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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A Cripta


** Publicado no blogue "Correio do Porto" http://www.correiodoporto.pt/prioritario/a-cripta
** Incluído no livro "Daqueles Além Marão"
 
 
Envolto na capa e o rosto oculto pela aba do chapéu, Umbelino saltitou de sombra em sombra, evitando ser visto pelos funcionários que acendiam os lampiões da rua. Colou-se à parede do adro da igreja, correu para o entreaberto portão de metal e penetrou nas sombras das árvores. Ofegante, aproveitou aquele momento para se acalmar e trazer os batimentos cardíacos a um ritmo aceitável.
Não gostava nada daquilo que lhe pediram para fazer, mas a verdade é que tiraram as sortes e ele perdeu… agora não podia dar parte de fraco. Não que tivesse qualquer escrúpulo, simplesmente… há coisas que deviam ser deixadas sossegadas.
As vozes longínquas dos acendedores de candeeiros ecoavam na rua, indistintas, mas revelando que ainda se encontravam por perto. O embuçado manteve-se quieto e calado nas sombras. Um gato preto passou e eriçou os pelos do dorso, surpreendido e assustado com a silenciosa presença, antes de fugir a bufar em grandes saltos.
Finalmente as ruas estavam em silêncio e o homem ergueu-se e caminhou lentamente até ao portão do adro e espreitou a praça vazia. Ao fundo, uma caleche passou apressada, os cascos do cavalo batendo forte na calçada. O silêncio regressou em seguida.
Ele voltou a ocultar o rosto embrulhando-se na capa e baixou a aba do chapéu. A sua respiração saía sob a forma de vapor da estreita abertura que deixara para os olhos. Avançou, com passos silenciosos, pela viela estreita que subia paralela ao adro da igreja. Não havia  ninguém nas ruas naquela noite de Novembro, o frio fazia com que ninguém quisesse sair de casa, mesmo que ela tivesse poucas condições. O calor da lareira, haveria de os aquecer um pouco durante a ceia e depois recolher-se-iam para “debaixo das mantas”. Também Umbelino preferia estar na taberna a beber aguardente, em vez de estar ali, ao frio, quase a fazer algo que não queria. Como que por se recordar, tirou um pequeno cantil de bolso e sorveu dois golos que queimaram forte na garganta.
***
Deveria ter desconfiado, logo que o criado bem vestido o abordou na taberna da viúva, que não lhe trazia “recado” fácil. Foi a qualidade das roupas do enviado, que despertou a cobiça de Adalberto e Silvério, que com ele partilhavam as  “aventuras” com que iam conseguindo “aquilo com que se compram as sardinhas”. Assim que o estranho contou o que se pretendia, Umbelino preparava-se para recusar, mas os outros dois protestaram e quiseram saber qual a paga. O “cliente” estava disposto a pagar dez mil reis! Todos ficaram de boca aberta. Vendo que captara a nossa atenção, o criado explicou que o seu patrão pretendia reaver um objeto de grande valor sentimental que fora sepultado com a sua esposa e para isso estava disposto a desembolsar dez mil reis, se lhe entregassem o que pretende.
“Mas afinal, se é a tumba da esposa, porque não a manda exumar e recolher o que quer?” Perguntou Silvério desconfiado.
“A falecida senhora minha patroa, era de origem abastada já antes do casamento e possuía muitos bens próprios; houve coisas que a família exigiu que fossem sepultadas com ela, de acordo com o escrito no testamento. O meu patrão não podia desonrar-se e recusar.” Respondeu o criado simplesmente.
“Mas de que se trata afinal? Que é que o seu patrão quer assim tanto, para pagar uma fortuna dessas?” Apesar da ideia do cemitério não lhe ser amigável, a paga fazia Umbelino reconsiderar.
“Um simples anel! O anel que o meu patrão lhe ofereceu de noivado e que pretende manter de sua propriedade, como recordação da amada esposa.” Concluiu o criado sorridente. “Apenas têm que trazer algo que cabe no bolso do colete e receber dez mil reis por isso.”
Claro que concordaram em fazer o serviço. Não era uma quantia que se visse todos os dias. Além de que, era muito mais fácil roubar um morto, que um vivo que grita, esperneia e às vezes traz uma pistola ou uma faca. Não era contudo trabalho para ser feito por mais do que um; três homens a vaguear na rua à noite, rapidamente atrairiam as atenções e tudo poderia correr mal. Acordaram em tirar às sortes com os dados… e Umbelino perdeu. Esteve quase a acovardar-se e dar o dito por não dito, mas não se atreveu a  ser alvo da chacota dos companheiros.
***
Chegou finalmente ao portão engradado do cemitério e fez-se um só com os contornos do granito, numa manobra que mostrava experiência, enquanto se certificava que a rua continuava vazia. Mais dois golos, serviram para lhe dar alguma coragem, antes de escalar ágilmente o enorme portão e saltar para o empedrado do lado de dentro.
A visão da “floresta de mármore”, fracamente iluminada pela luz bruxuleante das velas e pequenas luminárias, não contribuía em nada para que se sentisse mais calmo. O coração batia apressadamente e sentia as costas húmidas e geladas. Percorreu o cemitério ao longo dos mausoléus,  escondendo-se do fraco brilho da lua, enquanto contava mentalmente os sepulcros. As instruções eram claras: era o mausoléu da família Vasques de Sá, o décimo sexto após a porta lateral e terceiro antes da interceção com a nova ala do campo-santo. A chave estava pendurada do lado de dentro amarrada a um cordel e o caixão era o segundo à direita.
Chegou ao sepulcro correto. Inspirou fundo, e bebeu mais um pouco, antes de atirar o braço através da grade do portão e tatear em busca da chave. Sentia todos os pelos da nuca eriçarem-se. O ruído de passos sobressaltou-o e encolheu-se no espaço escuro entre os dois mausoléus. O brilho metálico de uma faca refulgiu na sua mão.
Através do espaço entre duas lápides, Umbelino viu o guarda do cemitério, vindo do acesso à ala nova, empunhando uma candeia. Passava e espreitava para dentro de cada um dos sepulcros. Preparou o punhal para uma estocada que o silenciasse rapidamente e aguardou. Não foi necessária a violência, pois o vigia passou rapidamente e a espreitar apenas de relance. Nunca saberá como esteve perto de perder a vida naquela ronda.
Assim que os passos deixaram de se ouvir, retornou à sua busca e logrou finalmente apanhar a chave. Foi quando tentou abrir a porta, que verificou que o cordel era demasiado curto para chegar à fechadura e demasiado resistente para que o conseguisse rebentar. Resmungou baixo a sua frustração e preparou-se para o cortar, mas depois pensou que deveria deixar tudo como estava e seria melhor desamarra-lo e atá-lo novamente. Com pouca luz e mãos enregeladas, teve muitas dificuldades em perceber como estava o nó e passou imenso tempo a insultar o fio, a chave, o cemitério, o seu patrão e ele próprio por se deixar levar nesta aventura. Furioso, num impulso irrefletido, sacou da faca e cortou brutalmente o cordel… a chave tilintou no interior escuro da cripta.
Se pudesse gritar aos céus as suas frustrações, tudo seria mais fácil, como não podia, viu-se na obrigação de dar saltos de fúria, enquanto praguejava sem soltar um som, executando uma dança grotesca.
Atirou-se sobre o portão e apalpou inutilmente o chão tentando ouvir ou sentir o objeto. Repetiu a operação com a ponta da faca, novamente sem sucesso. O desespero estava quase a leva-lo às lágrimas; sentou-se no chão, de costas para o mausoléu, com a cabeça entre os joelhos.
Recomposto, repetiu as tentativas para encontrar a chave, no interior completamente escuro. Soprou a fúria e chutou a impotência contra o portão. Com um gemido de ferro enferrujado, este abriu-se ligeiramente. “O maldito portão nunca esteve fechado!” Gritou silenciosamente enquanto amarrotava o chapéu na cabeça, furioso com a sua própria estupidez.
Empurrou a grade com receio e deu os primeiros passos no escuro. Algo tilintou em contacto com a bota e ele, num dos seus acessos de fúria, chutou a chave. Vários objetos metálicos tilintaram e alguns caíram em ruídos nada bem-vindos a quem não quer ser visto nem ouvido. Encolheu-se com os dentes cerrados, surpreendido com a sua própria estupidez. Espreitou para o exterior a ver se o guarda por um acaso regressava.
Sentindo-se mais seguro, olhou para as silhuetas difusas dos caixões nas prateleiras à sua direita. Estavam os três limpos, mas não havia duvidas que o do meio brilhava com madeira nova. Engoliu em seco, benzeu-se e puxou o ataúde para fora, com esforço. Deixou que a cabeceira continuasse em cima da prateleira e pousou a parte dos pés  no chão. Com a faca, trabalhou a fraca fechadura e abriu-a, dedicando-se depois a cortar o chumbo que o lacrava. Um cheiro intenso a morte invadiu o compartimento quase  fazendo-o vomitar.
Levantou a tampa respeitosamente e contemplou na penumbra a velha senhora Vasques de Sá. Quase não se conseguia distinguir os pormenores, mas percebia-se que estava cuidada e não muito envelhecida. Não fosse o cheiro e poderia dizer-se que dormia. Pegou no lenço das mãos e tapou o nariz. Pensando melhor, tirou o pequeno cantil do bolso e engoliu mais dois golos, depois humedeceu o lenço e tornou a tapar o nariz com ele… “Ah, muito melhor!”.
Renovou a benzedura e soltou um pesado suspiro. Afastando a cara o mais que podia, apalpou as mãos da falecida até identificar, entre os diversos anéis que lhe adornavam os dedos, aquele com a pedra quadrada que era o seu objetivo. Dada a proximidade do rosto do cadáver, conseguiu também distinguir o brilho do ouro, num grosso cordão, em volta do pescoço. Puxou o anel por várias vezes, parecia que a morta não queria ver-se despojada da joia, mas por fim acabou por sair. Mirou o objeto à luz difusa que se escoava para o compartimento antes de o meter no bolso. Observou novamente a mulher… “Afinal, ela já não precisa de nada do que tem.” pensou. Se bem o pensou, melhor o fez e ignorando o cheiro, colocou as mãos atrás do pescoço da morta para soltar o cordão. Nesse preciso momento, o ataúde escorregou para fora do seu apoio e caiu ruidosamente no chão de mármore, arrastando Umbelino para cima do cadáver, boca com boca, num involuntário ato de  necrofilia. Horrorizado com o inusitado ósculo, ele gritou enlouquecido e tentou sair do ataúde, de onde não se conseguia soltar. Durante o que lhe pareceu uma eternidade, lutou para libertar o braço, bloqueado atrás do pescoço da mulher, enquanto gritava por perdão. Atirou o peso do seu corpo para fora e arrastou o cadáver e o caixão, ficando desta vez por baixo do conjunto. Os uivos desesperados que soltava, seriam capazes de gelar o sangue nas veias de qualquer um que se abeirasse do cemitério naquele momento. Quando conseguiu soltar-se e sair debaixo da “armadilha”, ergueu-se de um salto para sentir o toque diáfano do manto de um fantasma pousar-lhe na cabeça. Nova sequência de gritos enquanto tentava libertar-se do ser sobrenatural em que se enroscava cada vez mais. Gritou, gritou e gritou, até que uma luz trémula iluminou a cripta. Gradualmente, os gritos foram abrandando e transformaram-se num choro manso e soluçante.
O guarda do cemitério iluminou o mausoléu com a sua lanterna. Era o caos total: um caixão tombado, candelabros e outras peças de prata espalhados por todo o chão. Mesmo no meio, um homem de rosto cinzento, com o cabelo completamente branco e os olhos raiados de sangue, estava atabalhoadamente enrolado no tule das cortinas. Chorava e estendia a mão numa súplica muda.
 

