ensanguentada enquanto o abdome trabalhava para nada. A morte de um passarinho jamais seria capaz de proporcionar-lhe tamanho gozo, de entranhar em seu íntimo aquela sensação de poder, de autoridade superior a que seu pai exercia sobre ele.

Um dia, o velho despertou como se acordasse de um sonho terrível e, com olhos suplicantes, implorou para que ele se tonasse um homem bom. Um homem bom. Bom em quê? Na caça? No pastoreio? Era bom em tudo que fazia. Tudo. Mas, não era isso. Era de outra bondade que seu pai falava por meio daquele olhar de quem fora visitado durante a madrugada por um demônio assombroso. Todavia, como ser bom? O que é ser bom? O que vem a ser esta coisa gasosa, sem forma, intangível, chamada bondade? Trata-se de uma condição do caráter? Será um hábito adquirido? Ou, na verdade, seria a bondade um estado de espírito? Não. Não saberia ser bom. Como ser bom a despeito das coisas sombrias que sentia? Como ser bom apesar de sua falta de remorso a cada lobo-guará surpreendido por seu rifle, cada gato selvagem degolado por sua faca de caça? Sabia-se mau, sentia-se mau e havia se acostumado a ser mau. Ser bom era um pedido impossível e uma aspiração irrealizável.

Submisso, por um instante, tentou.

Pela primeira na vida, fez dormir o assassino dentro de si e desejou com toda a sua fibra ser o melhor dos homens. Mas, para ele, era tarde demais. Quanto mais desejava ser bom, mais caudalosas se moviam as correntezas de sangue e vísceras, as carcaças esfoladas, bocarras abertas, ventres expostos. Jamais seria bom. Jamais. Não depois de ter zombado de toda a vida esmiuçada por suas recalcadas mãos.

Enlouquecido, largou o pai moribundo sobre a cama e correu pelo pasto, o rifle atravessado sobre as costas. Tropeçou nas ovelhas; que dele correram como jamais haviam fugido, nem mesmo do mais selvagem dos predadores. Ao avistar o irmão que roçava energicamente a lavoura que não saciava os apetites de um pai carnívoro, dirigiu-se até ele e atirou-se aos pés fraternos.

– O que há? Qual a razão desta correria? Abateu-se sobre ti alguma desgraça? – quis saber o irmão.

– Anda, toma de minha arma e esfacela-me o crânio de uma vez! – ordenou ele.

– De que falas? Por que eu o faria? – perguntou o outro, assustado.

– És meu irmão! Deves-me isto! Anda, acaba de vez com minha angústia, senão por toda a vida carregarás o peso de meu infortúnio! – ameaçou.

– E por que anseias morrer? Devo ferir-te assim, por nada?

– Deixa-me e faz o que te peço!

– Não sem antes ouvir de ti alguma explicação para tamanho desatino! Por que desejas que teu irmão seja o executor de tão hediondo crime?

– Ai, ai, ai. Não posso ser bom! – lamentou sinceramente – Não sei ser bom. Descobri isso agora e, de repente, parece-me bondade a mais preciosa das coisas terrenas. Não quero viver sem tê-la, sem experimentá-la. Tu és tão bom, virtuoso... Tu, que lavras o campo e fazes a vida rebentar das sementes, enquanto eu atraiçoo os animais da selva. Anda, prova-me teu altruísmo e atira! Liberta-me!

– Não posso! O que direi a nosso pai quando ele perguntar por ti? – tentou esquivar-se do sombrio apelo, o irmão.

– Sem olhá-lo nos olhos, afirma que não me viste.

– Mas, Abel...


– Atira, Caim!



Emerson Braga





Colcha de Retalhos #4

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


NATURALMENTE, CARNÍVOROS

Como todo dia, na pia, o ritual pós-sacrifício acontecia: limpar as peles, cortar em filés, tiras ou cubos, temperar e cozinhar. Naquele dia em especial, em uma tábua de madeira, diante do altar, encontrava-se uma galinha caipira, com o pescoço torcido e ainda mantendo algumas penas.
O garoto, curioso, aproximou-se da cozinha e observou, com um pouco de nojo, a mãe manuseando aquele bicho. Ela arrancando penas, cortando a cabeça e tirando as peles. Quando reparou que ele estava ali, ele olhou para ela e perguntou:
- Mãe, o que é isso?
- Franguinho, filho!
- Então... É isso que é franguinho?




PROTETOR

Ele dá gritos agudos ao meu ouvido
Logo depois, me empurra com toda força
Em seguida, atira grãos de areia em meus olhos
Tudo para que eu volte para casa
O vento fica muito nervoso quando, por mais que ele avise, as pessoas insistem em enfrentar as tempestades




INSTÁVEIS

Há um casal problemático que passeia entre minhas idéias
Não conseguem viver juntos por muito tempo
Se o álcool entra
A poesia logo sai




NOTÁVEL

Naquela noite que se fez outro dia, a lua estava tão cheia, de si própria, que mesmo depois de o sol ter se aprumado, ostentoso, ela ainda desviava a atenção de muitos desavidados






sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

É assim que se ama

É tanto caso de amor carecendo de estudo e compreensão, precisando de um fim! É tanta gente por aí que merece análise, hospício e piedade — porque não sabe gostar direito, porque só sabe adorar de um jeito! E a cura não vem: continua esse negócio de amar varejando a humanidade por atacado.

Por exemplo, conheci um homem que só se relacionava com mulheres de um metro e cinquenta e dois. Passasse ou faltasse um centímetro, não servia. Claudionor não era baixote, não: contava com vinte e cinco centímetros excedentes (pra cima, pros lados e pra frente, às vezes). Chegou a tentar namoro com uma bonitona de um metro e sessenta — mulher correta, pra noivado e casamento —; mas, na primeira investida íntima, broxou feio. “Só me encaixo bem com as de um ponto cinquenta e dois” — argumentou. E nunca mais aceitou lidar com outra estatura, nem na cama nem nos bailes da cidade. E tinha muita grandona suspirando por ele, viu? Claudionor quase se casou com uma amiga minha que estava dentro dos padrões, mas um probleminha de cifose curvou a coitada em dois centímetros, e o matrimônio foi cancelado. Marcília chegou a fazer sessões de Reeducação Postural Global (RPG) pra voltar ao prumo e reconquistar o noivo. Mas ficou mais ereta que deveria, e Claudionor não perdoou a esticadela exagerada.

Já uma amiga de infância se perdia toda era com os homens acneicos. Os garotos de pele lisa não a atraíam, mas quando ela avistava um belo rosto erodido em espinhas maduras ou então bíceps estrelados de cravinhos negros, Magdinha perdia a paz, endoidava. O conselho da mãe e das irmãs mais velhas era que ela não se desse por completo no primeiro nem no quinto encontro; só depois de um mês, por aí. Mas Magdinha não se continha. A expectativa de um pós-sexo com direito à espremeção exaustiva de cravos robustos (que saíam redondos com o forçar de suas unhas finas e deixavam buraquinhos limpos prontos a se encher de nova massinha extirpável) era mais forte que tudo. Ela se sujeitava a beijos, esfregas e a qualquer tormento venéreo para poder, enfim, satisfazer-se na limpeza de pele. O problema é que homem é bicho mole e odeia beliscos e apertos. Nenhum suporta ser espremido sem reclamar, sem se escafeder pra todo o sempre. E a solidão espinhenta se repete sempre na vida de Magdinha.

Os casos são absurdos e disparam. Sem muito esforço, eu contaria centenas — na vizinhança, na família, nos amiguinhos do facebook, dentro de casa! Um conterrâneo só namora mulher de nome esdrúxulo. Seu coração bate forte quando conhece uma garota que certamente sofreu bullying durante a chamada diária da escola. Já pegou a Maligna do Céu Eterno, a Betoneira do São Cimento, a Desbotada Coradina e até a Adenoide da Amídala Alérgica! Talvez por se chamar João Sá — e só —, necessite dessas ousadias pra se preencher. Mas se recusa a ser fiel, porque os cartórios são fortes em registrar criatividades.

Você também deve conhecer uma garçonete que só beije piloto de avião, um maratonista afegão apaixonado por cabeleireiros chineses, um engenheiro que só caia de amores por mulheres fora do esquadro, uma cantora com mais de trinta que só embarrigue de malandro menor de idade ou de gagá playboy...

