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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

SAMIZDAT 42 - Feira do Livro de Frankfurt




Por que Samizdat? Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
Kappa, Edweine Loureiro

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
História de menina e moça, Bernardim Ribeiro

CONTO
És Feliz?, Joaquim Bispo
Dúvida, Leandro Luiz
Confissões a Santo Antonio, Claudia Isadora Fernandes de Oliveira
Sem Fim, Yvisson Gomes dos Santos
O espelho, Priscila Queiroz
Introdução ao corpo nu, João Gilberto Engelmann
De se comer com os olhos, Caio Russo
A menina dos amores trancados, Fernando Sousa Leite
O enCanto da sereia da baía, Luísa Fresta
Lucas pensa que não é possível, Anderson S. Freixo
Passos no telhado, Cinthia Kriemler
Buraco Negro, Mario Filipe Cavalcanti
Trivia, Chris Sevla
Abate, Guilherme Scalzilli
Segundo. Volmar Camargo Junior

ARTIGO
4 razões por que todo escritor deveria ir à Feira do Livro de Frankfurt pelo menos uma vez na vida, Henry Alfred Bugalho

TEORIA LITERÁRIA
O Túnel de Ernesto Sabato, por ele mesmo, Tatyanny Souza do Nascimento

CRÔNICA
Do atum ao mate, Ana Beatriz Manier

POESIA
Reverberar, Francisco da Silva
Do destino à origem, J. Maffeis
Quatro improvisos, Leonardo Alves
Pueril, Ju Blasina
Consequência, Gilmar Ricarte de Almeira

Scribd - https://www.scribd.com/doc/245125952/Samizdat-42-Feira-do-Livro-de-Frankfurt
Calamèo - http://en.calameo.com/read/000002238995fce1831fe

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SAMIZDAT 42 - Feiro do Livro de Frankfurt
Por que Samizdat? Henry Alfred BugalhoRECOMENDAÇÃO DE LEITURAKappa, Edweine LoureiroAUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESAHistória de menina e moça, Bernardim RibeiroCONTOÉs Feliz?, Joaquim BispoDúvida, Leandro LuizConfissões a Santo Antonio, Claudia Isadora Fernandes de OliveiraSem…





terça-feira, 28 de outubro de 2014

Viagem a minha terra


Antes de falar da viagem, quero falar da terra. E para falar da minha terra, transcrevo antes a pequena jóia de concisão e beleza que o Rosa esculpiu para o seu burgo do coração. Disse o Rosa: “Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito”. Eu digo da minha Buriti Alegre: “Buriti é pequenino lugarejo encantado, beira planalto, nos confins de Goiás. Só quase vereda, mas tão de repente mítico!”. Gosto muito do nome Buriti e mais ainda do adjetivo que lhe acrescentaram, ainda que atribuir alegria a uma palmeira pareça sem sentido. Para mim, o Alegre de Buriti faz todo sentido. O Buriti, nas palavras do Rosa, é senhor dos horizontes. Ali ele se alteia, altivo. Gosto dessa altivez que não é soberba, mas destinação. E a mesma alegria sem muito sentido que Buriti carrega no nome, eu carrego em mim – com todo sentido.

Já são mais de trinta anos longe daquele lugarejo encantado e a cada volta sinto que estou todo lá – a geografia da memória pouco se altera com o tempo. E a cidade mesma pouco mudou. O que mudou foi a paisagem humana. A cada volta sou guiado pela geografia do afeto. Desde que bati asas do meu chão, os pousos lá são raros e rápidos. O pretexto é quase sempre um casamento, um aniversário ou a despedida de um parente que voou para outra geografia.   

A viagem da vez não foi por nenhum desses motivos. Minha mãe entrou com um processo de aposentadoria e lá fomos eu e ela para uma entrevista com o advogado que cuida do caso. Viagem mais rápida do que todas: chegamos à noitinha de um dia, voltamos à noitinha do outro dia. Viagem de um dia para outro, a rigor, mereceria o nome de pernoite. Mas, para mim, foi mesmo uma viagem. E não sendo viagem de passeio, e sendo viagem em dia útil, revivi o cotidiano típico de uma cidade do interior. Gosto demais de ser do interior. E pensando agora em termos metafísicos, o mais importante de nossas vidas se passa no interior – essa geografia de dentro tão misteriosa e fascinante.

O compasso de uma cidade do interior é o da lentidão. E lá ficamos eu, minha mãe, a tia que nos hospedou, entregues às horas escorrendo lentas. Todas as horas sorvidas na sua inteireza. Na varanda da casa da tia, e enquanto corria a tarde, conversávamos, ríamos, trazíamos à tona o que escavávamos no chão da memória, todo ele bem sortido de idos e vividos. Enquanto conversávamos e ríamos, observávamos quem passasse pela rua e a tia, sentadinha no seu mirante doméstico, dava notícias de todos. Foi nesse compasso que tivemos notícias de um primo. É primo de segundo grau e de pouco contato. Mesmo com o pai, que é primo em primeiro grau, o convívio já foi pouco. O filho desse primo, quase trinta anos, se extraviou de si, leva uma vida errante, sofreu algumas prisões e tem um jeito de maior abandonado que corta o coração. Quando o vimos, ele vinha de um dia de trabalho – trabalho incerto, sazonal – e trazia o corpo todo sujo. Ele vive sem rumo, sem pouso certo. É filho do primeiro do casamento do pai – pai que já está no terceiro casamento. Doeu ver esse primo tão entregue à sua falta de rumo.

Enquanto conversávamos, um carro de som anunciava o falecimento de alguém. Numa regressão proustiana, para dizer como o Nelson Rodrigues, reconheço a mesmíssima música fúnebre, o mesmíssimo texto. O carro circula pela cidade inteira. Na minha cidade, todos os velórios são públicos. Em criança, eu me impressionava com esta frase: “O féretro sairá da rua tal, a tal hora”.O que me impressionava, em verdade, era a pompa da palavra “féretro” que, pomposa embora, me entregava seu significado com a clareza que um dicionário talvez não o conseguisse.

A tarde no fim, a conversa baldia indo daqui pr’ali, minha mãe nota um adejo de tristeza no rosto da tia. Indagada, a tia pensa um pouco e responde de um modo profundo, compungido: “Não é tristeza. É medo”. Como eu entendi a extensão daquela frase tão curta! A tia, viúva há seis anos, é alegre, conversadeira e está muito bem para os seus oitenta e dois anos. Mas ela sabe, ela sente que, por melhor que esteja, uma indesejada visita não tardará a chegar. Daí a frase que calou fundo em mim.

Escurece. E a noite sempre traz consigo alguma tristeza, algum medo. Na noite escura, eu e minha mãe fazemos o caminho de volta em direção a mais um dia. 





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Colcha de Retalhos #2

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


MATE

Desde o casamento, acostumou-se a ser tratada como uma rainha, ia para onde quisesse, quando quisesse. Quase todos os desejos lhe eram atendidos, com exceção dos que revelava apenas entre quatro paredes. No entanto, devido às regalias, as dificuldades do marido pouco lhe incomodavam até aquela tarde chuvosa.
Ao arrumar as gavetas, para evitar que os velhos pijamas embolorassem, encontrou as cartas e bilhetes. Descobriu naquele momento que ele só se interessava pelas outras rainhas.
Tomada por ira, desgovernada, deixou-se levar pelo primeiro peão que cruzou pela casa.