 

Manuel Amaro Mendonça

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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O melro e a poupa



A figura vistosa de uma poupa desce sobre um canteiro meio seco, na parte alta do Parque Eduardo VII, e começa a vasculhar todos os recantos à cata de insetos ou outros acepipes disponíveis. O seu aspeto colorido e meio exótico é soberbo. O bico curvo e alongado debica e revira as folhas secas com agilidade.

Um melro, que pousa a seguir, parece não gostar nada da concorrência. Depois de uma mirada atenta, arremete, de asas meio abertas, contra a intrusa, que só lhe presta a atenção suficiente para evitar a prometida bicada. Com um saltinho em leveza, afasta-se meio metro e recomeça a labuta.

Esse escaravelho é meu! — brada o melro, muito agastado, ao ver a poupa, que, com um hábil movimento do bico, faz escorregar pela goela um inseto com aspeto apetitoso.

A poupa finge não o ouvir e continua a atividade recoletora. O melro faz nova investida e novamente a poupa evita o ataque. Agora, numa área relvada, a poupa rapidamente desencanta uma minhoca e começa a puxá-la para fora do solo. Uma minhoca é demais para o melro. Corre para a poupa e aproveitando a sua limitação momentânea de movimentos, bica a adversária no flanco. Apesar da proteção plumosa, o bico firme do melro incomoda. A poupa larga a minhoca, que recolhe ao buraco, e enfrenta o agressor:

Não me toques! Estás parvo ou quê? Queres que te vaze um olho? — ameaça, enquanto exibe o afiado bico recurvo.

Desaparece daqui! Esta é a minha zona. Todos os besouros, abelhões, larvas, vermes é tudo meu — riposta o melro.

Grande proprietário! E é aqui que vens à procura de minhocas? É a tua especialidade, não é? — provoca a poupa.

Tu é que vens aqui por elas, não tenho dúvidas — devolve o pássaro negro. — Quantas já engoliste hoje?

Não sejas reles! Eu sou uma senhora.

Assim vestida? Pareces-me mais uma galdéria.

E tu? Assim todo de negro, austero, aprumadinho... Ninguém duvida que és um nojento papa-minhocas. Das juvenis.

Fica a saber que eu não sou padre, nem juiz, nem praxista. Soy un cantante. Cantante de flamenco.

Ah, ah, ah! — ri a jovem. — Já te estou a conhecer. Tu és o Paco do Tablao do Jardim da Estrela. Uma vez estivemos juntos num espetáculo beneficente pelo controlo de pragas no Jardim Gulbenkian. Eu danço sevilhanas no jardim do Campo de Santana. Sou a Carmen. Não te lembras de mim?

O melro fica um tanto surpreendido. Não responde logo. Finalmente sorri, amigável.

Olá, Carmen; já me lembro. Isto é um bocadinho embaraçoso. Então e se fôssemos tomar um trago, para descrispar o ambiente? O bebedouro ao pé do Pavilhão Carlos Lopes está a vazar.

Está bem. Mas, não tem dress code? — ironiza ela.

Paco encaixa o gracejo, ambos riem e, já em boa camaradagem, voam dali para o bebedouro; o melro à frente, a poupa logo a seguir. Ele deixa-a beber primeiro e só depois enfia o bico amarelo na poça de água que se formara junto à base do bebedouro.

Ah, sabe bem, assim fresquinha — expande-se o melro, o peito negro para fora.

Vou aproveitar para uma banhoca — anuncia a poupa, avançando pela água adentro e começando a espanejar, espalhando borrifos em todas as direções.

Ei, cuidado!; olha que eu já tomei banho hoje — reclama o melro, saltando para trás para evitar os salpicos. — E nem sequer tiras a roupa?

Querias! Mas não preciso. Este vestido tem um tratamento hidrofóbico. Lava-se e está pronto a vestir.

Se o tirasses, abreviávamos as coisas — lança Paco, com um sorriso intencionalmente maroto, confiante no ditado “Quem não arrisca não petisca”.

Um bocadinho de respeito pela colega… — finge amuar Carmen. — De qualquer modo, somos de espécies diferentes. De que valia?

Há muitas outras valias em passar um bom bocado, para além de constituir família...

A poupa ri, nervosa. Gosta deles atrevidos, mas percebe que tem de ligar o radar anti-abuso.

Sai da água, esplêndida, no seu vestido de sevilhana de cores vivas. O banho deixou-a bem-disposta, mas ainda tem o papo a dar horas.

Sabes o que me apetecia agora? Uns caracóis. Ou então umas joaninhas.

Hum, deixa-me pensar. Talvez… Ah, já sei. Vamos às hortas urbanas de Telheiras. Aquele pessoal é todo ecologista; não usa pesticidas.

Depois de uns poucos minutos de voo, pousam no destino. Felizmente, ainda é cedo e só dois hortelãos por ali andam, mas concentrados na lida agrícola. A maioria só vem ao fim da tarde. O melro não se enganara. Os vários regos de tomateiros que encontram fornecem-lhes um bom papo de escaravelhos. A crista da poupa reflete o bem estar pós-refeição; parece um leque.

Ah!; adoro escaravelhos do tomateiro. Têm estas notas de agre, a fazer lembrar ketchup. Espero que não me façam mal. Comi tantos! — rejubila Carmen, enquanto distende as asas redondas, exibindo o esplendoroso padrão branco, negro e laranja. — Ai, que preguiça!

Os olhos de Paco brilham, fascinados.

E se fôssemos sentar-nos num ramo confortável de uma árvore bem frondosa, a desfrutar o momento? Gostava que ouvisses a minha nova cantiga. E tu podias mostrar-me uns dos teus insinuantes passos de sevilhana. Não vejo melhor maneira de celebrar esta amizade reencontrada.

Hum; devia ser interessante, mas deixamos isso para a próxima. Não falaste também nuns caracóis?

Tu é que falaste, mas está bem! Por acaso, acho que sei onde encontrá-los. Pode ser amanhã?

Hum; amanhã não posso. Depois de amanhã.

Ok. Mas traze esse vestido! Afinal, acho-o… sensual.

Que remédio; não tenho outro. A não ser que queiras oferecer-me um. Por coincidência, faço anos depois de amanhã... — remata Carmen, antes de levantar voo.

O melro estaca, embatucado. Sente-se empalidecer. Gostava de ser gentil, mas, ver-se depenado é uma possibilidade assustadora. Só tem dois dias para encontrar uma solução airosa.

