Manuel Amaro Mendonça
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A
figura vistosa de uma poupa desce sobre um canteiro meio seco, na
parte alta do Parque Eduardo VII, e começa a vasculhar todos os
recantos à cata de insetos ou outros acepipes disponíveis. O seu
aspeto colorido e meio exótico é soberbo. O bico curvo e alongado
debica e revira as folhas secas com agilidade.
Um melro, que pousa a seguir, parece não gostar nada da concorrência. Depois de uma mirada atenta, arremete, de asas meio abertas, contra a intrusa, que só lhe presta a atenção suficiente para evitar a prometida bicada. Com um saltinho em leveza, afasta-se meio metro e recomeça a labuta.
— Esse escaravelho é meu! — brada o melro, muito agastado, ao ver a poupa, que, com um hábil movimento do bico, faz escorregar pela goela um inseto com aspeto apetitoso.
A poupa finge não o ouvir e continua a atividade recoletora. O melro faz nova investida e novamente a poupa evita o ataque. Agora, numa área relvada, a poupa rapidamente desencanta uma minhoca e começa a puxá-la para fora do solo. Uma minhoca é demais para o melro. Corre para a poupa e aproveitando a sua limitação momentânea de movimentos, bica a adversária no flanco. Apesar da proteção plumosa, o bico firme do melro incomoda. A poupa larga a minhoca, que recolhe ao buraco, e enfrenta o agressor:
— Não me toques! Estás parvo ou quê? Queres que te vaze um olho? — ameaça, enquanto exibe o afiado bico recurvo.
— Desaparece daqui! Esta é a minha zona. Todos os besouros, abelhões, larvas, vermes é tudo meu — riposta o melro.
— Grande proprietário! E é aqui que vens à procura de minhocas? É a tua especialidade, não é? — provoca a poupa.
— Tu é que vens aqui por elas, não tenho dúvidas — devolve o pássaro negro. — Quantas já engoliste hoje?
— Não sejas reles! Eu sou uma senhora.
— Assim vestida? Pareces-me mais uma galdéria.
— E tu? Assim todo de negro, austero, aprumadinho... Ninguém duvida que és um nojento papa-minhocas. Das juvenis.
— Fica a saber que eu não sou padre, nem juiz, nem praxista. Soy un cantante. Cantante de flamenco.
— Ah, ah, ah! — ri a jovem. — Já te estou a conhecer. Tu és o Paco do Tablao do Jardim da Estrela. Uma vez estivemos juntos num espetáculo beneficente pelo controlo de pragas no Jardim Gulbenkian. Eu danço sevilhanas no jardim do Campo de Santana. Sou a Carmen. Não te lembras de mim?
O melro fica um tanto surpreendido. Não responde logo. Finalmente sorri, amigável.
— Olá, Carmen; já me lembro. Isto é um bocadinho embaraçoso. Então e se fôssemos tomar um trago, para descrispar o ambiente? O bebedouro ao pé do Pavilhão Carlos Lopes está a vazar.
— Está bem. Mas, não tem dress code? — ironiza ela.
Paco encaixa o gracejo, ambos riem e, já em boa camaradagem, voam dali para o bebedouro; o melro à frente, a poupa logo a seguir. Ele deixa-a beber primeiro e só depois enfia o bico amarelo na poça de água que se formara junto à base do bebedouro.
— Ah, sabe bem, assim fresquinha — expande-se o melro, o peito negro para fora.
— Vou aproveitar para uma banhoca — anuncia a poupa, avançando pela água adentro e começando a espanejar, espalhando borrifos em todas as direções.
— Ei, cuidado!; olha que eu já tomei banho hoje — reclama o melro, saltando para trás para evitar os salpicos. — E nem sequer tiras a roupa?
— Querias! Mas não preciso. Este vestido tem um tratamento hidrofóbico. Lava-se e está pronto a vestir.
— Se o tirasses, abreviávamos as coisas — lança Paco, com um sorriso intencionalmente maroto, confiante no ditado “Quem não arrisca não petisca”.
— Um bocadinho de respeito pela colega… — finge amuar Carmen. — De qualquer modo, somos de espécies diferentes. De que valia?
— Há muitas outras valias em passar um bom bocado, para além de constituir família...
A poupa ri, nervosa. Gosta deles atrevidos, mas percebe que tem de ligar o radar anti-abuso.
Sai da água, esplêndida, no seu vestido de sevilhana de cores vivas. O banho deixou-a bem-disposta, mas ainda tem o papo a dar horas.
— Sabes o que me apetecia agora? Uns caracóis. Ou então umas joaninhas.
— Hum, deixa-me pensar. Talvez… Ah, já sei. Vamos às hortas urbanas de Telheiras. Aquele pessoal é todo ecologista; não usa pesticidas.