Eu, por exemplo, figura sem doce nem história, pessoa sem encanto ou serventia, me apaixono por todo leitor que elogie a minha escrita, por qualquer um que ao menos suporte me ler. Só de imaginar essa atenção e carinho vasculhando-me as sandices, já estou cá morrendo de prazer, ávida por me deitar em novas páginas. É só deste jeito que sei amar: em leito de palavra faísca.

Nenhum amor é ordinário. Basta calhar pra se tornar extraordinário!





quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Aperitivos



Joaquim Bispo

Miniconto, microconto, nanoconto são variantes narrativas que diferem do conto, genericamente dito, pelos tamanhos progressivamente menores, cada uma com os seus próprios cultores. As fronteiras não estão bem definidas, mas as modalidades menores, pressionadas pelas novas tecnologias, pretendem escrever uma ficção completa que caiba numa mensagem SMS (160 caracteres) ou mesmo num “post” no Twitter, ou seja, 140 caracteres. Saramago sentiu-se obrigado a declarar que “Os tais 140 caracteres refletem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação.”
Não é só em tamanho que conto e miniconto diferem. Este não é apenas um "conto pequeno". Embora o espírito do conto se mantenha, a escassez de tamanho condiciona algumas características: No miniconto, muito mais importante que mostrar é sugerir, deixando ao leitor a tarefa de "preencher" as elipses narrativas e entender a história por trás da narrativa escrita. É paradigmático o nanoconto do guatemalteco Augusto Monterroso intitulado “O dinossauro”, de apenas trinta e sete letras:

Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.


Os concursos literários, pressionados pelas multidões de concorrentes e respetivas avalanches de contos a concurso, vão progressivamente fazendo exigências de textos mais pequenos, sendo vulgar o limite máximo de duas páginas, para contos. Os mini, micro e nanocontos vão também fazendo o seu caminho em concursos, até com publicação de coletâneas daí resultantes. Abaixo, algumas tentativas minhas com limite de três linhas e sujeitas a tema:

Cebola:
Dona Ália Cebola

A anca larga e sensual ofuscava o pescoço alto e esguio. Enlevado, libertou-a da capa cor de mel. Arrebatado, arrancou-lhe mais dois véus translúcidos. Alcançou, então, emocionado, o corpo níveo que procurava, enquanto as lágrimas lhe rolavam cara abaixo.

(Publicado no jornal literário virtual Olaria das Letras)

* * *
E-mail:
Agora, só escrevo cartas

“Não julgar Bush por crimes contra a Humanidade é a prova da subserviência mundial à razão da força.” – escrevi eu, a um amigo, por e-mail. No dia seguinte, as secretas revistaram a minha casa, por suspeitas de atividades terroristas.

* * *
Caracol:
Vertigem

Foi a subir a escada em caracol atrás de ti que eu fiquei com a cabeça à roda.

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Muro:
Conflito de gerações

O muro: cinco andares de gavetas numeradas. Na pequena urna da 602, as caveiras do casal face a face; as tíbias em diagonal a separá-las; os outros ossos encaixados a rigor. Silêncio e paz final? — Vieram outra vez pôr flores nos da 3719... — Mimados!

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Vento:
Alentejo

Ninguém teme o vento. Ninguém acredita que é ele que me enlouquece. Ninguém percebe como ele manobra sorrateira e incansavelmente nos ouvidos, até conseguir o que quer. Vou-me rir tanto quando começarem a cortar as orelhas e a furar os tímpanos!

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Vermelho:
O outro lado do Natal

Ao ver o Pai-Natal do centro comercial, o miúdo, vermelho de indignação, correu a dar-lhe uma canelada. Repreendido, justificou: — Este ano, ele não apareceu e o meu pai teve de me comprar a prenda com o dinheiro do almoço de Natal! Aldrabão!

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Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77

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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

KATE WINSLET


Sempre fui um apaixonado pelo teatro ― e em especial pelo shakespeariano, que presenteou ao mundo peças e atores igualmente memoráveis: como não associar, por exemplo, o atormentado Hamlet às soberbas atuações de Sir Laurence Olivier, tanto nos palcos quanto no cinema?
Eu mesmo (e o leitor desconfiará da veracidade desta revelação), aos quinze anos de idade, ao fazer um teste para uma escola de teatro em Manaus ― sim, também já tentei atuar ―, escolhi o trecho em que Henrique V discursa aos soldados ingleses na célebre Batalha de Azincourt. E, para minha surpresa, fui aprovado: menos pelos meus dotes cênicos, acredito, do que pela ousadia de ter escolhido um texto do Bardo. Os avaliadores devem haver chegado à conclusão de que, pelo menos, eu possuía uma boa memória. Um mês depois, no entanto, percebendo que nem só de boa memória vivia um ator, optei pelo bom senso de desistir do curso. 

Uma decisão que, vale frisar, não diminuiu em nada minha paixão pelo bom teatro. E continuei, agora das poltronas, aplaudindo as grandes encenações.

De tal modo que, em 2013, ao pisar em Londres pela primeira vez, já tinha uma ideia fixa: a de ir a uma peça de teatro ― não importasse qual fosse! Desde que ouvisse a encenação num apropriado sotaque britânico. 



E dei sorte! Pois, próximo ao hotel que me instalei, em Earls Court, havia o pequeno e elegante Finborough Theatre ― que foi um dos primeiros palcos da hoje consagrada atriz Rachel Weisz. Na ocasião, lembro-me, para a sessão das sete, estavam todos os assentos ocupados e, quem quisesse, teria que ficar na lista de espera por uma desistência. E, nesse ponto, os deuses do teatro foram generosos comigo: pois, quase na hora de abrirem-se as cortinas, fui chamado para adentrar o teatro, uma vez que, milagrosamente, um dos espectadores não havia chegado.

O título da peça era Fishskin Trousers (algo como "calças de pele de peixe" numa tradução direta), que narrava as histórias de três personagens, de diferentes épocas, mas ligadas pelo fato de pertencerem à mesma comunidade de pescadores de Orfor, em Suffolk. No palco: três cadeiras apenas, ocupadas por três maravilhosos atores ― com destaque para o australiano Brett Brown, como o cientista dos anos 70. 

Ao final do espetáculo, houve ainda um bate-papo com a autora da peça, Elizabeth Kuti, com quem tive o prazer de tirar uma foto. Mas o que me chamou mais atenção durante a conversa pós-espetáculo foi uma referência desdenhosa à atriz Kate Winslet feita por um dos palestrantes, e que, pasme o leitor, fez todo o teatro rir. Algo do tipo: “Se você quer o simplório, e não a qualidade, chame Kate Winslet para o papel”.

E, ao escutar isso, foi inevitável meu choque. Afinal de contas, eles estavam ironizando uma das atrizes mais prestigiadas do cinema ― é a Rose de "Titanic", for God’s Sake!, diriam alguns fãs mais exaltados! 

Porém, resolvi não fazer a defesa de Kate. Nem dela nem de Colin Firth, outro cujos talentos dramáticos foram questionados durante aquele debate. Eles que são britânicos que se entendam, ponderei, enquanto bebia em silêncio o vinho distribuído aos espectadores.

Quanto a Kate Winslet, contestada ou não, continuo a assistir a seus filmes. 

Desde que não seja, claro, ao som de Celine Dion... 

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Um Feliz Natal e um Próspero 2015 a todos os leitores da Samizdat.

Edweine Loureiro





segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Ressaca institucional


Não viajou no feriadão do Natal e não arredaria pé da cidade na virada do ano. Viveu em dois dias o calor mais intenso da vida inteira, justo na ocasião em que a parentada deveria confraternizar. Teve medo de morrer de mal-estar, pressão esmagada na sola dos pés, para depois vir chuva, vento, frio e cinza e confirmar que tudo ia bem, igual, como em todas as semanas anteriores até essa última de 2014. Não tinha motivo para cumprir horas a mais no expediente em janeiro se podia fazer a carga horária normal no trabalho durante aquele recesso, em que parou quem quis. Salas e corredores da instituição desertos, pois, pelo jeito, os colegas pensaram ao contrário de Guilherme.