«Talvez ela se contente com uma bandelete» — pensa.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Rafael Arroyo Fernández, Na Feira, 1886.

Coleção Carmen Thyssen-Bornemisza, Museo Carmen Thyssen, Málaga.

* * *






sábado, 23 de outubro de 2021

HONORINHA

 



 

Chegaram quietos. Traziam nas vestes surradas a poeira da estrada vencida na carroceria do velho caminhão. Foram despejados ali, no começo da vila. As matulas dos pertences, jogadas à beira da rua, no chão de pedregulhos. Grandes trouxas, onde os nós amarravam o conseguido da vida.

Eram três homens, uma velha e duas crianças. Marrons. Além da tez, a poeira os tornara assim, cor da terra. Olhavam em todas as direções, olhos semicerrados diante da luminosidade impiedosa do sol. E eram olhados. Da porta do armazém, olhos curiosos e bocas incontroladas tentavam desvendar a trajetória daqueles inesperados forasteiros. Material farto para as conversas de muitos dias.

De todos, um dos homens se destacava pela altura. Mesmo sujo, dava para ver que, além de mais alto, era mais claro. Tinha braços longos, ombros largos, farta cabeleira, barba por fazer. E foi ele que, num meneio de cabeça, indicou a direção a ser seguida. Instalaram-se no vão de um terreno bem perto de onde estavam, sob a copa de duas mangueiras imensas, entrelaçadas. Cada homem arrastava duas matulas. A velha, sem medir força, arrastou a maior delas. E, para as crianças, sobraram as pequenas.

Na mesma rapidez dos movimentos, os três homens deixaram os fardos no pé da mangueira, sob os cuidados da velha, e seguiram em direção da baixada da vila. Não demoraram a voltar trazendo pedaços de tijolos, gravetos. O mais novo, depois de trocar uma prosa com a velha, rumou para o armazém. Foi em busca de arroz e linguiça.

A velha não demorou em pedir licença na casa mais próxima e usar da água do poço. Em instantes, o fogão de chão estava montado, os gravetos crepitavam e as velhas panelas dançavam nas mãos calejadas da velha senhora.

Avezados a acampamentos, os homens, numa debandada harmoniosa, ausentaram-se por um bom tempo. A tarde já havia entrado quando o chiado dos feixes de folhas de bacuri, amarrados às cinturas dos homens e varrendo os pedregulhos, fez com que as cabeças dos curiosos se voltassem para os forasteiros. Também traziam, nos ombros, alguns galhos grossos de árvore, muitos deles terminados em forquilhas generosas. Tudo foi ajeitado no chão e, famintos, rodearam o fogão onde o banquete os aguardava.

Saciados, conversando em voz baixa, começaram a medir e a delimitar, com passos, os lugares onde seriam fincados os troncos. E o serviço, com pouca prosa e muito assobio, ia dando forma ao esqueleto da cabana. Já ia escuro quando todas as forquilhas estavam fixadas. Retiradas as redes das trouxas, cinco delas foram dispostas em ziguezague nas fendas das forquilhas. As crianças dormiam juntas. A menina, de mais ou menos sete anos, e o moleque, que não passava dos cinco, eram mirradinhos, caladinhos, ligeiros, de olhos grandes e assustados.

Foi só o tempo de silenciar a fome e logo se ajeitaram nas redes, exaustos. E, mesmo ao relento, o sono veio feito dádiva.

Antes do raiar do dia, a velha preparou o café, os homens se ajeitaram e saíram, e as crianças dormiam como minhocas entrelaçadas. Acordaram com o barulho dos bambus sendo pregados e trançados na volta da cabana. Como num passe de mágica, as folhas de bacuri forraram o teto e as paredes, e a cabana estava terminada. Sem janelas, com apenas uma entrada. E todos sorriram. A próxima noite não seria mais ao relento.

Na nova morada, naquele resto de dia, foram esticados varais, montado um batedor de roupas e um cercadinho onde os adultos se lavariam. Um velho tambor foi cortado ao meio. Metade foi colocada ao lado do batedor, seria a tina para lavar as roupas, e a outra metade serviria para reservar água e banhar as crianças.

A vida tomou rumo. Os homens foram conseguindo trabalho nas roças, nas plantações, nas colheitas, e aos poucos, os forasteiros iam sendo conhecidos. Dos homens, o mais alto era genro da velha, pai das crianças. Os outros dois homens eram irmãos, filhos da velha senhora, e a mãe das crianças, sua única filha, morrera no parto do menino. Tirante o pai das crianças, eram índios, e vieram de muito longe. Talvez por isso, ninguém se assustava com o costume da velha que, no dia a dia, ficava sem qualquer pano a lhe cobrir os seios. Usava sempre saia rodada que chegava aos tornozelos, e na parte de cima, nada, absolutamente nada. Não saía às ruas, ficava o tempo todo na lida da casa e das roupas. Miúda, pele extremamente enrugada, cabelos compridos, ralos, pouco grisalhos, amarrados na altura da nuca. Cigarro de palha no canto da boca, quase sempre apagado. Tetas caídas, pelanca pura. Triste figura. Mas tinha olhar manso, amoroso.

Levei um tempo a me aproximar. Durante dias, acho que meses, fiquei de longe, mas meus olhos não perdiam um movimento. Só atravessei a rua e finquei os pés no terreno quando a menina sorriu. Eu era miúda, mas ela era ainda mais. De perto, magricela e de uma palidez esverdeada, era a fragilidade viva. Era um azougue, habilidade simiesca, subia nas mangueiras como se tivesse garras. Eu era uma criança que só não deixava a família na corda bamba quando dormia, mas ela era, anos luz, mais endiabrada que eu. Juntas, nem preciso falar.

Foi, então, que fiquei sabendo do nome de Honorinha. Ficamos parceiras. De brincadeiras, de risadas sem medida, de silêncios. Ela era calada, serelepe calada. Eu falava pelos cotovelos, nem sei se ela ouvia. A jornada começava cedo, e só era interrompida no almoço, na merenda e na hora de dormir. Nunca comi lá, e ela nunca foi comer em minha casa. E não havia despedida, saía de fininho e chegava de mansinho.

E o novo ano começou. Entrei na escola, mas Honorinha, não. Não estudava e nem tinha tino para isso. Brincadeira de desenhar ou escrever na terra com pauzinho, nem pensar! Era avessa!

Então, a nossa parceria resumia-se às tardes. Menos tempo, mais intensidade. Ainda bem que a avó nunca permitiu que ela se afastasse do espaço do terreno. A velha nunca ergueu a voz, o entendimento era velado, os olhos falavam. A maior parte do tempo, passávamos na copa das mangueiras.

Uma tarde, Honorinha entrou na tina do banho. Eu estava no canto do terreno e empurrava com os pés, as pedras, os cacos de louça, os caroços secos de manga, os gravetinhos, enfim, nossas bugigangas das brincadeiras. E ouvi um grito. Olhei para Honorinha e ela estava escorada pela avó, toda cheia de sangue. Havia escorregado no barro ao sair da tina, e fizera um corte profundo na altura da coxa, quase na virilha. Fiquei apavorada, sai correndo em direção de casa. A noite foi sofrida, e na manhã, nem tinha vontade de ir à escola. Mas fui...

Quando cheguei ao terreno, tudo estava quieto, Honorinha não me esperava. Estava dentro da cabana, deitada na rede, com a perna toda enfaixada. Seu João da Botica havia feito o atendimento, e ela precisava ficar em repouso. Eu fiquei ali, sentada na entrada da cabana. Ela dormia. E no outro dia foi assim, e no outro, também. Ela não estava bem, febril, seria levada para outra cidade, para um hospital.

E foi assim. Uma tarde, quando cheguei, só os homens com o menino estavam lá. Honorinha e a avó foram levadas e voltariam assim que ela melhorasse. Eu continuei na espera. Bastava chegar da escola, mal engolia a comida, corria lá para conferir.

Depois de muitos dias, numa tarde percebi que não havia mais roupas no varal, não havia varal, nenhuma panela no fogão. Fui até à porta da cabana, estava vazia. Sem redes, sem roupas.

Partiram. Simples assim. E eu nunca soube o que aconteceu. Para onde seguiram, como Honorinha ficou... Nenhuma notícia, nunca mais.

Até hoje procuro por ela. Deve estar em algum lugar. Será que estudou? Casou? Teve filhos? Será que morreu?!

O que mais me intriga é que ninguém tem qualquer lembrança dela. Nem minha mãe, nem meus irmãos, nem os moradores da vila. Ninguém, absolutamente ninguém diz que conheceu a menina.

Interessante como o menino nunca participou das brincadeiras! Não tenho lembrança de conversar com ele, de ter ouvido a voz dele, o choro! Tenho lembrança apenas do rostinho miúdo.

Honorinha...

Será que você realmente existiu?!