Depois de uns poucos minutos de voo, pousam no destino. Felizmente, ainda é cedo e só dois hortelãos por ali andam, mas concentrados na lida agrícola. A maioria só vem ao fim da tarde. O melro não se enganara. Os vários regos de tomateiros que encontram fornecem-lhes um bom papo de escaravelhos. A crista da poupa reflete o bem estar pós-refeição; parece um leque.
— Ah!; adoro escaravelhos do tomateiro. Têm estas notas de agre, a fazer lembrar ketchup. Espero que não me façam mal. Comi tantos! — rejubila Carmen, enquanto distende as asas redondas, exibindo o esplendoroso padrão branco, negro e laranja. — Ai, que preguiça!
Os olhos de Paco brilham, fascinados.
— E se fôssemos sentar-nos num ramo confortável de uma árvore bem frondosa, a desfrutar o momento? Gostava que ouvisses a minha nova cantiga. E tu podias mostrar-me uns dos teus insinuantes passos de sevilhana. Não vejo melhor maneira de celebrar esta amizade reencontrada.
— Hum; devia ser interessante, mas deixamos isso para a próxima. Não falaste também nuns caracóis?
— Tu é que falaste, mas está bem! Por acaso, acho que sei onde encontrá-los. Pode ser amanhã?
— Hum; amanhã não posso. Depois de amanhã.
— Ok. Mas traze esse vestido! Afinal, acho-o… sensual.
— Que remédio; não tenho outro. A não ser que queiras oferecer-me um. Por coincidência, faço anos depois de amanhã... — remata Carmen, antes de levantar voo.
O melro estaca, embatucado. Sente-se empalidecer. Gostava de ser gentil, mas, ver-se depenado é uma possibilidade assustadora. Só tem dois dias para encontrar uma solução airosa.
«Talvez ela se contente com uma bandelete» — pensa.
Joaquim Bispo
*
Imagem: Rafael Arroyo Fernández, Na Feira, 1886.
Coleção Carmen Thyssen-Bornemisza, Museo Carmen Thyssen, Málaga.
* * *
Chegaram quietos.
Traziam nas vestes surradas a poeira da estrada vencida na carroceria do velho
caminhão. Foram despejados ali, no começo da vila. As matulas dos pertences,
jogadas à beira da rua, no chão de pedregulhos. Grandes trouxas, onde os nós amarravam
o conseguido da vida.
Eram três homens, uma
velha e duas crianças. Marrons. Além da tez, a poeira os tornara assim, cor da
terra. Olhavam em todas as direções, olhos semicerrados diante da luminosidade
impiedosa do sol. E eram olhados. Da porta do armazém, olhos curiosos e bocas
incontroladas tentavam desvendar a trajetória daqueles inesperados forasteiros.
Material farto para as conversas de muitos dias.
De todos, um dos homens
se destacava pela altura. Mesmo sujo, dava para ver que, além de mais alto, era
mais claro. Tinha braços longos, ombros largos, farta cabeleira, barba por
fazer. E foi ele que, num meneio de cabeça, indicou a direção a ser seguida.
Instalaram-se no vão de um terreno bem perto de onde estavam, sob a copa de
duas mangueiras imensas, entrelaçadas. Cada homem arrastava duas matulas. A
velha, sem medir força, arrastou a maior delas. E, para as crianças, sobraram
as pequenas.
Na mesma rapidez dos
movimentos, os três homens deixaram os fardos no pé da mangueira, sob os
cuidados da velha, e seguiram em direção da baixada da vila. Não demoraram a
voltar trazendo pedaços de tijolos, gravetos. O mais novo, depois de trocar uma
prosa com a velha, rumou para o armazém. Foi em busca de arroz e linguiça.
A velha não demorou em pedir
licença na casa mais próxima e usar da água do poço. Em instantes, o fogão de
chão estava montado, os gravetos crepitavam e as velhas panelas dançavam nas
mãos calejadas da velha senhora.
Avezados a
acampamentos, os homens, numa debandada harmoniosa, ausentaram-se por um bom
tempo. A tarde já havia entrado quando o chiado dos feixes de folhas de bacuri,
amarrados às cinturas dos homens e varrendo os pedregulhos, fez com que as
cabeças dos curiosos se voltassem para os forasteiros. Também traziam, nos ombros,
alguns galhos grossos de árvore, muitos deles terminados em forquilhas
generosas. Tudo foi ajeitado no chão e, famintos, rodearam o fogão onde o
banquete os aguardava.
