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quarta-feira, 24 de março de 2010

Sempre há uma verdade.... (Parte 3)

(Maristela Scheuer Deves)


Passei o resto da manhã vomitando. Gripe, com certeza, insistiu minha mãe, mas não conseguiu fazer com que eu tomasse mais chá. Eu nunca fora muito fã de alho, mas naquele dia ele decididamente me embrulhava o estômago. Na verdade, era pior: a simples visão do chá me fazia suar ainda mais, ao mesmo tempo em que sentia o frio se apossando do meu corpo.

Achei melhor voltar para a cama, até porque a claridade do sol parecia ferir meus olhos. A cabeça doía com a luz, e eu só queria o escuro do meu quarto, com as janelas fechadas e a cabeça sob as cobertas. O mal estar continuou o dia todo, e não quis sequer almoçar. À noite, minha mãe conseguiu me convencer a sair da cama, prometendo fazer o que eu quisesse para jantar.

— Bife, um bom bife mal passado — pedi, surpreendendo-me assim que as palavras deixaram a minha boca. Eu, que nunca comia nada que estivesse definitivamente torrado, querendo carne mal passada? No entanto, o simples pensamento do bife escorrendo sangue me fazia salivar.

A situação se repetiu nos dias seguintes: eu acordava e, embora não tivesse febre (ao contrário, minha temperatura parecia estar até mesmo mais baixa do que o normal), ficava mal assim que botava os pés para fora do quarto. Só conseguia comer carnes mal passadas e me recusava terminantemente a ir ao médico — não por medo, mas porque sair ao sol me deixava quase cega de dor.

O pior, no entanto, eram os sonhos. Ou pesadelos, talvez eu deva dizer. Neles, eu andava nas ruas, no meio da noite, escondendo-me furtivamente nas sombras. Era uma caçada, mas dessa vez eu não era eu a caça: eu era a caçadora. E queria sangue.

(continua no próximo mês...)





terça-feira, 23 de março de 2010

Ínfimo brilho - Giselle Sato

Ela observava as ondas, deixando que as marolas lambessem seus pés descalços, ignorando a areia grossa, maresia e gosto de sal. A barra da saia negra acumulando fragmentos de conchas e pedrinhas, formando um rastro atrás de si.

Seguia a solidão e só havia o vento e a água gelada. Mar revolto, vento forte, o céu não tomou suas dores e exibiu o por do sol mais bonito. Sentiu-se afrontada e apontou o dedo acusador:­ -Sem compaixão ou misericórdia, milagres ou acalanto. Vazio! Nada mais tem sentido...

O sol em um suspiro tímido, deixou escapar um finíssimo raio, um toque sutil, leve demais...
Percebendo o ínfimo brilho, aceitou o sinal e estendeu a mão cuidadosa. Sentiu o calor, a mágoa e o rancor enfraquecidos, aquietaram-se. Então compreendeu, pela primeira vez, em tantos e tantos anos.
E o som do seu coração, encheu os ares...Vida!

A mulher guardou o fio de esperança no peito, e em segundos a escuridão abraçou seu mundo de saudades.





segunda-feira, 22 de março de 2010

Enigma Archinov

                                                                                                                     por Leandro da Silva
                                                                                                                                                         liberdadeperiferia@riseup.net
 
 
 Sobre a relação entre arqueologia do capitalismo, literatura e memória, sobretudo as fundamentações histórico-culturais para os direitos humanos concensuais do agora. 

 
 
 Ao se lembrar de fatos e personagens, totalmente esquecidos e que originaram percepções, temáticas e realidades, a sensação é estar à sós, como ficou o protagonista do assunto deste artigo.
 
 Liberdade de expressão, descentralização da cultura e literatura livre, pautas que passam por através dos tempos, e que têm como referência o que se aconteceu nos anos stalinistas da União Soviética, e a luta propriamente clandestina. Em um Estado que tentava controlar a tudo e massificar ao máximo a cultura, as pessoas para satisfazer suas necessidades culturais tinham como instrumento o chamado Samizdat, uma auto-publicação em baixa tiragem e artesanal, passada de mãos-em-mãos. Seja uma publicação estritamente política, ou político-cultural, ou um simples poema. Assim os povos da União Soviética viam como uma das alternativas tal instrumento, que fez parte dos embates com a megaestrutura stalinista.
 
 Um homem simples, um operário russo que passou por todos os processos político-sociais anteriores, durante, e após a Revolução Russa, se não é um dos principais agentes que fizeram possíveis um confronto com todo um Estado, e principalmente a fé de que é possível sempre expressar-se mesmo nas condições mais opressoras. Nem se tem uma “tradução” precisa de seu nome para o português,  próximo à Archinov ou Arshinov, por inteiro: Piotr Andrievich Marin Archinov.
  Poucas fontes para escrever um artigo sobre sua relação com a liberdade de expressão e produção literária. A maioria das fontes humanas foram “desaparecidas” ou assassinadas bem como as fontes bibliográficas foram queimadas ou “recicladas”. No entanto, pode-se dizer o que é oficial para o Estado Russo atual ou o que é reconhecido a partir dos pouquíssimos registros, um personagem histórico nascido numa aldeia russa, que ao entrar em contato com os primeiros grupos bolcheviques na categoria ferroviária, tornou-se militante, e após alguns confrontos com o sistema tzarista, ao sofrer a repressão teve contato com anarquistas, e assim abandonou o marxismo. Participou de várias greves e confrontos, organizou os anarquistas russos, virou uma referência, foi perseguido publicamente pelo Estado. Condenado à morte, fugiu da prisão, se exilou na França, depois retornou, continuou suas atividades, o Estado o capturou de novo, tudo isso nos primeiros anos do século XX. Preso, na capital russa, conheceu Nestor Makhno, outro anarquista, e lá ficou enclausurado até eclodir a Revolução de 1º de Março de 1917, e ser libertado junto à Makhno e os principais inimigos do Estado e sistema tzarista.
  Retornou com Makhno para a terra dele, a Ucrânia, onde a Revolução também estava acontecendo, sobretudo no campo, onde Makhno era como a um herói dos povos camponeses. Dali, uniram as vilas e formaram um Exército Insurrecional próprio afinado ideologicamente com a ideologia anarquista porém, aberto a todos os camponeses que queriam lutar pelos direitos mais nobres, principalmente pela reforma agrária e autogestão. São reconhecidos os feitos do Exército Insurrecional Makhnovista, enfrentou os exércitos “brancos”, aliou-se com o Exército Vermelho dos bolcheviques e o salvou por várias vezes nas batalhas contra a burguesia e aristocracia locais e internacionais, no cenário pós-guerra mundial. Foi quando após conflitos com os bolcheviques, sobretudo na tentativa de criação da “ditadura do proletariado”, a partir da capital russa, Lenin e Trotsky considerou o exército que já os salvou uma ameaça. Em uma batalha considerada de traição, o Exército Vermelho massacrou pelos flancos o Exército Insurrecional Makhnovista, e assim foi eliminada uma grande oposição aos planos de centralização bolchevique, junto ao marinheiros de Kronstadtff, também inspirados pela corrente libertária ( anarquista ). Archinov, conta tudo isso e muito mais em seu livro “História da Makhnovischina”.
  Sobreviventes por sorte e feridos, os poucos que conseguiram, se exilaram na França, Archinov, Makhno, entre outros. Juntos lançaram novas ideias para o anarquismo mundial após as experiências do anarquismo russo e ucraniano. Escreveram “Plataforma Insurrecional Anarquista” um documento que pede a todos militantes libertários do mundo a se organizarem melhor, pois o fracasso na Revolução Russa foi em parte reflexo da desunião entre anarquistas, que fizeram várias lutas isoladas que não puderam conter o golpe da “ditadura do proletariado”. O documento foi mal recepcionado, pois os anarquistas do mundo o interpretaram como uma ordem de organização “forçada” em que todos deveriam estar dentro para sobreviver, Errico Malatesta, foi um dos que rejeitaram as ideias de Makhno e Archinov.
 Isolados e frustrados, os anos 20 passaram-se vendo da França o stalinismo frear as conquistas da revolução e eliminar a oposição socialista brutalmente na nova União Soviética.
 