Sozinho no escritório, Guilherme colocou muito serviço em dia e ainda leu jornais, arrumou armários, regou todas as plantas da repartição esquecidas pelos donos e respondeu e-mails. Ele, que até então, vinte e oito de dezembro, fim de tarde, não se tinha deixado contaminar pelo clima apocalíptico que toma conta das pessoas nessa época, sucumbiu. Quem mandou abrir a caixa de e-mails institucional nesses dias, criatura? Guilherme se perguntava e já se respondia: procurando sarna para se coçar, abobado. No fundo era bem isso que querias, farelos de atenção desse povo que sempre abana, diz bom dia-boa-tarde e vezenquando convida para uma cerveja do bar do Lulu, e não passa disso. Será que a Lisi da administração também lembrou de me desejar boas festas? Não, animal, ela não lembra de ti nem quando enguiça a bombona da água mineral, não seria agora que. Ou seria? 

Sessenta e oito e-mails não lidos, a maioria com a palavra “feliz” em caixa alta no título. Entre eles, um de Lisiane Fonseca Rocha. Opa, opa, o estômago quente e pulsante, um clique e pronto. Mensagem animada, cheia de sinos, velas e estrelas, trenó e renas, sinceros votos de blá, blá, blá para toda a lista de funcionários. Não foi dessa vez, Guilherme. E já que estava ali, diante das dezenas de recados pedindo lida e ainda faltavam duas horas para assinatura do ponto, entrou no jogo e respondeu um por um, criativa e honestamente. 

Passou a mão na câmera fotográfica, nos canetões e nas folhas em branco da impressora e caprichou. Guilherme era péssimo de palavras, mas ótimo no desenho. Improvisou cartões personalizados com o que tinha de melhor, de bem seu, o traço. Fotografou-se agarrado às peças, anexou as imagens às mensagens e enviou, seja o que deus quiser. Sempre torceu o nariz para o ponto de exclamação, evitava o uso, achava forçado aquele risco vertical com pingo embaixo se não estivesse expressando gritos por escrito. A representação de contentamento, por exemplo, não combinava com aquele sinal, apesar da convicção da professora da 2ª série. Mas e daí? Estava mergulhado naquela atmosfera festiva e iria até o fundo no ridículo. Daria aos colegas provas irrefutáveis de sua normalidade. Vários cartões patéticos recheados de felicitações, de 2015, da palavra “repleto” e de pontos de exclamação coloridos. Deixou sua sala quinze minutos além do necessário e foi direto ao bar do Lulu. Precisava beber para esquecer a ressaca institucional que estava por vir.   





domingo, 21 de dezembro de 2014

Pequeno Conto Nada Natalino

Foi contratado para ser o Papai Noel de uma família classe média. Animaria a criançada surgindo da chaminé, gritando “ho ho ho” e distribuindo os presentes, em geral lembrancinhas, bem ao espírito mesquinho dos natais de hoje em dia. Como estava na de pior, aceitou.

Na véspera de natal, roupa vermelha, barba postiça e saco nas costas, lá se foi ele em direção a casa combinada. Mas anotou o endereço errado e desceu pela chaminé da casa ao lado. Estava  vazia. Papai Noel foi seduzido pelos eletrodomésticos que decoravam a casa. Dariam uns bons tostões na mão de um receptador que ele conhecia. Esvaziou o saco de presentes, encheu-os com o que pode carregar. Teria um natal muito mais sortido do que o último. Não esqueceu de levar um ursinho de pelúcia para a filha e um carro de controle remoto para o moleque, seu xodó. Corroído pelo remorso, mas vencido pela tentação que o consumismo da data impunha, deixou os presentes para os que estavam ausentes, acompanhados por um bilhete. “Papai Noel esteve aqui. Feliz Natal!”


As crianças da casa ao lado deixaram de acreditar em Papai Noel,  que os decepcionou, esquecendo-se deles que foram bonzinhos durante todo o ano. A menorzinha jurou que tinha visto o Bom Velhinho no telhado dos vizinhos. Papai Noel recebeu nota zero em comportamento naquele natal.





quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Pelos ares

Acabo de fazer, como freelancer, a revisão da primeira prova de Voo noturno, que sairá pela Edipro no começo de 2015. Não pude deixar de aproveitar este espaço para algumas pinceladas sobre o livro, afinal, trata-se de uma nova tradução para o português brasileiro depois de a edição da Nova Fronteira, saída no princípio dos anos 1980, estar há muito esgotada. A outra opção que havia para conhecermos a obra era ler o livro no português de Portugal, o qual na capa qualifica seu escritor, Saint-Exupéry, como “O autor de O principezinho”, título que os portugueses dão para O Pequeno Príncipe. Esta nova edição brasileira teve a tradução, a apresentação e as notas feitas por Sandra Guimarães, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Mas o fato de os leitores brasileiros ficarem tanto tempo com um acesso mais restrito a uma obra é apenas parte das razões pelas quais escrevo a seu respeito. A outra é que a obra é uma narrativa muito instigante, para dizer o mínimo, escrita por aquele que praticamente ficou conhecido como “o autor do Pequeno Príncipe”, com tudo que se acoplou de pejorativo nisso, já que o livro mais famoso de Saint-Exupéry foi associado à leitura favorita de misses e que-tais, e por isso a ele se colaram alguns adjetivos valorados não muito positivamente.
Antoine de Saint-Exupéry escreveu Voo noturno em 1931 e o publicou nesse mesmo ano, no qual a obra foi indicada ao Goncourt, ganhando outro prêmio, o Femina. O prefácio da primeira edição era assinado por André Gide, que elogiava a narrativa daquele que era conhecido como o “poeta-aviador”. Gide destacava, por exemplo, o aspecto de “superação de si mesmo, produto de um desejo obstinado” que se revela no protagonista do romance, Rivière – personagem inspirado em Didier Daurat, o chefe de exploração da aeropostal argentina em que trabalhava Saint-Exupéry, e a quem o livro é dedicado.
Voo noturno logo de início nos lança em meio a um avião que saía da Patagônia rumo a Buenos Aires levando o correio que, da capital argentina, sairia para a Europa. Fabien, seu piloto, tem a confiança e a tranquilidade de quem gosta e sabe o que faz. Sente as cidades como conquistas suas, seu maior prazer é estar nos ares, voando. E é principalmente com ele que viveremos a imensa extensão de novidade e avanço que eram os voos à noite, algo absolutamente cotidiano hoje em dia. E, sobretudo, com Fabien viveremos os muitos riscos que ainda existiam. Enquanto os outros dois pilotos que vinham de diferentes pontos da América do Sul conseguem chegar a Buenos Aires, com Fabien vivemos a aventura, a solidão e o desamparo dos dramas aéreos nessa fase inicial da aviação. 
Um drama que Saint-Exupéry narra com um distanciamento que vai no sentido contrário ao do conteúdo da matéria narrada e, de algum modo, à própria expectativa dos leitores. E, com isso, nos envolve de modo ainda mais perturbador. Não há espaço para nenhum sentimentalismo. Tudo é comedido e pouco sabemos, inclusive, sobre a vida dos personagens. Apenas poucos, pouquíssimos elementos que lhes permitem ser identificados por nós e ser dotados daquela alma que necessitamos que habite os personagens para que desejemos saber deles, acompanhar-lhes as travessias. Fabien era casado há pouco, sua mulher gostava muito dele. Ele gostava dela também, e adorava viajar. Pronto, apenas traços esparsos, nada mais.
Já Rivière, que pode ser tomado como protagonista (na medida em que o protagonismo está mais para difuso, dividindo-se entre o chefe e Fabien, além do inspetor de voos e de outros pilotos), é quem comanda tudo e precisa lidar da forma mais racional possível com o acidente. Personagem muito interessante, num mundo que, já naquela altura, não podia ser dividido em heróis e vilões, Rivière faz o que pode, mas seu dever é, acima de tudo, com o grupo, com a ação, com a causa dos voos noturnos, pelos quais batalhara e dos quais procurava mostrar a validade.
O livro de Exupéry, em pouco mais de cem páginas, nos leva a esses conflitos e nos faz conhecer, mais que tudo, a humanidade de seus seres de papel, o drama que há em cada nova conquista do ser humano rumo ao chamado progresso. Um drama que se faz ainda mais tocante, e reverbera, quando sabemos o que seu autor não podia saber à época da escritura da obra. Que ele mesmo, Saint Exupéry, desapareceria para sempre num avião, em 31 de julho de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, aos 44 anos. Que seu corpo nunca seria encontrado. Que ele viraria uma espécie de lenda da aviação, a respeito de quem muitas histórias seriam fomentadas. Que apenas em 1998 um pescador encontrou uma pulseira que era sua. E em 2004, isto é, há apenas dez anos, restos de seu avião foram identificados na região da costa da Marselha.
Saint-Exupéry amava a aviação, e amava também a literatura. Não conseguia viver sem ambas. Seus livros giravam em torno da aviação, mas dela ele nos leva, de um modo muito seu, ao centro da experiência estética que buscamos na leitura de obras literárias. A um maior conhecimento e reafirmação de nossa humanidade.







quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Grande Assalto - Conto de Del Candeias

O GRANDE ASSALTO




            Lúcio acordou, aprontou-se, tomou seu café e lá se foi. Da rua Augusto Carlos Bauman, em Itaquera, caminhou até a Sabbado d’Angelo. Lá pegou um ônibus até a Doutor Luiz Aires. Logo que nela chegou, andou até a estação Corinthians-Itaquera, onde tomou o trem que vai em direção a Palmeiras-Barra Funda. Fez uma baldeação. Foi até a República. Saiu na Paulista. Seguiu até a Augusta e desceu-a até o banco.
            De segunda a sexta seu trajeto matinal era esse e ele sempre o percorria com a mesma pontualidade. Desde criança, Lúcio fora uma pessoa pacata e, como diz a linguagem do dia a dia, certinha. No colégio tirava notas boas, não deixava de fazer nenhuma lição e nunca precisaram chamar sua atenção, exceto num dia em que ele defendeu de forma um pouco excessiva uma colega que estava sendo desrespeitada por um garoto abusado.
            Poderíamos dizer que a fase adulta nada mais foi do que um prolongamento dos anos anteriores: dedicação às tarefas cotidianas e tranquilidade diante das outras coisas da vida. Mas isso não tornara Lúcio um sujeito chato e muito menos aquele tipo de gente que atende às socilitações do mundo com indiferença. Por exemplo: esse caminho todo, da rua Augusto à rua Augusta, ele fazia conversando com as pessoas que encontrava diariamente, admirando o movimento dentro e fora do transporte público, atentando para alguns restos de natureza, como o céu, as árvores e os pássaros, que ainda conseguiam conviver com a cidade de São Paulo.
            Quando ele estava um pouco cansado da mesmice que encontrava pela frente, se afundava num livro ou embarcava nas melodias que os fones sopravam em seu ouvido. Mas nem por isso deixava de cumprimentar os companheiros de itinerário e de averiguar como andava a movimentação a sua volta. 
            Naquele dia, tudo correu normalmente. Como era habitual, depois que ele entrou no banco, saudou seus colegas, colocou ordem em algumas pendências e sentou no caixa à espera das dez horas. Quando elas chegaram, os seguranças destravaram as portas e lá vieram os clientes, cada um com sua necessidade. Muitos deles Lúcio já conhecia e nos momentos em que era possível jogava até um pouco de conversa fora. O rapaz, aliás, era excelente fisionomista. Se alguém aparecesse mais de uma vez à boca do caixa ele fatalmente guardaria os traços de seu rosto e era capaz de reconhecê-los até mesmo em outro país.
Por isso tinha certeza de que três pessoas que estavam ali na fila jamais haviam entrado naquela agência. Duas delas se conheciam. Eram dois rapazes que conversavam muito discretamente e olhavam para todos os lados. Lúcio logo os avistou e estranhou bastante aquela atitude reservada e inquiridora. Por alguns instantes, em meio às transações, tentou até desvelar alguma frase ou intenção. Mas, sem que ele pudesse colher sequer uma pista, o par se dirigiu a um outro caixa e deixou ver que a pessoa seguinte na fila, a terceira desconhecida, era uma mulher deslumbrante.     
Lúcio correu com o que estava fazendo e a tempo gritou: “próximo!” A moça se aproximou, abriu um sorriso e pediu que ele realizasse alguns pagamentos para ela. O rapaz sorriu de volta e atendeu prontamente. Contudo não com a mesma simpatia e a mesma extroversão que sempre esbanjava. Ele tinha um grave e antigo problema: quando alguém o atraía - o que, na verdade, era bem raro -, sentia-se profundamente tocado e a timidez acompanhada de um forte temor praticamente o paralisava.
Essa falha vinha desde os tempos de adolescente. Bastava perceber uma sutil admiração e nosso amigo empalidecia, perdia as forças e a capacidade de raciocinar. Foram muitas as oportunidades que ele perdeu reagindo assim à atração. Por isso é que teve pouquíssimos relacionamentos. E por isso é que não fez nada mais para atrair a atenção da moça nem notou que os dois homens suspeitos dissertavam diante de uma porta muito estranha que havia no banco. Ela dava acesso a um estacionamento de fundos e permitia que as pessoas entrassem sem passar por um detector de metais. É claro que funcionários e clientes já haviam comentado sobre a insegurança daquela porta, mas, por descaso da diretoria e por nunca ter havido um roubo, nenhuma medida fora tomada.  
Alguns dias se passaram e a tal moça voltou. Lúcio, porém, não teve a sorte de atendê-la. Um tempo depois ela reapareceu no mesmo horário. Provavelmente se mudara ou começara a trabalhar na região, portanto, reapareceria diversas vezes e haveria muitas chances para iniciar uma conversa, uma aproximação…
Numa bela tarde de quarta-feira, um sujeito muito estranho entrou no banco pela famigerada porta do estacionamento. Logo que a cruzou, passou os olhos por ela e pela parede, como se estivesse em busca de alguma coisa. Aproximou-se de uma funcionária que controlava a fila e perguntou se não havia realmente nenhum controle para aquela entrada. Recebida a resposta, indagou ainda se a falta de controle era temporária. Quando foi comunicado que não, a entrada sempre estivera livre e ficaria assim por tempo indeterminado, o homem teve um sobressalto e, com os olhos voltados para o chão, parecia maquinar algo.       
Tudo isso passou desapercebido para Lúcio, pois aquela quarta era um dia trinta e em dias trinta o banco ficava muito movimentado. O que ele não deixou de perceber foi a chegada de sua paixão platônica poucos dias depois. Quando ela apareceu, a agência estava quase vazia. Ela se aproximou dos caixas que estavam livres e escolheu justamente o de Lúcio. Deu boa tarde, pediu para ele pagar umas contas e depositar um cheque. Nosso herói criou coragem e perguntou:
- Você trabalha aqui perto?
A moça abriu um lindo sorriso e respondeu:
- Trabalho sim. Sabe a Galeria Ouro Fino?
- Sei, claro.
- Trabalho numa loja de sapatos que fica no térreo.
- Legal! Pertinho mesmo…
- Você perguntou isso, por que agora eu venho direto aqui, né?
- Isso mesmo. – Lúcio respondeu, tentando esconder a timidez. – Nunca tinha te visto e agora você vem sempre no banco… Achei que você tinha começado a trabalhar por aqui ou que tinha se mudado para o bairro.
- Me mudado para o bairro? Quem me dera…
- Aqui estão seus comprovantes, Eugênia. – ele interrompeu, entregando os papéis.
- Obrigada. E você, como chama?
- Lúcio.
- Lúcio. Prazer.
- O prazer é todo meu.
A partir daí, sempre que podiam, os dois se falavam. Comentavam do trânsito, do movimento do banco, do calor, do frio, da chuva, do vento, do ar. Num dia desses, quando Eugênia estava se despedindo, Lúcio soltou sem querer:
- Até mais, Helena com nome de Eugênia.
Eugênia, que já estava voltando as costas para o caixa, interrompeu o movimento e perguntou:
- Como assim?
- É uma longa história… – disse o caixa, arrependido por ter feito aquele comentário. – Minha avó gostava muito de um livro: Helena, do Machado de Assis. Eu morava com ela e ela sempre o lia para mim. Então ele virou meu livro favorito. Por coincidência, há nele uma personagem que se chama Eugênia, mas você não me lembra ela. Você me lembra a personagem principal.
- Interessante… Depois quero que você me conte mais a respeito dessa Helena.
- Claro! De repente a gente marca um almoço ou… um jantar. – ele arriscou.
- É uma boa. Até mais.
“É uma boa”, repetia Lúcio incessantemente, enquanto atendia os clientes naquela tarde. Afinal essa era uma resposta bastante animadora. Tudo bem: os dois não tinham combinado efetivamente nada, mas o “é uma boa” abria portas! E a sugestão do almoço/jantar? De onde ele tinha tirado coragem para ela? Orgulhoso de si mesmo, Lúcio ia digitando números, contando dinheiro, amassando papéis. Seu corpo cumpria as tarefas perfeitamente, mas sua cabeça só tinha espaço para duas mulheres: Eugênia e Helena.   
A partir daí, os dois começaram a se tratar por conhecidos. Mesmo quando Eugênia era atendida por outro caixa, davam um jeito de se saudar e às vezes até de trocar umas palavras. Muito estrategicamente, Lúcio passou a chamar sua amada de Helena. Desse modo ele reacendia a conversa que tiveram, reavivando as possibilidades de um encontro e de uma declaração de amor que haviam ficado no ar. Tudo isso não passou despercebido pelos colegas de nosso amigo, que não só o incentivavam, mas também lhe avisavam imediatamente todas as vezes em que a moça colocava os pés na agência.
Nesse ínterim, a porta dos fundos continuou do mesmo jeito: livre para quem quisesse entrar armado. Livre para quem quisesse elaborar um plano. Digo “plano”, porque entrar num banco com um grupo de pessoas para assaltá-lo é fácil. Difícil é sair de lá com dinheiro e com vida. E mais difícil ainda é manter-se escondido e gastar o dinheiro do roubo com tranquilidade. Talvez por isso é que ninguém até aquele dia tenha dado muita atenção para aquela passagem livre. Afinal, clientes suspeitos e atitudes estranhas não faltavam. Em todos os bancos elas não faltam. Seja por iminência ou simples paranoia…
E eis que o momento esperado chegou. Sabemos com precisão que foi em seis de setembro, porque o mês era certamente esse e Lúcio recebia sempre no dia cinco: marcara o jantar para o dia seguinte. A combinação não foi tão complicada quanto prometia ser. Era aquele tal de “Helena” para cá, “Helena” para lá, “você precisa me contar direito sobre essa Helena”, “é só a gente marcar nosso jantar”… e um dia Eugênia perguntou “quando?” A resposta veio rapidamente, pois era aguardada há muito tempo: “que tal quinta-feira que vem?”
Então, na quinta-feira, em vez de sair do banco e ir para o ponto de ônibus, Lúcio sentou-se num café da rua Augusta, abriu o volume de Helena que tinha pertencido a sua avó e começou a estudá-lo para não fazer feio no jantar. Eugênia apareceria ali assim que acabasse seu expediente. Às dezenove horas. Mas nosso amigo não tinha pressa nenhuma. A situação em que se encontrava era praticamente um milagre. Ao se deliciar com as páginas de Machado de Assis e com o sereno amargor do café que lhe aquecia a alma, retomava seus passos desastrosos no campo amoroso e concluía, vezes seguidas, que era a primeira vez que tinha tomado uma atitude tão decisiva. A mulher dos seus sonhos que, para ele, poderia se esvaecer a qualquer momento, chegaria em breve, atendendo a um convite cunhado por sua própria ourivesaria.
O doce barulho das chaves. A porta batendo. Os saltos sonoros de Eugênia ecoando na Augusta. Checou a bolsa e fechou-a. Conferiu a maquiagem. Ajeitou o vestido. Desentranhou a calcinha que apertava suas carnes. Desceu a rua em direção a Lúcio, que não disfarçou seu assombro, levantou-se, beijou uma de suas mãos, elogiou-a, guardou suas coisas, acompanhou-a como se estivesse recepcionando uma fada e acenou para o primeiro táxi que passou por ali. E assim foi o prólogo do tão esperado encontro.