Saciados, conversando
em voz baixa, começaram a medir e a delimitar, com passos, os lugares onde
seriam fincados os troncos. E o serviço, com pouca prosa e muito assobio, ia
dando forma ao esqueleto da cabana. Já ia escuro quando todas as forquilhas
estavam fixadas. Retiradas as redes das trouxas, cinco delas foram dispostas em
ziguezague nas fendas das forquilhas. As crianças dormiam juntas. A menina, de
mais ou menos sete anos, e o moleque, que não passava dos cinco, eram mirradinhos,
caladinhos, ligeiros, de olhos grandes e assustados.
Foi só o tempo de silenciar
a fome e logo se ajeitaram nas redes, exaustos. E, mesmo ao relento, o sono
veio feito dádiva.
Antes do raiar do dia,
a velha preparou o café, os homens se ajeitaram e saíram, e as crianças dormiam
como minhocas entrelaçadas. Acordaram com o barulho dos bambus sendo pregados e
trançados na volta da cabana. Como num passe de mágica, as folhas de bacuri forraram
o teto e as paredes, e a cabana estava terminada. Sem janelas, com apenas uma
entrada. E todos sorriram. A próxima noite não seria mais ao relento.
Na nova morada, naquele
resto de dia, foram esticados varais, montado um batedor de roupas e um
cercadinho onde os adultos se lavariam. Um velho tambor foi cortado ao meio. Metade
foi colocada ao lado do batedor, seria a tina para lavar as roupas, e a outra
metade serviria para reservar água e banhar as crianças.
A vida tomou rumo. Os
homens foram conseguindo trabalho nas roças, nas plantações, nas colheitas, e aos
poucos, os forasteiros iam sendo conhecidos. Dos homens, o mais alto era genro
da velha, pai das crianças. Os outros dois homens eram irmãos, filhos da velha
senhora, e a mãe das crianças, sua única filha, morrera no parto do menino. Tirante
o pai das crianças, eram índios, e vieram de muito longe. Talvez por isso,
ninguém se assustava com o costume da velha que, no dia a dia, ficava sem
qualquer pano a lhe cobrir os seios. Usava sempre saia rodada que chegava aos
tornozelos, e na parte de cima, nada, absolutamente nada. Não saía às ruas,
ficava o tempo todo na lida da casa e das roupas. Miúda, pele extremamente
enrugada, cabelos compridos, ralos, pouco grisalhos, amarrados na altura da
nuca. Cigarro de palha no canto da boca, quase sempre apagado. Tetas caídas,
pelanca pura. Triste figura. Mas tinha olhar manso, amoroso.
Levei um tempo a me
aproximar. Durante dias, acho que meses, fiquei de longe, mas meus olhos não
perdiam um movimento. Só atravessei a rua e finquei os pés no terreno quando a
menina sorriu. Eu era miúda, mas ela era ainda mais. De perto, magricela e de
uma palidez esverdeada, era a fragilidade viva. Era um azougue, habilidade simiesca,
subia nas mangueiras como se tivesse garras. Eu era uma criança que só não
deixava a família na corda bamba quando dormia, mas ela era, anos luz, mais endiabrada
que eu. Juntas, nem preciso falar.
Foi, então, que fiquei
sabendo do nome de Honorinha. Ficamos parceiras. De brincadeiras, de risadas
sem medida, de silêncios. Ela era calada, serelepe calada. Eu falava pelos
cotovelos, nem sei se ela ouvia. A jornada começava cedo, e só era interrompida
no almoço, na merenda e na hora de dormir. Nunca comi lá, e ela nunca foi comer
em minha casa. E não havia despedida, saía de fininho e chegava de mansinho.
E o novo ano começou.
Entrei na escola, mas Honorinha, não. Não estudava e nem tinha tino para isso.
Brincadeira de desenhar ou escrever na terra com pauzinho, nem pensar! Era
avessa!
Então, a nossa parceria
resumia-se às tardes. Menos tempo, mais intensidade. Ainda bem que a avó nunca
permitiu que ela se afastasse do espaço do terreno. A velha nunca ergueu a voz,
o entendimento era velado, os olhos falavam. A maior parte do tempo, passávamos
na copa das mangueiras.
Uma tarde, Honorinha
entrou na tina do banho. Eu estava no canto do terreno e empurrava com os pés,
as pedras, os cacos de louça, os caroços secos de manga, os gravetinhos, enfim,
nossas bugigangas das brincadeiras. E ouvi um grito. Olhei para Honorinha e ela
estava escorada pela avó, toda cheia de sangue. Havia escorregado no barro ao
sair da tina, e fizera um corte profundo na altura da coxa, quase na virilha.
Fiquei apavorada, sai correndo em direção de casa. A noite foi sofrida, e na
manhã, nem tinha vontade de ir à escola. Mas fui...
Quando cheguei ao
terreno, tudo estava quieto, Honorinha não me esperava. Estava dentro da
cabana, deitada na rede, com a perna toda enfaixada. Seu João da Botica havia
feito o atendimento, e ela precisava ficar em repouso. Eu fiquei ali, sentada
na entrada da cabana. Ela dormia. E no outro dia foi assim, e no outro, também.