DESTINO BIPOLAR

Em alguns momentos
A sorte sorri para mim
Mas no momento seguinte
Emburrada
franze o cenho, faz bico
E me dá as costas




LUA DE CHESIRE

A lua, deitada no céu, sorri um sorriso minguado
Ela sabe que, por estas ruas enevoadas, durante a madrugada, encontrará apenas os bêbados e os loucos




POVO DAS SOMBRAS

O povo das sombras aparece sempre no mesmo horário, junto com as sombras, assim que o sol nasce. Sempre muito cedo, ainda na madrugada, mas, aparentemente, sem nenhuma ajuda de qualquer deus.
Preparam seu café antes de você acordar, limpam o escritório antes de você chegar, colocam o ônibus para rodar antes de você se aglomerar ao congestionamento... Ligam os motores e preparam a cidade para você só chegar e sentar na janelinha, exigindo serviço de bordo.
E você nem ao menos os enxerga, faz questão de desviar o olhar.






domingo, 26 de outubro de 2014

Diante da forca

Ela ocupava um naco de quase nada dos meus pensamentos. Aparecia e sumia rápido, sem deixar cicatriz. Não causava insônia ou gastrite. Passava ao largo dos meus poemas debutantes. Nas aulas de Introdução à Filosofia ou de História do Pensamento Filosófico-Científico Ocidental da universidade, a discussão acerca do tema não me apetecia muito. Eu chegava a cochilar, enquanto o pós-doutor desfilava aqueles conceitos intransponíveis, cuja comprovação empírica nenhum dos alunos se aventurava a querer passar. A verdade é que a vida pulsava sempre tão lépida no meu dia a dia, que o fantasma da morte não me amedrontava.

O problema foi eu ter me tornado pai. Quando minha filhota nasceu, há três anos, a "indesejada das gentes" sentiu-se no direito de aparecer no meu canteiro, hóspede maldita com presença confirmada. Entre uma lavoura e outra — nas minhas atividades como cronista, contribuinte, marido, filho e pai —, a erva-daninha ocupou-se de me atazanar.

Desatemos qualquer equívoco, querido leitor: não perdi nenhum ente querido. A mulher e a filha suportaram bem o parto e vendem saúde. Parecem mais vivas que nunca. A preciosa não precisa de mim para nada. Se eu for embora, certamente sobrevive. A morte física não me beliscou com ataque fulminante, nem aos meus. O que apareceu de repente, sem motivo real, foi a iminência de vitória da diaba, com todo o poder que ela tem de resgatar qualquer um (inclusive eu) a qualquer momento, de forma definitiva.

Assim, diante de uma ameaça constante da morte, fui tomado por um desejo de viver eternamente. Apresento apenas alguns dos muitos motivos. Preciso prover minha casa e família. Tenho um romance inédito a entregar ao editor até o fim do semestre. Ainda não me reconciliei com minha irmã mais velha. Minhas gavetas estão desorganizadas e ninguém saberá compilar meus poemas num livro póstumo — não numero páginas, nem designo títulos ou separo capítulos. Preciso fazer campanha contra o Aécio. Falta ler a obra completa de Guimarães Rosa. Preciso degustar Shakespeare no original. Só agora consegui descartar a única amante, primeira ex-namorada, para me dedicar fielmente à esposa. É injusto deixar viúva tão bela e órfã tão pequetita. Só consigo correr meia maratona. Ainda considero difícil distinguir o conto da crônica. Essa morte deveria tocar outro fazendeiro...

Enquanto capino palavras supérfluas numa sentença, enquanto sedimento amores no campo literário, ou planto sementes que acredito fecundas num novo texto, ou até mesmo enxerto ideias na troca de e-mails com leitores, preparo também o canteiro para a minha morte. Como já disse, não mereço sua foice cortando o meu pescoço. A sedução do paraíso também me parece desanimadora, já que o cumprimento da promessa tem garantia limitada para os santos ou pouco pecadores. Ávido, retomo meu Saramago e releio os grifos de As intermitências da morte. Quem dera se ela resolvesse fazer greve ou cessar justamente na minha vez... Quem dera uma vida eterna aqui mesmo...

Não sei se isso é positivo, mas pensar na possibilidade de a morte me sorver tem-me feito alguém melhor. Conversão radical! Outro dia, lavei as louças sujas lá em casa (até a panela de pressão e a leiteira). No domingo, levei minha filha ao zoológico e esperei, paciente, que a girafa saísse da toca. Tento não encrencar tanto quando a mulher pinta as unhas de vermelho. Já topei até participar do próximo Encontro de Casais com Cristo da minha paróquia, obedecendo a um pedido dela. Meu tio encomendou-me um discurso para sua posse num dos clubes de serviço de que é membro, e eu escrevi o pronunciamento de bom grado, entregando-lhe a tempo do ensaio. Nunca mais xinguei um flamenguista no trânsito, e estou menos agressivo com os cruzeirenses. Enquanto escovo os dentes, deixo a torneira fechada. Respeito a vaga de deficientes e idosos nos estacionamentos. Não escrevi linha alguma criticando a escalação do Dunga para os amistosos. Beiro à santidade, hein?!

E você esboça um sorriso, ilustre leitor. Não se convence com os planos deste alguém que deseja chegar a uma boa morte? Considera fracos os meus argumentos? Gostaria que eu me preparasse de forma mais efetiva, antecipando o pagamento das prestações do velório, flores, esquife, previdência privada? No mínimo, considera um dever que eu já deixe redigido meu obituário, para facilitar o trabalho dos colegas de redação. Antevejo seu sarcasmo quando critica minha coluna em branco (ou negro) no dia do meu falecimento. Mas mesmo que seja do seu interesse, nada disso eu vou fazer, porque minha partida demora, amigo. Duvido até que aconteça um dia. Prefiro relatar caprichosamente a morte de outrem, até mesmo a sua, se preciso for. Não somos inimigos, mas prefiro que tirem o seu couro ao meu. Desculpe a franqueza. É verdade. Essa história está ficando muito sem graça. Quero mesmo é que a morte volte a ocupar um naco de quase nada dos meus pensamentos e escritos.

Maria Amélia Elói





sábado, 25 de outubro de 2014

És Feliz?