O restaurante era modesto, bastante intimista e servia comida tradicional. Naturalmente, os dois escolheram uma mesa no canto e sentaram-se um diante do outro, ansiosos pela chegada de um futuro que quanto mais se tornava óbvio mais poderia surpreender. Escolheram dois pratos simples e iam bebendo o vinho. O vermelho que tingia seus dentes aumentava-lhes a sensação de cumplicidade. Fingiam que conversavam, mas na verdade amontoavam uma porção de frases desarranjadas, pois a mente de cada um dos dois não conseguia mais se concentrar no presente; era toda futuro.
No meio desse jogo displicente, Eugênia finalmente entrou no assunto:
- Agora me conte sobre Helena.
Lúcio sorriu.
- É sério mesmo que você quer saber?
- Ué! Mas é claro. Nós não viemos aqui para isso? – respondeu a moça, assertiva.
- Sim! É verdade. Viemos aqui para isso e eu não quero decepcioná-la. – falou o caixa, rindo-se por afirmar que o motivo do encontro tinha sido esse. – Mas, para isso, vou precisar contar um pouco da história. Tudo bem?
- Tudo. No momento eu não tenho pressa nenhuma. E você?
Essa frase provocou um surto de felicidade na alma de Lúcio. Era como se Eugênia dissesse que seu tempo não era mais dela, mas sim dos dois. Ele abriu um sorriso largo e brilhante. E, cheio de entusiasmo, prosseguiu:
- Bom… Então, vamos lá. – tomou fôlego e começou. – A história se passa no século retrasado, no Rio de Janeiro. Um conselheiro, bastante rico, era viúvo e morava numa bela casa, com sua irmã e seu único filho. Por uma fatalidade, esse conselheiro morreu. Quando o testamento foi revelado, descobriu-se que o falecido não só tinha uma filha, sobre a qual não se sabia, como também exigia que ela fosse reconhecida e vivesse na sua casa com a irmã e o filho do conselheiro, de modo a ser inserida no seio da família como um integrante legítimo. Essa condição provocou curiosidade no rapaz e insatisfação em sua tia. Mal sabiam eles que tipo de mulher viveria naquela casa… Quer mais vinho?
Eugênia estava interessada na história. Tinha, inclusive, se transportado para o Rio de Janeiro do Século XIX e já se encontrava com a família do conselheiro, no antigo casarão senhorial. Por isso, demorou alguns segundos para assimilar a pergunta. Mas logo que a compreendeu, aceitou a sugestão e ofereceu sua taça. Lúcio serviu a ela, a si mesmo e prosseguiu com a narrativa:
- Como eu ia dizendo: os dois não tinham ideia de que tipo de mulher moraria com eles e que teriam de acolher como se fizesse parte da família. Não sabiam praticamente nada a seu respeito e não conheciam suas origens. Inclusive, quem entrou em contato com ela foi um amigo do conselheiro, que também organizou a chegada da moça. Ou seja, tudo seria uma tremenda surpresa. Isso deixou o filho do conselheiro muito ansioso. Como não havia mais ninguém em sua família, o aparecimento repentino de uma irmã era muito bem-vindo e ele criava uma série de expectativas em relação à futura companheira. Quando ela chegou, o rapaz estava jantando na casa de sua quase prometida esposa. Ao retornar, viu as janelas abertas, descobriu que ali estava Helena, sua irmã, e sentiu pela primeira vez o estranhamento que aquela situação criava… Mas só a viu realmente, no dia seguinte, na hora do almoço.
- E como ela era? – perguntou Eugênia, intrigada.
- Ah, disso eu me lembro muito bem… Eu decorei o trecho que descreve Helena. – E continuou, usando palavras que não eram suas, mas que ele sabia de coração. – Era uma moça de dezesseis a dezessete anos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima da mediana, talhe elegante e atitudes modestas. A face, de um moreno-pêssego, tinha a mesma imperceptível penugem da fruta de que tirava a cor; naquela ocasião tingiam-na uns longes cor-de-rosa, a princípio mais rubros, natural efeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traçara a arte religiosa. Se os cabelos castanhos, como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças lhe caíssem espalhadamente sobre os ombros, e se os próprios olhos alçassem as pupilas ao céu, disséreis um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto.
Essa citação surtiu um efeito tremendo em Eugênia, pois tudo nela batia com as suas feições. “Delgada sem magreza”, “estatura um pouco acima da mediana”, “talhe elegante e atitudes modestas”, “face de um moreno-pêssego”, “linhas puras e severas no rosto”, “olhos e cabelos castanhos”, “correção e harmonia de feições”… Com uma diferença: para assimilar bem o que Lúcio dizia e dar asas à imaginação, a moça concentrou-se em cada palavra, alçando suas pupilas ao céu, e, como, além disso, seus cabelos castanhos espalhavam-se sobre os ombros, podia-se dizer que ela era de fato “um daqueles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor”. Ao tomar ciência de tudo isso, ela não pôde fazer nada a não ser ruborizar, repetindo fielmente a cena do almoço tão bem narrada por Machado de Assis. Naquele momento, tudo fez sentido, o livro dominou a realidade, e Eugênia se transformou em Helena.
Para diminuir a gravidade da situação, que poderia ser percebida por qualquer pessoa que visse Eugênia tão assombradamente lisonjeada, nosso amigo preencheu as duas taças e continuou a história, como se nada tivesse acontecido, porém sem esconder um ar de triunfo:
- Além da beleza, Helena começou a surpreender todos com uma infinidade de qualidades. Era doce e amável. Conversava e lidava como ninguém com costura, livros, piano, canto e tarefas domésticas. Falava bem francês, conhecia um pouco de inglês e italiano e ainda desenhava primorosamente. Para a sociedade machista da época, ela não só tinha todos os dotes necessários a uma mulher, mas também os dos homens. Com relação a isso, tem um episódio no livro que me marcou muito logo no meu primeiro contato que tive com ele, quando eu era criancinha. Num determinado momento, Helena convence o filho do conselheiro a lhe ensinar a cavalgar. Ele aceita e os dois se encontram numa manhã diante de seus cavalos. Ela logo diz que está pronta para o passeio. O rapaz a repreende, explicando que ela não poderia montar logo no primeiro dia, que antes teria de perder medo. Diante disso, ela fala: “não sei o que é medo”. Em seguida, complementa o que afirmou com uma teoria segundo a qual o medo é um preconceito que se desfaz com a reflexão. Depois, conta que, quando era criança, não tinha coragem para entrar sequer numa sala escura, porque acreditava em espíritos, mas que, perguntando-se se era possível uma pessoa morta voltar à terra, chegou à conclusão de que a própria pergunta comprovava a falta de fundamento dessa hipótese. Para terminar, ela ainda diz que seria capaz até de passear no cemitério à noite e que só não faz isso para não atormentar os mortos em seu descanso eterno…
- Essa Helena é mesmo incrível!
- E bota incrível nisso… - comentou Lúcio, satisfeito por convencer Eugênia. – Voltando ao episódio. Helena sobe de repente em seu cavalo, o filho do conselheiro se admira e, então, ela sai trotando, demonstrando que, na verdade, brincava com o rapaz: sabia cavalgar muito bem. Com isso, os dois saem galopando pela floresta. Adiante encontram um escravo que caminha pela estrada. O filho do conselheiro observa que ele está numa má situação, porque demorará muito mais tempo para chegar ao seu destino do que os dois, que estão a cavalo. A moça, porém, desenvolve um pouco o raciocínio e conclui que se o rapaz é escravo, aquele caminhar demorado talvez fosse uma pausa num dia cheio de obrigações, ou seja, um breve momento de liberdade. E ainda comenta que o essencial não é fazer muita coisa no menor prazo, mas fazer muita coisa aprazível ou útil. Seu irmão se surpreende com aquelas ideias e diz que ela deveria ter nascido homem e advogado.            
Eugênia interrompeu:
- Essa é boa.
- É. Helena, além de bonita, prendada e inteligente, tinha muita autonomia e independência. Por isso é que eu a admiro e por isso ela provoca um encantamento tão forte nas outras personagens do livro. Principalmente se a gente pensar em como as mulheres eram obrigadas a serem submissas na época.
- E o que acontece depois no livro?
- Ah, isso eu não vou contar. Não quero estragar uma história que vai ficar muito melhor se você a ler com seus próprios olhos. Para aumentar sua curiosidade, só posso dizer que nesse passeio a cavalo aparece uma casa misteriosa, que o filho do conselheiro se apaixona por Helena e que o final é triste e surpreendente.
- Maldito! Você me deixou mais curiosa! Vou ter que ler esse livro! – gritou Eugênia, enquanto ameaçava o rapaz com um guardanapo.
- Essa é a ideia! – respondeu ele, enquanto lhe entregava o volume que carregava consigo.
Até aquele momento era como se os dois fossem o próprio filho do conselheiro e a própria Helena. Como se estivessem cavalgando, desbravando a floresta da Tijuca, rodeados por árvores frondosas, cantos de pássaros, sussurros de rios. De súbito a floresta queimou, os rios secaram e só restaram eles dois no meio do nada e do silêncio. Com suas impressões sobre Helena, Lúcio tinha deixado muito claro quanto gostava de Eugênia e ela se sentia bastante lisonjeada com isso. No entanto, depois que o rapaz acabou de dizer aquelas coisas sobre o livro, já não sabia mais como encaminhar a conversa. Era como se tudo tivesse sido dito. A sensação da moça não era muito diferente. Conhecendo as intenções de Lúcio e percebendo que tinham sido declaradas de uma maneira indireta, não sabia muito o que fazer. Como ouvira as impressões e não resistira nenhum momento às comparações entre ela e a personagem (pelo contrário: mostrara-se muito satisfeita), era como se tivesse acatado as intenções de seu prentendente e, depois disso, nada havia a dizer. 
- Mão na cabeça! Todo mundo de pé! – assim gritou o primeiro assaltante que entrou no restaurante. – Mão na cabeça! Não quero ver ninguém fazendo gracinha ou pagando de herói, senão leva chumbo! Agora, carteira, bolsa, celular, tudo em cima da mesa! Depois entra embaixo e só sai depois que a gente for embora, entendido? Aliás, conta até dez. A gente sai, vocês contam até dez e daí sim pode sair de baixo da mesa.
Atrás dele vinham mais quatro. Todos armados e munidos de sacolas. Cada um recheou as suas e em menos de cinco minutos foram embora. Depois dos mencionados dez segundos, pouco a pouco, a clientela do restaurante foi se recompondo como podia. Uns assustados, outros irritados e ainda outros que não conseguiam realizar bem o que tinha acontecido.