 

 

Regina Ruth Rincon Caires





sexta-feira, 22 de outubro de 2021

O Maníaco Possível

 

Embora as distâncias não fossem mais as mesmas, e não representassem o mesmo obstáculo de eras e épocas anteriores, ou a incerteza das partidas, elos e destinos, ainda exigia-se, para sua transposição, um ato de vontade, e isso tanto Genuíno quanto Isadora sabiam. Conheceram-se eles pelas redes sociais, de distâncias medidas e calculadas em palavras e lapsos, e ignorando a fragilidade dos horizontes modernos, incentivados por noções paradoxais de proximidade e proteção, entregaram-se a sinceridades despudoradas, vindo os dois a se relacionar como não se relacionaram homens e mulheres em tempos de melhor contato.

A iniciativa fora dele, uma saudação casual, e ela, entediada, e por não ser de intimidades para com estranhos, indagou: Nos conhecemos? A pergunta, intimidadora em seu contexto, dir-se-ia um escudo contra terceiros, não o amedrontou. Perseverou nas afirmações e afirmou-se na perseverança, e enfrentando o ardiloso descaso de Isadora, perpassando os obstáculos iniciais do desinteresse com seu charme de homem seguro e confiante, atraiu-a. Ela, não acreditando-o real e sim um ardil de inimigas, esmiuçou os pormenores manifestos em sua vida online, contatos, fotografias, notícias e menções, e conforme as evidências ajustavam-se às suas aspirações, à eleita visão de seu futuro, e nela provocavam os mais distintos sentimentos, Isadora encontrou-se apaixonada.

Era médico cardiologista, descobrira ela, divorciado, com uma filha adolescente, favorável às armas, praticante de ciclismo. Cristão. Não afeita às aventuras da carne, destinada às da alma, rendeu-se ao perfil de Genuíno. Queria, desejava, mil laços além dos físicos, e o mesmo desejava ele. Foram dois meses de conversas e confissões até combinarem, apaixonados, de se conhecer. Genuíno compraria a passagem de avião e iria até Isadora. Passariam, nessa ocasião, um fim de semana no apartamento dela com o propósito de entrosarem-se, desvendarem-se.

Reunida com as amigas, Isadora revelou o seu caso virtual. Estou apaixonada, disse. E já nem sei se quero estar. Minha esperança é conhecê-lo, me decepcionar, falou, e guarneceu de sentimentos a aventura. Mostrou imagens de Genuíno, imagens de sua filha, de suas viagens, trechos de diálogos, e, entre os costumeiros elogios, ouviu de Adriana, amiga de infância, a primeira crítica.

Isadora, e se esse homem for um psicopata?

Impossível, respondeu ela. Olha o nome dele: Genuíno. Genuíno! Vê lá se é nome de assassino!

As meninas riram.

E outra, disse ela, já tentei de tudo para irritá-lo, e não consegui. É o cavalheiro dos meus sonhos.

Mais para o psicopata dos pesadelos, completou Adriana.

Ao final da reunião Isadora recebeu o aval, e a benção, das amigas, inclusive de Adriana. Restava a ela esperar. Era domingo, e o encontro estava marcado para dali a cinco dias. A semana, esta, ela passou enfeitando-se, entre o cabeleireiro e a manicure e a pedicure e a academia. Era uma mulher comum, com nenhum privilégio além da pele, lisa e cor de mel, entretanto, quando determinada, quando ébria de amor, transformava-se, e a violência de sua beleza atordoava tanto os incautos como os precavidos – e assim atordoou-se Genuíno ao, na tarde do encontro, apresentar-se a Isadora.

Meus bom Deus, disse ele, adentrando o apartamento. Se não fosse meu joelho ruim, me ajoelhava.

Ela sorriu. Beijaram-se assim de Genuíno largar a malinha no tapete. Às amigas, Isadora narraria depois, foi uma noite perfeita. Ele insistiu e preparou o jantar, e terminada a refeição entregaram-se um ao outro. Entre o par sucedeu-se um amor desesperado, atrapalhado, todavia gratificante. Nele descobriu um amante desinibido e carinhoso. Dormiram juntos, e é de se especular se ainda estariam juntos caso ela não despertasse com o peso da madrugada. A sós na cama, sentou, refez-se dos sonhos, e dentro do closet tremulava a sombra de Genuíno. Admirando-a, admirando o momento e o passado, entreviu nas ribanceiras da memória o alerta de Adriana – e, desperta, assaltaram-lhe as dúvidas. O que faria, ele, ali? Seria um ladrão profissional? Levantou-se. Como os felinos gravados em sua camisola, arrastou-se até tê-lo à mercê dos olhos. Era Isadora, então, outra escuridão na escuridão, a maior das escuridões.

Inerte, flagrou-o.

Genuíno não só vestira a lingerie preta de Isadora, o sutiã e a cinta-liga, e não só colorira os lábios de vermelhos e colocara saltos-altos, como, de lado, empinava o bumbum para o espelho e rebolava.

Surtada, em transe, Isadora invadiu o closet e só cessou as mordidas ao engasgar-se com sangue.


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quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A CONFISSÃO





Quem me conhece sabe o quanto gosto de contar essa historinha.

Uma vez, perguntaram ao Tom Jobim quem seria sua maior fonte 

de inspiração. Ele, sem tirar o charuto da boca: “o prazo”. 


Sábio Maestro Soberano. Nada é mais energético para a 

criatividade do que a disciplina e o compromisso de entregar 

alguma criatura num tempo previamente estabelecido. 

Ansiedade e aflição são combustíveis. Insegurança idem. 

A certeza de que não se vai conseguir criar algo de novo pode 

ser ilusória depois da coisa pronta, mas durante o processo 

é o real de filme de terror. Quando você sente o vazio criativo, 

no angustiante momento, nada contradiz a realidade do monstro 

que lhe aponta a faca atrás da cortina.


Quem me conhece sabe que todo dia 20 é dia de conto inédito 

aqui nesse honroso espaço. Ou mesmo uma crônica, posição 

onde não jogo tão à vontade. Mas dessa vez, o monstro venceu. 

Levei a facada. Não há conto novo - poderia apelar para meus 

livros publicados e requentar alguma história. 

Mas não. Nem para isso tenho coragem. 


Acabei de ler Leo Aversa no Globo, junto com Zuenir Ventura 

escrevendo pensamentos lindos sobre Darcy Ribeiro. Na minha 

cabeceira, alternam-se no momento Valter Hugo Mãe, Itamar 

Vieira Júnior, Antonio Torres e Cássio Zanatta, algumas páginas 

de cada vez, na velocidade voraz que a delícia dos textos me impõe. 

Aprendi a abrir escaninhos de leituras simultâneas na cachola 

e perdoem me se não seja coisa de leitor nobre, à altura dos autores. 

É meu jeito de aproveitar ao máximo o que a boa escrita alimenta.


Mas meu pedido de desculpas pode soar cretino, embora sincero.

 Dessa vez, não tem conto inédito. Apenas uma confissão do meu 

fracasso criativo, embutido numa sugestão de leituras verdadeiramente 

edificantes. Necessárias, obrigatórias, fortificantes para a alma. 

Ou melhor, um convite a ler o que ando lendo 

com supremo deleite. 


Sei não, acho que vocês vão sair ganhando.






terça-feira, 19 de outubro de 2021

Louvação

 


 