Joaquim Bispo

Todos sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos, em forma carnal incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E um contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e de idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis com a naturalidade das coisas quotidianas.
Um avô meu morreu em 1950, quando eu tinha dois anos. Uma lembrança que tenho dele é, provavelmente, falsa. Era um agricultor que tinha vivido sempre na aldeia — exceto a passagem por França, na I Guerra Mundial — e cuja informação se fazia nos mercados, nas conversas de vizinhos e, talvez, num jornal mensal. O mundo dele era calmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo das estações. A curiosidade de o conhecer é natural. Como seria se o encontrasse hoje, ele parado nos cinquenta e tal anos da fotografia da parede, bem mais novo que eu agora? Como nos relacionaríamos, se convivêssemos durante, digamos, um mês? Como camaradas? A sua ascendência prevaleceria, ou a minha maior idade fá-lo-ia reverente, vindo ele dum tempo em que o respeito pelos mais velhos era sagrado?
Se bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. O meu avô esteve connosco um mês. Acompanhou a minha família em todos os momentos, desde os de lazer caseiro, aos de afobamento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe as maravilhas do meu tempo e indaguei-o sobre muitos aspetos do dele. Levei-o velozmente pelos lisos tapetes das autoestradas do país, mostrei-lhe a ponte de dezassete quilómetros sobre o Tejo, mergulhámos de metro no ventre da cidade em hora de ponta, guiei-o pelas avenidas dos grandes centros comerciais e outros formigueiros. Ele mostrava-se um pouco confuso, mas muito adaptável. Gostou especialmente da televisão por cabo. Devorava sobretudo as notícias. Embora se admirasse com os telemóveis, o computador e a internet, ficava particularmente desconfiado com o microondas e divertido com a máquina elétrica de barbear. Achava piada às roupas deste tempo e às pessoas nos ginásios. Ver-me a pedalar em seco levava-o às lágrimas. Gostou de encontrar roupa pronta a vestir e de conhecer as várias utilizações dos plásticos. Apreciou o serviço de aconselhamento médico pelo telefone, a que tive de recorrer. Admirava a utilidade de conservação do frigorífico e a frescura das bebidas e da fruta, embora achasse esta insípida, apesar das cores fortes e dos tamanhos surpreendentes.
Finalmente, chegou o dia em que o prazo planeado acabava. Chamou-me de lado e — cito de memória — disse-me:
«Amaro, meu homónimo, meu velho neto, gostei muito de conhecer a tua família e o teu mundo. É um mundo admirável, mas difícil de compreender para um homem do meu tempo. Custa-me a crer que os homens foram à Lua, que desvendaram as entranhas da vida, que criaram certas maravilhas tecnológicas. Talvez tenham feito tudo isso, mas continuam a não ser solidários; nem sequer conseguem viver juntos. As guerras são permanentes, e em inúmeros pontos do planeta há milhares de pessoas a morrer de fome — que conceito abominável — enquanto nos países ricos se destroem milhares de toneladas de alimentos, para não deixar baixar os preços. As cidades estão cheias de fumo e sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se em pequenos espaços, trabalham toda a vida para pagar a casa, quase não veem os filhos. Toda a gente tira cursos superiores, mas poucos conseguem exercer uma profissão nessa área de estudos. Os jovens apenas conseguem trabalhos precários, às vezes, escravatura encapotada, com nomes pomposos como “estágio não remunerado”.
E, no entanto, tens razoáveis condições para ter uma vida boa: já não trabalhas, recebes o suficiente para viver, tens tempo e saúde, podes fazer o que quiseres. E o que fazes tu? Agora brincas aos cronistas, como tens brincado aos bloguistas e aos contistas. Passas demasiado tempo ao computador. Tens mais amigos na internet que na “vida real”. As novidades tecnológicas vêm, envolvem-te e passam. Tens centenas de DVD que nunca vês, dezenas de CD que nunca ouves, rádios, oitenta canais de televisão, dos quais vês meia dúzia. A oferta é avassaladora, dispersa-te. Era um mundo assim que idealizavas? Parece-me que estás esquecido dos sonhos da adolescência. Diz-me: és feliz?»
Antes que eu tivesse tempo de responder, deu-me um abraço e foi-se embora. Melodramático, este meu avô, mas interessante. Gostava de ter estado mais tempo com ele!

* * *
(Esta crónica integra a coletânea resultante da edição de 2013 do Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente.)

* * *

Ilustração de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77






sexta-feira, 24 de outubro de 2014

PRIMEIRO TURNO



No dia cinco de outubro, fui ao Consulado-Geral do Brasil em Tóquio, para votar nas eleições presidenciais.

Confesso que não sou um fanático por eleições ― na verdade, assumo até mesmo um certo cinismo quanto o assunto é o “poder do voto” em nosso historicamente viciado sistema eleitoral. Mas, sim, fui cumprir meu dever, como cidadão brasileiro.

E sob uma chuva torrencial, vale frisar. E, para quem duvida do sentimento de brasilidade daqueles que residem no exterior, um testemunho: uma multidão de compatriotas enfrentava uma imensa fila ― na verdade, quatro ou cinco, em virtude de confusas instruções sobre a qual das filas deveríamos nos dirigir ―, para participar de mais esse importante momento político de nossa amada (e longínqua) nação. Tudo pelo lema: “Pra frente, Brasil!”.

Mas o problema era que a fila parecia não andar ― o que ainda se complicava pela chegada de alguns brasileiros tentando passar à frente para fazer perguntas desnecessárias aos funcionários do Consulado ― tipo: “onde tiro meu título de eleitor?” (alguns sequer sabiam que era dia da eleição!). Nesse quesito, houve mesmo um senhor que roubou a cena: falando com o funcionário numa língua indecifrável ― misto de Português, Japonês e Marciano. E, depois de discutirem entre si sobre como poderiam decodificar a mensagem que aquele estranho ser tentava transmitir aos terráqueos, um dos funcionários finalmente descobriu de que aquele falava, na verdade, um idioma de alcance universal: o do álcool. De tal modo que foi convidado a retirar-se da fila, para que o Brasil pudesse continuar caminhando rumo a dias melhores. Ou, pelo menos, para proteger-se da chuva.

E dia vinte e seis, como já se sabe, tem mais. E eu irei, de novo, claro: esperando, como todo brasileiro, que, depois da tempestade, não venha a alagação.





quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Ao mar o que é do mar



Rodrigo cresceu passando férias no bairro-balneário, na casa dos avós, que fica no fim da Avenida Atlântica, quase na Querência. Aprendeu com o vô Matias a enfiar a mão bem fundo na areia molhada e puxar tatuíras, iscas para a pesca das manhãs. Ficar com o seu Matias na beira da praia fez Rodrigo entender, desde cedo, uma porção de coisas que uma pessoa precisa saber sobre o tempo, a razão e os sentidos. A principal delas, talvez, é que o espaço comprido entre lançar a linha ao mar e recolhê-la é paciência e nesse intervalo não cabe conversa, não se diz palavra, ou não se escutará o que vem de lá.

Por detrás do bigodão de fios brancos, cobrindo a boca, vinham orientações fundamentais: que o mar não tem rédea, que a água salgada cura tudo, que só bom nadador morre afogado, que o oceano devolve o que lhe é intruso. O avô, pescador de ofício, introduzia o neto em constatações e regularidades de uma língua selvagem, um idioma que Rodrigo compreenderia de ouvido, mas jamais se atreveria a falar. Por respeito. Faz três anos que Rodrigo perdeu o avô para um câncer no pâncreas. Antes de morrer, Matias pedia que o neto não se esquecesse de jogar a correntinha de ouro, aquela abençoada por São Pedro, nas primeiras ondas de junho. E que bebesse um vinho tinto pensando nele num domingo qualquer.

Entrou na praia pela Barra e dirigiu devagar até o navio encalhado. Estacionou. Não faz muito, parece, foi pela mão com o avô ver a embarcação que não suportou as ondas do Cassino e atracou na areia. Quase podia ver Matias e os amigos de pescaria ali, eufóricos, contando do resgate da tripulação e de alguns equipamentos do Altair. Há décadas as ondas batem e lanham e deterioram aquele casco, que tem uma história misturada a sua. O navio que a água comeu. Está comendo. Um monumento aos naufrágios. Ficou olhando as ferrugens e pensando que tinha uma vida meio assim carcomida pelo vento. Ainda é madrugada e os olhos de Rodrigo ardem dentro do carro, de chorar e de não dormir. Quer que tenha sol quando for cumprir o combinado. É domingo, primeiro de junho, três garrafas de vinho tinto vazias repousam no banco do carona, o celular conta seis chamadas não atendidas e pisca o último tracinho de bateria, não demora desligar.