Apenas um casal não se recompôs: Lúcio e Eugênia ou Estácio e Helena. Logo no primeiro momento que se apertaram debaixo da mesa, impelido pela adrenalina da situação duplamente tensa, Lúcio não resistiu e beijou a moça como se estivessem rolando num precipício. Foi um beijo aflito, mas decidido e demorado. O resto da noite foi certamente menos cansativo para eles do que para os outros clientes, mesmo sendo obrigados a passar horas na delegacia para fazerem um BO. Desde aquele dia os dois nunca se separaram e, quando Lúcio se lembra do jantar, sempre olha para sua namorada, atira-lhe um beijo repentino e pensa consigo mesmo: “grande assalto!”





terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Eu, padre

Aconteceu no interior do Brasil. Como tantas outras coisas que acontecem por este país imenso. Em 2009, um pequeno escândalo atingiu a Igreja Católica, provocando a desaprovação de alguns, a compaixão de outros. O caso foi abafado pelas altas autoridades eclesiásticas, que disseram que nada aconteceu. Mas aconteceu. Eu sei. Porque aconteceu comigo. Meu nome é Irismar Lopes de Souza, tenho 43 anos e sou padre. Eu poderia lhes contar onde nasci, quem são meus pais e várias outras coisas a meu respeito, mas isso fica para depois. Primeiro as coisas que vêm primeiro. Entrei mais tarde que a maioria para o seminário. Já tinha 19 anos quando permiti que o meu desejo de servir a Deus viesse à tona. Deixei a casa de minha avó, onde cresci, e segui para a capital, instalando-me numa pensão indicada pelo pároco da minha cidade. E dei início à longa caminhada que me trouxe até aqui. Conversas, entrevistas, encontros, retiros e, finalmente, lá estava eu, seminarista.
Mas este caso não é sobre o maçante caminho que trilhei até a ordenação. O que merece registro aconteceu bem depois daqueles anos de pesados estudos teológicos. Anos, por sinal, em que as dificuldades pessoais quase me fizeram desistir do meu propósito.