Dona Maria Valda me pergunta, sempre, se não está bom de parar. Ela se refere ao meu trabalho incansável, do qual não consigo tirar férias; que não me permite, como nos velhos tempos, passar vários dias cheirando o seu cangote de alfazema. Mãinha diz que se arrepende “mucho” de ter me deixado ir a São Paulo; que eu não tinha nada que ver aí, na casa de Mariinha, sua irmã. “Isso foi a maior arrumação que você aprontou, Lucivalda!”. A expressão é magoada, como se minha tia e a cidade grande tivessem me tirado da vida prometida. Aquela era a vida de meus antepassados. Eu não estava disposta a retroalimentar o ciclo. No começo, nos idos de noventa, eu estava areada, sem rumo; mas enfrentei a barra de largar o colo de mãe para buscar um futuro melhor. E, aí, não falo de estudar, me formar; falo de arranjar trabalho e dinheiro para mandar à mãinha, que vivia na penúria e na tribulação, por ter de sustentar, praticamente sozinha, uma ruma de filhos: dez. O meu genitor se amasiou, depois do meu nascimento, a caçula, com outra mulher, nova, e daí surgiram mais uns tantos irmãos, que não conseguiria mensurar. Então, desde muito nova, pensava em mudar o fado de mãinha, para que ela pudesse descansar o couro, quente e esgotado da lida na roça. Quando parti, num dia em que o sol me expulsava, severo, reparei bem os sulcos do seu rosto, que se prolongavam para o pescoço, descendo pelo busto; e intuí, chorosa, que todo o corpo da franzina mulher era talhado da mesma forma da terra castigada pela seca. Apressei nos cumprimentos para não me arrepender, para não olhar para trás, e, como um potro domado e desgarrado, simplesmente segui viagem. Já não era a primeira perda de mãinha. Contei sobre o meu genitor bandoleiro. Porém, o que minou as forças da imensa senhorinha foi a partida de Luíza, a minha irmã encostada no mais velho, o Demétrio. Esta, sim, era a dor irremediável. A morte prematura, na flor da idade, da filha que ajudou a criar os demais, fez mãe definhar gradualmente. E, por isso, ficávamos como pintinhos debaixo de suas asas, para que mãe não se sentisse só, largada. A minha ideia de ir embora, com destino e possibilidade de voltar, não veio de supetão; foi algo pensado, por anos, em razão, sobretudo, da carência desmedida. Houve dias em que comíamos caça, noutros farinha, e, no auge do aperreio, lagartos, para que as tripas não “pregassem”, como mãe descrevia, com gestos vagos, teatrais; o processo da autofagia. Esperei completar a idade adulta para anunciar a minha decisão. Não que com dezoito anos pudesse me considerar adulta; pelo menos, era passível de arrumar um trabalho em qualquer estabelecimento, pois força e vontade não me faltavam. Nessa altura, também considerei que mãe estava melhor; havia voltado às atividades e comprara até umas cabeças de bode, pois que, para ela, “o leite da boda tem a sua sustância!”. A viagem foi longa, três dias e três noites, num ônibus caindo aos pedaços; sentada atravessada, dormindo pelas tabelas, onde e como dava. Chegando a São Paulo, me assustei de cara. Ajuizei que seria engolida pelo concreto. Uma cidade linda, colossal e ameaçadora, ao mesmo tempo. Tive medo de desbravá-la. Passei três horas perambulando pelas imediações da rodoviária, perdida, arrebentada, sem nenhum dinheiro para o luxo da comida; teria de guardar os trocados para continuar o itinerário. A minha intenção era de alcançar a bendita casa de tia Mariinha, a melhor irmã e amiga de mãe, “os querer”; a caçulinha, como eu, que se debandou para o sul, com iguais propósitos. Brasilândia não era aquilo tudo que imaginei. Casas amontoadas faziam o contraste com a liberdade que eu tinha nos descampados de Umirim. Tia Mariinha abriu a porta e, com todo amor, me abraçou infinito e foi me mostrar a sua pequena casa, na qual morava com duas crianças, meus primos, e o marido – que, felizmente, vivia na rua. Eu dormia com os meninos, com o meu colchão dividindo as suas camas, o que impedia a circulação e provocava certa chateação à noite, na hora de dormir, porque, principalmente o Natanael, ficava pulando de uma cama a outra e demorava a pegar no sono, por conta da novidade: eu; como dizemos no Ceará, para “se amostrar”. A precisão não oferece escolhas. De início, por sorte ou por desígnio de Deus, trabalhei como faxineira terceirizada na USP. Com um mês de serviço, por boas recomendações da chefia, dos professores e dos alunos, fui contratada. Lá, via aquele povo chique, e a beleza era portar um monte de livro debaixo do braço. Eu achava bonito demais quem lia qualquer tipo de livro. Frequentava, mais do que o normal, a biblioteca, para apreciar os livros e lamber o piso. Zaíra, a bibliotecária, vendo o meu gosto, me recomendou um programa da universidade que oferecia cursos para jovens e adultos que desejassem completar o ensino médio. Eu estudava com um ânimo incrível, como se os livros fossem os meus amigos e o meu refúgio. Na formatura, ganhei uma medalha de honra ao mérito, por minha dedicação e por minhas notas. A professora Ana Bernardes me incentivou a prestar o vestibular e a não parar de estudar; “Você tem futuro, menina!”. E, nalgum momento em que eu estava abatida ou cansada, era a sua voz que ouvia ecoar na minha cabeça, e logo me aprumava e acompanhava o fluxo do destino seguro. Acreditei. Para amparar o desejo, me afeiçoei aos alunos de vestimenta branca; conversava com um e com outro, para saber como era fazer medicina. Alguns, pouco caso; no entanto, a maioria me incentivava. Teresa foi uma delas. Deu-me todas as suas apostilhas fresquinhas do último vestibular. “Estude, Lúcia! Você é muito inteligente; não pode desperdiçar um dom de Deus”. Oxe, com essas palavras revigorei; estudava mais e projetava aos céus a minha louvação. Tia Mariinha ficava inculcada com a minha teima. “Menina, você não pode passar a noite aí enfurnada nos livros; isso vai dar uma canseira nas vistas”. E eu, contumaz, permanecia na sala, com a luz do abajur, estudando; e tantas vezes vi entrar o Tonny – vulgo Antônio –, morto de bêbado, querendo me bolinar. Depois que dei um murro bem no meio das ventas do cabra, ele aprendeu o fim de sujeito safado. Estava me preparando para o terceiro vestibular em medicina, determinada, quando tia Mariinha se separou do encosto e pediu que eu saísse do trabalho para cuidar dos meninos; que me daria um dinheiro para eu comprar as minhas “besteirinhas”. Tia não ganhava muito, trabalhando de merendeira, mas tínhamos um pouco mais que o trivial para a mantença. Cuidar das crianças foi uma tarefa árdua: Natanael, o mais novo, ficava agarrado aos meus pés; e Jonathan, ao contrário, queria se ver livre de mim, para ganhar o mundo e se perder na vida. Então, eu ficava nessa historieta de gato e rato, sem sossego para estudar; conseguia somente quando tia chegava do trabalho, ou quando estivessem dormindo. E o grande dia chegou: parece que por caridade ou compensação, Deus ouviu as minhas preces; passei para o curso de medicina na USP. Compartilhei com as minhas amigas Ana Bernardes e Teresa, que, admiradas, choraram litros de alegria, as duas; pensei que houvessem combinado. Tia Mariinha deu uns pulos em casa, de encostar a mão no teto. Ela gritava e assustou as crianças, que se mandaram para a rua. Naquela hora, tia não queria saber de arenga de menino; me deu um abraço arrochado, me beijou, sem exagero, umas trinta vezes, e disse que eu seria a primeira doutora da família. Enchia a boca para dizer: “A primeira doutora da família!”. Eu percebia que estava apenas começando a minha bela e intensa caminhada. Já na faculdade, na primeira aula, um professor esquisito, da disciplina de anatomia humana, pediu para que os alunos se apresentassem. Acho que, na sala, só havia eu e a Flávia de pele escurinha. Quando chegou a minha vez de falar, quase no fim, percebi um burburinho, uma aparente perturbação. Depois, Flávia me confirmou: “Amiga, as pessoas não estavam acreditando quando você disse que tinha estudado sozinha; que vinha do interior do Ceará. Realmente, é fantástica a sua história!”. Notei, com o tempo, olhares de perseguição; nem eu, nem Flávia podíamos sair da linha; éramos cotistas, e isso também era uma afronta para os demais. Segui meu caminho, aos atropelos, mas segui. Com pouco dinheiro para comprar os materiais, pedia a um e a outro, fazia bico de diarista, o que aparecesse; não perderia por nada a bênção divina. Os algozes soltavam montanhas de pedras, sem entender, pobres de espírito, que eu era calejada na lida, e que os supostos obstáculos serviriam de fundamento para que eu pisasse firme, obstinada. Concluí a faculdade e nesse tempo todo não revi mãinha. Nossas conversas se estendiam, por telefone, horas a fio – um irmão meu, o Cipriano, possuía um projeto de telefone, que mais parecia uma arma, de tão antigo; esse era o meu canal direto com o paraíso. Prometi que voltaria o mais rápido possível. Tive ainda de passar três anos, além dos seis da graduação, na residência em infectologia. Portanto, calculava um pouco mais de uma década em SP; na cidade que, contrariando o poeta, encontrei o abrigo e o amor. Poxa, me assustei; não vi o tempo correr. Sobre a infectologia, nunca pensei em trabalhar com esse tema; mas as coisas acontecem como têm de ser. Foi primordial a lembrança de uma infestação generalizada de cólera, que dizimou trinta e duas pessoas de uma população miúda, no fim da década de oitenta. As autoridades não deram confiança. E eu vi, com esses olhos que a terra há de comer, o padecimento de mãe, que suportou as perdas de uma irmã e da mãe, ambas pela “maldição”. O fato marcou muito a minha família; e um tiquinho de cada família esquecida do sertão do Ceará. Por uma boa preparação dos céus, hoje escrevo do meu polo de apoio, em São Paulo; da minha alma mater, no meio de uma pandemia que destroça o país e o mundo. As autoridades, de novo, não estão nem aí. Agora, são negacionistas; são contra a ciência. Mas não me abalo; só um touro para me derrubar. Estou disposta a trabalhar vinte e quatro horas, de domingo a domingo, para salvar vidas. Colegas perguntam qual a estratégia para me manter em pé, com longos turnos no laboratório – e aí não há brincadeira, ou insinuações, como se eu estivesse sob o efeito de alguma droga; mas algo genuíno, puro, porque sabem do meu proceder. Digo que na vida passei por muitas pandemias, de tantas dimensões, que, talvez por sina, venho sendo fortalecida para suplantar e a atuar nesse instante de grande luto. E luto! Lutarei para não sermos estatísticas, números. Meu nome na história da ciência brasileira é um detalhe. Fico honrada com os prêmios que recebi; contudo, o presente e a bênção correspondem a doar a vida para debelar os vírus que infestam essa nação.





domingo, 17 de outubro de 2021

Full/di - um poema de Dayse Moura

 





sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Um cheiro a tabaco


 

 

Acordou com o ranger da porta. Ainda meio a dormir entreabriu as pálpebras, tentando estabelecer contacto com o mundo exterior. O quarto estava deserto, e nem podia estar de outro modo uma vez que se fechava todas as noites à chave. No entanto tinha a certeza de ter ouvido a porta abrir-se: as dobradiças faziam um ruído característico, um misto de gemido e rilhar de dentes, que o incomodava tanto ao fim de vinte anos como no primeiro dia em que se mudara para aquela casa. Já tentara tudo, incluindo várias mudanças de ferragens, mas nada parecia ser capaz de eliminar aquele som verdadeiramente infernal.