 Foi quando numa oportunidade, Archinov quis reverter toda sua frustração, pois na França ainda perseguiam os sobreviventes do Exército Insurrecional Makhnovista, aproveitou o fato de ser expulso da França, para gerar uma condição e dar realidade a um antigo plano: retornar para a Rússia.
 Lançou panfletos que negam a importância do anarquismo, rejeitou a corrente libertária e defendeu o stalinismo, fazendo saudações à política da União Soviética do momento. Em consideração com a enorme importância de Archinov para a revolução e até mesmo para a formação dos primeiros anos do bolchevismo, anteriores a sua adesão ao anarquismo, Stalin “perdoou” Archinov e aceitou sua repatriação e filiação no Partido Comunista. Ferido e doente, Makhno ficou surpreso com a atitude de Archinov, e o considerou não só um traidor, mas alguém que renegou o que ele viveu, após ter feita a famosa “autocrítica soviética”.
 De volta a sua terra natal, Archinov em pleno stalinismo, ocupou funções do Partido Comunista, e atuou como revisor em Moscou. Os anarquistas do mundo inteiro o consideraram como a decepção dos anos 30.
Pouco depois, durante a purga stalinista, em 1937, Archinov some. Ninguém sabe o que aconteceu, poucos se manifestam. Após alguns anos e depois com a queda do stalinismo, é revelado seu paradeiro e o registro do seu sumiço aparece: “Deportado por acusação de restaurar o anarquismo na Rússia Soviética”. Parece que ele foi filmado em 1937 na deportação. Mas, mal se sabe ao certo para onde foi e aonde foi enterrado.

  Como assim?

 Décadas após décadas, as gestões do Estado seja na antiga União Soviética quanto na nova Federação Russa, desde o tempo de Lenin e Trotsky, escondem os arquivos das atrocidades cometidas como crimes próprios de Estado. Uma gestão após outra, foi apagando tais arquivos, de acordo com o que era bom ou ruim para o regime. Assim foi com toda a produção literária e ainda está sendo, mal se sabe se uma obra da época foi ou não forjada, ou se uma foto foi ou não remontada. A cultura sujeita a uma dimensão que reduz as manifestações individuais e coletivas, sempre estará propícia a encontrar meios paralelos para se propagar, pois são as pessoas que a fazem, o que precisam e o que sentem.
 Archinov, não pôde ir ao enterro de Makhno e se esclarecer. Makhno morreu pensando que fora totalmente repudiado, pelos anarquistas espalhados pelo mundo a fora, e por seu velho companheiro, Archinov. 

  Há quem acredite que Archinov fez algo extraordinário.

 “Há uma escola de pensamento que crê que Arshinov colocou seu repúdio ao anarquismo como uma cortina de fumaça para que ele pudesse retornar à Rússia para ajudar a organizar o movimento anarquista clandestino lá. Nós sabemos que o grupo Dielo Trouda manteve contato com esse movimento, e Ante Ciliga no Enigma Russo se refere a ele como extremamente bem organizado. Nós não podemos ter a certeza de uma forma ou de outra, até que todos os registros mantidos pelas autoridades russas sejam olhados pelos pesquisadores. Esperamos que algum pesquisador faça em breve.”
                   Ed, em Libcom no artigo Biográfico sobre Archinov, http://libcom.org/history/arshinov-peter-1887-1937

 Por fim, aí está uma parte da construção moderna do direitos fundamentais do cidadão, esquecida, provavelmente em forma de ossos nos antigos campos siberianos de trabalho forçado, cemitérios enevados do stalinismo.

 Fontes:

*Arquivo Público Histórico de Moscou
*História da Makhnovischina, de Archinov
                                                                              
                                                                

 Este artigo também foi publicado em outros espaços:

 





domingo, 21 de março de 2010

Fragmentos: III. O Alimento




por Marcia Szajnbok
O importante é picar tudo bem picadinho. Os tomates em cubos, as abobrinhas em cubos, os pimentões, as berinjelas, tudo em perfeitos e simétricos cubos. Seria bom ver o mundo sempre assim, a vida posta em simetrias bem medidas. A faca é rápida nas mãos treinadas e os cubos se amontoam lindos e coloridos sobre a tábua. Como seria fazer-se em cubos? Cortar-se em pequenos pedaços, a começar pelos pés? Os dedos fatiados um a um, como em máquina de cortar frios. As pernas, as cobiçadas pernas, cortadas em tiras, músculos desfiados em meio ao sangue escuro e grosso. Picando os legumes, pensava no corpo. Via-se ali despedaçada, reduzida aos átomos, despida do ser que já não aguentava carregar. A faca afiada não hesitaria nas vísceras moles, empapadas. Nesse ponto, nada de simetrias ou caprichos: cortes rápidos, pura ira dilacerando os interiores. As berinjelas, é preciso que se ponham na água para não ficarem escurecidas. Depois, os peitos sem leite. E o rosto. O rosto transformado numa tela de Picasso, mas sem olhos. Dois furos, dois vazios em seu lugar. No fim, o que restaria? Os ossos. Uma carcaça. Uma cela de calcáreo, uma concha. Era uma vez um molusco que fez de conta que era uma mulher, mas nunca soube como sair de sua concha. O molusco morre, a concha permanece. Não está mais lá, o molusco. Só o invólucro. A menina na praia apanha a concha, leva-a consigo, cuida do pedaço de cálcio morto como se lá houvesse vida. Ah, como é fácil enganar o mundo! É simples fazer-se de vivo quando vida já não há. Devem rir-se muito, os espíritos dos moluscos, tão livres agora, tão livres. Livres da concha e das mãos sujas da menina indelicada. Livres. O azeite bom vai na panela. Junte o alho. Esprema a berijela num guardanapo branco e limpo. Por último, pique as cebolas. Benditas as cebolas e bendito quem inventou de picá-las. Elas cedem. As camadas se desmancham ao contato do metal da faca e a água vem, brota em ondas, encharca.A porta abre-se sem cerimônia: "'tá chorando, mãe?". Não, filho, não. São as cebolas, só as cebolas...
Fragmentos é uma série de textos curtos, em geral de parágrafo único, que descrevem uma situação da realidade e seus ecos no mundo interno dos personagens, como se, num documentário da vida real, uma voz de fundo narrasse o que se passa no íntimo dos atores-autores.





sábado, 20 de março de 2010

A repulsa




Léo Borges


Ana, nas aulas de desenho, sofria com a humilhação dos coleguinhas. Diziam que a menina só sabia encher os papéis com contornos esquisitos, linhas perdidas que pareciam possuir significado apenas para ela. Naquele dia, entretanto, enxergaram algo em seus traços.


Só que o que viram não foi um jardim florido ou nuvens escondendo o sol, paisagens que, normalmente, habitam o imaginário infantil. E apesar de Ana garantir que seu desenho era um fofo bebê, ele foi entendido pelas outras crianças como o mais asqueroso dos insetos: “Ela desenhou uma barata!”, enojaram-se. Algumas chegaram mesmo a vomitar e a menina foi admoestada por um dos instrutores: “não desenhe mais esse tipo de coisa!”. A forma que o amontoado de riscos tomou teria sido apenas repulsiva se o transtorno que passou a causar não fosse tão perturbador. Mas, mesmo assim, Ana não se livrou de sua estranha arte, guardando-a como a mãe que protege o filho aleijado das injúrias e maldades.


De início, se entristeceu profundamente com a ojeriza criada. Percebeu, contudo, que se viram sentido no desenho, pelo menos foi compreendida. O importante para ela era conquistar a atenção através das linhas e, por isso, mesmo com um resultado tido como medonho, o inverso do que pretendia, ficou alegre.


Para melhor defender sua criação, refletiu sobre o medo que as pessoas tinham por baratas e não enxergou fundamento nesse temor. Se elas transmitiam doenças é porque andavam sobre o lixo e excrementos que os próprios humanos produziam. Não era incomum Ana se deparar com estes pequenos artrópodes nos armários da cozinha, pelos ralos, sob o fogão e até misturados ao enxoval do irmão que ainda não nascera. E a impressão que tinha, em qualquer dessas situações, era sempre a mesma: bichos inocentes, fugidios, companheiros do lar, criaturas divinas que, inadvertidamente, se expunham, prontas para serem esmagadas. O problema, como ficava claro para a garota, não eram os insetos, mas as pessoas, cujo pânico nada mais era que um sinal inequívoco de fraqueza.


Ana, naquela noite, resolveu escrever em seu diário o ocorrido na escola e mencionou que omitira o fato de sua mãe. Na rápida conversa que mantiveram no jantar, Fergônia estranhou o sorriso que não deixava a filha. Não a via assim desde que comprara as canetas para colorir. Na ocasião, pediu para que Ana desenhasse em seu próprio ventre, no sexto mês de gestação, um rosto sorridente em homenagem ao bebê – o varão que os familiares tanto queriam. “Desenhe direito, Ana, é um ser muito precioso o que está aí”. A menina, que passava a repudiar a ideia de ter um irmão tanto quanto o fato de não saber desenhar, tratou os rabiscos com uma raiva incontida, apertando a ponta da caneta na barriga da mãe numa ingênua tentativa de ferir o nascituro, em gestos que, se não fossem tão infantis, seriam realmente macabros.