Ela não estava bem, febril, seria levada para outra cidade, para um hospital.
E foi assim. Uma tarde,
quando cheguei, só os homens com o menino estavam lá. Honorinha e a avó foram levadas
e voltariam assim que ela melhorasse. Eu continuei na espera. Bastava chegar da
escola, mal engolia a comida, corria lá para conferir.
Depois de muitos dias,
numa tarde percebi que não havia mais roupas no varal, não havia varal, nenhuma
panela no fogão. Fui até à porta da cabana, estava vazia. Sem redes, sem
roupas.
Partiram. Simples
assim. E eu nunca soube o que aconteceu. Para onde seguiram, como Honorinha
ficou... Nenhuma notícia, nunca mais.
Até hoje procuro por ela.
Deve estar em algum lugar. Será que estudou? Casou? Teve filhos? Será que
morreu?!
O que mais me intriga é
que ninguém tem qualquer lembrança dela. Nem minha mãe, nem meus irmãos, nem os
moradores da vila. Ninguém, absolutamente ninguém diz que conheceu a menina.
Interessante como o
menino nunca participou das brincadeiras! Não tenho lembrança de conversar com
ele, de ter ouvido a voz dele, o choro! Tenho lembrança apenas do rostinho
miúdo.
Honorinha...
Será que você realmente
existiu?!
Regina
Ruth Rincon Caires
Embora
as distâncias não fossem mais as mesmas, e não representassem o mesmo obstáculo
de eras e épocas anteriores, ou a incerteza das partidas, elos e destinos,
ainda exigia-se, para sua transposição, um ato de vontade, e isso tanto Genuíno
quanto Isadora sabiam. Conheceram-se eles pelas redes sociais, de distâncias
medidas e calculadas em palavras e lapsos, e ignorando a fragilidade dos
horizontes modernos, incentivados por noções paradoxais de proximidade e
proteção, entregaram-se a sinceridades despudoradas, vindo os dois a se
relacionar como não se relacionaram homens e mulheres em tempos de melhor
contato.
A
iniciativa fora dele, uma saudação casual, e ela, entediada, e por não ser de
intimidades para com estranhos, indagou: Nos conhecemos? A pergunta,
intimidadora em seu contexto, dir-se-ia um escudo contra terceiros, não o
amedrontou. Perseverou nas afirmações e afirmou-se na perseverança, e
enfrentando o ardiloso descaso de Isadora, perpassando os obstáculos iniciais
do desinteresse com seu charme de homem seguro e confiante, atraiu-a. Ela, não
acreditando-o real e sim um ardil de inimigas, esmiuçou os pormenores
manifestos em sua vida online, contatos, fotografias, notícias e menções, e
conforme as evidências ajustavam-se às suas aspirações, à eleita visão de seu
futuro, e nela provocavam os mais distintos sentimentos, Isadora encontrou-se
apaixonada.
Era
médico cardiologista, descobrira ela, divorciado, com uma filha adolescente,
favorável às armas, praticante de ciclismo. Cristão. Não afeita às aventuras da
carne, destinada às da alma, rendeu-se ao perfil de Genuíno. Queria, desejava,
mil laços além dos físicos, e o mesmo desejava ele. Foram dois meses de
conversas e confissões até combinarem, apaixonados, de se conhecer. Genuíno
compraria a passagem de avião e iria até Isadora. Passariam, nessa ocasião, um
fim de semana no apartamento dela com o propósito de entrosarem-se,
desvendarem-se.
Reunida
com as amigas, Isadora revelou o seu caso virtual. Estou apaixonada, disse. E
já nem sei se quero estar. Minha esperança é conhecê-lo, me decepcionar, falou,
e guarneceu de sentimentos a aventura. Mostrou imagens de Genuíno, imagens de
sua filha, de suas viagens, trechos de diálogos, e, entre os costumeiros
elogios, ouviu de Adriana, amiga de infância, a primeira crítica.
Isadora,
e se esse homem for um psicopata?
Impossível,
respondeu ela. Olha o nome dele: Genuíno. Genuíno! Vê lá se é nome de
assassino!
As
meninas riram.
E
outra, disse ela, já tentei de tudo para irritá-lo, e não consegui. É o
cavalheiro dos meus sonhos.
Mais
para o psicopata dos pesadelos, completou Adriana.
Ao
final da reunião Isadora recebeu o aval, e a benção, das amigas, inclusive de
Adriana. Restava a ela esperar. Era domingo, e o encontro estava marcado para
dali a cinco dias. A semana, esta, ela passou enfeitando-se, entre o
cabeleireiro e a manicure e a pedicure e a academia. Era uma mulher comum, com
nenhum privilégio além da pele, lisa e cor de mel, entretanto, quando
determinada, quando ébria de amor, transformava-se, e a violência de sua beleza
atordoava tanto os incautos como os precavidos – e assim atordoou-se Genuíno
ao, na tarde do encontro, apresentar-se a Isadora.