Talvez tivesse sido um sonho. Acontecia-lhe com frequência ter sonhos de tal modo reais e intensos que mesmo muito depois de estar acordado, e bem acordado, continuava a não ser capaz de dizer onde acabava o imaginário e começava a realidade. Ainda devia ser muito cedo, a avaliar pela luz mortiça que entrava pelas janelas mal tapadas pelas téues cortinas brancas. Mas familiarizado como estava com o quarto onde passava a maior parte do seu tempo, sabia que estava tão só como sempre o estivera desde há longos anos.

Virou a cabeça de modo a poder ler os números vermelhos do mostrador do relógio colocado na mesa de cabeceira. Eram apenas seis da manhã, muito antes da hora a que habitualmente acordava. Este facto era, só por si, bastante estranho. Pertencia ao tipo de pessoas com um relógio interno de grande precisão e acordava sempre à hora pretendida, a menos que algo de exterior o despertasse antes do tempo. O que parecia ser o caso, embora não conseguisse identificar a causa da perturbação ou ruído que o acordara.

Enfiou-se um pouco mais para dentro dos lençóis, acomodou melhor a cabeça na almofada e cerrou os olhos, numa tentativa de voltar a adormecer. No entanto havia algo que continuava a preocupá-lo, algo de muito ténue e vago que identificara quase inconscientemente no instante de acordar mas que depois lhe escapara por completo. Mentalmente passou revista ao quarto, tal como o vira no momento em que abrira os olhos. Mas não conseguia lembrar-se de ter notado nada de anormal ou estranho. Muito arrumado e maníaco da ordem como era, teria reparado logo se alguma coisa não estivesse no seu lugar habitual.

Tentou fazer o vácuo no seu espírito, pois bem sabia que enquanto tivesse qualquer preocupação em mente não seria capaz de voltar a adormecer. Ao fim de alguns instantes começou a sentir que deslizava suavemente para dentro do mundo cinzento do sono e dos sonhos. Estava mesmo, mesmo, a adormecer quando uma ideia súbita lhe iluminou a mente, despertando-o por completo e fazendo-o sentar-se bruscamente na cama. Tinha conseguido identificar o elemento estranho e anormal que procurava: instantes antes de abrir os olhos pela primeira vez, sentira no quarto, muito claramente, um forte cheiro a tabaco de cachimbo que desaparecera totalmente, de um modo súbito e inexplicável, mal olhara na direção da porta.

Ora isto era verdadeiramente impossível, pois desde que ali vivia nunca vira nenhum dos moradores fumar naquela casa, quer fosse cachimbo, charuto ou cigarros. Havia, até, uma forte postura antitabaco, que os levava a um certo distanciamento hostil em relação aos fumadores seus conhecidos. Era pouco credível que de um momento para o outro um deles se lembrasse de começar a fumar cachimbo, e logo às seis da manhã. Ou que tivesse convidados que o fizessem. Além de que o cheiro a tabaco tem tendência a permanecer no ar durante longo tempo, não desaparecendo daquela maneira tão brusca e repentina.

Sabia bem que já não seria capaz de voltar a adormecer, pelo que decidiu levantar-se. O seu primeiro gesto foi ir até à porta e experimentá-la com cautela. Estava fechada à chave, tal como a deixara na noite anterior quando se retirara depois do jantar. Tinha a certeza de que assim seria, pois a mania de se fechar estava de tal modo arreigada nele que até mesmo o fazia sempre que utilizava o quarto de banho que fazia parte dos seus aposentos privativos. Mas gostou de o confirmar pois havia sempre a possibilidade de desta vez se ter esquecido de o fazer, o que teria permitido a entrada no seu quarto a qualquer um dos outros moradores da casa, por engano ou voluntariamente.

Sentindo-se cada vez mais confuso com a situação vestiu o seu grosso roupão, para se proteger do frio da madrugada, e foi sentar-se no fundo cadeirão colocado frente à única janela do quarto. Era o seu local favorito, pois tinha à mão tudo de que precisava para o ajudar a passar os  dias sempre vazios: uma estante recheada de livros e numa mesa baixa, o pequeno rádio portátil, revistas, a prancha de madeira e os instrumentos de desenho. Através das finas cortinas quase transparentes podia ver que o dia mal começava a nascer. Raras vezes estava a pé para observar este acontecimento, que não lhe agradava particularmente e hoje ainda se sentia com menos paciência do que habitualmente para os espetáculos da Natureza. Pegou em vários livros ao acaso, que folheou e logo abandonou por não conseguir concentrar-se em nenhum. Finalmente descobriu numa revista um artigo divertido, conseguindo assim distrair-se até à hora a que habitualmente se levantava.

O resto do dia decorreu na mais completa normalidade. Não havia hóspedes novos ou convidados a assinalar, as refeições servidas foram as habituais para aquele dia da semana e época do ano, as conversas à mesa tiveram a banalidade do costume e as suas atividades seguiram a mesma rotina dos milhares de dias que passara como residente naquela casa de hóspedes. De tal modo que quando se retirou já mal se lembrava dos acontecimentos que tinham precedido e provocado o prematuro despertar dessa manhã. E o mesmo aconteceu nos três dias seguintes. Convenceu-se, então, de que nada de real se passara naquela estranha ocasião. Fora, apenas, vítima de mais um dos seus sonhos mais reais que a própria realidade.

Ao quarto dia, porém, algo sucedeu que abalou profundamente esta sua convicção. Foi logo a seguir ao almoço, quando se preparava para passar a tarde muito bem instalado no seu confortável cadeirão, a reler um dos seus livros preferidos. Ao abrir a porta do quarto sentiu de novo no ar aquele mesmo cheiro a tabaco de cachimbo, forte e um tanto ou quanto adocicado, que apesar de tudo continuava a associar no seu espírito ao acordar intempestivo daquela manhã ainda tão recente. Espantado, parou no umbral, sem saber se havia de entrar ou de sair. Mas como o cheiro em breve desapareceu, tão completamente que era quase como se nunca tivesse existido, decidiu-se a penetrar no que até então considerara o seu refúgio, fechando a porta atrás de si.

A primeira coisa que viu foi um livro aberto em cima da mesa. Ora isso era uma coisa que ele nunca fazia. Quando interrompia a leitura por qualquer motivo, nem que fosse por breves instantes, fechava sempre o volume em questão, depois de marcar cuidadosamente o ponto em que ia com a ajuda de um marcador em fino couro lavrado, de que possuía uma vasta quantidade de todas as cores e feitios. Pousar um livro assim aberto daquela maneira só servia para lhe partir a lombada e permitir que a poeira existente no ar se acumulasse nas suas páginas.

Por instantes acalentou a ideia de que talvez uma das empregadas fosse a autora de tão irresponsável ato. Mas isso não era possível, pois estivera a desenhar no quarto muito depois de completada a sua limpeza e tudo estava então no seu lugar. Além disso, em tantos anos de estadia nunca nenhum dos seus pertences fora mexido ou perturbado para além do que era estritamente necessário para assegurar um serviço perfeito e bem executado. E nenhum dos outros hóspedes poderia ter entrado no quarto durante a sua ausência, a menos que possuísse um duplicado da chave.

Sentindo-se mais curioso do que verdadeiramente preocupado, aproximou-se da mesa e pegou no livro que tão descuidadamente ali fora deixado por mão desconhecida. Eram os poemas completos de William Blake, um pesado volume ricamente encadernado que herdara do pai e que raras vezes lera na totalidade. Mesmo sem querer leu algumas linhas de um dos poemas e antes de se dar conta do que acontecia tinha-se instalado no seu já velho cadeirão de modo a continuar a leitura numa situação de maior conforto.

Passou uma tarde bastante agradável, redescobrindo poemas de que mal se lembrava e que, por qualquer razão, lhe pareciam agora ser muito belos e profundos. Não conseguia sequer perceber porque nunca apreciara devidamente Blake, que sempre achara pedante e muito rebuscado. Só parou para acender a luz e para jantar, tendo prosseguido a leitura mal regressou ao quarto. Deitou-se já muito tarde, quase de madrugada, com a sensação de ter vivido nesse dia algo de novo, o que de há muito lhe não acontecia. Nem achou estranho não ter dedicado mais tempo à análise e tentativa de resolução do mistério da identidade do invasor da sua privacidade.

