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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Os Deuses e os Homens

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 5

 

Já não adianta nada dizer que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino. Para os que matam em nome de Deus, Deus é o Pai poderoso que juntou antes a lenha para o auto-de-fé e agora prepara e coloca a bomba.

 

José Saramago

Escritor e prémio nobel português

(1922-2010)

 

No dia seguinte, o ar estava espesso e saturado por uma névoa esbranquiçada, enquanto flocos de neve esvoaçavam, rebeldes, rebrilhando ao sol encoberto.

Erem mandou reunir toda a gente frente à sua choça no largo onde faziam a fogueira em volta da qual se reuniam muitas noites. Usava o capote feito com a pele e a cabeça de um leão das montanhas e o fio de couro com uma pedra reluzente apanhada no rio de onde eram originários; os símbolos do poder nele investido.  Estava de mão dada com Zia, que usava o cocar de penas de corvo e pomba, assinalando o seu estatuto de oráculo. O casal e a filha Zehir, ocupavam os lugares mais influentes no clã e eram respeitados por todos, mesmo por aqueles que por vezes discordavam das suas decisões.

Ele olhou tristemente para todos os seus amigos e familiares, a maior parte deles ostentando as marcas do combate recente e levou as duas mãos ao peito, abrindo-as depois sobre a audiência, no gesto comum de saudação a todos os presentes.

— Filhos, irmãos e primos. — Começou com a voz grave que fazia todos pararem e deitar atenção. — A vida não tem sido fácil para o nosso clã. Sozinhos nestas planícies, progredimos com muitas dificuldades pedindo o favor dos deuses.

Vários entre a audiência acenaram em concordância uns para os outros.

— Perdemos entes queridos para as doenças e para os ataques, — continuou —, mas se Welnos[1] nos tem levado uns, Da Matter[2] abençoa-nos com novos rebentos assegurando sangue novo e força que serão o aconchego daqueles que conhecerem a velhice.

Alguns homens e mulheres mais jovens soltaram expressões de júbilo e grunhidos enquanto erguiam os punhos fechados em demonstração de força.

— Há, porém, uma grande sombra negra sobre nós. — Erem baixou os olhos e os braços exibindo desalento. — Os homens-macaco estão a ser uma grande provação para o nosso povo. Não só nos roubam muitas vezes a carne necessária para a nossa sobrevivência, também mataram o meu amado filho Nuri, vosso primo, sobrinho, irmão… e agora levaram-nos Fuat e Alev, além de deixarem vários de nós incapazes de trabalhar para si ou para os outros.

Havia agora vozes iradas e gritos insultuosos contra os homens-macaco.

— Não me atrevo, neste momento, — o chefe continuava com as mãos abertas numa súplica —, a pedir-vos para arriscar as vossas vidas e as dos que nos são queridos noutro ataque. Não temos condições, há demasiados feridos e penso que os deuses estão distraídos dos seus filhos.

A audiência silenciou-se em espanto com a revelação.

— Temos de fazer alguma coisa para obter os favores dos deuses. Algo que eles vejam dos céus e se lembrem de nós e do quanto precisamos do seu auxílio. — Ele apontou na direção do improvisado templo presidido pelas representações divinas. — Não chega uma simples cova no local que eles escolheram com o fogo do céu. Temos de lhes mostrar os sacrifícios que fazemos! Precisamos que aqueles que foram para junto dos deuses nos protejam a todos e não apenas aos familiares diretos, precisamos que intercedam pelo clã junto de Swol[3] e Mensis[4].

Todos apoiaram com urros e gritos de concordância.

— Por cada um dos nossos mortos, — continuou ele sobrepondo-se à ovação —, colocaremos uma grande pedra em volta da cova de oração.

Os gritos de apoio foram reduzindo à medida que começavam a interiorizar a enormidade da tarefa.

— Não era mais importante caçar para nos alimentarmos e vestirmos, agora que vêm os grandes frios, do que andar pelas colinas a arrastar pedras? — Interveio Naci, azedo, mas obtendo assentimentos de uma parte dos ouvintes.

— De que te adianta palmilhar os montes, ou correr atrás de animais mais velozes do que tu, se não tiveres a ajuda dos deuses para conseguires apanhar a presa? — Ripostou Zia apontando-lhe um dedo acusador. — Que és tu perante um leão, se não tiveres a proteção divina?

— Os deuses não foram de grande ajuda na gruta dos homens-macaco. — Resmungou a discordância. — A minha Su foi ferida com gravidade por aqueles monstros, assim como vários de nós e ainda não recuperou.

— Devíamos ter feito um grande sacrifício e aberto uma lebre para ver se os deuses estavam do nosso lado, antes de partirmos arrogantes da nossa força! — A mãe continuava a fustigar o filho enquanto o resto da audiência murmurava em concordância. — Ainda ontem estive na cova de orar e sacrifiquei uma cabrita pela recuperação tua mulher… vi que a madeira dos ídolos Swol e Mensis está a ficar podre e bichenta. — Perante as expressões de horror dos vizinhos, ela dirigiu-se-lhes: — É o sinal de que os deuses se ressentem do pouco caso que lhes fazemos. É tempo de fazer mais honrarias aos nossos protetores.