Meus
bom Deus, disse ele, adentrando o apartamento. Se não fosse meu joelho ruim, me
ajoelhava.
Ela
sorriu. Beijaram-se assim de Genuíno largar a malinha no tapete. Às amigas,
Isadora narraria depois, foi uma noite perfeita. Ele insistiu e preparou o
jantar, e terminada a refeição entregaram-se um ao outro. Entre o par
sucedeu-se um amor desesperado, atrapalhado, todavia gratificante. Nele
descobriu um amante desinibido e carinhoso. Dormiram juntos, e é de se
especular se ainda estariam juntos caso ela não despertasse com o peso da
madrugada. A sós na cama, sentou, refez-se dos sonhos, e dentro do closet
tremulava a sombra de Genuíno. Admirando-a, admirando o momento e o passado,
entreviu nas ribanceiras da memória o alerta de Adriana – e, desperta,
assaltaram-lhe as dúvidas. O que faria, ele, ali? Seria um ladrão profissional?
Levantou-se. Como os felinos gravados em sua camisola, arrastou-se até tê-lo à
mercê dos olhos. Era Isadora, então, outra escuridão na escuridão, a maior das
escuridões.
Inerte,
flagrou-o.
Genuíno
não só vestira a lingerie preta de Isadora, o sutiã e a cinta-liga, e não só
colorira os lábios de vermelhos e colocara saltos-altos, como, de lado,
empinava o bumbum para o espelho e rebolava.
Surtada,
em transe, Isadora invadiu o closet e só cessou as mordidas ao engasgar-se com
sangue.
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Quem me conhece sabe o quanto gosto de contar essa historinha.
Uma vez, perguntaram ao Tom Jobim quem seria sua maior fonte
de inspiração. Ele, sem tirar o charuto da boca: “o prazo”.
Sábio Maestro Soberano. Nada é mais energético para a
criatividade do que a disciplina e o compromisso de entregar
alguma criatura num tempo previamente estabelecido.
Ansiedade e aflição são combustíveis. Insegurança idem.
A certeza de que não se vai conseguir criar algo de novo pode
ser ilusória depois da coisa pronta, mas durante o processo
é o real de filme de terror. Quando você sente o vazio criativo,
no angustiante momento, nada contradiz a realidade do monstro
que lhe aponta a faca atrás da cortina.
Quem me conhece sabe que todo dia 20 é dia de conto inédito
aqui nesse honroso espaço. Ou mesmo uma crônica, posição
onde não jogo tão à vontade. Mas dessa vez, o monstro venceu.
Levei a facada. Não há conto novo - poderia apelar para meus
livros publicados e requentar alguma história.
Mas não. Nem para isso tenho coragem.
Acabei de ler Leo Aversa no Globo, junto com Zuenir Ventura
escrevendo pensamentos lindos sobre Darcy Ribeiro. Na minha
cabeceira, alternam-se no momento Valter Hugo Mãe, Itamar
Vieira Júnior, Antonio Torres e Cássio Zanatta, algumas páginas
de cada vez, na velocidade voraz que a delícia dos textos me impõe.
Aprendi a abrir escaninhos de leituras simultâneas na cachola
e perdoem me se não seja coisa de leitor nobre, à altura dos autores.
É meu jeito de aproveitar ao máximo o que a boa escrita alimenta.
Mas meu pedido de desculpas pode soar cretino, embora sincero.
Dessa vez, não tem conto inédito. Apenas uma confissão do meu
fracasso criativo, embutido numa sugestão de leituras verdadeiramente
edificantes. Necessárias, obrigatórias, fortificantes para a alma.
Ou melhor, um convite a ler o que ando lendo
com supremo deleite.
Sei não, acho que vocês vão sair ganhando.
Dona
Maria Valda me pergunta, sempre, se não está bom de parar. Ela se refere ao meu
trabalho incansável, do qual não consigo tirar férias; que não me permite, como
nos velhos tempos, passar vários dias cheirando o seu cangote de alfazema. Mãinha
diz que se arrepende “mucho” de ter me deixado ir a São Paulo; que eu não tinha
nada que ver aí, na casa de Mariinha, sua irmã. “Isso foi a maior arrumação que
você aprontou, Lucivalda!”. A expressão é magoada, como se minha tia e a cidade
grande tivessem me tirado da vida prometida. Aquela era a vida de meus
antepassados. Eu não estava disposta a retroalimentar o ciclo. No começo, nos
idos de noventa, eu estava areada, sem rumo; mas enfrentei a barra de largar o
colo de mãe para buscar um futuro melhor. E, aí, não falo de estudar, me formar;
falo de arranjar trabalho e dinheiro para mandar à mãinha, que vivia na penúria
e na tribulação, por ter de sustentar, praticamente sozinha, uma ruma de filhos:
dez. O meu genitor se amasiou, depois do meu nascimento, a caçula, com outra
mulher, nova, e daí surgiram mais uns tantos irmãos, que não conseguiria mensurar.