Descalça as botas, remanga as calças, abre a porta e desce. Faz um frio de doer as orelhas e o nariz. A luz começa à esquerda, por trás dos paredões de pedra. Já é hora. À frente e à direita há água cinza que não acaba mais, espuma aqui e ali, ondas altas. Horizonte não serve para nada, resmunga. Tropeça em conchas e se detém em uma carcaça de caramujo enorme. Herança do mar, como o vô dizia. Examina, ri e se baba e fala para o alto, leva a concha ao ouvido.

- Matias, velho safado, sabia que ias querer me ver nesse dia de pagar a promessa que eu te fiz. Eu vim, ó. Vim. Tô bem aqui nesse frio do cacete. Vou jogar a tua corrente lá no fundo, do jeito que tu querias. Eu seeeeei! Eu sei que o mar tá brabo, tchê. Já vou, tá bem? Vou jogar de longe, nem vou entrar, tá bom assim? Que falta eu sinto de ti, vô. Que falta.

O neto sobe na borda do navio encalhado e caminha até a ponta fora d’água. Fere a sola dos pés e nem repara. A onda vem forte e molha Rodrigo da cintura para baixo, respinga seu rosto e recebe de volta um palavrão. Ele tira a corrente do bolso e coloca dentro da concha. Afasta as pernas para manter o equilíbrio possível, mira a formação de onda mais distante e atira. Por pouco o corpo bêbado não vai junto, corrente e caramujo. Rodrigo volta encarangado. Está feito. Senta no chão úmido e canta que é doce morrer no mar. Pega no sono e tomba de todo comprimento na areia enquanto a maré recua. Adiante, um avô mostra ao neto, com todo o cuidado, como se prende tatuíra no anzol.







terça-feira, 21 de outubro de 2014

Pedantrix

Tudo o que sei,
somente eu sei,
que tudo sei.





segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O BRAVO SOLDADO MARK

Passava de meia noite quando Arzt e Frau Löhnhoff, bêbados de errar o buraco da fechadura, abriram, enfim, o portão da casa. Arzt Hans caminhava na frente. Frau Bertha logo atrás. O silêncio soava como a restauração desacelerada de um êxtase recém gozado. Estavam inebriados com as palavras do Fühher que acabaram de ouvir pelos alto falantes numa cervejaria apinhada na Bavária.
Era Primeiro de Setembro de 1939 e a blitzkrieg contra a Polônia na madrugada anterior fazia da noite o esplendor da Cavalgada das Valquírias.

O casal subiu as escadas do casarão trocando as pernas, arrotando cerveja aos soluços e cantarolando Wagner.  Como por instinto simbiótico, os dois foram direto aos aposentos de Eithel, quando abriram a porta para admirar a filha, que no embalo de um sono profundo, emanava a beleza de sua pele alva e o dourado claro dos cabelos embaraçados sobre o rosto, guardiões junto com as pálpebras cerradas das joias que eram seus olhos azuis. Deitada de lado, joelhos dobrados, tinha sob sua proteção o filho de 7 anos dormindo na mesma cama aconchegante.

- Que Deus abençoe nosso soldado, disse Bertha.
- E que o Fühher o receba com toda sua perfeição, bradou Hans.

Eithel era a filha única do casal de arianos, como rezavam as cartilhas sobre raça pura de uma nação humilhada por um tratado de pós guerra que só produziu raiva e escombros. A missão da família Löhnhoff estava encaminhada: perpetuar e disseminar o alemão imaculado por todos os cantos da Terra.

Mas Eithel não era filha legítima. Fora sequestrada ainda bem criança por um grupo embrionário dos nacionais socialistas na fronteira coma Bielorrússia e oferecida a preço de ouro ao casal, já que, apesar de arianos de pedigree, era a mulher infértil, portanto, incapaz de contribuir com a expansão germânica pura pelo mundo. Uma desonra. Mas nada que o dinheiro do bom médico não pudesse comprar. “À Alemanha que emerge das ruinas morais, tudo, tudo e muito mais”, dizia ele com o braço direito apontado para os céus.

Arkt Hans Löhnhoff era um clínico geral obcecado por genética e pela Alemanha que renascia. Bertha comungava dos sentimentos pátrios do marido, e aceitar uma infeliz para criar como filha legítima seria a prova mais clara de sua devoção. Ao marido, à família germânica e ao Fühher.

Assim que Eithel foi adotada, o casal se mudou de um vilarejo próximo de Munique para Dresden, onde um centro de experiências cientificas com humanos havia atraído Hans. Ali, ele poderia com os incentivos infindáveis do Partido, desenvolver seus experimentos, especialmente esmiuçar as diferenças biológicas entre um cigano, um judeu, um homossexual e um ariano da melhor estirpe. E mais: dissecar o cérebro de um bolchevique para desvendar que mistérios levam um animal dito humano portar tão exótico pensamento.

Não muito distante de Dresden nasciam os primeiros campos de trabalho, onde a dita população inferior ficaria confinada como cobaias até que desaparecesse em sua totalidade, sem antes ceder ouro de seus dentes para os cofres nazistas e suas peles para a fabricação dos tambores que começavam a rufar em direção ao leste europeu.

Ao completar 14 anos, para orgulho dos pais, Eithel já pertencia à Liga das Meninas Germânicas, onde aprendia desde a manipular armas a amar incondicionalmente seu país, sua História, suas raízes, seus líderes, seu Fühher. Para ela, conquistar o mundo seria uma questão de tempo e algum sangue derramado. Dos outros, de preferência. Dos impuros, débeis, frágeis, inúteis, aleijados, indignos. Repetia cantilenas de que a colonização alemã do planeta não seria apenas apropriação de terras, mas a eliminação total de seus contrários. Não haveria colonizados para contar história, mas alemães legítimos onde quer que o planeta fosse habitável.

No entanto, tal retórica seria insuficiente. Além de pegar em armas, e propagar palavras ao vento, Eithel fora destinada – e estimulada pelos pais – a um gesto maior. Cabia a ela perpetuar sua raça a qualquer custo, embora o preço em mira era um bonitão de louros cabelos emplastrados, exemplar perfeito do vigor, do porte atlético e dos ideais da Alemanha eterna.

O primeiro encontro se deu por acaso. Ao esbelto Kapitän SS Kuntz fora designada a missão de treinar moçoilas da Liga a frequentar um possível front pelas bandas do leste, já que era iminente a resistência de Stalin ao assédio generoso de Hitler, com suas Wermatch e Luftwaffe na manga.

Eithel sentiu um frisson ao ser abraçada por trás a pretexto de bem segurar um fuzil. Bastou o rosto de Kuntz deslizar como uma pluma em seu pescoço, e seu volumoso e rijo entrepernas roçar
seus glúteos, para que a menina virasse em direção aos lábios que circundavam um sorriso másculo e sedutor. Ainda bem que a luz crepuscular escondeu das outras alunas e seus oficiais professores um beijo tão explosivo quanto um morteiro direcionado às fileiras inimigas.

Semanas se passaram, Eithel levou Kuntz a conhecer os pais, quando repetidas e enfáticas saudações ao Fühher retardaram as informalidades de um encontro para lá de desejado. Kuntz estava tenso, com uma taça de Riesling numa mão e os dedos nervosos e suados de Eithel na outra. Não tinha muita certeza do momento propício para revelar que era casado e deixara um casal de filhos nos arredores de Dusseldorf com a esposa, em nome de algo muito mais nobre chamado Grande Alemanha.
Ao segundo e longo gole, não resistiu. Confessou sua condição de pai de família.