Este último argumento pareceu convencer a maioria e as manifestações e gritos de apoio regressaram. Naci abandonou a audiência, ressentido.

— Erem tem razão! — Apoiou Lemi, erguendo as mãos a pedir silêncio. — Temos de fazer alguma coisa para pedir o favor dos deuses…

— Agora, nos grandes frios que estão a chegar, precisamos de toda a ajuda possível na caça. — Avisou Civam, um dos irmãos de Zia. — Os animais são poucos e estão muito dispersos, temos de ir cada vez mais longe.

— Ou bem que estaremos a caçar, ou a arrastar pedras para o santuário! — Resmungou Fikri, um dos filhos de Lemi, cruzando os braços. — As duas coisas não podem ser! A terra pouca coisa dá nesta época e os rebos não se comem.

— Teremos de nos organizar ainda melhor. — Esclareceu Erem, conciliador. — Dividimo-nos em menos grupos, mas maiores, uns caçam e outros trabalham, depois trocamos. As tarefas como fazer roupas, fiar, curtir as peles, cultivar a terra, cuidar do gado, serão desempenhadas por quem tem mais jeito para elas, ou pelos que não podem caminhar; poderão trabalhar para todo o clã e receberão os alimentos pelo trabalho. Além disso, para nossa segurança, precisamos de mandar grupos maiores de caçadores. Mas não quero que lutem com os homens-macaco se eles aparecerem e irão aparecer, quando a caça reduzir…

— Deixamos que nos roubem então? — Asil abriu os braços em desalento.

— Não! Não podemos é arriscar a vida de mais dos nossos. — O chefe olhou o filho com tristeza. — A sobrevivência do nosso clã pode estar em risco se perdermos mais gente. Precisamos todos de começar a praticar a funda; viram como eles ficaram surpreendidos quando Eda e Ezgi os atacaram? Não contavam que as pedras pequenas voassem com tanta força, tão longe e tão certeiras, enquanto eles só sabem atirar calhaus à mão. — Ele sorriu para todos antes de continuar: — Penso que a solução estará aí; dispersarem em todas as direções, para eles não saberem quem perseguir e depois atacá-los por todos os lados com as fundas. Não largam as vossas lanças, porém, que são precisas para se defenderem.

Uma onda de otimismo pareceu correr a assistência. Todos falavam apressadamente e satisfeitos com a nova estratégia.

— Lembrei-me disto mesmo antes de adormecer… — continuou o chefe sorridente — logo depois de ter decidido que iriamos construir o santuário aos deuses. Bastou isso para começarmos a ser abençoados.

— Já falei com algumas das nossas mulheres para cortarem e polirem tiras de couro para as fundas e fazerem sacos para as pedras — avisou Zia — a partir de agora, ninguém deve sair sem a funda e o saco com seixos do rio.

— Uma excelente ideia. — Também Lemi estava entusiasmado. — Vamos organizar os grupos de trabalho e de caça, assim como começar imediatamente a treinar a funda.

— Mesmo aqueles que ficarão normalmente na aldeia, até as crianças, devem saber usar a arma! — Acrescentou Erem. — Se tivermos um ataque aqui, todos, com exceção dos doentes e crianças muito pequenas, terão de lutar e defender o clã. Eles podem ser como um bando de hienas das cavernas, mas nós seremos como os auroques; podemos não ter dentes tão fortes, mas, numa carga organizada espezinhamos tudo no nosso caminho.

    

   

[1] Deus do submundo

[2] Deusa-mãe

[3] Sol

[4] Lua

 

 

4 - Lambendo as feridas

Parte 4 – Lambendo as Feridas

A seguir:   

Parte 6 – Os Outros Homens

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

Manuel Amaro Mendonça

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domingo, 25 de dezembro de 2022

Vitória inútil

 


Vitória inútil (A outra – 2ª parte)


Resumo da primeira parte: http://www.revistasamizdat.com/2022/11/a-outra.html

Nely, aspirante a escritora e jovem amante de Galhardo, um mecenas artístico, certo dia, roída de ciúmes da mulher dele, manda matá-la, através dos bons ofícios de Albano, um ex-namorado.

*

Tenho tantas saudades, querido! Vem ver-me, vem! Sim? — convidou Nely, inquieta, numa dessas manhãs um pouco enevoadas, habituais na zona.

É talvez a quarta chamada de Nely para o amante, desde que a mulher dele foi morta. Deu-lhe os pêsames, sentidamente, logo que a comunicação social noticiou o caso, incitando-o a arranjar forças para ultrapassar tão dura provação. Depois, deixou passar quinze dias sem dizer nada. Quando ligou novamente, Galhardo desculpou-se, mas mandou entregar-lhe o cheque habitual.