Então, desde muito nova, pensava em mudar o fado de mãinha, para que ela
pudesse descansar o couro, quente e esgotado da lida na roça. Quando parti, num
dia em que o sol me expulsava, severo, reparei bem os sulcos do seu rosto, que
se prolongavam para o pescoço, descendo pelo busto; e intuí, chorosa, que todo
o corpo da franzina mulher era talhado da mesma forma da terra castigada pela
seca. Apressei nos cumprimentos para não me arrepender, para não olhar para
trás, e, como um potro domado e desgarrado, simplesmente segui viagem. Já não
era a primeira perda de mãinha. Contei sobre o meu genitor bandoleiro. Porém, o
que minou as forças da imensa senhorinha foi a partida de Luíza, a minha irmã
encostada no mais velho, o Demétrio. Esta, sim, era a dor irremediável. A morte
prematura, na flor da idade, da filha que ajudou a criar os demais, fez mãe definhar
gradualmente. E, por isso, ficávamos como pintinhos debaixo de suas asas, para
que mãe não se sentisse só, largada. A minha ideia de ir embora, com destino e
possibilidade de voltar, não veio de supetão; foi algo pensado, por anos, em
razão, sobretudo, da carência desmedida. Houve dias em que comíamos caça,
noutros farinha, e, no auge do aperreio, lagartos, para que as tripas não “pregassem”,
como mãe descrevia, com gestos vagos, teatrais; o processo da autofagia. Esperei
completar a idade adulta para anunciar a minha decisão. Não que com dezoito
anos pudesse me considerar adulta; pelo menos, era passível de arrumar um
trabalho em qualquer estabelecimento, pois força e vontade não me faltavam. Nessa
altura, também considerei que mãe estava melhor; havia voltado às atividades e
comprara até umas cabeças de bode, pois que, para ela, “o leite da boda tem a
sua sustância!”. A viagem foi longa, três dias e três noites, num ônibus caindo
aos pedaços; sentada atravessada, dormindo pelas tabelas, onde e como dava. Chegando
a São Paulo, me assustei de cara. Ajuizei que seria engolida pelo concreto. Uma
cidade linda, colossal e ameaçadora, ao mesmo tempo. Tive medo de desbravá-la.
Passei três horas perambulando pelas imediações da rodoviária, perdida, arrebentada,
sem nenhum dinheiro para o luxo da comida; teria de guardar os trocados para
continuar o itinerário. A minha intenção era de alcançar a bendita casa de tia
Mariinha, a melhor irmã e amiga de mãe, “os querer”; a caçulinha, como eu, que
se debandou para o sul, com iguais propósitos. Brasilândia não era aquilo tudo
que imaginei. Casas amontoadas faziam o contraste com a liberdade que eu tinha
nos descampados de Umirim. Tia Mariinha abriu a porta e, com todo amor, me
abraçou infinito e foi me mostrar a sua pequena casa, na qual morava com duas
crianças, meus primos, e o marido – que, felizmente, vivia na rua. Eu dormia
com os meninos, com o meu colchão dividindo as suas camas, o que impedia a
circulação e provocava certa chateação à noite, na hora de dormir, porque,
principalmente o Natanael, ficava pulando de uma cama a outra e demorava a
pegar no sono, por conta da novidade: eu; como dizemos no Ceará, para “se
amostrar”. A precisão não oferece escolhas. De início, por sorte ou por
desígnio de Deus, trabalhei como faxineira terceirizada na USP. Com um mês de
serviço, por boas recomendações da chefia, dos professores e dos alunos, fui
contratada. Lá, via aquele povo chique, e a beleza era portar um monte
de livro debaixo do braço. Eu achava bonito demais quem lia qualquer tipo de
livro. Frequentava, mais do que o normal, a biblioteca, para apreciar os livros
e lamber o piso. Zaíra, a bibliotecária, vendo o meu gosto, me recomendou um
programa da universidade que oferecia cursos para jovens e adultos que
desejassem completar o ensino médio. Eu estudava com um ânimo incrível, como se
os livros fossem os meus amigos e o meu refúgio. Na formatura, ganhei uma
medalha de honra ao mérito, por minha dedicação e por minhas notas. A professora
Ana Bernardes me incentivou a prestar o vestibular e a não parar de estudar;
“Você tem futuro, menina!”. E, nalgum momento em que eu estava abatida ou
cansada, era a sua voz que ouvia ecoar na minha cabeça, e logo me aprumava e
acompanhava o fluxo do destino seguro. Acreditei. Para amparar o desejo, me
afeiçoei aos alunos de vestimenta branca; conversava com um e com outro, para
saber como era fazer medicina. Alguns, pouco caso; no entanto, a maioria me
incentivava. Teresa foi uma delas. Deu-me todas as suas apostilhas fresquinhas
do último vestibular. “Estude, Lúcia! Você é muito inteligente; não pode
desperdiçar um dom de Deus”. Oxe, com essas palavras revigorei; estudava mais e
projetava aos céus a minha louvação. Tia Mariinha ficava inculcada com a minha teima.