O que alimentava seu ciúme era o amor desproporcional que todos tinham por aquele feto, um endeusamento desmedido que crescia dia a dia, transformando-se numa adoração tal que acabava por manter Ana num estado permanente de insignificância. “Está me machucando, Ana”. “Estou me esforçando, mãe! Quero que ele nasça parecido com meu desenho!”. O castigo de Ana por esse episódio não chegou a ser tão longo quanto o que recebera quando encharcou com inseticida o berço do bebê vindouro. E nem tão ruim, pois, trancada no quarto, ela teve tempo para treinar seus rabiscos nos papéis que encontrou pela frente.


Fergônia considerava a raiva de Ana uma coisa besta e torcia para que seu bom senso aflorasse e a filha pudesse, enfim, festejar também a chegada do menino. Ana pensava pouco nisso, queria apenas contar sobre sua conquista artística, mas este assunto não era importante; secundário, tornava-se proibido para que o apetite da mãe na mesa de jantar não fosse incomodado. Fergônia possuía pavor mortal de baratas, de modo que amores como o que por ora afloravam, certamente, teriam um impacto arrasador no convívio familiar.


“Desenhei um bebê, mas minhas amigas enxergaram uma barata. Fizeram cara de nojo, como minha mãe também já fez. Sentem repulsa de meus trabalhos. Eu detesto as pessoas, seres cruéis e nojentos. Seria bom se todos fossem como os insetos, que vivem sem arrogância. Se o que criei foi feio, que tenha sido apenas para os outros. O bebê de minha mãe, ao contrário, não é horrível para ninguém, só pra mim”.


Ana, enquanto escrevia, percebeu o pequeno vulto na sua casinha de bonecas. As compridas e finas antenas oscilantes não deixavam dúvidas: era uma barata! Sem ser apenas mais uma entre as inúmeras que existiam pelos cômodos, esta parecia mais íntima e provava isso, andando livre do comportamento arisco que caracteriza a espécie. O coraçãozinho da menina pulsou forte pela alegria do encontro. A barata, cuja sombra aumentava à medida que se contrapunha à luz do abajur, transitava com mansidão entre as canetas de colorir. Já a menina, que curtia o farfalhar típico, desejou que sua mãe também viesse apreciar a casinha de plástico servindo como palco para o desfile de tão rejeitado ser.


Estacionada perto de um dos brinquedos, a barata, de súbito, se espremeu e entrou pela roupinha de uma boneca sem braço, inchando-a e causando-lhe a impressão de estar gestante. Ana lembrou-se imediatamente da imensa barriga da mãe e do que o médico falara: “não se coloque em situações de grande impacto emocional”. Ver aquela cena foi uma coisa que lhe encheu de prazer, porém, chamar a mãe para compartilhar do seu deleite poderia ser de uma nefasta imprudência. Ou talvez não. Quem sabe não seria esta a grande oportunidade para Fergônia se reconciliar com a verdadeira humildade, aquela que só os bichos repulsivos possuem?


– Mãe!


O espetáculo fez a menina imaginar a mãe parindo uma barata gigantesca: primeiro as indefectíveis antenas aparecendo pela vagina, logo a robusta carcaça áspera e, por fim, as longas e inquietas patas emergindo com suas inúmeras microsserras afiadas. O obstetra, primeira testemunha do extraordinário acontecimento, usaria de ácida frieza para comunicar o nascimento da criatura: “é bastante saudável, dona Fergônia...”, diria, com o horror escapando-lhe sob a forma de suor, controlado apenas pelo interesse sombrio que certos eventos causam, “esta não veio pelo esgoto, veio mesmo por seu útero...”.


Ao se desgrudar do ventre sintético, a barata continuou com o passeio errante, monitorada pelo olhar maravilhado de Ana. Passou por cima do desenho que seria seu espelho, até encontrar restos de biscoitos. Feliz, Ana rastejou-se vagarosamente para perto. Espichou uma das mãos e, com singeleza, alcançou o inseto, que ficou estático. O carinho, embora socialmente grotesco, era sinceramente afetuoso. Mas, um súbito e aterrorizante grito pôs fim àquela aliança. Com violentas contrações, Fergônia – que surgira após ser chamada pela filha – caía tonta, entrando em trabalho de parto.


Os vizinhos, assustados com o que ouviram, arrombaram a porta e foram prestar auxílio. A indiferença de Ana diante da cena só foi menos perturbadora que a aparência inumana daquele bebê, cuja pele possuía uma repugnante textura.


– Nasceu prematuro – foi a explicação inventada por uma perplexa socorrista ao ter em mãos a massa amarronzada que emitia os primeiros grunhidos de choro.


Levaram mãe e filhos para o hospital. Com os olhos esbugalhados, uma das mulheres, acuada no canto da sala, não saiu do lugar – possivelmente paralisada pelo medo de acompanhar aquilo a que chamavam de criança. Para que sua presença ali fosse de alguma forma útil, limpou o quarto às pressas. Esqueceu-se apenas de certo papel largado no chão. Nele, listras malfeitas lembravam uma barata, mas as lágrimas e o sangue da placenta que o manchavam, destruíam a sua já pouca clareza.


Créditos da imagem: http://gametalkbr.files.wordpress.com/2009/10/medo.jpg





quinta-feira, 18 de março de 2010

Nossas falsas necessidades cotidianas

Não gosto de telefones celulares. Nunca gostei.

Quando todo mundo já carregava um celular no cinto, ostentando o novo clamor da modernidade, eu relutava. Já era adepto da internet, mas do celular - Deus me livre!
Mas não dá para lutar contra o óbvio.

Enquanto que, alguns anos atrás, quando duas pessoas iam se encontrar, era preciso marcar data, local e hora exatos, senão o desencontro era inevitável, hoje as pessoas andam, falam e perguntam: "onde você está? Ah, sim, estou te vendo!"
Antes, se não se encontravam, era assunto encerrado; cada um ia para sua casa e fim.

Rendi-me e também tenho meu telefone celular... E me indago como conseguíamos viver sem ele antes. Há 15 anos, praticamente ninguém tinha; há 25 anos, até telefone fixo era raridade. Minha mãe era uma das poucas a ter telefone em casa no quarteirão, por isto, as vizinhas passavam o nosso número e anotávamos o recado para elas quando alguém ligava.
Há 150 anos, que parece ser muito tempo, mas para o curso da História é menos que um segundo, nem sequer existia o telefone.

E hoje mal conseguíamos conceber como seria a vida sem ele, assim como é difícil pensarmos num mundo sem TV, computador, carros, energia elétrica, internet. Acostumamo-nos e nos acomodamos com falsas necessidades.
As inovações parecem se apegar ao nosso ser de tal maneira que o humano se confunde com elas.
A realidade do homem primitivo, caçando com lança, residindo em cavernas e descobrindo o fogo, é tão alienígena para nós quanto um suposto marciano verde em sua nave espacial.
As falsas necessidades são tão poderosas que emburrecemos e nos atrofiamos. Se, por acaso, há uma queda de luz no prédio numa noite de tempestade, desesperamo-nos, tateando no breu, e não sossegamos até ver a lâmpada se acendendo mais uma vez.
Ao sermos libertados de certas restrições pela modernidade, tornamo-nos enfim seus escravos.

Temos acesso a todas as informações do mundo, podemos nos comunicar com pessoas do outro lado do planeta, tudo instantânea e imediatamente, mas somos mutilados. Arranque-nos deste acomodamento e encolheremos, até sumirmos diante da nossa insignificância.
Temos tudo à mão, apenas para mascarar o nada que nos tornamos.

O futuro aniquilou a nossa humanidade.





Apenas uma mulher

Por Ju Blasina

Sentada numa cadeira simples de sua casa humilde, ela é apenas uma mulher tentando fazer o seu melhor, buscando dividir o tempo entre trabalho e família, entre contas e calendários, rezando por um melhor marido, lutando por um melhor emprego, sonhando com um melhor armário. Apenas uma mulher... Como se alguma mulher no mundo fosse “apenas” alguma coisa. Ela é mãe, é filha, é amante, é amiga, é irmã. Ela é mulher.

Mais tarde, deitada na cama que divide com as filhas, ela pensa no futuro. Não somente no seu, mas no futuro das mulheres que ainda não nasceram. No futuro de suas filhas e das filhas de suas filhas. Num futuro distante, bem distante da sua triste realidade.

Amanhã será um dia importante, um dia daqueles que exigem coragem, toda a coragem que puder reunir, e ela sabe onde encontrá-la. Com o sono roubado pela ansiedade, ela deixa a cama pé por pé, rumo às suas armas mais letais: esmaltes, batons e bobs — parecem objetos inofensivos, mas como mulher ela sabe reconhecer o poder que eles trazem.

Prepara-se para a guerra, se sente invencível e mal percebe o amanhã chegar antes do desenrolar do último cacho. Não há tempo para delongas, não há muito para o café, mas sempre há um último olhar em seu maior tesouro: as filhas, que dormem seguras na cama desconfortável. Pede a Deus que esteja com elas na sua ausência — o que, graças às tantas horas de trabalho, tem sido mais frequente do que gostaria de admitir. Se ao menos fosse melhor recompensada, poderia dar a elas uma cama melhor, uma vida melhor, um futuro melhor. Mas, por hora, tudo que pode lhes dar é um breve beijo de despedida.