Desta vez, Galhardo acedeu ao convite. Nely foi particularmente carinhosa e, no fim de uma sessão de amor bastante ardente, quis falar do futuro.

Querido, preocupo-me contigo. Deves estar tão sozinho! Tu não podes viver assim! Tens de ter uma mulher para te acarinhar, para te dar as boas-noites, para dormir agarradinha a ti, para te beijar quando acordas. E para fazer amor contigo quando quiseres. Sabes que eu sou afetuosa contigo, porque gosto muito de ti. Não quero pressionar-te, mas custa-me que estejas sozinho, tendo-me a mim, disposta a viver junto de ti.

Nely, eu também gosto de ti, mas ainda é muito cedo. Está tudo muito fresco.

Eu sei! Posso esperar mais um pouco, mas já estou à espera há tanto tempo. Quanto mais tenho de esperar?

Não sei Nely. O que sei agora é que estava muito habituado a ela. Não é fácil, de repente, mudar os hábitos todos. E creio que a minha filha não ia aceitar muito bem.

Mas algum dia vai ter de ser!

Não necessariamente. Posso continuar nesta situação por tempo indeterminado. Para dizer a verdade, não sei se quero voltar a casar tão cedo.

Não? Mas tu precisas de uma mulher, sei-o bem! Não sentes que te faz falta uma mulher meiga e compreensiva? Que melhor companheira podes arranjar que eu?

Sabes, eu era feliz antes de matarem a Matilde. E também posso dizer que sou feliz agora. Quando tenho saudades tuas, venho ter contigo; quando tens saudades minhas, ligas-me. O que há melhor que isto?

Não me sinto bem. É como se me estivesses a usar. Enquanto tinhas a tua mulher, eu entendia. Mas agora…

Por mim, não é preciso mudar o que seja. Tu tens a tua casa, eu tenho a minha. Continuo a vir cá de vez em quando, continuo a deixar o cheque.

Isso é outra coisa que me incomoda. Eu sei que é um mecenato para eu poder escrever, mas parece outra coisa. Como se me estivesses a pagar para dormir contigo. Sabes o que quero dizer.

Nada disso! Se fosse para te pagar favores sexuais, teria de gastar muito mais do que te deixo. O que te dou não é para te pagar nada; é para te ajudar a ser escritora.

Acho que estás é a ajudar-me a ser puta. E das baratas. Eu não quero ser puta, quero viver da Literatura, de cabeça erguida.

Mas não está fácil, não é? Poucos são os escritores que o conseguem.

Não, não está fácil. Mas, se queres ajudar-me a ser escritora, realmente, não me dês dinheiro; leva-me para o pé de ti. Faz-me tua mulher!

Também não é simples para mim. Sabes, a morte da minha mulher fez-me pensar. Antes, sentia-me como que preso. Tinha prazer não só por estar contigo, mas também por estar a ser infiel. Era uma espécie de atitude reflexa à prisão do casamento. Analisando-me a fundo, acho que vinha ter contigo também pelo prazer da transgressão. A relação contigo existia, digamos assim, em função dela. Agora, que aquela grilheta desapareceu, em vez de me sentir mais livre, tenho sentido menos urgência de te procurar. Achas que consegues entender como funciona a cabeça de um homem?

Nely começou por um esgar da face, antes de começar a soluçar convulsivamente. Arrastadamente, articulou:

Tu não gostas de mim!

Gosto! — afirmava Galhardo, sem ênfase.

Como é possível tratares-me assim, depois de tudo o que tenho aturado? Achas que gosto de fazer broches, a seco? Eu sei lá por onde andaste com ele!

Não sejas ordinária!

Porquê? As tuas gajas são todas muito finas? Só aqui a puta é que te faz as badalhoquices que te apetecem, é?

Olha, eu não gosto nada de cenas destas. Recompõe-te, se fazes favor.

Senão, o quê?

Senão vou-me embora. Não há razão para estares com essas coisas. Alguma vez te prometi que casava contigo? Alguma vez te obriguei a fazer alguma coisa que não quisesses?

Vai-te embora, vai! Abandona-me aqui sozinha! Deita-me fora como um trapo velho. Vai; mostra o canalha que és!

Vou, vou. Vou mesmo, Nely! Assim, não! Não apareço por cá tão cedo, está bem? Mas não te preocupes, que eu faço-te chegar o cheque. Adeus!

Vai p’ó raio que te parta, mais o cheque! Desaparece da minha vista! Desaparece! — gritava Nely, transtornada.

Galhardo saiu da casa de Nely, meio constrangido pela cena que ela fizera, meio aliviado por estar a libertar-se desta ligação. A relação já ia longa e de vez em quando sentia que não passava de “mais do mesmo”. Iria estar atento a que Nely não passasse dificuldades económicas, pelo menos durante um ano, mas precisava de leveza, de jovialidade e não de situações penosas e recriminações.