“Menina, você não pode passar a noite aí enfurnada nos livros; isso vai dar uma
canseira nas vistas”. E eu, contumaz, permanecia na sala, com a luz do abajur,
estudando; e tantas vezes vi entrar o Tonny – vulgo Antônio –, morto de bêbado,
querendo me bolinar. Depois que dei um murro bem no meio das ventas do cabra,
ele aprendeu o fim de sujeito safado. Estava me preparando para o terceiro
vestibular em medicina, determinada, quando tia Mariinha se separou do encosto
e pediu que eu saísse do trabalho para cuidar dos meninos; que me daria um
dinheiro para eu comprar as minhas “besteirinhas”. Tia não ganhava muito,
trabalhando de merendeira, mas tínhamos um pouco mais que o trivial para a
mantença. Cuidar das crianças foi uma tarefa árdua: Natanael, o mais novo, ficava
agarrado aos meus pés; e Jonathan, ao contrário, queria se ver livre de mim,
para ganhar o mundo e se perder na vida. Então, eu ficava nessa historieta de
gato e rato, sem sossego para estudar; conseguia somente quando tia chegava do
trabalho, ou quando estivessem dormindo. E o grande dia chegou: parece que por
caridade ou compensação, Deus ouviu as minhas preces; passei para o curso de medicina
na USP. Compartilhei com as minhas amigas Ana Bernardes e Teresa, que, admiradas,
choraram litros de alegria, as duas; pensei que houvessem combinado. Tia
Mariinha deu uns pulos em casa, de encostar a mão no teto. Ela gritava e assustou
as crianças, que se mandaram para a rua. Naquela hora, tia não queria saber de
arenga de menino; me deu um abraço arrochado, me beijou, sem exagero, umas trinta
vezes, e disse que eu seria a primeira doutora da família. Enchia a boca para
dizer: “A primeira doutora da família!”. Eu percebia que estava apenas
começando a minha bela e intensa caminhada. Já na faculdade, na primeira aula, um
professor esquisito, da disciplina de anatomia humana, pediu para que os alunos
se apresentassem. Acho que, na sala, só havia eu e a Flávia de pele escurinha.
Quando chegou a minha vez de falar, quase no fim, percebi um burburinho, uma
aparente perturbação. Depois, Flávia me confirmou: “Amiga, as pessoas não
estavam acreditando quando você disse que tinha estudado sozinha; que vinha do
interior do Ceará. Realmente, é fantástica a sua história!”. Notei, com o
tempo, olhares de perseguição; nem eu, nem Flávia podíamos sair da linha;
éramos cotistas, e isso também era uma afronta para os demais. Segui meu
caminho, aos atropelos, mas segui. Com pouco dinheiro para comprar os
materiais, pedia a um e a outro, fazia bico de diarista, o que aparecesse; não
perderia por nada a bênção divina. Os algozes soltavam montanhas de pedras, sem
entender, pobres de espírito, que eu era calejada na lida, e que os supostos
obstáculos serviriam de fundamento para que eu pisasse firme, obstinada. Concluí
a faculdade e nesse tempo todo não revi mãinha. Nossas conversas se estendiam,
por telefone, horas a fio – um irmão meu, o Cipriano, possuía um projeto de
telefone, que mais parecia uma arma, de tão antigo; esse era o meu canal direto
com o paraíso. Prometi que voltaria o mais rápido possível. Tive ainda de
passar três anos, além dos seis da graduação, na residência em infectologia.
Portanto, calculava um pouco mais de uma década em SP; na cidade que,
contrariando o poeta, encontrei o abrigo e o amor. Poxa, me assustei; não vi o
tempo correr. Sobre a infectologia, nunca pensei em trabalhar com esse tema; mas
as coisas acontecem como têm de ser. Foi primordial a lembrança de uma
infestação generalizada de cólera, que dizimou trinta e duas pessoas de uma população
miúda, no fim da década de oitenta. As autoridades não deram confiança. E eu
vi, com esses olhos que a terra há de comer, o padecimento de mãe, que suportou
as perdas de uma irmã e da mãe, ambas pela “maldição”. O fato marcou muito a
minha família; e um tiquinho de cada família esquecida do sertão do Ceará. Por
uma boa preparação dos céus, hoje escrevo do meu polo de apoio, em São Paulo; da
minha alma mater, no meio de uma pandemia que destroça o país e o mundo.