Mas hoje, ah... Hoje tudo vai mudar! Manifestarão seu descontentamento com as deploráveis condições de trabalho, com o salário injusto, com a excessiva carga horária, com a proibição ao voto, com tantas coisas... Se ao menos uma delas for ouvida, serão vitoriosas! Em seus planos tudo parecia perfeito, mas a realidade é sempre imprevisível. Alguns chamam de destino, outros, de fatalidade, mas a mulher trancada naquela fábrica chamou de fracasso.

Ela verifica novamente as portas na esperança tola de que a força de vontade possa apontar-lhes uma saída, mas não... Para seu desespero, todas as portas parecem trancadas. Neste momento, ela sabe que é o fim do caminho, todas elas sabem e talvez muitas já antes soubessem, porém, ainda assim precisavam lutar, valia a pena tentar...

O que ela não sabe é que, junto com as cento e trinta outras mulheres que sucumbiram naquele incêndio, num fatídico oito de março, ela acabava de abrir a mais importante de todas as portas. Uma porta por onde os sonhos ousam atravessar. Uma porta, através da qual ela poderá passar milhares e milhares de vezes, em outro tempo, em outra vida, em outro corpo, na força e na liberdade que habita a alma de cada mulher.





quarta-feira, 17 de março de 2010

Cães

G. K. Chesterton

Cínicos geralmente falam dos decepcionantes efeitos da experiência, mas, graças a uma, descobri que quase todas as coisas não malignas são melhores na experiência do que na teoria. Pegue, por exemplo, a inovação que introduzi tardiamente em minha vida doméstica; ela é uma inovação com quatro patas na forma de um Terrier Escocês. Sempre me imaginei como um amante de todos os animais, porque nunca encontrei qualquer animal que definitivamente me desagradasse. A maioria das pessoas traça o limite em algum lugar. Lorde Roberts não gostava de gatos; a melhor mulher que conheço tem objeções a aranhas; um teosofista que conheço protege, mas detesta, ratos; e muitos importantes humanitários tem uma objeção a seres humanos.
Se o cão é amado, ele é amado como um cão; não como um compatriota, ou como um ídolo, como um mascote, ou como um produto da evolução. A partir do momento em que você é responsável por um estimado animal, naquele momento abre-se um abismo tão vasto quanto o mundo entre crueldade e a coerção necessária de animais. Há algumas pessoas que falam daquilo que chamam de “punição corporal”, e classificam sob este título a tortura medonha infligida a cidadãos desafortunados em nossas prisões e fábricas, e também ao peteleco que alguém dá a um menino travesso, ou à chicotada num terrier intolerável. Você até pode inventar uma expressão chamada “concussão recíproca” e deixá-la para entender que você inclui sob este título beijar, chutar, a colisão de barcos no mar, o abraço de jovens alemães e o encontro de cometas no espaço.
Este é o segundo valor moral da coisa; a partir do momento em que você tem um animal sob seus cuidados, logo você descobre o que é de fato crueldade para os animais, e o que é apenas gentileza. Por exemplo, algumas pessoas chamaram-me de inconsistente por ser um anti-vivisseccionista e, mesmo assim, apoiar esportes comuns. E apenas posso dizer que eu até me imagino dando um tiro em meu cachorro, mas que eu não me imagino vivisseccionando-o.
Mas há algo mais profundo no assunto do que tudo isto, mas já é tarde da noite, e tanto o cão quanto eu estamos sonolentos demais para interpretá-lo. Ele está deitado diante de mim, aconchegado diante do fogo, assim como muitos cachorros devem ter se deitado diante de muitos fogos. Eu estou sentado ao lado da lareira, assim como muitos homens devem ter se sentado ao lado de várias lareiras. De algum modo, esta criatura completou a minha humanidade; de algum modo, não consigo explicar o porquê, um homem precisa ter um cachorro. Um homem precisa ter seis pernas; aquelas outras quatro patas são partes dele. Nossa aliança é mais antiga do que as passageiras e pedantes explicações que são oferecidas sobre nós dois; antes de haver evolução, existíamos nós. Você pode encontrar escrito num livro que eu sou mero sobrevivente de um embate de macacos antropóides; e talvez eu seja. Estou certo que não tenho objeção. Mas meu cão sabe que sou um homem, e você não encontrará o significado desta palavra escrita em qualquer livro tão claramente quanto está escrita em minha alma.
Pode estar escrito em um livro que meu cachorro é um canino; e disto pode-se deduzir que ele deveria caçar com uma matilha, pois todos os caninos caçam com uma matilha. Portanto, pode-se argumentar (neste livro) que, se eu tenho um Terrier Escocês, eu preciso ter vinte e cinco Terriers Escoceses. Mas meu cão sabe que eu não lhe peço para caçar com uma matilha; ele sabe que eu não dou a mínima se ele é um canino ou não, enquanto ele for meu cachorro. Este é o segredo real do assunto que evolucionistas superficiais parecem não captar. Se a história conhecida for a prova, a civilização é muito mais antiga que a selvageria da evolução. O cão civilizado é mais antigo que o cão selvagem da ciência. O homem civilizado é muito mais primitivo que o homem da ciência. Sentimos em nossos ossos que somos primordiais, e que as visões da biologia são excêntricas e efêmeras. Os livros não importam; a noite está chegando e está escuro demais para ler livros. Contra a luz da lareira que se apaga, obscuramente pode-se traçar os contornos do homem pré-histórico e do cão.

(Este ensaio foi extraído de um artigo do Daily News, mais tarde reunido como “On Keeping a Dog” em Lunacy and Letters).

http://www.cse.dmu.ac.uk/~mward/gkc/books/dogs.html

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Sobre o autor
Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G. K. Chesterton, (Londres, 29 de maio de 1874 — Beaconsfield, 14 de junho de 1936) foi um escritor, poeta, narrador, ensaísta, jornalista, historiador, biógrafo, teólogo, filósofo, desenhista e conferencista britânico.

Era o segundo de três irmãos. Filho de Edward Chesterton e de Marie Louise Grosjean. Casou-se com Frances Blogg. Concluiu os estudos secundários no colégio de São Paulo Hammersmith onde recebeu prêmio literário por um poema sobre São Francisco Xavier. Ingressa na escola de arte Slade School de Londres (1893) onde inicia a carreira de pintura que vai depois abandonar para se dedicar ao jornalismo e à literatura. Escreveu no Daily News. Nascido de família anglicana, mais tarde converteu-se ao catolicismo em 1922 por influência do escritor católico Hilaire Belloc, com quem desde 1900 manteve uma amizade muito próxima.

Ao falecer deixou todos os seus bens para a Igreja Católica. A sua obra foi reunida em quase quarenta volumes contendo os mais variados temas sob os mais variados gêneros. O Papa Pio XI foi grande admirador de Chesterton a quem conhecera pessoalmente.

Na sua introdução a "São Tomás de Aquino" deixou escrito:

"Assim como se pode considerar São Francisco o protótipo dos aspectos romanescos e emotivos da vida, assim Santo Tomás é o protótipo do seu aspecto racional, razão por que, em muitos aspectos, estes dois santos se completam. Um dos paradoxos da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em contradição com ela. E, assim como São Francisco se dirigia ao século XIX prosaico, assim São Tomás tem mensagem especial que dirigir à nossa geração um tanto inclinada a descrer do valor da razão."

Em uma de suas principais obras, "Ortodoxia", defende os valores cristãos contra os chamados valores modernos, a saber, o cientificismo reducionista e determinista. Dono de uma retórica exemplar, coloca em debate crítico idéias como as de Mark Twain e Nietzsche.





terça-feira, 16 de março de 2010

Poemas

Mariana Valle

TEMPO

Tudo na vida passa.
Não há desgraça
que não se abrande,
não há ferida
que não cicatrize,
não há dor
que se eternize.
Quão divino remédio
é o tempo,
senhor dos mistérios,
maravilha de invento!


QUEM

Quem espera não alcança, dança.
Quem arrisca não se arrepende, apenas não se rende ao medo.
Para quem vai à luta, não existem segredos para o sucesso.
Quem corre atrás garante o ingresso.
Aquele que omite, não mente, mas deixa de dizer a verdade.
Quem nunca vai embora não inspira saudade.
Quem não chora, mama sim, e nem precisa ser criança...
Quem ama sem medo não perde a esperança.
Quem não pergunta, não sabe responder.
Quem não aprende também não ensina.
Quem está em cima, sempre pode descer...
E, enfim, quem está lendo, também pode escrever.
Quem é você e o que tem a dizer?





domingo, 14 de março de 2010

Dez de março

Polyana de Almeida

Trilha centelha
navalha sentidos.
Estraçalhados.
Eu cativa.
Março não chega.