No dia seguinte, Nely, de cara fechada, ligava para Albano, de um telefone público, alterando a expressão assim que ele atendeu:

Olá! Vais bem? Sim, tudo bem! Queria falar contigo, sabes porquê? Por causa de uma dívida, estás a ver? Estás? Maroto, sabes como levar a tua avante! Já sei como pagar, mas não queria que entendesses como o simples pagamento de uma dívida, antes como um agradecimento sentido e desejado. Sabes, tenho pensado muito naqueles tempos. Acho que fui uma estúpida em não esperar mais uns minutos. Era muito nova. Se fosse agora, e depois de ver como estás bonito, tinha esperado pelo menos uma hora. Não te rias, que é verdade! Sim, podes vir quando quiseres; avisa-me só, que é para me pôr airosa. Vá, um beijo!

Joaquim Bispo

*

Este conto integra a coletânea Tempo de Vilões — resultante de concurso literário —, disponível na Amazon, em formato eBook Kindle. https://www.amazon.com.br/gp/product/B0BB52VNKX?fbclid=IwAR1GOZxMaC6Ka3Ae6NUGvQej0wTpM_UQ6ZN7bn8bpvBykJkP0XeUIn7nJr8

*

Imagem:

Henri de Toulouse-Lautrec, Mulher ruiva num sofá, 1897.

Coleção particular.

* * *





quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Cara e Coroa

 

Obesa e horrenda era ela, mas, faça-se justiça, os defeitos físicos de Diana não ofuscavam as virtudes de seu coração ou os predicados de sua alma. Tanto envilecemos nossos limites, tanto afligimo-nos com a fragilidade de nossa carne, o desagravo do futuro, a eventualidade de regredirmos a um estado trágico, circunscritos a uma cama, e terminamos por desconsiderar o valor maior de nosso eu interior e, sobretudo, as suas infindas possibilidades. Nada é final e nem o será, assim meditava Bruno Borges, sentado no escritório, ao observar Diana.

Também indagava como ela havia de costumeiramente trocar de namorado, de acompanhar os mais belos e ricos da cidade, afinal os dotes da alma não bastam aos anseios da carne, e sendo ele um curioso e aventureiro, e não sendo de então o mistério, decidiu por elucidar os mecanismos de sua atração. Passou a cortejá-la, a enfrentar as inclinações de seu desejo, a envolver-se com Diana, e nisso conheceu-se mais tolerante, mais acolhedor ao dito feio e desagradável, e descobriu nuances antes desconsideradas no relacionamento com o sexo feminino, como se existissem esferas de encanto e beleza além do tátil e visível. Estas esferas, contudo, não esclareciam a animalesca força gravitacional de Diana, o modo como controlava os amantes, o magnetismo sobrenatural, e em sua ignorância Bruno a intitulava uma jogadora, o análogo feminino do homem mulherengo. Bebê (como ele era conhecido), insatisfeito com as veleidades de seu julgamento, decidiu ir mais a fundo e, além de cortejá-la, convidou-a para um jantar.

Sim, disse ela. Sim.

Malgrado a intenção inicial de Bruno Borges não envolvesse sexo, somente o intensificar de seu curioso envolvimento, soube-o como certo ao ouvir a confirmação de Diana, e nesse momento então lamentou a iniciativa – e manteve-se firme, firme como temia não ficar caso chegassem, no encontro, às vias de fato. Desistir do jantar seria criar uma eterna e severa inimiga. Além do mais, atinava o bom, ou mau, moço, e se o sexo fosse justamente o atrativo de Diana? E se dessa forma ele descobrisse-se enfim sob o controle de outrem, entregue, como almejava desde sua adolescência, a um desejo indomável, livre de hesitações e receios?

Pois no jantar riram, divertiram-se, negociaram olhares e graças, e já leve da bebida entristeceu-se ao ver como Diana, em sua tentativa de ornamentar-se, de melhorar, mostrava-se ridícula. A vida é cruel, refletia ele, e a melhor das mulheres há de ser também a mais feia. Ela, ciente de tortuosos raciocínios no semblante de Bruno, indagou acerca de sua seriedade.

É a bebida, disse ele, rouco. Me deixa assim.

Bebeu, bebeu sim, mas a bebida deu a Bruno coragem de levar suas ideias adiante, e malgrado antes julgasse conceder um favor a Diana, agora sentia como se ela, na verdade, brindasse-o com seus dons. Hora de ir embora, disse ele, a disfarçar os negros humores da alma, e assim foram. Ao estacionar em frente à casa dela, Diana convidou-o a entrar. Exausto e fraco, aceitou. Observando-a abrir a fechadura, enfiar-se lar adentro, Bruno sentia-se absorto e distante, e mal os dois sentaram-se num ruidoso sofá de couro e Diana beijou-o. Sentiu ele os joelhos ceder e, não só os joelhos, os receios de sua consciência, entrementes indagando-se como usava a língua tão mal se tivera tantos namorados. Ela arrastou-o até a suíte, e arrastou-o mesmo, e não obstante sorrisse Bebê sentia-se amedrontado. No breu da alcova, foi arremessado no chão. Antes de esboçar raiva ou dor, afinal doeram-lhe as costas, Diana ameaçou,

Não ouse se mexer.