No manhã seguinte deu-se nova ocorrência estranha. Era o dia em que habitualmente ia ao banco levantar o dinheiro que se destinava às suas pequenas despesas mensais. Ao regressar encontrou a prancha de madeira caída no tapete aos pés da cama e presa a ela um desenho inacabado. Representava uma árvore totalmente despida de folhagem, meia encostada a uma rocha de forma estranha e ameaçadora, tendo ao fundo umas montanhas apenas esboçadas. O estilo era muito diferente do dele, pois limitava-se a desenhar arranjos de flores e pequenas paisagens idílicas. Tudo muito suave e levemente colorido. No ar pairava ainda o já inevitável cheiro a tabaco.

Desta vez sentiu-se bastante assustado. Um livro deixado aberto em cima de uma mesa podia muito bem ser obra de uma das empregadas, embora esta hipótese não fosse de facto credível. Ou até mesmo resultar de um descuido seu, de que se esquecera por qualquer motivo. Mas este desenho nunca poderia ter saído da sua mão e, que soubesse, não havia na casa mais ninguém que se dedicasse a qualquer tipo de atividade artística. Mesmo supondo que alguém desenhava, mantendo até então a sua atividade em segredo, como é que tivera acesso ao seu quarto, sempre bem fechado quer ele ali estivesse quer não?

A ideia de um duplicado clandestino da sua chave voltou a aflorar-lhe a mente, embora não conseguisse imaginar quem o poderia ter obtido e com que fins. Com o seu exemplar, único segundo fora informado, ninguém entrara de certeza, uma vez que nunca o largava fosse para o que fosse. Se por qualquer razão tinha de sair durante as horas em que era efetuada a limpeza, então esta era muito simplesmente adiada para mais tarde ou até mesmo para o dia seguinte. Fora esta uma das condições que exigira ao alugar os melhores aposentos disponíveis na modesta casa de hóspedes que descobrira por acaso ao mudar-se para esta pequena cidade de província.

Embora não acreditasse muito na existência desta segunda chave estava suficientemente alarmado para agir sem perda de tempo. Voltou, por isso, a sair a fim de adquirir uma nova fechadura para a porta do quarto. Esperou que todos se deitassem e só passado algumas horas, quando lhe pareceu que mais ninguém estaria acordado, procedeu à mudança. Foi um trabalho bastante difícil por causa da necessidade de evitar barulhos que pudessem despertar e alarmar os restantes hóspedes, levando-os a fazer perguntas a que só com grande dificuldade seria capaz de responder. Acabada esta tarefa sentiu-se logo muito melhor e foi com o espírito sereno e em paz que adormeceu mal pousou a cabeça na almofada.

Não tardou, porém, a verificar que a sua atividade noturna não passara de despesa e trabalho em vão. Nas semanas que se seguiram o intruso continuou a invadir-lhe o quarto a qualquer hora e com toda a impunidade, sem que lhe fosse possível descobrir o mínimo indício quanto à sua identidade ou modo de atuação. O resultado das suas visitas era sempre bem visível: livros deixados abertos em cima da mesa ou da cama, desenhos inacabados ou apenas esboçados, revistas com páginas assinaladas a vermelho ou arrancadas, fotografias retiradas do precioso álbum que guardava na terceira gaveta da cómoda e espalhadas pelo chão ou pela cama, roupas que há muito não usava dispostas com todo o cuidado por sobre as costas do cadeirão, quase como se tivesse acabado de as despir, e, de uma única vez, o rádio que começou a tocar uma música dos seus tempos de liceu mal ele tocou na maçaneta da porta. E ficava sempre a pairar no ar, por breves momentos, o forte cheiro a tabaco de cachimbo que detetara da primeira vez.

Aos poucos e poucos começou a detetar uma certa lógica, quase um plano, por detrás das ações do seu visitante. Os livros pertenciam sempre ao conjunto herdado da família e que tinham sido parte integrante da sua juventude, influenciando de modo decisivo o seu modo de ser e de pensar. As páginas assinaladas ou arrancadas das revistas eram as que traziam referências a locais que em tempos frequentara, conhecera ou sempre desejara visitar ou a assuntos por que se interessara num passado que há muito considerava morto e esquecido. As fotografias eram sempre retratos de pessoas em que não pensava há anos e de que já só possuía uma muito vaga recordação. As roupas, essas, eram peças que guardara durante anos a um canto de um armário, nem ele sabia muito bem porquê, talvez por representarem épocas ou acontecimentos que em tempos considerara importantes ou particularmente felizes.

Sem mesmo se aperceber disso habituou-se a estas estranhas e sempre inesperadas intervenções, deixando de se surpreender ou espantar com estes factos que não podia explicar e nem percebia porque se assustara tanto a princípio. Começou, também, a recordar com uma nitidez penosa todo um passado que jurara enterrar para sempre após o acidente que o destruíra e desfigurara, fazendo-o perder o gosto pela vida e pelo convívio com os outros seres humanos. A rotina dos seus dias, até então sempre iguais, mudou por completo, sendo agora comandada pelas ações do invisível visitante.

Se calhava deixar um livro aberto em qualquer página, logo ele se apressava a lê-lo, saboreando passagens meio esquecidas ou que não se lembrava de alguma vez ter apreciado devidamente. Reencontrou, assim, o gosto pela leitura em profundidade, pela análise de ideias que muitas vezes lhe tinham escapado nas suas leituras rotineiras e feitas apenas para preencher as muitas horas vazias de cada dia. Dava a impressão de que esses livros eram muitas vezes escolhidos por se relacionarem entre si, quer por mérito próprio quer por associação de recordações e ideias relacionadas com a época em que os lera pela primeira vez.

Por vezes acontecia que o sítio em que o livro ficava aberto trazia referências a outras obras do mesmo ou de outros autores. De início não prestou muita atenção a este pequeno pormenor, que lhe parecera fruto do acaso, mas quando isto acontecia o livro voltava a aparecer, dia após dia, e sempre aberto na mesma página. Finalmente rendeu-se à evidência e apressou-se a procurar esses livros, quer em lojas, quer na Biblioteca Pública. Deste modo, e pela primeira vez desde há muitos anos, fugiu ao universo restrito de obras, todas elas originárias da sua vida de antes, que lia e relia sem cessar, num círculo sem início e sem fim que em nada contribuía para melhorar as suas ideias ou conhecimentos gerais.

Foi também, obrigado a sair mais de casa e a prolongar mais essas saídas, pois nem sempre lhe era fácil encontrar as obras indicadas pelo seu exigente mentor. Como alguns dos livros eram bastante caros e o dinheiro que recebia mensalmente do seguro não lhe dava para grandes luxos via-se frequentemente forçado a recorrer à sala de leitura da Biblioteca. A princípio sentira grande relutância em entrar num local frequentado por tanta gente desconhecida, e onde a sua cara cheia de cicatrizes atraía a curiosidade e os olhares gerais. Mas irritava-o tanto encontrar dia após dia o mesmo livro sempre aberto no mesmo sítio, que acabou por se decidir e agora até já nem reparava se as pessoas olhavam para ele ou não. Tornara-se conhecido dos frequentadores habituais e sentia-se um pouco como na casa de hóspedes: uma parte integrante do cenário.

As revistas causaram-lhe um tipo muito diferente de problemas, pois não gostava de recordar os projetos que outrora fizera e que o seu acidente reduzira a nada. Deixara de adquirir revistas especializadas em viagens ou assuntos científicos precisamente para evitar recordações dolorosas. Infelizmente, até mesmo as revistas aparentemente mais inócuas traziam de quando em quando um artigo ou referência a um dos assuntos que em tempos tinha sido a sua grande paixão. Resistiu o mais que pôde, mas acabou por fazer algumas concessões, raras e pequenas a princípio e depois cada vez maiores e mais frequentes. Chegou mesmo ao ponto de assistir a um ciclo de conferências sobre a reprodução das chitas, ignorando com firmeza o ar espantado com que os restantes participantes acolheram a sua aparição um pouco tardia.

Mas foram as fotografias e as roupas velhas que lhe infligiram os maiores sofrimentos e, simultaneamente, as principais mudanças no seu modo de pensar e de viver. Arrependeu-se mais de uma vez de não ter tido nunca a coragem de deitar tudo isso no caixote de lixo mais próximo, cortando de vez com o passado. Chegou mesmo a empacotar o álbum e a maior parte do seu guarda-roupa em sacos plásticos que pensava retirar do quarto um a um, de modo a não provocar estranheza ou suspeitas nos seus companheiros de habitação. Mas nunca conseguiu levar por diante o seu intento, nem mesmo quando a última fotografia que tirara a Cristina e a João apareceu sobre a mesa de cabeceira, apoiada ao candeeiro numa posição tal que foi a primeira coisa que viu mal abriu a porta. Nesse dia o seu sofrimento atingiu uma intensidade tal que só desejava ver na sua frente o impiedoso vasculhador da vida alheia para o poder torturar, esfaquear ou estrangular. Bem contra a sua vontade deu por si a recordar o seu próprio passado em todo o seu esplendor e miséria.