Eu conto um.
Eu conto dois.
Eu conto infinitos,
meses destinos.
Uma lança à espreita enfia,
rasga a carne,
peito arreganhado:
vê como bate,
como deseja
um coração desesperado?
Até março.

Ao mês do impossível se faz a espera,
a espera que diz:
não corra tanto. Que há na correnteza
além do devir?
Por que não fica aí contente com esse nada?
Por que espera que na corrida se desfaça o nada?
Esse nada será um outro nada,
invariavelmente.

Mas conto os grãos da ampulheta,
leves,
eu cardíaca,
escoam serenos,
em tortura.
(escorre sangue dos meus olhos,
retina pétrea,
acorrentados)

Ao mês do impassível se faz a guerra,
a guerra que diz:
não sofra tanto. Que há no sofrimento
além do sentir?
Por que não ultrapassa de vez a trincheira?
Por que não deixa que os tiros abatam logo?
O abatimento se dará em qualquer lado,
invariavelmente.

Luz exígua
instiga futuros.
Mundos.
Eu vida.
Dez de Março...

Eu conto um.
Eu conto dois.
Eu conto vazios
dias vestígios.
Esvaziados,
me esvaindo em pedaços.

E sinto esvoaçar,
sinto fugir a pele,
carne etérea,
não sou nem mesmo mais corpo:
vê como transcendo o tempo,
como me espalho
sobre o tempo,
quando não há mais corpo?

Amanhã menos um.
Depois de amanhã menos dois.
Depois de depois de amanhã, três.
E março.

Mas março não chega.

(Há um ano, uma espera fez-se presente; e hoje, ausente, diz que há mortes que sim, que carregam no bojo o sopro da vida)





sábado, 13 de março de 2010

O mergulho

José Guilherme Vereza

Que coragem que nada. Bastou Maria Neuza ouvir dizer da maior atração do novo parque de diversões da cidade, um bungee jump de 130 metros de altura, para despertar sua inquieta curiosidade pelo desconhecido. Decidiu pelo mergulho e pronto, ninguém precisou saber disso.
Foi num dia comum, logo que o parque abriu suas portas, entre dez e onze da manhã.Olhou a lonjura do topo da torre até doer o pescoço. Fez sinal da cruz, pegou o elevador - uma gaiola que subia rangendo e deixando a cidade em miniatura. Lá em cima, deixou-se amarrar. E nem pestanejou.
A primeira sensação foi o vento cortando o rosto, criando rugas e pregas com sobras de pele. Os olhos foram obrigados pela obviedade da física a ficarem bem fechados,o que impedia qualquer espiadela para ver o que estava acontecendo em volta. Tentou movimentar pernas e braços, mas percebeu que não tinha controle sobre nada.Era um crucifixo estático voando de cabeça para baixo. Enfim, o nada.
Os ares de uma liberdade jamais provada foram batendo no seu corpo, numa velocidade fria e vertical. Veio também a certeza plena e incontestável
de que não podia deixar escapar a única chance na vida de se sentir dona absoluta de si mesma.
E Maria Neuza viajou.
Primeiro foi à Europa, onde se entupiu de vinho, museus e perfumes. Depois, à África negra, quando as savanas e as hienas pareciam jardins e bichinhos de estimação. Achou chato. Partiu logo depois para a Oceania, aportou em Hong Kong,
deslumbrou-se com os néons de Tóquio, foi direto para Nova York, onde encheu sacolas e o saco de tanto passar cartão de crédito.
Cansou.
Preferiu sensações mais intimistas. Como por exemplo, a felicidade secreta de ser reconhecida, rica, famosa, respeitada. Experimentou também o aconchego de uma família amorosa, com a completude de um raro marido, filhos, empregada de forno e fogão,faxineira, passadeira, carro do ano na garagem e cachorro que não faz cocô no tapete. Dos filhos, deu pra ver bem as suas caras. Eram lindos, sadios e inteligentes. Os primeiros já eram adultos formados pela vida e pela melhor das universidades. A caçulinha, uma coisa linda e espevitada, olhos azuis e pele dourada preferiu outras trilhas: foi finalista no Big Brother e acabou posando nua na Playboy. Que se danem os vizinhos. Naqueles instantes intermináveis e vertiginosos,
Maria Neuza era senhora absoluta das suas opiniões, caprichos e desejos,e em nome deles mergulhou mais ainda.
Comeu pato assado com carambola, strogonoff de salsichão,bebeu vinho branco com picanha, cuspiu arroz trufado e pediu doce de abóbora de sobremesa.Mostrou a língua pro maitre metido a besta e arrotou.
Gostosos momentos.
Resolveu variar os sabores. Da mesa do restaurante granfino, saiu à cata dos meninos que não namorou nos tempos da escola e, mesmo podendo encontrar todos, preferiu um só, exatamente aquele de quem nunca tinha recebido ao menos um picolé.
E foi fundo. Urrou de gozar por todos os poros. Revisitou seus âmagos o mais que pode, tantas vezes quis.
Enjoou do rapaz, asco súbito. Pegou outro, mais outro e mais outro, tantos que enfileiravam-se aos seus pés. Recebeu flores de cada um deles, a cada dia seguinte. Experimentou o Kama Sutra em praias, poltronas de primeira classe de avião,últimas filas de cinemas, caçambas de roda gigante, bancos de fusquinha. E ainda inventou novas formas de amar e ser amada.
Quando se sentiu realizada e feliz, fez uma força imensa para abrir os olhos,
enfrentando o vento que castigava as bochechas, lhe comprimia os peitos, e eternizava um sorriso sincero e restaurador. Precisava espiar só um pouquinho o que de fato e de real se passava em sua volta.
Dos sonhos, restavam apenas alguns centímetros.
Nem teve tempo de sentir saudade.
Foi puxada subitamente para cima pelo feixe de elásticos e nylon, preso aos pés e à cintura. E como um iô-iô perdendo a sua força, lembrou que tinha esquecido a panela de feijão no fogo.
Talvez queimasse o almoço.
Talvez apanhasse do marido.





sexta-feira, 12 de março de 2010

Simplício Aroeira descobre o que é a Morte

Urubus na árvore por Rafael Lavenère.
Foto: Rafael Lavenère


Cirilo S. Lemos
      O nó precisa ter sete voltas e correr sem impedimento quando eu me atirar ribanceira abaixo. A alvorada é boa hora para morrer. Quando a passarada começa a algazarra e as abelhas voam e os besouros zumbem e as flores se abrem. Alegria besta, essa do bosque, de esfregar na minha cara que tudo vai continuar igual quando eu me for.
          Escolho uma mangueira morta para pendurar o laço. Que nada vivo divida comigo o crédito pela minha morte.
O morro não é muito alto: arredondado, cortado por um barranco onde vagabundo despeja carcaça de carro, lixo e, desconfio, corpo de gente. Encostadinha na borda, a árvore morta, cuspindo raiz para além do barro seco. Atrás de nós, a estrada de terra de onde vim.  
A forca me espera, mas não posso deixar de espiar os urubus trocando olhares, sussurrando rapinagens de urubus. Estão falando de mim, aguardando ansiosos para saborear meu cadáver.
Isso vai ser um problema.  
Bebo um grande gole da garrafa de cachaça que carrego dentro do paletó. Meu cadáver é para apodrecer na terra, alimentar as ervas que crescem em tufos por entre os carros calcinados, adubar esse pedacinho da mãe terra. Não pra engordar urubu. Não pra virar bosta de urubu. Se eu quisesse ser bosta, bastaria continuar vivo.
            Mais um gole de cachaça, que é pra compensar o tempo perdido.
Esse sou eu: velho, pobre, bêbado, quase um mendigo. O que foi que construí nessa vida? De que me valeram todos aqueles livros lidos, todas aquelas besteiras escritas, toda aquela abstinência de álcool? O tesouro que acumulei é esta barba desgrenhada e cinza a se misturar com o cabelo, é essa bengala, é esse cachecol imenso pendurado no pescoço nem sei pra quê.
Dá trabalho subir nos galhos secos da mangueira, mas eu consigo. Passo o nó corrediço no pescoço e o ajusto com cuidado. Não há para que ter pressa: suicídio é arte, um teatro cujos atos devem ser executados bem devagar. Há que se degustar cada sensação, o toque do vento e do sol e da corda na pele, saborear a textura de cada uma, o doce e o amargo na saliva, o medo de viver e a angústia de morrer. Morrer é, sim, uma experiência da vida. Pois vamos lá.
Equilibro-me no galho, a corda no pescoço. Daqui posso ver a serra azulada contornando o horizonte, ondulando feito o álcool no meu sangue. Estufo o peito, recito versos de um poeta morto e pulo.
A traquéia quebra, mas o que me impressiona mais é o estalo do galho se partindo logo acima de mim. Rolo pela ribanceira como um pneu velho, um turbilhão de trapos e cabelos quicando nas pedras e raízes. A poeira me entra nos olhos, boca, ouvidos, nariz, em cada poro e cada orifício, enquanto eu penso: isso não acaba nunca?
Mas acaba. Deitado em meio ao lixo, aos cacos de vidro, aos dejetos e toda sorte de sujeira, eu vejo que acaba. Ossos quebrados, cortes profundos e sangue vazando pela boca, um gosto enjoativo de ferrugem e cachaça. O pescoço parece não existir mais. Só resta a sensação nem boa nem ruim de um completo vazio onde deveria estar o corpo.
A visão agora é um quadro desfocado e imutável: uma parede de lixo ao lado esquerdo, uma árvore ressequida coalhada de urubus assustados e um céu de chumbo brotando do chão e preenchendo todo o fundo. Alguma coisa está muito errada. O céu não deveria sair do chão nem o lixo formar uma parede vertical. Isso só se explicaria se eu estivesse deitado com o lado esquerdo no solo. Acho que é isso, então. Não dá para saber ao certo, a visão vai e volta e eu não consigo perceber nenhum outro sentido funcionando. Olfato, paladar, audição, nada disso é acessível agora.