Ajoelhado, Bruno obedeceu. Desnudou-se então Diana, e o vulto da sombra existia em dobras e volumes. Pouco destacavam-se os seios ou o entalhe da forma feminina. Viu-a mover-se e, no colchão, sentar-se diante dele, e era como se um fiel louvasse o mais monstruoso e obscuro altar; e viu-a cair e deitar-se, abrir as coxas e exibir o radiante órgão genital. Pois nas trevas do lar este cintilava, e nele evidenciavam-se galáxias e constelações. Não só, era muito bem delineado, atraente como não o era Diana, e ao admirá-lo Bruno Borges sorriu e enfim entendeu a mulher e a vida.

Estão casados até hoje, estarão casados até amanhã.


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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Perdição

 


A lua é uma entidade que me domina. Quando morava no interior, na cidade de Alto Santo, saía ao léu, perdido na noite, procurando aventuras. Meus irmãos, todos mais velhos, queriam que eu os seguisse em jornadas épicas. Minha mãe, sem dar conta de oito, acolhia o destino e entregava nas mãos de Deus o que tivesse de ser. Meu pai, metido a vaqueiro, era o responsável por nossos genes loucos e desbravadores. Então, arriscávamos as nossas vidas na preparação de arapucas e armadilhas, com a ilusão de que conseguiríamos alimentos para a manutenção de casa. Logicamente, isso não era a verdade; o fato é que, com as proezas, sentíamos que nos tornávamos mais homens, mesmo sendo meninos. Numa dessas – creio que a última –, seguimos os rastros plantados pelas manhãs, para capturarmos preás e outros pequenos bichos. Ouvi um uivo e, no ato, questionei meus irmãos, que, por brincadeira, disseram que eu estava bobo de medo. Seguiram-se mais três ou quatro chamados, em intervalos de dez minutos; só aí acreditaram em mim. A questão é que os uivos se tornavam, com o passar do tempo, mais perceptíveis, pela proximidade. Arnaldo, o mais velho, era o nosso guia e chefe. Mandou-nos para um esconderijo na Pedra da Lua, na qual havia um espaço oco, que podia nos abrigar. Ele disse que sairia para vasculhar. Leandro, o do meio, quis porque quis ir ao seu encalço – Leandro era medroso, achava-se protegido sob as asas do irmão. Com pouco tempo, escutamos um tiro. Seguiu-se um silêncio maldito. Paulo pediu que não saíssemos e que ficássemos quietos; “nenhum pio!”, determinou. A tragédia era o decurso do tempo, que avançava, sem o retorno de nossos irmãos. Escutamos mais um uivo. Lourdes começou a chorar, sendo aparada pela mão implacável de Paulo, quase a sufocá-la. Como era o menor, saí de fininho e adentrei a mata. Tinha a firme disposição de encontrá-los. Parado, ali, seria só peso e preocupação para os demais. A lua iluminava de forma a apaziguar os meus instintos. Peguei um pedaço grande de pau e, com ele, estava certo de que, se preciso, mataria o bicho que se aproximasse. Uma coruja rasga-mortalha passou assobiando, decretando morte iminente – poderia ser a minha. Não sei que força me sucedeu para enfrentar quaisquer dores. Segui caminhando no chão de terra batida, sem ver dez palmos à frente. Em pouco tempo, estava nas cercas do terreno de Dorival, um velho ranzinza, que imprecava a danação para os seus concidadãos. Pensei que, se fosse o velho, mataria com uma cajadada. Não era nada. Continuei andando na linha das cercas. Encontrei, embaixo de uma árvore, uma de nossas armadilhas com um preá. Voltaria em outra oportunidade para levá-lo; meus irmãos urgiam o meu empenho. Já andava quilômetros sem saber sequer do meu paradeiro. Cansei. Encostei-me numa outra árvore seca. Dormi de cansaço. Amanheci com uns ruídos de um veado logo adiante, cutucando as raízes da planta. Estava perdido, já na entrada da mata fechada. O dia passou lento, sem resquício de vida humana por perto. Comi, à tarde, umas frutinhas que pareciam coco-babaçu. Tive dores no estômago e vomitei tudo. Era tempo de caju; mandei para dentro uns poucos que achei pelo caminho. Tomei água estancada nas plantas. O céu fechou rápido e tive de conviver com a incerteza de permanecer vivo. Outros sons se ouviam, como de bichos escapando de encruzilhadas. Passei a noite em claro. Resolvi não caminhar mais. A orientação de minha mãe era que, se nos perdêssemos, permanecêssemos no mesmo local, para logo sermos encontrados. A fome me tomava; era capaz de qualquer besteira, no auge dos meus onze anos. Se passasse mais uma noite aí, não resistiria. À tarde, escutei gritos vindos da área aberta. Gritava de volta e fui reconhecido. Vinham sete homens a mando do vaqueiro errante, vulgo meu pai. Não houve festança ao me encontrarem. Levei, ali mesmo, uma sova. Não deixaram que me explicasse. Não havia súplica que desse jeito. Fui amarrado para andar puxado por um cavalo em trote curto. Quando cheguei, esbaforido, levei dois tapas de minha mãe, seguidos de um abraço choroso. Meus irmãos me condenavam com os olhos. Foram punidos também. As noites, a partir do ocorrido, eram convocações para o erro. Queria fugir e descobrir as maravilhas daquela terra esquecida. Podia ser um rei indomável, um novo Lampião. Hoje, cabra velho, tenho paixão pelo que as noites prometem. Perdição.