Mas um oficial da SS que nascia era forjado à frieza. Olhando firme nos olhos de Arzt Hans recebeu de volta a aprovação orgulhosa de que entregar uma filha a tão seleto militar, acima de tudo, fazia parte da missão de limpar o mundo. E de imediato fora convidado a se estabelecer naquela residência, dividindo o quarto com sua pupila, enquanto sua companhia SS cuidava dos treinamentos militares da juventude da cidade.

Não houve hesitação de nenhuma das partes. Dormir com Eithel não era coisa que um macho ariano recusasse - a esposa oficial nas lonjuras da Renânia haveria de compreender, já que louros portentosos eram escassos no mundo e seria necessário, justo e legítimo dividi-lo com outras germânicas em nome de um mundo clareado. Pelo lado de Hans, entregar a filha ao corpo atlético de um ariano era a certeza da continuidade da missão e da raça. E assim, para consciência
tranquila de todos, Eithel se deu a Kuntz sob o teto e a orgulhosa concordância dos pais.

Tempos depois, a companhia SS de Kuntz partiu rumo a outras missões, mas deixou no lar dos Löhnhoff a semente de uma raça próspera, pura e onipotente. Aos primeiros enjoos, Eithel orgulhou-se que carregaria para sempre a nobreza de ser mãe de um ser humano de superior qualidade. Quem sabe um bravo soldado, quem sabe um músico excepcional, um escritor extraordinário, talvez uma professora rigorosa, uma enfermeira dedicada ou mesmo uma exemplar dona de casa de um
lar ariano. Não importa. Ter um Kuntz na barriga por si só era uma missão nobre a ser cumprida.

Hoje Frau Eithel Löhnhoff vagueia pelos jardins mal cuidados de um pobre asilo de idosos num subúrbio de Berlim, outrora oriental. Os reveses da vida cuidaram de apagar de sua memória os fatos mais recentes, mas jamais os detalhes de uma manhã esfumaçada de fevereiro de 1945.

A enfermeira Eithel abrigou-se num túnel improvisado sob o Hospital Militar de Dresden, às primeiras sirenes e aos roncos longínquos dos bombardeiros aliados, seguidos de explosões que se aproximavam como passos de um gigante determinado e aterrorizante. Com as mãos grudadas nos ouvidos e a cabeça entre os joelhos trêmulos, pressentiu o hospital desaparecer sobre o abrigo. Baixada a poeira, controlado o pavor, cessados os infinitos estrondos, rastejou entre um amontoado de desfalecidos pelo precário túnel até o que seria luz do dia disfarçado em noite de tanta fumaça. O que deixou de ver deve ter sido devastador. Os gritos, gemidos e pedidos de socorro escondidos pintavam um quadro de horror. Retardatários clarões sinalizavam avisos da morte e da destruição.
Eithel bateu com as mãos no corpo inteiro, como se para se certificar que estava viva ou, pelo menos, para limpar histericamente a alvura de seu uniforme. Enquanto se batia, chorava por dentro.

Um filme de terror se passou pelas suas entranhas. O primeiro personagem foi Kuntz, o esbelto capitão SS que lhe produziu Mark no ventre e desapareceu duas vezes: uma de sua vida, sem ao menos ver seu filho nascido, e outra da própria vida, congelado nos arredores de Stalingrado, com um rasgo extenso e profundo na altura da jugular. O segundo personagem fora seu pai, o obcecado cientista nacionalista, estraçalhado por lobos famintos, logo que um dos campos de experiências humanas caíra nas impiedades do Exército Vermelho. Restava-lhe imaginar a mãe Bertha e o filho Mark, recruta de 14 anos da debilitada Wermatch, que naquela manhã supostamente
estaria de folga ajudando a avó nos afazeres domésticos.

Quando a poeira se dissipou e os roncos sumiram nos céus, Eithel abriu os olhos ardentes e percebeu ao redor a bomba que lhe caíra silenciosamente na cabeça: sim, a Alemanha mais uma vez havia perdido uma guerra.

Focos de incêndio, ruínas, mortos até nos postes caídos e incandescentes, escombros, pedaços de gente, vidas retorcidas. A paisagem de Dresden era desoladora. E no meio da morbidez, Eithel ganhou forças para correr pelas ruas esburacadas, saltitar entre cadáveres chamuscados, carbonizados ou mutilados de todas as idades, até encontrar o que seria a casa que lhe acolheu, criou seu filho, seu orgulho.

Já caía a noite, quando avistou o que sobrou do casarão do casal Löhnhoff. A penumbra sugeriu um inferno. Apenas o portão tinha ficado de pé. Na calçada despedaçada, viu Bertha estirada no chão, velada por Mark, que chorava de joelhos dentro da empoeirada farda da Wermatch. Mantinha as botas, o culote e a túnica no lugar. O capacete tinha rolado a metros de distância.

Eithel de repente se viu paralisada. Assim como de repente, desembestou a correr em direção ao filho. Pegou o menino pelo braço, gritou um “não olhe para trás!” de ensurdecer os caídos e saiu de mãos dadas com ele sobre o que restou de Dresden.

Encontrou o que procurava. A horas de casa, na periferia distante, um pequeno pelotão do exército alemão estropiado guardava uma das entradas da cidade. Poucos valentes soldados, todos meninos como seu filho, rodeando um ninho de metralhadora, protegidos por heroicos sacos de areia, em direção à entrada da cidade voltada para o leste.

- Quem está no comando? - gritou Eithel.

Surgiu um jovem oficial. Nada de bonito, portentoso, garboso e impávido como Kuntz, mas um infeliz esquálido e de olhar desesperado.

- Eu, sargento Woltz, Frau. A maior patente desta patrulha.

- Pois então, Sargento, trago um bravo soldado.

Woltz olhou o rosto imberbe e apavorado de Mark.

- Vai, meu filho, nossa Alemanha precisa de você.

E Eithel soltou a mão de Mark, que logo recebeu uma Lugger recém tirada da cintura de um cabo morto, tão menino quanto ele. A mãe foi se afastando devagar, andando de costas, até que o breu da noite tomasse conta do cenário, como se uma cortina se fechasse.

Nunca mais soube do filho.

Até hoje espera por sua visita no pobre asilo de idosos num subúrbio de Berlim, outrora oriental. Não há um cair da tarde em que Eithel não se coloque em posição de sentido em direção ao leste. A cada sombra que vislumbra, ela diz para si mesma:

- Deve ser ele. Deve estar muito cansado. Vai precisar de mim para tirar suas botas. 