 Quanto tempo se passou desde que saltei do barranco?
 Agora que não passo de uma cabeça confusa presa a um corpo evanescente, o tempo se desfez num único e interminável agora. No final das contas, morrer não é exatamente como eu imaginei. A mesma monotonia de estar vivo, mas não se pode chatear ninguém com reclamações.
Sonho: uma ruiva gritando comigo na porta de um bar, nós dois bêbados o suficiente para discutir nossa vida sexual em público. Ela não é minha mulher, não tenho idéia de quem possa ter sido.
Um avião passa fazendo sombra no meu rosto.
Não posso ouvi-lo, apenas preencher com a imaginação seus movimentos mudos.
É outro devaneio, penso.
Mas vejo que não: é um lagarto gigantesco acima de minha cabeça.
Não, nem lagarto, nem avião. Consigo distinguir o bico nojento, a pele sarnenta debaixo das penas escuras e fedorentas. Seu olho a me observar tal qual um planeta imenso pairando nas alturas. Em algum lugar abaixo do pescoço, meu corpo deve estar tendo calafrios de pavor.
A primeira bicada arranca-me o lábio superior. Posso senti-lo descarnado, deixando à mostra parte das gengivas roxas e dos dentes. O urubu ergue a cabeça para engolir a carne. O movimento de sua garganta empurrando meu lábio para seu estômago é engraçado. Dou-me conta de que nunca vi um bicho desses tão de perto. Ele abre suas asas e arranca mais um naco da minha boca, esculpindo-me um sorriso perpétuo. Mais urubus se aproximam, os bicos escancarados. Quando um deles estoura meu olho, é como uma explosão de luz e fogos vermelhos por todo o universo. Então só resta escuridão e um banquete.

Três sonhos a me ocupar nessa letargia monótona.
Uma moça da minha juventude, que se abaixa graciosa para apreciar um desenho feito a giz na calçada, os cabelos de um castanho escuro que refulge um brilho prateado. Ela sorri para mim depois de falar de alguém querido que sofrera morte fortuita. Um sorriso de pura tristeza, e ainda assim o mais belo que eu já vi.
Um livro de Nietzsche me cuspindo na cara que Cristo era um idiota, assombrando-me com palavras hereges e sujas, até ser usado por minha tia para alimentar uma pequena fogueira nos fundos do quintal.
A visita a uma casa de repouso próxima à Central do Brasil. Por fora a beleza da arquitetura, por dentro os corredores de cerâmica ensebada, abarrotado de espectros humanos revolvendo-se na própria sujeira. Uma celebração ao que somos lá no fundo.
Imagino, abrigado dentro da treva profunda, que não tenho mais rosto, só uma massa pútrida de restos de carne e ossos escurecidos. Nesta eternidade que estou aqui – um dia ou mil anos – muito refleti sobre o que é a morte. E cheguei à conclusão de que é como uma fila de banco, só que bichos carniceiros fazem coisas com seu cadáver. Isso é a morte. Nada de harpa, nada de tridente. Apenas um longo e tedioso aguardar.
Algo mordisca a borda da minha consciência.
Um intruso em meu vazio?
 “Quem está aí?”
A resposta vem na forma de um serpentar na base do pensamento. Assusto-me: algo se alimenta da única coisa que ainda ficou de mim.
Um novo serpentear me agita a mente. Seja o que for, parece procurar por algo. Reconheço a sensação de mordida. Pela primeira vez desde que me matei, sinto algo semelhante a dor. Vem em ondas, irradiadas a partir do ponto onde o invasor se conecta comigo através do abocanhar agudo.
Posso ouvir sua voz, tocar seus sentimentos doentes e a partir disso delinear sua forma: um verme. Formado por centenas de outros vermes.
“Podemos nos alimentar de você, querido?”, ele sibila, uma forma de cobra horrenda, translúcida, leitosa.
Minha mente estremece e se encolhe. O verme avança e devora outro pedaço dela. De mim. Ele ri do meu desespero, saboreando lembranças minhas da infância, sonhos, emoções. Outra mordida e lá se vai a imagem da moça graciosa de cabelos castanhos, o sorriso inesquecível transformando-se num suco adocicado a escorrer pela boca arreganhada do verme.
Bocado por bocado, ele vai comendo tudo o que fui. Contorce o corpo de prazer a cada mordida. Eu me torno cada vez menor, até que tudo o que resta de mim, de todas as coisas que fui e de cada aspecto que assumi, é o medo da última mordida.
E quando ela vem, até mesmo o medo se dissipa. Nem o verme me assusta mais. Agora eu e ele somos um, e juntos rastejamos de volta para as profundezas do nada.








quinta-feira, 11 de março de 2010

a carta II

Maria de Fátima
Meu querido António

É madrugada e eu levantei-me zonza de sono. Acordei com o lençol gelado. A cama tão fria na zona onde devias deitar-te. E é hoje, que estamos no Inverno, e chove, e tem até nevado. Mas foi assim tal e qual no pino do Agosto.
Tenho a mantilha preta sobre os ombros e tirito. Vou ligar o aquecimento. Agora estou melhor. Mas este frio é outro.
Este frio não se acomoda com as moléculas subindo moles pelas paredes da sala onde te escrevo. Este meu frio não vem do ar circundante que dança numa roda de ar quente. Este frio não me arrefece as solas dos pés que estão morninhas metidos nas pantufas que me deste num Natal passado.
O frio que me tolhe, não impede que os dedos das minhas mãos escrevam cada letra: eu a querer dizer-te, simplesmente, amo-te, morro de saudades, e eles a inventarem palavras soltas, a dizerem do frio que me enregela a alma desde há tantas noites.
Não lhes perdi o conto.
Aponto-as, uma após a outra, tal como as manhãs e as tardes.
Com giz da cor do fogo, faço um traço em cruz como me ensinaste, numa folha de calendário que pendurei na parede. Aquela parede branca da cozinha.
Um dia olhaste para ela de cima abaixo, e pediste, mais ou menos com estas palavras, e os teus olhos luziam com a luz que lhes era de costume, aquela que me alumia hoje apenas de recordá-la:
Não pendures nada neste muro.
Nada que não seja, um dia que aconteça, um calendário em que, um de nós, o destino sabe qual da gente há-de aí escrever, um dia a seguir ao outro, o tempo de falta para nos reencontrarmos, seja no céu ou no espaço, em forma de anjos ou em partículas libertadas de cada um dos nossos átomos.
Foi assim que disseste, e agora deu-se: foi no Natal passado que deixaste de ser o António a entrar, risonho ou rabugento, as botas enlameadas a pisarem cada bocado de tapete.
Serás anjo ou pedaço desintegrado, amo-te demais para ficar chorando.
Estas cartas de amor, como lhes chamo, fazem abater em mim o frio de que padeço, e volto para a cama certa de que um dia destes tenha resposta tua no correio.
Maria Angélica