sábado, 17 de dezembro de 2022

O que é um pulmão / em combustão - poema de Carlos Orfeu






sábado, 10 de dezembro de 2022

Sobre nomes

         


        Com certeza você já se perguntou ou indagou seus pais sobre como foi o processo de escolha do seu nome. Pode ser que você esteja contente, infeliz ou indiferente. Por trás da escolha de um, há sempre uma história, mesmo que os envolvidos nela não se deem conta disso. Com o nome, algumas vezes transferimos aos nossos descendentes uma carga de emoções e em outras, obrigações para quem não teve a oportunidade de escolhê-lo.

Como nos últimos 25 anos, acordei cedo para mais um dia de trabalho no Cartório de Registro Civil. Meu pai sempre se orgulhou por eu tê-lo sucedido. Depois do curso de Direito, me vi ainda mais impulsionado a seguir a carreira dele. Dediquei a maior parte do tempo ao meu ofício, evitando relacionamentos mais sérios. Nunca tive muita paciência com criança. Imaginar novamente minhas noites agitadas, correndo atrás de mamadeiras ou embalando um pequenino insone sempre me incomodou, já que como irmão mais velho ajudei minha mãe com os pequenos. Não tenho a paciência dela, que cuidou de oito.

Porém, certo dia, surgiu uma pessoa especial. Talvez fosse a minha última chance de experimentar uma vida a dois. Ela, um tanto mais jovem, com uma vocação muito forte para a maternidade. Não tive escolha, teríamos um filho. Mais tarde descobri que não seria apenas um, mas um casal de gêmeos.

Preparamos as listas de tarefas que teríamos pela frente. Sempre fui muito organizado e administrei bem o meu tempo. Assim, não houve muita dificuldade na tomada de providências como reformar um quarto, comprar o enxoval e adquirir a caixa de charutos, entre outras coisas, exceto por uma: a escolha do nome das crianças. Logo eu, que registrei tanta gente, tive discussões intermináveis com alguns pais teimosos e fui repreendido tantas vezes pelo Juiz da Vara de Família. Sim, eu sempre fui conservador, culpa da Lei 6.015 que define que “os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”. Uma lei subjetiva e que não impõe como soberana a vontade dos pais. Meu conservadorismo também foi influenciado pela minha própria experiência.

Antes de abrir as portas do cartório, li e reli o os livros de registros procurando uma boa ideia para oferecer à minha esposa, já que ela é adepta dos estrangeirismos, algo inaceitável para mim. Eu precisava de dois nomes, só dois! Peguei uma folha de papel e a dividi em duas colunas. A primeira para nomes masculinos. Foi muito difícil incluir os primeiros nomes na lista. Para começar, incluí os nomes dos avós: Hermógenes, Cândido, Clotilde e Rosália. Segundo algumas crenças, quando se herda o nome de alguém, se leva algumas de suas características, entre elas a longevidade. Sob esse ponto de vista, seria interessante optar pelos nomes dos avós, todos já com mais de setenta anos e muita saúde, porém não eram nomes adequados para uma quase segunda década do século XXI. Risquei-os imediatamente. 

Quase duas horas se passaram, as primeiras pessoas já faziam fila na porta de entrada, que já deveria estar aberta há cinco minutos. Na primeira gaveta de minha escrivaninha, guardei a folha de papel, sem nenhuma sugestão de nomes.

Estava sendo um longo e trabalhoso dia. Muitas crianças nasceram ultimamente. Entre os nomes escolhidos estavam dois Neimar e um Gabriel Jesus. Para as meninas, três Anitta e uma Ariana Grande. Não tive coragem de incluir nenhum deles na minha lista.

Quando o cartório quase fechava, aconselhei um pai a pensar até o dia seguinte para escolher melhor o nome de seu primogênito. A mãe coruja, inspirada pela beleza de seu filho havia escolhido Lindomarcos. E se quando o menino crescesse não fosse tão belo assim, como seriam as chacotas na escola. Lembrei-me de um outro caso, de um menino cujo pai registrou o menino como Valdisnei, uma homenagem ao mestre dos desenhos animados. Ganhou o apelido de Mickey.

Eu sabia bem o que era aguentar as gozações. Certa vez, quase cometi o mesmo descuido e por pouco um garotinho não carregou para sempre um peso. Pense que temos que ter cuidado com o prenome, sempre fomos orientados assim, a legislação foi pensada dessa forma. O complemento do nome, geralmente se dá pela combinação de sobrenomes de família, da mãe do pai. Um nome simples e adequado como Jacinto poderia se transformar numa tragédia, carregando o Dores e o Aquino da mãe e o Rego do pai.