Santo Antônio dos Currais é uma terra de gente trabalhadeira. Desde cedo, os pais ensinam às crianças serviços de todo o tipo. Não tem casa em que um menino ou menina saia da mesa sem levar o prato até a pia e lavá-lo. Varrer o chão, fazer pequenas compras na quitanda ou no açougue, arrumar a cama. Hábitos. "É de pequeno que se torce o pepino", repetem as mães e avós orgulhosas. Quando cheguei àquela paróquia, oito anos atrás, vinha de outras, menores e mais pacatas, e achei que havia encontrado o paraíso. Nem bem tinha me instalado e as senhoras da cidade mandaram entregar macarronada, carne assada e uma ambrosia de fazer salivar. E continuou assim até que me bateu à porta o Amâncio, indicado pela viúva de um fazendeiro da região. O rapaz franzino, tímido, pelo qual eu não daria um tostão, acabou por se mostrar de grande ajuda: limpava, cozinhava, arrumava e ainda era devoto de Nossa Senhora, o que me encantou acima de tudo.
— Por aqui é assim, padre Irismar, todo o mundo é prendado. Não tem vagabundo nesta terra — diziam os moradores.
Verdade. Vagabundo não tinha mesmo. O que tinha era gente com segredos. E que segredos! Durante um tempo, fiquei na dúvida se iria ou não revelar a vocês o que ouvi em confissão. "Pecado mortal!", dirão alguns. Não, não é, eu lhes garanto. Quando chegarem ao fim desta história comigo, verão que de um ponto de vista filosófico-conceitual nada do que lhes conto pode ser considerado pecado.
Fato é que, até uns seis meses depois da minha chegada à cidade, o tédio me consumia e nada merecia registro. Casamentos, batizados, enterros... Batizados, enterros, casamentos. Mas uma tarde, pouco antes de a igreja abrir as portas para a missa das 18h30, D. Beatriz, a senhora que me indicara o Amâncio, entrou afogueada na sacristia.
— Sua bênção, padre.
— Deus abençoe. O que eu posso fazer pela senhora?
— Eu quero me confessar.
O rosto preocupado de D. Beatriz contava que a coisa era grave. E era.
— Perdão, padre, porque eu pequei.
— O que houve com a senhora?
— Padre, o Amâncio é meu filho — disse, de supetão.
Com apreensão, comecei a pensar que aquela cidade talvez não fosse o Éden que eu tinha imaginado.
— Fale mais, D. Beatriz, conte tudo.
— Eu era menina, inocente, e me deixei seduzir pelo advogado de meu pai, um homem mais velho e casado. Ele me dizia coisas lindas, me mandava poemas e me chamava de "minha flor".
Bem, a flor foi colhida aos 15 anos e Amâncio nasceu de sete meses, miúdo e sem saúde. Foi logo entregue, em sigilo, a uma família de pequenos agricultores que nunca soube de quem era a criança. O advogado foi expulso da cidade e tudo ficou entre quatro paredes. Além dos pais e das duas avós da moça, só o médico sabia do que se passara. Beatriz foi afastada para uma fazenda em outro município e todos na cidade acreditaram que estivesse num colégio suíço. Desses protagonistas, só Beatriz, o filho e o médico ainda estavam vivos. E o advogado, pai da criança.
— A senhora já se confessou sobre isso antes?
— Não, claro que não! Nunca tive coragem padre. Um grande pecado, eu sei, mas morro de vergonha de falar disso, mesmo agora!
— E por que agora?
A indecisão do outro lado dos furos da tela de madeira que me separava de D. Beatrizme fez imaginar o pior. E era.
— O pa... O pai do rapaz voltou!
— E o que ele quer?
— Conhecer o filho! Disse que está velho, que não teve outros filhos e que precisa pelo menos ver o rapaz, antes de morrer! Ai, padre, o que é que eu faço?
— Ele sabe quem é o filho?
— Claro que não! Eu mesma só descobri quando minha mãe me contou, no leito de morte. O problema é que ele quer tornar a história pública e nem meu marido nem meus outros filhos sabem de nada! O senhor já imaginou o que vai acontecer?
Não, eu não tinha a menor ideia. Mas estava começando a antecipar o caos, a me dar conta do perigo de certas revelações fora de hora.
— Reze o Ato de Contrição enquanto penso na penitência e numa solução.
— Meu Jesus, estou muito arrependida de ter pecado, pois ofendi a Vós, tão bom. Mereci ser castigada...
Castigo, punição. Era isso! O que D. Beatriz queria, na verdade, era ser castigada por seus pecados para se sentir aliviada! Nada disso, nada disso! Penitência, sim. Mas a verdade junto!
— Como penitência, reze três rosários, ainda hoje. Em seguida, a senhora vai chamar o Amâncio e lhe contar a verdade.
— Não! Eu não posso fazer isso! Eu não posso!
— A senhora está se negando a cumprir a penitência, D. Beatriz?
— Não, padre, não é isso...
— Escute! A senhora precisa contar para o Amâncio antes que o pai o encontre e faça isso pela senhora. O homem é advogado, tem posses. Pode fazer um escândalo desnecessário. Além do mais, quem disse que, depois de saber, o Amâncio vai aceitar o pai?
Enfim convencida, D. Beatriz saiu do confessionário em lágrimas. Passou por Amâncio quando já ia deixando a igreja, falou alguma coisa com ele em voz baixa e os dois caminharam rumo à sacristia.
Eu não via a hora que as confissões terminassem para ir ter com Amâncio. Mas aquele dia foi infernal. Parecia que todos tinham combinado de me contar seus piores segredos na mesma hora. Dois adúlteros, um ladrão e uma sadomasoquista, que insistiu em me dar os detalhes mais bizarros da prática, me deixaram com saudade dos meninos que mentiam para a mãe e das meninas que passavam trote telefônico nas freiras do Sagrado Coração.
Mas o pior ainda estava por vir.
Tão logo cheguei à sacristia, vi no rosto de Amâncio que era outro rapaz. Transtornado, mordia o lábio superior e apertava as mãos com força sobre o cálice que limpava com um pano branco.
— Lembrou de lavar? — perguntei, puxando conversa.
— Lavar...?
— O cálice, Amâncio. Eu não gosto que passe só o pano, você sabe. Mesmo sendo somente eu a beber, com o tempo vai ficando com cheiro de saliva.
Sem responder, ele pegou de volta o cálice que tinha colocado sobre uma prateleira e saiu por uma porta lateral em direção à área, com cara de poucos amigos. Fui atrás dele.
— Algum problema?
Ele me olhou longamente e pensei que não responderia. Mas, ao contrário, foi direto ao ponto:
— O senhor sabe, não?
— Sei o quê?
— Que D. Beatriz é... é... minha mãe de verdade.
Calei-me. Segredo de confissão é coisa sagrada. E se me concederem o tempo desta narrativa, verão que tenho meus motivos para esta posição ambígua em relação a dogma tão severo. Até lá, pensem o que quiserem.
Não nos falamos mais naquela noite e eu varei a madrugada pensando em como as coisas se dariam dali em diante. Dormi pouco. Acordei com batidas fortes à porta. Era Amâncio. Fora de si, e com um brilho malévolo nos olhos, repetia:
— Eu quero me confessar, eu quero me confessar, padre! Agora!
Ele tinha bebido. Pelo visto, muito. Mas o que me deixou mais em choque foi o que me disse nem bem se ajoelhou no confessionário:
— Eu vou matar o meu pai. Eu vou sair daqui e matar aquele monstro! Eu combinei com a minha mãe, eu jurei pra ela que nós dois vamos ficar livres desse homem para sempre!
— Calma, calma! O que é isso! Nem repita uma coisa dessas! Um filho matar o pai! Que pecado! E foi D. Beatriz quem lhe pediu isso?  Em nome de Deus, como é que pode!
— Que Deus? Que Deus? — ele berrava. — Onde é que Deus estava quando deixou uma menina de 15 anos ser emprenhada por um homem que podia ser pai dela? Onde é que ele estava esse quando deixou a minha avó me separar da minha mãe? Por que é que esse seu Deus aí me deixou ser criado por uma família pobre, enquanto a minha família de verdade vivia na riqueza? Coitadinha da minha mãe, nem sabia quem eu era até a minha avó morrer! Que Deus é esse, hein?
Esperei que chorasse bastante e se acalmasse, antes de falar com ele.
— Você está me deixando de pés e mãos atados de propósito, não é Amâncio?  Porque você sabe que eu não posso revelar um segredo de confissão.
Soltando uma risada, ele encostou bem o rosto na tela de madeira e disse, com a vozbaixa:
— Poder até que pode, não é Irismar? Porque nós dois sabemos que o sigilo de confissão não vale nada pra você, não é mesmo?
Ele havia mesmo dito o que eu entendi que dissera? Não, não! Meus ouvidos estavam me confundindo. A falta de sono daquela noite estava mexendo com os meus sentidos.
— Não entendi, Amâncio.
— Entendeu, sim, Irismar! Ah, entendeu, sim! A escolha é sua. Ou você mantém a sua boca fechada, ou eu abro a minha! Eu tenho umas coisas em meu poder, umas coisas que eu encontrei no lixo do seu quarto, que eu estou guardando para uma emergência, sabia?
E sem que eu pudesse contê-lo, saiu correndo e gritando pela nave lateral da igreja, ainda vazia àquela hora da manhã: “E a verdade vos libertará, e a verdade vos libertará”.
Não lembro quanto tempo levei para me recuperar. Os primeiros fiéis já tinham chegado para a missa da 6h30, quando um dos coroinhas me viu sair, cambaleando, do confessionário. Estômago embrulhando, cabeça doendo muito, eu quase não conseguia distinguir as pessoas, porque a vista estava turva. Amparado pelo menino, cheguei à sacristia, onde pedi a uma das senhoras que avisasse que não haveria missa. Eu não podia rezar. Não depois da confissão de Amâncio.
Não deixei que ninguém chamasse o médico. Eu nunca deixava que chamassem o médico. Quando necessário, eu procurava a minha própria medicina nos livros, na internet, ou buscava uma consulta num lugar bem distante das paróquias em que morava. Fazia isso desde a época do seminário, mesmo sendo mais arriscado. Pedi a todos que me deixassem ficar sozinho e, depois que todos saíram, sentei-me com a cabeça entre as mãos, imaginando que dentro de pouco tempo um homem seria assassinado. E que eu não ia fazer nada mesmo podendo, mesmo podendo!
De repente, todo o medo desapareceu. Eu sabia o que tinha que fazer, o que podia fazer. E sabia que se eu não tomasse uma atitude, uma atitude só, nunca mais teria paz. Procurei o nome de D. Beatriz na listagem da sacristia. Ela atendeu no segundo toque.
— Em que hotel o pai de seu filho está hospedado?
— Eu não vou lhe dizer isso, padre.
— Se a senhora não me disser eu vou pedir à polícia que procure o Amâncio pela cidade inteira.
— O senhor não pode! O que ele lhe disse foi em segredo de confissão!
— Eu não posso contar o que eu sei à polícia, mas posso pedir que procurem por ele, sob a alegação de que ele está sumido e transtornado! Isso eu posso fazer, D. Beatriz! E sem precisar entrar em detalhes!
— O senhor não vai contar nada, vai? — ela perguntou, em pânico.
— Eu, não. Mas pode ser que o Amâncio acabe falando. O rapaz é emocionalmente instável. A senhora acha que ele vai guardar para si essa história do pai?
Engraçado como os padres nunca são barrados. No hotel indicado por D. Beatriz, o atendente da recepção me informou com um sorriso, e sem titubear, onde encontrar quem eu estava procurando. “Um velho amigo”, disse eu, tomando, em seguida o elevador. Já na porta do apartamento daquele homem que eu nem conhecia, ouvi a voz de Amâncio, gritando: “Eu te odeio! Você não é meu pai, não tem direito de ser meu pai!”. Em seguida, um instante de silêncio, seguido de uma música em volume muito alto; e então a porta se abriu. Amâncio deu de cara comigo e eu o empurrei de volta para o interior do quarto, fechando a porta atrás de mim. Lá dentro, os olhos abertos e parados do homem idoso confirmavam sua morte. Sem dar tempo a Amâncio de se recuperar do transe em que se encontrava, apontei para ele a arma que trazia no meu próprio bolso e o matei com um tiro certeiro. Rapidamente, fui até o idoso e pressionei com força seus dedos, ainda quentes, na minha arma, pegando-a de volta. Quando o gerente do hotel entrou no apartamento, acompanhado de um segurança truculento, me encontrou no chão, ao lado do cadáver do homem velho. Eu estava com a minha arma na mão e apontava para a frente, onde estava caído o corpo sem vida de Amâncio. Segundo as palavras do segurança, “o padre estava em estado de choque”.
Também me lembro do meu depoimento, naquele dia, poucas horas depois:

“Ontem à noite, eu fui procurado por D. Beatriz na sacristia. Ela me contou que era mãe desse rapaz, do Amâncio, mas que ele não sabia disso. Coisas da adolescência que a família escondeu. De acordo com ela, o pai de Amâncio estava na cidade e queria conhecer o filho. Eu a aconselhei a falar tudo para o rapaz; e foi o que ela fez, pouco depois, na sacristia. Hoje cedo, Amâncio me procurou em meu quarto, coisa que não é comum, e parecia estar enlouquecido. Bastante transtornado, falou mal da mãe, do pai que nem conhecia e disse que daria um jeito em tudo. Logo depois, eu o ouvi sair de moto. Liguei para D. Beatriz, perguntei a ela o nome do hotel onde estava o pai de Amâncio e fui correndo para lá, temendo uma tragédia. Assim que cheguei, ouvi uma discussão dentro do apartamento e escutei o Amâncio berrando: ‘Você me chamou aqui pra me matar, pra se ver livre de mim porque eu sou seu herdeiro, não é, seu velho doente? Mas é você quem vai morrer!’. Depois, tudo ficou em silêncio por uns segundos e, de repente, uma música foi ligada bem alto. Em seguida, a porta se abriu e eu dei de cara com o Amâncio com uma arma na mão. Foi então que eu vi, dentro do apartamento, um homem velho caído no chão, aparentemente morto, e também com uma arma numa das mãos. Corri para o homem e me abaixei para ter certeza de que estava mesmo morto, mas, no momento em que me virei para falar com o Amâncio, vi que ele estava apontando a arma para mim. Eu tive certeza de que ele ia atirar, porque ele gritou: ‘Ninguém vai testemunhar contra mim, ninguém!’. Então, sem pensar, instintivamente, me joguei com rapidez para o lado, arranquei a arma da mão do morto e atirei uma vez contra o Amâncio. Aí, fechei os olhos, com muito medo, e só os abri novamente quando ouvi o segurança do hotel chamar por mim”.

Era 2009. E a Cúria foi atingida pelo escândalo de um padre que matou um homem. O acontecimento provocou a desaprovação de alguns, a compaixão de outros. O caso foi arquivado como legítima defesa e abafado pelas autoridades da Igreja. Não há mais nada com o que me preocupar.
Mas eu lhes disse que contaria mais coisas a meu respeito, não foi? Pois que seja.
Eu, Irismar Lopes de Souza, tenho 43 anos e sou nascida mulher. Vim ao mundo malnutrida e sem chorar. Acharam até que eu não vingava, de tão miúda. Nasci em casa, pelas mãos de uma parteira tão pobre quanto a minha família, numa cama dura, perto da janela, que era para a mulher ter a ajuda da luz do sol. Meu pai estava longe, trabalhando, e minha mãe ficou de cama vários dias, muito fraca. Por isso, o cartório aceitou que minha avó fizesse o meu registro. No momento em que o escrivão lhe perguntou sobre o sexo da criança, ela, velha e caduca, nem titubeou: “Masculino”.
Cresci e segui mulher até a adolescência, enfiada no serviço pesado das casas em que fazia faxina e na cama de homens que me davam um pouco de dinheiro. Aos 16 anos, ganhei de presente uma Bíblia de umas irmãs de caridade e comecei a ler, repetidamente, dia e noite, aqueles textos que eu pouco compreendia. Não importava. Eu me sentia importante lendo aquilo, e achava tudo lindo. Depois de passar os três anos seguintes pensando num futuro para mim, descobri, sem querer, o erro na minha certidão de nascimento. Achei que era obra de Deus. Daquele Deus da Bíblia que eu carregava comigo até para a cama dos homens que se fartavam da minha carne.
O cabelo, o andar, as sobrancelhas e as unhas masculinas nunca me incomodaram. Nem mesmo a falta de sexo, essa imundície da qual estou livre para sempre. De incômodo, a faixa com que aperto meus seios, há mais de 30 anos. E os períodos menstruais que me exigiram muita astúcia e mentira nos tempos de seminário, mas que hoje estão longe de olhares indiscretos.
Os dois homens que matei para ter paz foram desígnios de Deus. O seminarista Ernesto, que me pegou trocando um absorvente no banheiro. E Amâncio, que vasculhou o meu lixo no dia errado do mês. Os dois me ameaçaram com chantagens. Espíritos do mal. Mas tudo já passou. Agora estou aqui, em nova paróquia, nova cidade, neste ano da graça de 2013.  Porque é como diz o texto sagrado: “Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar”.

Foi isso o que aconteceu. Eu sei. Porque aconteceu comigo.