sábado, 18 de outubro de 2014

A época mais feliz


Mentir sempre foi uma das minhas benevolências mais praticadas com a minha mãe. Tudo o que eu como filho não poderia suportar era o lamento materno fustigado pela decomposição familiar. Quem olhava para a mesa da cozinha poderia imaginar que a miséria estava distante. Uma toalha feita com sobras de tecido era cerzida com a delicadeza daqueles dedos desgastados de D. Lucia. Nas prateleiras ao redor daquele espaço umas tábuas fixadas na parede sustentavam poucas panelas velhas e, várias latas de produtos dos quais nossas línguas nunca tinham sentido o gosto.
A infância foi cercada de imprevistos e dores – eu e meus outros quatro irmãos, nunca pudemos frenquentar o convívio social – restava apenas a escola. Que nos serviu por pouco tempo, assim que meu irmão mais velho chegou aos doze anos, precisou parar de estudar. Com isso, meu pai embestou em tirar os outros três da escola, pois acreditava que ajudando em casa seriamos mais homens. Porém, com o passar dos anos, tivemos algumas mortes, e a mais significativa foi a de S. Baltazar – nosso pai.
Nesta época eu tinha oito anos, não sabia direito nada, apenas sabia do homem rude, que maltratava a minha mãe, e aos poucos perdeu praticamente tudo o que tinha construído com trabalho em jogatinas e mulheres. As terras de Santa Helena estavam reduzidas ao espaço suficiente para a família deter a degradação sofrida.
As mentiras sempre estiveram presentes em casa – lembro de escutar meu irmão mais velho dizer que os animais da propriedade foram roubados, lógico isso inocentava o pai. Com a ausência de Baltazar fomos todos para o comércio informal – o primogênito trabalhava em uma frutaria, logo cairia em desgraça e seria assassinado após uma discussão em um bar. Os outros dois foram exercer atividades de chapas nos acostamentos – depois de alguns meses nunca mais foram vistos.
Sozinho em casa aprendi a lidar com a mentira, na tentativa de acordar todos os dias e dizer para minha mãe que a vida é perigosa, mas não viver é o pior dos perigos – por mais que com as minhas mentiras, eu fizesse parte deste ensejo.
Anos mais tarde fui ser alfabetizado, com isso poderia escrever e ler as cartas nunca escritas pelos meus irmãos. Pagava para alguém sempre colocar a correspondência no portão, o sorriso imensurável de D. Lucia ao receber a carta era o que sobrava da nossa gênese. Acabei de maneira inóspita exibindo uma felicidade corada para a família que minha mãe realmente achava ter. Apegada a imagem de uma santinha ela rezava toda a noite pelo retorno de seus filhos. Nestas horas eu sentia uma necessidade física de pegar uma faca e cravar na vida.
Nunca esqueço o dia em que vi minha mãe em um caixão sem um véu cobrindo seu rosto. Morreu com um semblante de felicidade, não parecendo que padeceu a vida toda das amarguras sofridas cotidianamente. O único que sobrou velava ao lado de outros poucos moradores antigos de Santa Helena a gratidão e a promessa de que a vida precisa ser vivida – independente de como seja.
Hoje sinto ao ver meus filhos, que a miséria da infância contornada pela toalha rala da mesa e todas aquelas latas de produtos que nunca sentimos o gosto foi a época mais feliz da minha vida, quero dizer, de nossas vidas. Herdei de minha mãe este sentimento.






sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Depois que ela fechou a porta












                    Depois que ela fechou a porta, era quase de manhã. Eu não quis acender a luz, o tom do céu já não era mais o mesmo, abri a janela para presenciar o amanhecer. Tudo foi aparecendo, cores voltavam a brilhar e eu já podia ver os meus pés. Dormir já não era mais possível, Ele estava diante de mim, com suas promessas de novidade, de que tudo seria novo, como se Cristo nascesse todo dia. Olhei para o relógio, mais um dia começou em minha vida; feliz, por renovar os meus sonhos, assim, tão gratuitamente.




Do livro A Cor do Sal (Editora Patuá).













quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Território

Lá, branco e preto namoram. Homem e mulher. Homem e homem. Mulher e mulher. O suor do trabalho vai para a cama sem banho. O suor da trepada escorrega os corpos na cama sem-vergonha. O gozo grita fode, grita mete, grita o dia de merda igual a todos os outros. A merda que invade as narinas a céu aberto. Merda de gente, de bicho, de viciado, de vadia. Ninguém mais sente. Nariz é pra cheirar o pó. O pó que menino vende.
Menino mata gente grande. Lá, mata. Mata velho dedo-duro, mata mulher que trai, puta que não rende, comerciante que não paga. Mata menino também. E morre menino no descarte do dia ou da semana. De crack, de bala achada, de desafeto, de porrada, de polícia, de saco cheio. Só não morre de rir. Nem de medo. Soldado não pode ter medo. Não pode nada. Soldado não é autoridade. Nem no tráfego, nem no quartel. Mas pensa que é. Até quando chupa o dedo pra dormir. Quando mija na cama, quando chora no sono, quando abraça a HK33, quando chama pela mãe sem abrir os olhos. 
Mãe é o caralho. Lá, quase sempre é. A bêbada que queima o braço do menino com brasa do cigarro. Menino de quatro anos. Porque ele pede doce, pede colo, pede rua. A noiada que vende bebês para os turistas de língua enrolada. Em troca de dinheiro pra comprar bagulho fino e enfiar no rabo dela e no dos homens dela. Os homens que arrebentam o menino de porrada e deixam ele nu do lado de fora de casa. Nos dias piores. Nos melhores, não. Nos dias bons o menino dorme na cama quente. Estuprado a noite inteira. Inteira, não meia. E a vagabunda não acredita no menino. Nunca. Mesmo acreditando. E repete que ele é ruim que nem cobra. Que ele quer que o homem dela vá embora. E arrebenta o menino de porrada e deixa ele nu do lado de fora de casa, soluçando entrecortado.
Lá, pastor anda limpinho. Roupa passada, camisa dentro da calça, o pinto dentro da calça. Difícil é o pastor fazer um fiel. Quem faz fiel é o tráfico. Os do pastor ostentam na igreja as bíblias gastas. Os outros ostentam no baile funk. Junto com os meninos que não são de lá. Mas que brincam de ser. Direitinho. Iguais, os que ficam por lá no fim do baile. Diferentes, os que descem para o asfalto quando o baile acaba. Dirigindo carro do ano. E vão para casa. Para amansar a larica com comida boa e um pouco mais de pó. Ou de pedra. Na beira da piscina com vista para o mar. Tomando scotch  cowboy servido no Baccarat da mamãe. Mamãe de menino rico não queima braço com cigarro, não dá porrada, não deixa nu do lado de fora. Põe dinheiro na conta.
Os fiéis do pastor dormem cedo. Nos braços de Deus e de Morfeu. Os do tráfico vão atrás das coxas. De homem, mulher, menina, menino. Branco e preto fodendo pelo resto da noite. Fazendo mais meninos pra descarte. Uns, no lixo, arrancados às pressas antes da vida. Outros, mais tarde um pouco. Só um pouco. Só o tempo de primeiro virar soldado, de virar noiado, de trepar com homem, mulher, preto, branco. E de voltar mais uma vez pra casa da mãe. Esperando um carinho na cabeça, um riso da boca de dentes tortos, podres. Boca de mãe devia rir sempre. E falar vem cá meu filho pra eu te dar um beijo, Deus te abençoe, como foi o seu dia, vai sair com quem, põe um casaco, já fez os deveres, come direito. 
A HK33 empinada dispara rajadas de fogos de artifício. Cachorro marcando território. 






quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Maria do Carmo


é difícil o amor
 melhor seria arrancar um braço
 fazê-lo voaaaaaar”  *

Diz que será bom recordar, e eu sinto-lhe o meio sorriso sob um batom que imagino enrugado e de cor berrante. Propõe que nos encontremos.
Combinamos.
Desligo e fico encostada na ombreira da porta. Fico remoendo.
Devia ter recusado. Ter inventado uma desculpa. Uma ocupação inadiável. Dizer-lhe que estava fora da terra onde ela viera procurar-me.
Devia ter, mesmo, dito, indelicada: não tenho nada para recordar contigo. Mas pelo contrário, disse-lhe, a tentar que ela julgasse em mim um sorriso afável: se queres, eu por mim. E acentuei o som das reticências, mas ela nem terá percebido encantada por eu concordar numa tarde de cavaqueira. Uma tarde a remexer no passado da gente, como ela mesmo disse.
Sentada à espera que ela chegue, noto que nem sequer coloquei perfume ou qualquer coisa bem cheirosa nos sovacos. Brincos de prata, pendentes, sim, esses, trago, como é meu costume, tal como estar com um vestido justo em malha vermelha e trazer sabrinas com meias opacas, umas e outras de cor preta.
Olho o espelho que ocupa, a toda a largura, uma das paredes do restaurante, e mordo o lábio de cima, hábito que tenho desde há muito e me aguenta a palavra corrosiva que normalmente me acompanha o brilho maldoso nos olhos. Quem mo disse foi um namorado, e eu sigo à risca este morder o lábio quando quero comedir-me.
Diria, fosse o caso: estou apetecível, e assim, calo-me, mas volto a olhar o meu reflexo, e fico presumindo que Maria do Carmo virá arranjada a rigor para este encontro. Ela gostava de vestidos, e de arranjos, e eu imagino-a, o cabelo platinado, ou negro azeviche num arranjo recente, e as unhas feitas num verniz berrante. E há-de trazer um lencinho embebido em água-de-colónia, lenço que tirará da carteira para um suor que nem tenha mas a ela pareça que lhe escorre na dobra que o queixo lhe faça em cima da gola da camisa, seda pura por baixo do casaquinho, conjunto completo com a saia justa, tudo em em pied de pool branco e preto. Lã pura, corte impecável.
Será assim que a verei daqui a nada, interrogo-me e olho o relógio. Ainda não está atrasada, e seria inesperado, que ela dizia, ainda tão menina: devemos chegar a horas, diz a minha mãezinha.
Maria do Carmo que foi minha colega de carteira, trará, quase me atrevo a jurar, sapatos de salto muito alto e meias com revesilho. Meias em tom de pele. Virá decerto bem vestida.
Sexta-feira, então, disse ela ao telefone, e eu devia ter dito que não tínhamos fosse o que fosse que nos unisse, nada que, recordado, desse a cada uma, e às duas em conjunto, qualquer motivo.
Mas não disse, e aqui estou eu a esperá-la.
Três e trinta, mais minuto menos minuto, tinha ela dito como quem parafraseia, e eu senti que, assim, recordando os meus atrasos, ela iniciava o seu remexer pelo passado.
Ai Carminha, Carminha, murmuro eu sem muita vontade de ficar, face a face, com a minha antiga parceira de carteira.
A gente partilhando o tinteiro, cada uma vestindo a bata branca, obrigatória, e por baixo uma saia de pregas em azul-escuro e uma camisola.
Maria do Carmo tinha uma saia de xadrez em tons de vermelhos e cinzentos de que eu gostava muito, tanto quanto detestava a saia de malha cor de salmão que a minha mãe teimava que eu vestisse: por baixo da bata, filha! e é tão quentinha! insistia.
Maria do Carmo usava vestidos com renda em redondo nos punhos e na gola.
No final do dia, cada uma vestia o seu abafo. O meu era um casaco liso, em tom de castanho com botões de quatro furos, e o dela era um sobretudo verde com botões doirados. Deixávamo-los dependurados nos cabides na entrada das salas onde tínhamos Português, Francês ou Matemática. Em todas as salas, excepto nos laboratórios onde tínhamos cacifes. E, se chovia, cada uma trazia um impermeável transparente como o vidro, e uma sombrinha. E galochas. Nisso, eram igualinhas as nossas indumentárias de meninas a frequentar o terceiro ano do liceu.
Apenas se chovia e apenas por fora.
No tempo quente, usávamos vestidinhos de manga curta em tecidos fininhos com bolas ou florinhas ou num xadrezinho miúdo. Usava-os ela, que eu tinha um único vestido em azul clarinho com risquinhas brancas, e a minha mãe lavava-o e secava-o, e eu vestia-o ao outro dia muito passado a ferro, muito mimoso.
Como se fosse novo, dizia a minha mãe a dar-mo ainda quente do ferro e segurando-o, com cuidado, pelos ombros.
Tínhamos vivido, sim, eu e Maria do Carmo emparceiradas numa mesma carteira no período da manhã, até ser o almoço e, no período da tarde, até ser hora do lanche e sairmos da escola, e lá ao fundo havia o rio.
 Tínhamos tido, cada uma a sua, uma mala de cartão debruado a metal fininho. Uma mala com cheiro.
Se bem que eu não sei se a mala de Maria do Carmo também cheirava o mesmo odor. Ela nunca mo disse e eu nunca lhe perguntei. A minha mala tinha, e mantém, que, num dia de arrumações, descobri, amassada, mas ainda inteira, a minha mala de cartão prensado, e curiosa de saber se tinha lá dentro algum caderno, um livro, algum lápis, abri-a com cuidado. Estava vazia. Mas, levantando a tampa, entrou-me pelo nariz aquele odor que era um odor intenso de eu ter tido tão pouca idade e ter vestido um vestidinho azul com risquinhas e por cima uma bata muito branca.
Um cheiro que me trouxe a imagem da minha colega de carteira do terceiro ano, e eu fechei a mala e deixei que ficasse lá onde a tinha encontrado.
Não iria dizer-lhe de malas nem de cheiros.
Maria do Carmo quase em atraso e eu, aqui sentada na mesa do restaurante, sorriu-me e olho-me de esguelha no espelho da outra parede.
Não irei dizer-lhe: olha, a minha mala ainda tem cheiro, descobri um dia destes. Não pronunciarei uma palavra acerca desse cheiro inconfessado que talvez fosse o cheiro de todas as malas, e não só da minha, que era castanha com uma asa arredondada.
Olho o relógio.
Olho o meu que trago no pulso, e olho aquele imenso sobre o espelho da parede em frente, mais do que um relógio, um adereço, mas está certo: são três horas e vinte e oito minutos em ambos os marcadores.
Maria do Carmo está quase, quase.
Mal percebi que era ela ao telefone, veio-me às narinas aquele odor. Um cheiro que afinal nem fosse senão resultante do paninho de apagar a lousa misturado com restos de borracha soltos. Ou cheiro do papel prensado e da cola de que era feita a mala. Ou seria disso tudo e mais do sabão azul e branco com que era lavado o guardanapo que me levava o lanche.
Não iria confidenciar isso com Maria do Carmo.
Não iria dizer-lhe: e o cheiro que tinha a mala da escola, lembras-te dele? mas lembraria, sensata e cordial, quando me chamavam: anda jogar ao prego, ao Manecas, anda saltar à corda.