Talvez você esteja curioso com o meu nome, não é? Ele não facilita em nada o meu trabalho. Como dizem, “casa de ferreiro, espeto de pau”. Fui batizado Armando Nascimento de Jesus. Não é resposta de charada do Almanaque Renascim não, foi uma escolha inocente que resultou num apelido: Presépio. Foi assim desde o curso primário até a faculdade. Sei que quando não estou por perto sou chamado de Doutor Presépio.

Atender a um conselho meu, sobre um nome, é como solicitar uma dieta a uma nutricionista obesa ou uma recomendação preventiva do câncer a um pneumologista fumante. Mas é a minha sina. Sempre digo: não sigam o meu exemplo. Quem sabe o meu bloqueio seja pela combinação de todos esses fatos. Agora, eu não poderia errar na escolha do nome dos meus filhos.

Cheguei em casa sem fome. Tomei um banho e fui me deitar mais cedo. O sono não vinha. Levantei-me, liguei o computador e pesquisei novamente aquela lista de nomes estranhos já registrados nos cartórios do Brasil. Depois, tomei uma dose de uísque de uma garrafa guardada há muitos anos. O líquido desceu queimando pela garganta e o efeito foi imediato, caí na cama e apaguei.

Meu filho nasceu. Sempre vieram às pencas. Este era o décimo-terceiro. Como sempre, fui registrar no Segundo Cartório de Registro Civil, pois no caso dos meus filhos eu era parte interessada. Cabia ao meu colega de ofício garantir o cumprimento da lei em relação a escolha dos nomes.

– Olá Armando! Você já não está muito velho para tanto filho?

– É o que digo para a minha esposa, mas ela tem vocação para mãe. Não acredito como dá conta de tanta criança. E ainda arranja tempo para mim!

– E como será o nome do garotão?

– Ultimo, sem acento.

– Espere aí! Você sabe que eu não posso deixar que você registre alguém com este nome. Coitado do menino! Ainda mais com um erro de português!

– Ultimo é um nome de raiz italiana, justamente do esperado último filho.

– Certo, mas não fica bem.

– Não aceito não como resposta. Veja, não ficaria bem, seria um seu colega de ofício levando o caso ao juiz!

– Está bem! Mas não me culpe no futuro pela sua escolha. Mais uma coisa: e se vier um outro filho, como vai chamá-lo.

– Equívoco, com certeza Equívoco!

Acordei na fronha encharcada pelo suor e sufocando. Eu ainda podia ouvir o eco da gargalhada do meu colega de ofício e dos amigos de escola dos meus filhos.

– Jeniffer, os nomes, os nomes...

– Sonhou com os nomes, querido? Quais escolheu?

– João e Maria.





sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Nunca se sabe

 


Deu mais uma reviravolta, tentando ver-se melhor no muito manchado espelho que trouxera para a sala. Era totalmente inadequado, claro, mas mesmo assim era o maior que existia em casa da avó. Apesar da imagem pouco nítida, dava para ver que a nova blusa ficara bem catita.

Satisfeita, tirou várias selfies antes de a despir e pendurar no cabide para nova foto. Apostava que nem 24 horas duraria no site antes que alguém a comprasse. O único problema do êxito das peças que fazia era estar sempre sem stock, sendo obrigada a trabalhar muitas horas por dia para ter alguns produtos para venda. Não que se queixasse, o dinheirinho que entrava continuamente era mais do que uma justa compensação e bom jeito lhe daria quando tudo voltasse à normalidade. Poderia até usá-lo para abrir uma loja a sério ou para contratar quem lhe fizesse os modelos que desenhava.

Quem diria que uma estadia forçada em casa da avó por causa do maldito vírus levaria a uma tal reviravolta na sua vida!

Ainda se lembrava do imenso sentimento de revolta que sentira uns meses antes quando os pais insistiram que, já que “não fazia nada”, se mudasse para aquela vilória para cuidar da avó, totalmente isolada devido ao fecho do centro de dia que costumava frequentar. Ela, a menina dos shoppings e dos clubes, numa parvónia daquelas! E ainda por cima com a avó, boa senhora, claro, amava-a, sem dúvida, mas era totalmente retrógrada. Nem Internet tinha!

Bom, essa parte fora resolvida, os pais sabiam que faria a vida negra à avó se ficasse fechada entre quatro paredes sem qualquer distração, por isso contrataram um serviço de cabo para que pudesse continuar a ver os seus programas habituais e frequentar as suas muitas redes sociais. Como na cidade os seus antros favoritos estariam fechados ou com “horários inconvenientes”, tendo pois de passar a maior parte do tempo em casa com os pais, ainda por cima ambos em teletrabalho, acabou por ceder.