Nascera e fora criado numa grande cidade, no seio de uma família numerosa, nem melhor nem pior do que muitas outras. Aluno mediano mas interessado, sentira sempre uma certa atração por tudo o que dissesse respeito a animais exóticos ou a locais pouco conhecidos e quase desertos. O seu sonho de infância era vir a ser explorador ou domador de feras num circo. Formara-se em Biologia, sem grande distinção, arranjando depois emprego como assistente num grande laboratório de pesquisa médica. O trabalho não lhe agradava totalmente pois, devido à falta de brilhantismo do seu intelecto destinavam-lhe sempre os trabalhos mais repetitivos e monótonos. Mas compensava largamente a sua frustração através da leitura de revistas sobre os seus assuntos favoritos, ao mesmo tempo que planeava uma viagem de um a dois anos através do continente africano, visitando muito particularmente as suas zonas menos frequentadas.

Conhecera Cristina numa festa dada por um colega de trabalho e passado pouco tempo tornaram-se inseparáveis. Já anteriormente tivera algumas ligações amorosas, mas nada de especial se comparadas com o bem-estar e prazer que sentia quando estavam juntos. Casaram passados oito meses, o que levou ao adiamento da viagem a África por tempo indefinido. João nasceu ao fim de um ano e daí em diante a vida do casal entrou na rotina satisfeita em que se conservou até ao fim. Eram felizes, de uma felicidade calma e sem grandes sobressaltos, ganhando o suficiente para terem uma vida desafogada, podendo mesmo oferecer-se um ou outro pequeno luxo de vez em quando. Chegaram, até, a fazer algumas viagens, nada de especial quando comparadas com a travessia de um continente, mas suficientemente interessantes para acalmarem a sua sede de exótico e de aventura.

João tinha feito há pouco os oito anos quando tudo isto se desmoronou. Tinham ido passar a semana de férias da Páscoa com os pais de Cristina, que possuíam uma bela quinta cheia de cavalos, cães e aves de todo o tipo. Como não dispunham de muitos dias, o tempo estava mau e a distância era grande decidiram não utilizar o carro. Ao regressarem a casa, o avião em que viajavam tivera sérios problemas de motores no momento da aterragem e acabara por se desfazer ao fundo da pista,  num inferno de chapas retorcidas e de violentas chamas. Houve muito poucos sobreviventes, e destes a maioria com graves ferimentos. Cristina e João contavam-se entre os mortos.

Quando finalmente saiu do hospital, com o corpo e a face cobertos de cicatrizes, não chorou, não se lastimou, não bramou contra o destino injusto que destruíra o seu mundo familiar. Decidiu, muito simplesmente, abandonar tudo o que até então fizera parte da sua existência: o emprego, os amigos, a restante família e, até, a cidade onde nascera e sempre vivera. Com o dinheiro da indemnização oferecida pela companhia aérea mudara-se para uma pequena povoação bem longe da sua terra natal, instalara-se naquela discreta casa de hóspedes e ali passara vinte anos de uma vida recolhida e rotineira. As únicas pessoas com quem contactava eram os outros hóspedes e empregados, todos antigos na casa e a quem já se habituara, e os empregados do banco e de uma ou outra loja da vizinhança, que satisfaziam as suas poucas necessidades. Até que um leve cheiro a tabaco de cachimbo viera perturbar o delicado equilíbrio que conseguira muito a custo estabelecer entre a sua dor e a necessidade de esquecimento, quebrando o forte muro por detrás do qual encerrara toda a sua angústia e revolta.

         Nos dias imediatamente a seguir ao aparecimento da fotografia fatídica abandonou totalmente a leitura e as saídas a que se começara a habituar. Fechou-se ainda mais no quarto do que costumava fazer antes da intervenção do visitante, passando os dias e grande parte das noites sem nada fazer, muito simplesmente sentado no cadeirão a contemplar a janela com um olhar fixo que parecia nada ver. Esquecia-se das horas e eram obrigados a chamá-lo para as refeições, a que assistia de muito má vontade e com um ar distante e ofendido. Só não faltava por achar ainda mais incómoda a necessidade de responder às inevitáveis perguntas sobre o seu estado de saúde que a sua ausência acarretaria.

    O desconhecido responsável por toda esta angustiosa situação respeitou a sua necessidade de isolamento e solidão durante exatamente três semanas. Durante este período nada no seu quarto foi perturbado ou mexido, parecendo até que tudo estava como sempre fora. Mas ao fim deste tempo voltou de novo a atuar. Todos os dias uma nova fotografia surgia nos locais mais inesperados, tão ardilosamente colocada que antes de ter tempo de se aperceber do que se passava já os seus olhos e a sua mente a tinham absorvido. Por vezes eram retratos de amigos, em festas ou reuniões, de outras vezes representavam familiares mais ou menos distantes, mas sempre intercaladas com elas havia cenas de Cristina e de João, obtidas em tempos mais felizes. 

Com o passar do tempo foi-se apercebendo de que a visão dessas faces tão queridas já não lhe causava o mesmo sofrimento atroz dos primeiros momentos. Sentia saudades, isso sim, desgosto e tristeza também, mas suportáveis. Tinha, até, um certo prazer melancólico em recordar pequenas conversas ou brincadeiras que partilhara com o filho ou com a mulher. Voltou a arrumar as suas coisas nos respetivos lugares, pondo totalmente de parte a ideia de se desfazer dos poucos testemunhos visíveis que restavam da sua vida passada.

Simultaneamente, e pela primeira vez desde que para ali fora, começou a interessar-se um pouco pelas pessoas que viviam debaixo do mesmo teto e que acotovelava diariamente sem mesmo demonstrar que as via. Verificou que pertenciam a todos os géneros humanos, medianas, razoáveis ou más, aborrecidas ou bem vivas, inteligentes ou pouco espertas, cultas ou ignorantes. Descobriu que até tinha alguns interesses em comum com umas poucas delas, o que contribuiu para aumentar o seu crescente amor e interesse pela vida.

Chegou mesmo a ir passar um fim de semana a observar pássaros na companhia de um vizinho de patamar que pertencia a uma organização local que se dedicava a esse tipo de atividades. Divertiu-se bastante,  embora descobrisse que já pouco sabia do muito que aprendera durante os seus anos de faculdade. Mas isso só serviu para lhe estimular o gosto da leitura e a vontade de voltar a estudar assuntos por que em tempos se interessara de um modo bastante apaixonado.

Foi após esta pequena excursão que pararam definitivamente todas as atividades inexplicáveis que tinham tido por cenário os seus aposentos. Nada aparecia agora fora do seu lugar próprio e se queria rever uma fotografia, então tinha de ser ele a procurá-la no álbum. Com grande espanto seu sentiu bastantes saudades das visitas daquele alguém ou daquela coisa de que tivera tanto medo e que tanto sofrimento e dor lhe tinham causado ao revolver o passado de forma tão dura e impiedosa. Até teve pena de deixar de sentir o aroma forte e um tanto ou quanto adocicado a tabaco de cachimbo que assinalava cada uma das suas intervenções.

Cerca de dois anos depois de tudo ter terminado entrou por acaso num café da vizinhança, que não costumava frequentar. O dia estava frio e chuvoso e sentiu necessidade de beber alguma coisa quente que o reconfortasse e aquecesse. Estava sentado frente a uma grande chávena de chocolate quente quando sentiu algo de elusivo que lhe despertou uma sensação de sofrimento e, simultaneamente, de grande alívio. A princípio não fazia a menor ideia da origem de tão estranha reação. Olhou à sua volta, mas nada viu que lhe pudesse despertar tão fortes emoções. Fechou os olhos para melhor se concentrar, abstraindo-se o mais possível do som das vozes e do tilintar de louças e talheres. Foi então que identificou a fugaz sensação que tantas vezes sentira no refúgio do seu quarto. Era o mesmo cheiro a tabaco de cachimbo, só que desta vez permanecia no ar, não se desvanecendo do modo abrupto a que se habituara durante as estranhas visitações. Virou a cabeça em todas as direções, embora de modo discreto, sem poder dizer se esperava e desejava encontrar um verdadeiro fumador, algo deliberadamente fora do seu lugar ou uma mensagem que lhe fosse especialmente dirigida.

Os seus olhos depararam-se finalmente com uma figura estranha, o único fumador de cachimbo em todo o café. Era da mesa dele que se evolava o tão conhecido e adocicado aroma. O seu aspeto não lhe era totalmente desconhecido, pois tinha uma vaga recordação de já ter avistado em qualquer lado aquele ser alto, magro, de cara afilada e barba pontiaguda, envolvido numa longa capa negra com forro de seda verde escuro. As costas eram ligeiramente arqueadas e a sua postura, dobrada sobre a mesa, era a de quem tenta proteger alguma coisa de precioso e raro. A mão direita agarrava um belíssimo cachimbo maravilhosamente esculpido numa substância clara, que levava à boca de tempos a tempos e donde subia uma longa espiral de fumo cinzento claro.

Os seus olhares cruzaram-se por breves instantes e teve a sensação de ler na expressão do outro um sinal de reconhecimento e satisfação. Mas foi apenas questão de um momento. Apagando o cachimbo, o estranho personagem guardou-o no bolso do seu longo casaco, colocou na cabeça um antiquado chapéu escuro, levantou-se e saiu sem olhar para trás. Nunca mais o viu.

Luísa Lopes

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