a carta I

Maria de Fátima
Minha querida Matilde

Escrevo-te de um lugar de guerra
Um lugar sem nome
Escrevo-te num dia da semana entre dois domingos – será hoje dia santo?!
E nem sei se é Janeiro, ou se será Dezembro, ou um outro mês que fique de permeio
Mas o ano em que escrevo, esse, sei: mil novecentos e sessenta e oito
Eu já fiz vinte anos e tu farás dezoito.
Matilde bem amada
Consolação da minha alma triste. Canção que me cantam os anjos quando ando de arma em punho a catar sei lá eu bem que inimigo.
Tão calmos que eram os teus abraços. Neles me aninho em sonhos doces, como doce é o teu regaço onde irei deitar-me todos os dias que me restarem depois deste degredo.
No teu colo macio é onde durmo quando tenho a bênção de um recolhimento. E revivo-te.
Meu querubim, minha alfazema, meu tesouro ignoto de preciosas pedras. Minha abelha rainha, imensamente nua daquele pano.
Tu a unires as sobrancelhas, a franzir os teus olhos mais verdes do que os muitos verdes por onde me caminho.
Tu a dizer-me: a capulana, deixa estar, Tiago, que ela há-de soltar-se.
E rias-te, desengonçavas o teu corpo muito virgem para rires do meu desassossego, das minhas mãos tremendo por não saberem como desatar os nós dos teus vestidos, não terem o mister de retirar os panos com que tapavas os segredos do teu corpo.
Naquela tarde, a tua capulana estava atada com um nó corrido. Quando o nó se desfez, assim num por acaso, surgiu o teu corpo livre de mais atavios. Sublime.
Tu, minha Matilde, a mostrares-te nua, e eu de olhos piscos como se os entontecessem luzes de meio-dia em Agosto.
Ai Matilde, minha doce Matilde, que naquela tarde cheiravas a sargaço e a limos. Ou seria de estarmos na maré vaza e o cheiro vinha dos caranguejos que por ali se passeavam, e das lapas, curiosas, a soltarem-se das rochas?
Seria o cheiro que tu tinhas, ou seria a maresia, minha doce amante, minha querida?
Mas que importa saber a que cheiravas, se eu sei que o teu perfume é o dos lírios no altar de todas as Nossas Senhoras que há por esse mundo?!
Minha adorada Matilde!
Deste lugar de sangue e ódio, deste local tão longe, envio-te mãos cheias, cordões e mais cordões de letras a dizerem: Amo-te. Que a palavra se repita, que reverbere dela o ar dos locais onde respires.
Este que será teu para toda a eternidade
Tiago







quarta-feira, 10 de março de 2010

Seda Branca

Exausto, larguei armas e chapéu e meti a cara no rio. Caminhava há dias, após haver sido destacado para as fronteiras do Norte. O Imperador Qinzong temia os revoltosos que se proliferavam na região e conclamara guerreiros de todos os rincões do mundo.

Ouvi som de flauta e me pus em alerta, espalhava-se o rumor de que bandos de ladrões e assassinos se escondiam na floresta, mas avistei um senhor, cabelos agrisalhados, descendo em direção ao rio.

Saudei-o e recebi a resposta de que vinha em paz. O viajante se sentou ao meu lado e acendeu uma fogueira. Anoitecia e compartilhamos um jantar improvisado.
Decorridas horas de silêncio, o senhor falou:
Estou cansado, vivi muitas dificuldades nestes últimos meses e não encontro pouso em lugar algum. Já ouviu algo a respeito do “Homem de Branco”?
Neguei.

O nome de nascimento dele era Bai Hong-nu, filho duma família humilde, educado para ser soldado, assim como vejo que você é. Lutou em muitas guerras e caiu nas graças do Imperador. Foi promovido a general, senhor de muitos guerreiros, e venceu todas as batalhas na quais pelejou. Porém, numa noite, quando o Imperador adentrou o alojamento da concubina favorita, encontrou Hong-nu adormecido nos braços dela.
Enfurecido, o Imperador conclamou a guarda, com ordens para executar Hong-nu, porém, este, com experiência de anos a serviço do Imperador, conhecia bem o castelo e suas incontáveis passagens secretas; neste labirinto, Hong-nu se embrenhou e escapou da sanha inclemente do Imperador. Fugiu para o Norte e apagou seu passado. Vestia-se apenas de branco, na ausência dum nome, nos povoados onde passava, alcunharam-no Wán, o homem da seda branca.

Wán olvidou seu passado de guerra e, de vila em vila, evitando as grandes cidades, pregava uma inusitada mensagem de paz e perdão. Arrebanhou discípulos, que ouviam fervorosamente seus ensinamentos. E eram tantos, que fundaram um povoado.

Pessoas vinham de todas as partes para escutarem as lições de Wán e sua reputação alcançou o grande Céu. Guerreiros baixavam armas e se uniam aos acólitos de Wán, esposas abandonavam seus lares para acompanharem o sábio.

Porém, sutil e imperceptivelmente, o conteúdo da doutrina de Wán começou a mudar. Da paz, abnegação e perdão incondicionais, Wán instruía que para tudo neste mundo há exceção, de que não há claridade sem sombras, e que o mal e a guerra eram contrapartes do bem e da paz. Aos seus discípulos, propagava que o tempo de paz estava por terminar e que, em breve, quem o amava teria de brandir armas contra um poderoso oponente.

Assim, no início da primavera, Wán e um exército de cem mil combatentes se dirigiram ao Sul, com a missão de matar e destronar o Imperador Qinzong. Wán era um dissimulado, durante todo este período, ele apenas buscava uma oportunidade para se vingar do Imperador que o degradou e lhe retirou a mulher amada, à qual, diziam, Qinzong havia mandado decapitar.
Inevitavelmente, o Imperador designou tropas para deter o exército de Wán. Durante três meses, Wán desbaratou o contingente imperial, porém, a escassez de suprimentos, o cansaço e as chuvas incessantes do verão foram responsáveis pelos primeiros revezes. Recuaram para as montanhas.

Vendo a grande oportunidade para derrotar o oponente, o Imperador enviou um grande exército, que cercou Wán e seus guerreiros. Emboscados nas montanhas, o fim era evidente.
O exército de Wán tinha duas escolhas, lutar até a morte e os que fossem capturados sofreriam torturas e ultrajes inimagináveis, ou desistirem e privarem-se de suas próprias vidas.
Wán deliberou com seus capitães e concluíram que, por ser a morte inadiável, todos se matariam ao nascer do sol.

Quando os tambores do Imperador soaram e as tropas iniciaram a marcha rumo ao bastião de Wán, trinta mil revoltosos, punhais mirados para o coração, sangraram até a morte.
As tropas imperiais não encontraram sobrevivente algum.
E você estava entre os soldados do imperador, para saber tudo isto? Perguntei.

O senhor acendeu um cigarro e, com um sorriso iluminado pela claridade da fogueira, respondeu.
Não. Estive com o punhal afiado no peito, mas, no último instante, refleti: Somos muitos, não conseguiremos escapar, mas um só homem facilmente se envereda nas montanhas e some.
Sou Bai Hong-nu, conhecido como Wán, o homem da seda branca. O punhal não entrou no meu coração. Vivo e congrego um novo exército. E você será meu primeiro guerreiro.
Com que forças eu poderia resistir àquele homem, que trazia no olhar a energia do Céu, da Terra, do Fogo e dos Ventos?
A minha espada é sua, Wán. Respondi. Até a morte.





terça-feira, 9 de março de 2010

As canções de papel machê

Eu consegui minha primeira guitarra no verão de 1969. Para isso passei um ano inteiro guardando o dinheiro ganho ajudando meu pai na mercearia. Empacotei milhares de dúzias de ovos, ensaquei compras para todas as senhoras de perfume enjoativo da vizinhança, esfreguei o chão até ele ficar brilhando. E valeu a pena.


A primeira semana de férias, passei trancado no meu quarto. Eu e a guitarra. Toquei até meus dedos sangrarem e criarem calos. Quando achei que dava para enganar, dei o passo seguinte: criar uma banda. Eu na guitarra, João, meu melhor amigo, no baixo e a irmã dele na bateria. Judite era mais velha, mas apoiou o projeto desde o início.


Só faltava uma voz. Precisávamos de alguém para cantar, e Dite trouxe Clarice para minha vida. Desde a primeira vez que a vi, no primeiro ensaio sério de nossa banda, seu olhos doces no rosto calmo e o sorriso sereno ficaram marcados na minha memória.


Ali começara a carreira efêmera do “Papel Machê”, nome sugerido pela própria Clarice. Sabia que não duraríamos muito, mesmo assim foram os melhores dias de minha vida. Os bailinhos de sábado do quarteirão eram animados por nós com versões dos grandes sucessos da época. A voz de Clarice adoçava tudo, e viver valia a pena. Toda a tarde, tocávamos na sorveteria do bairro. Nosso pagamento era a banana split especial, que podia ser dividida com folga pelos quatro. E vez por outra, uma festa não renumerada de algum amigo.


Claro, algumas confusões aconteceram. Na festa de aniversário da minha prima, um amigo dela fez um convite para a nossa baterista. Ele não sabia que Mario, o namorado gigantesco da Dite, também estava presente. A briga generalizou-se, João quebrou o nariz e Judite três unhas, mas os instrumentos não sofreram nada.


No fim do verão, demos nosso último show. Dite iria casar-se e depois da confusão, Mario havia se tornado contrário à participação dela na banda. João e eu, ambos fazendo dezoito anos, iamos prestar serviço militar. Depois do final do baile, nos despedimos, prometendo uma reunião da banda em breve. Os dois irmãos foram para casa, enquanto eu acompanhei Clarice, que morava mais perto de mim. Os sentimentos entalados na garganta, por meses a fio, pareciam sentir o fim da estação. Queriam irromper, aproveitar os últimos dias de calor, antes que tudo terminasse.