Os primeiros tempos até nem foram maus, a avó não exigia muita atenção, sobretudo porque podia ver agora em casa programas que estava habituada a ver no centro de dia. E Liz passava a maior parte do seu tempo na Internet a falar com “amigos” e a pesquisar as últimas fofocas das suas celebridades favoritas.

Mas com o passar dos dias a coisa tornou-se monótona. Na vida pré-Covid passava uma boa parte do dia – e da noite – fora com amigos e conhecidos, frequentava todo o tipo de locais mais ou menos divertidos, enfim, pouco tempo passava a sós consigo. Nunca fora muito de introspeções ou leituras, o estudo não lhe interessava minimamente e não fazia a menor ideia do que faria um dia, “quando fosse grande”. Deixava-se simplesmente flutuar ao sabor da maré, sem pensar no amanhã.

Agora, uma vila que nunca tivera grandes distrações e agora ainda menos tinha, estar reduzida à TV e às redes sociais começava a ser chato. É claro que podia fazer umas caminhadas, a casa da avó ficava num dos extremos da povoação e tinha bem perto alguns bons trilhos, mas natureza e exercício físico nunca tinham sido o seu forte.

Um dia, a avó, farta de a ver a arrastar-se pela casa aos ais e suspiros, sugeriu que aproveitassem aquela clausura forçada para limparem e arrumarem o sótão, onde não ia há anos e que estava cheio de caixas, baús e malas, alguns ainda do tempo da mãe de quem herdara a casa. À falta de melhor, Liz concordou, apesar de saber que lhe caberia a maior parte do trabalho uma vez que a avó dificilmente subiria a escada de acesso, cabendo-lhe por isso ir trazendo para baixo o que pudesse.

A ideia era verem o que ali estava guardado e separar o que era de guardar do que seria dado ou deitado fora, eventualmente.

Era um trabalho cansativo e monótono, ao fim de uma dúzia de caixas ainda não vira nada que lhe despertasse a atenção, apesar de a avó ter mil histórias para contar sobre a maior parte das coisas que iam saindo das caixas. Mas eram sobretudo álbuns e artigos pessoais de familiares que nunca conhecera e de quem, na maior parte das vezes, nem sequer ouvira falar.

Chegou finalmente ao primeiro baú, demasiado grande e pesado para ser levado para baixo. A solução era, claro, abri-lo e ir levando o conteúdo aos poucos.

Com grande surpresa sua estava cheio de cortes de tecidos, uns maiores, outros menores, de todos os tipos e feitios. Recordou então que a avó, antes de casar e nos primeiros anos de casada, fora modista na cidade onde então vivia, numa época em que uma boa modista era muito apreciada e procurada. Só parara depois de nascer o quarto filho, não precisavam do dinheiro e já tinha trabalho que chegasse com a casa e a família.

Eram pois tecidos muito antigos mas com padrões fabulosos e de uma excelente qualidade. Liz, que adorava moda e que estourava prontamente a mesada em roupa, ficou encantada. E pela primeira vez desde que chegara esqueceu-se de que estava exilada e sem distrações, rebuscando afincadamente no resto do sótão por mais material

E não ficou desiludida. As caixas e baús do fundo continham mais tecidos, moldes, botões e todo o tipo de fitas e acessórios. A avó já nem se lembrava de ter guardado aquilo tudo para o caso de um dia voltar a trabalhar.

Liz entrou num frenesim de atividade, procurando modelos online, imaginando este ou aquele tecido como uma blusa, uma saia, um vestido... E a suspirar por não ver à venda nada do que lhe vinha à mente.

Talvez por estar farta de a ouvir, a avó sugeriu então que fizesse ela essas peças. O material estava ali e a sua velha e fiel máquina de costura também. E apesar de já não ver suficientemente bem para coser, poderia sempre orientá-la, sobretudo porque em miúda Liz aprendera, muito à força, o básico da costura.

A ideia não lhe agradou totalmente, mas francamente, sempre era melhor do que nada. Escolheu pois um bonito e leve tecido e, com muitos conselhos e ajudas da avó, fez a sua primeira saia.

Gostou tanto do resultado que pôs prontamente uma foto nas suas redes sociais, onde foi um êxito.

Entusiasmada, começou a fazer mais peças, inspirando-se muitas vezes nos velhos moldes e revistas que encontrara e que adaptava para um estilo mais moderno. Publicava sempre os resultados e surgiram prontamente pedidos de amigas para que lhes fizesse algo similar.

E sem saber bem como viu-se com um próspero negócio de moda, a tal ponto que se vira forçada a procurar e encomendar online mais material.

Quem diria que o maldito vírus a fizera descobrir um talento e uma carreira!

 

Luísa Lopes

Imagem de Gordon Johnson por Pixabay





sábado, 3 de dezembro de 2022

1902 - DRUMMOND - 1987


Aqui jaz a poesia

em sua forma mais

plena e vigorosa.

Não há, no mundo,

notícias de que ela

tenha sido

melhor cultivada

do que nas terras

ferrosas dos canteiros

de Itabira.