Mas não irei confessar-lhe o horror que sempre tinha sido entrar e sair na corda que rodava. A corda a rodar de cima para baixo, e depois em sentido contrário, e eu apavorada que a corda me batia, ou me encalhava nas pernas, e eu baralhava tudo estatelada na terra do recreio. Como eu preferiria ficar sentada a desenhar florinhas na borda dos cadernos. Ou uma cercadura de pássaros. Mas eu acorri sempre ao chamamento: anda saltar à corda, anda. Acorri sempre e, apesar do medo, joguei muitos jogos, esfolei os joelhos, rasguei bibes e o cós das saias.
Irei dizer-lhe: lembras-te Maria do Carmo? a falar dos jogos, mas não lhe confessarei esses meus temores, que se Maria do Carmo os soubesse colocaria sobre a boca, os dedos de unhas envernizadas que ela decerto terá daqui a nada sentada à minha frente nesta mesa, e ficaria a sonegar-me o total do seu imenso espanto. E mais se espantaria, se eu lhe dissesse que tremia de vergonha, a minha timidez ao rubro, quando a professora de Francês ou de Língua Portuguesa me convidava para ler em voz alta para a classe a redacção impecável que tinha escrito na prova.
Não. Não seria por termos agora netos que eu iria confessar-lhe que dizer um poema em frente ao quadro negro, eu ali pespegada sob o crucifixo e aquele senhor sisudo e mais o outro com o casaco repleto de medalhas, era tão odioso como ficar perdida de todas no jogo das escondidas e ninguém vir ver que aquele esconderijo era o melhor de todos: nunca te encontramos, refilavam, cansadas de buscar-me o intervalo inteiro, e a sineta tocava ou a contínua batia palmas a chamar-nos: meninas, e elas sem me encontrarem.
E a jogar ao Manecas ou a jogar às cinco pedrinhas ou no jogo da malha, eu morria de medo de trocar os pés, de trocar as mãos e estragar o jogo. Mas ganhava. 
Ganhas sempre, dizias, irritada. Lembras-te, Maria do Carmo?
Não irei perguntar-lhe.
Olho a porta e os dois mostradores. São três e trinta. Em ponto.
Não és decerto aquela mulher que ali entra, calças de ganga e o cabelo a dar para o grisalho, uma parca usada e nem verniz nas unhas nem batom nos lábios. Nem és tu aquela senhora de saia- casaco cinza-rato e chapéu com duas flores. Não. Nenhuma das mulheres tem o ar de quem marcou encontro, nenhuma se aproxima da mesa em que estou sentada à tua espera.
Disseste: colocas uma flor vermelha em cima dum livro, e eu coloquei uma flor de papel, uma flor enorme, muito visível e muito igual à cor do meu vestido.
Passam dois minutos da hora marcada. Olho a porta e olho o relógio.
Se Maria do Carmo entrar agora e sorrir, eu vou perceber que é ela. Não terei esquecido o sorriso que tinha quando, numa outra tarde, abalámos pelo rio.
Isso, então, não poderei dizer-lhe: Maria do Carmo, lembras-te que nem uma palavra quando a tua mãe disse: quem te manda andares com ela?!
Que se eu dissesse, seria insidiosa, debruçar-me-ia, até, sobre a mesa e falaria em voz cava: lembras-te, Maria do Carmo?
Não, não iriei dizer-lhe.
Ainda menos deixarei que contemos, cada uma seu pedaço.
Deixámos a margem quase a pique e fomos pelo açude, diria ela.
Tu na frente. Tu a dares-me a mão, pespontaria eu.
Não. Não iremos dizer nada disto. Nem falaremos do cheiro que tinha a mala dos livros e cadernos e lápis e borrachas.
Maria do Carmo vem com atraso e eu imagino como seria eu e ela recordando.
Os sapatos escorregavam nos limos e tu gritavas-me: anda, anda, não sejas medrosa, e eu apavorada.
Assim, diria eu.
A água corria em cascata e os pés poisavam sem tino na estreiteza da pedra mais limo que outra coisa, dirias tu fugindo a recordar que tinha sido trágico se não fosse o destino estar escrito de outro modo.
Ou tu dirias, a medo: o pior foram as mães.
Ou nem dirias. Não te atreverias a dizer, que se o fizesses, eu poderia ser cruel imitando o sotaque espanholado, que a tua mãe viera da raia, diziam as outras mães maldosas de nem terem sido elas as casadas com um homem tão rico como era o teu padrasto. Amantizada, diria a minha mãe e tu chorando e eu chorando. Está vendo o que fez a sua filha? Era a tua mãe e eu aqui, imitando-a.
Não. Não iriamos recordar, ou tu dirias: lembras-te?! Tu lembras-te de tudo?!  como se preferisses que tivesse esquecido.
Como se fosse possível ter esquecido.
A tua mãe pressurosa de que fosses uma menina da senhora professora, uma menina que nunca iria atravessar o rio senão levada por colega de poucos princípios.
Lembras-te, tu ainda te lembras! dirias, tu pasmada.
A tua mãe repetia naquele tom de senhora que não parte loiça pois nem nela toca que para isso tem criadas: a sua filha levou a minha menina por maus caminhos.
E tu, sonsa, a fingir que nem era contigo, choramingavas. Lembras-te, Maria do Carmo?!
Eu tinha o braço partido, dirias a enxugar a dobra do queixo com o tal lencinho, e eu a dizer-te: nem foste capaz de contar que eu te salvara de ires na correnteza. Partiste o pulso e fendeste a pele do braço esquerdo, mas não foste rio abaixo como eu temi e tu tanto gritaste: socorro, salva-me ou digo que foste tu que me trouxeste.
Ainda me recordo da tua roupa colada ao corpo e de ter notado que usavas calcinhas pelo joelho debaixo do vestido.
Se de aqui a nada recordássemos deste modo, havias de pedir-me: cala-te, não foi para isto que vim ver-te.
Mas já eu estaria de freio nos dentes.
Vamos passar o rio, tinhas-me dito. E eu sempre medrosa, mas sem querer desmerecer, ainda disse: é perigoso. E tu riste. E fomos. Para onde vamos, Maria do Carmo? e tu sabias para onde nos levavas.
Mas o limo escorregou demais nas tuas sandálias que eram novas.
Não, não irei dizer-lhe: lembras-te? 
Maria do Carmo.
Rirá de boca escancarada de estarmos lembrando aquela coisa ignara de que nunca entendemos o préstimo: óleo de fígado de bacalhau tomado em obrigatórias colheradas.
Quando ela chegar, será disso que falaremos.
Olho o relógio e olho a porta. 
Acaba de entrar uma senhora de cabelo branco com uma echarpe colorida a rodear-lhe o pescoço. Tem óculos muito negros que tira para olhar em roda.
É ela. Tenho a certeza que é Maria do Carmo.
A mulher sorri-se e eu juro que é de ter visto a flor vermelha sobre o livro que coloquei aqui na mesa.
No relógio que está por cima do espelho, os ponteiros ficaram parados nas três horas e trinta minutos, e eu estremeço, e já a mulher se debruça sobre a mesa e nem pergunta. Sorri-se, apenas, e nem fala, Maria do Carmo murmura: és tu a minha parceira de carteira. E eu não lhe sinto odor de perfume, e ela não tem batom, nem verniz nas unhas, e traz sapatos rasos e uma blusa simples de algodão rosado.
Enquanto se senta, noto que não tem sinal de calcinhas por baixo da saia muito justa em xadrez cinzento.
Maria do Carmo, que nem pergunta. Mal se senta, ela diz-me, debruçada sobre a mesa, um sorriso radioso a inundá-la: queria tanto saber se ainda cheiras aquele cheiro. O teu corpo cheirava todo  a esse cheiro que ainda hoje guardo, naquela tarde em que parti o pulso.

Maria do Carmo.




* verso do poema "Não é fácil o amor"de Luís de Andrade, musica e voz de Janita Salomé no álbum "Cantar ao sol "   por sugestão amável do Joaquim