Não consegui. Andávamos lado a lado, como fizéramos tantas vezes naquele verão. Discutimos sobre tudo o que não era importante. Lembramos os shows, as confusões, as brigas de João e Dite por qualquer bobagem...

Paramos em frente à casa dela e continuamos a conversa, encostados no Porshe da mãe de Clarice.


Ela fitava as estrelas, que pareciam reluzir no seu olhar Evitava virar o rosto para mim enquanto falava. De repente, após um súbito silêncio, ela suspirou e olhou para mim.


- Sabe porque eu sugeri o nome “Papel Maché”?


- Eu nem sei o que é...


- É uma forma de artesanato. Pedacinhos de papel amassados e colados... Sozinha, cada parte é lixo, mas juntas fazem lindos objetos. Como nós...


- A banda?


- Sim, eu queria que esse verão não acabasse nunca... A banda, cantar... A companhia de vocês. Principalmente a sua, Paulo. Você foi importante demais para mim.


O coração bateu, descompassado. Era agora.


- Clarice, eu...


- Meu pai foi transferido para outro estado. Mudamos-nos em uma semana. Passei o verão inteiro querendo não pensar nisso, em tudo o que vou perder. E vocês conseguiram, mesmo que agora eu vá perder ainda mais coisas do que antes...


Beijou-me de leve na boca e foi em direção à casa. Eu fiquei ali, parado, olhando ela se afastar, o coração apertado com tudo o que eu não disse e nunca ia dizer.


Assim terminou o verão de 1969. Cresci, casei, tive filhos e enviuvei. Em cima da mesa do meu escritório, as fotos da minha família. Em um canto especial, um porta-retrato de papel maché, com uma foto dos quatro integrantes do conjunto, tirada antes da última reunião pelo pai dos dois irmãos... Judite me enviara alguns anos depois. Ela atrás, abraçada com João, os dois fazendo careta. No primeiro plano, Clarice e eu, rindo. Nunca mais vi nenhum deles.


Penso que aquele verão poderia ter durado para sempre. Foram os melhores dias da minha vida, os do verão de 1969.





segunda-feira, 8 de março de 2010

Saudade

Acordou em uma cama de hospital, sem entender direito ainda o que havia acontecido. Só se lembrava da derrapagem, da chuva, da dor quando fora jogada para fora do carro, quebrando as costelas, e mais nada. Onde estavam os outros? Ela estava a sós naquele quarto. Desespero, solidão...
Estava muito longe de casa, era uma viagem de férias, estavam a caminho de uma praia distante, um acampamento, gostavam tanto disso, principalmente Carlinhos, que levava tudo na brincadeira. Seu filho, um menino lindo de dez anos que amava a natureza e aventuras.
E Paulo? Sempre fora um bom motorista e a velocidade nem estava tão alta, mas a estrada mal cuidada e a chuva forte e inesperada não lhe haviam dado chance de escapar da derrapagem.
Olhou para si mesma, as costelas enfaixadas, por causa da fratura, com certeza. Ainda sentia dores, mas parecia que estava tudo no lugar. Apertou a campainha ao lado da cama, precisava urgentemente de informações, alguém que lhe dissesse onde estavam seu marido e seu filho. Depois de alguns minutos transformados em horas pela ansiedade e pela incerteza, uma enfermeira entrou, finalmente.
"Por favor, onde estão meu marido e meu filho?"
"Calma, senhora, preciso do nome e do telefone de alguém que possa vir buscá-la."
"Depois... Porque não me diz logo? Estão em estado grave?"
"Infelizmente, só vai poder saber depois que chegar o médico que a atendeu."
Quando o médico, um ortopedista, chegou, não veio só, estavam com ele uma assistente social e um psiquiatra. A notícia era mais séria do que ela pensava. Em primeiro lugar lhe deram um tranquilizante forte, depois, foram lhe contando todos os detalhes.
O carro tinha capotado, rolado pelo barranco, ficado completamente destruído, Paulo e Carlinhos presos nas ferragens, ela só escapara por ter sido jogada para fora. Estar dopada salvou-a de novo, o choque não a matou ali mesmo, naquele momento, ao saber da notícia.
Teria que voltar à sua casa, rever tudo, não poderia abandonar tudo o que seu marido e ela haviam construído juntos, desde namorados. Agora, não estava mais inteira, haviam-lhe arrancado, de repente, as partes mais importantes de sua vida. Como na canção de Chico Buarque:
Oh pedaço de mim
Oh metade arrancada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar...
Ela e Paulo sempre tinham sido como duas metades, é muito difícil encontrar alguém como ele, alguém com quem se encontra paz, só de olhar, olho no olho, coração pra coração. E Carlinhos, também seu filho tinha ido embora. Uma mãe não foi feita para perder um filho. O contrário sempre acontece, é a lei natural, os mais velhos vão primeiro. Enterrar um filho é enterrar um pedaço da gente, que foi tirada de dentro da gente, cresceu ali, nove meses, e depois ainda continua ligada a nós... Outro trecho da mesma canção:
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu...
Eles foram embora e ela ficou... Não poderia segui-los agora, tinha muito ainda que viver, pessoas que poderiam precisar dela. Precisaria retrabalhar esse luto, transformá-lo em algo que lhe permitisse viver. Lembrou-se de uma frase que lera um dia:
"Saudade é o amor que fica." Ela ficara, o imenso amor pelos dois ficara, junto com a saudade.





domingo, 7 de março de 2010

Blavinos

por Ju Blasina

BLAVINO 20 — Tic-tac


Tic

Tac-tic
Já são doze

Badaladas horas
Em dias seguidos por
Noites em claro. Ouço eu

O tilintar das moedas caídas

Ao chão feito migalhas dou-
-rando o tempo perdido
Para não passar

Sem ti até
O tic-tac

Dói



BLAVINO 21 — Ilusão

Ilusão

Serei eu
Miniatura

Singular nos
Delírios do além
Ou imaginária criatura

Estranho sonhar de outrem

Serei eu marionete de
Deuses, destino
Ou sorte? Só

Não serei
Na morte

Ilusão





A Beata

por Ju Blasina

Beth aparentava a típica beata: os cabelos longos, já sem corte, geralmente guardados em trança, tocavam-lhe as coxas cobertas por saias que terminavam junto aos joelhos, sempre marcados pelas tantas horas em devoção. Usava camisas largas, na tentativa frustrada de esconder os seios fartos. Sempre abotoava até a última casa, sempre rezava até a última conta. O terço de madrepérola que carrega no pulso e o crucifixo do pescoço eram as únicas jóias que exibia com orgulho. Percebendo isso, rezava para afastar tal sentimento egoísta.

Rezava também para atrair a aprovação dos céus, para perdoar aqueles que dela caçoavam, para castigar os que blasfemavam, para acordar e para dormir. Rezava para tudo! Antes de cada refeição, antes de cada relação — rezava muito para satisfazer ao marido, tão exigente. E tendo as preces atendidas, rezava ainda mais depois.

Era a primeira a chegar à igreja e a última a sair. Não se misturava as outras beatas que lhe invejavam a olhos nus, tamanho cabelo, tamanho fervor, tamanha disciplina, e secretamente, tamanha beleza, tamanha casa, tamanho marido.

Ao avistá-la adentrando a igreja, o padre sempre fugia temendo o pedido de outra confissão. Tão temente era ela... Não omitia um detalha sequer de seus pecados. Contava ao padre tudo, em seus mínimos detalhes. E pecava, a noite toda, toda a noite... As demais beatas, na tentativa de proteger o padre daquela monopolista religiosa, faziam fila à porta do confessionário. Mas Beth era abençoada pelo dom da paciência e não esmorecia jamais!

Só o padre sabia o porquê de tanta oração, dos cabelos tão longos e bem cuidados, do corpo tão escondido nas roupas comportadas. O padre e o belo marido sadomasoquista. O último gostava de puxar-lhe os cabelos enquanto a penetrava. O primeiro não confessava, mas gostava de imaginar a cena. O sexo violento, que tanto agradava a ambos, tinha seu preço nas marcas deixadas no corpo e na alma da beata. Sorte que, para os pecados havia as orações, e para os hematomas, pomada. A reza era a pomada de sua alma e o padre, o doutor que a prescrevia. E todo dia ela precisa de uma nova dose.

Não falhava uma missa sequer, para desespero do padre, desgosto das outras beatas e principalmente, satisfação do marido — o que para ela, era tudo o que importava. Que Beth, a beata, era uma boa esposa, disso nem Deus discordava. Já se era tão boa enquanto beata, depois de tantas confissões, até o padre tinha lá suas dúvidas...