As autoridades, de novo, não estão nem aí. Agora, são negacionistas; são contra
a ciência. Mas não me abalo; só um touro para me derrubar. Estou disposta a
trabalhar vinte e quatro horas, de domingo a domingo, para salvar vidas.
Colegas perguntam qual a estratégia para me manter em pé, com longos turnos no
laboratório – e aí não há brincadeira, ou insinuações, como se eu estivesse sob
o efeito de alguma droga; mas algo genuíno, puro, porque sabem do meu proceder.
Digo que na vida passei por muitas pandemias, de tantas dimensões, que, talvez
por sina, venho sendo fortalecida para suplantar e a atuar nesse instante de
grande luto. E luto! Lutarei para não sermos estatísticas, números. Meu nome na
história da ciência brasileira é um detalhe. Fico honrada com os prêmios que
recebi; contudo, o presente e a bênção correspondem a doar a vida para debelar
os vírus que infestam essa nação.
Acordou com o ranger da porta. Ainda meio a dormir entreabriu as pálpebras, tentando estabelecer contacto com o mundo exterior. O quarto estava deserto, e nem podia estar de outro modo uma vez que se fechava todas as noites à chave. No entanto tinha a certeza de ter ouvido a porta abrir-se: as dobradiças faziam um ruído característico, um misto de gemido e rilhar de dentes, que o incomodava tanto ao fim de vinte anos como no primeiro dia em que se mudara para aquela casa. Já tentara tudo, incluindo várias mudanças de ferragens, mas nada parecia ser capaz de eliminar aquele som verdadeiramente infernal.
Talvez tivesse sido um sonho. Acontecia-lhe com frequência ter sonhos de tal modo reais e intensos que mesmo muito depois de estar acordado, e bem acordado, continuava a não ser capaz de dizer onde acabava o imaginário e começava a realidade. Ainda devia ser muito cedo, a avaliar pela luz mortiça que entrava pelas janelas mal tapadas pelas téues cortinas brancas. Mas familiarizado como estava com o quarto onde passava a maior parte do seu tempo, sabia que estava tão só como sempre o estivera desde há longos anos.
Virou a cabeça de modo a poder ler os números vermelhos
do mostrador do relógio colocado na mesa de cabeceira. Eram apenas seis da manhã,
muito antes da hora a que habitualmente acordava. Este facto era, só por si,
bastante estranho. Pertencia ao tipo de pessoas com um relógio interno de
grande precisão e acordava sempre à hora pretendida, a menos que algo de
exterior o despertasse antes do tempo. O que parecia ser o caso, embora não
conseguisse identificar a causa da perturbação ou ruído que o acordara.
Enfiou-se um pouco mais para dentro dos lençóis, acomodou
melhor a cabeça na almofada e cerrou os olhos, numa tentativa de voltar a adormecer.
No entanto havia algo que continuava a preocupá-lo, algo de muito ténue e vago
que identificara quase inconscientemente no instante de acordar mas que depois
lhe escapara por completo. Mentalmente passou revista ao quarto, tal como o
vira no momento em que abrira os olhos. Mas não conseguia lembrar-se de ter
notado nada de anormal ou estranho. Muito arrumado e maníaco da ordem como era,
teria reparado logo se alguma coisa não estivesse no seu lugar habitual.
Tentou fazer o vácuo no seu espírito, pois bem sabia que
enquanto tivesse qualquer preocupação em mente não seria capaz de voltar a
adormecer. Ao fim de alguns instantes começou a sentir que deslizava suavemente
para dentro do mundo cinzento do sono e dos sonhos. Estava mesmo, mesmo, a
adormecer quando uma ideia súbita lhe iluminou a mente, despertando-o por
completo e fazendo-o sentar-se bruscamente na cama. Tinha conseguido
identificar o elemento estranho e anormal que procurava: instantes antes de
abrir os olhos pela primeira vez, sentira no quarto, muito claramente, um forte
cheiro a tabaco de cachimbo que desaparecera totalmente, de um modo súbito e
inexplicável, mal olhara na direção da porta.
Ora isto era verdadeiramente impossível, pois desde que
ali vivia nunca vira nenhum dos moradores fumar naquela casa, quer fosse
cachimbo, charuto ou cigarros. Havia, até, uma forte postura antitabaco, que os
levava a um certo distanciamento hostil em relação aos fumadores seus
conhecidos. Era pouco credível que de um momento para o outro um deles se lembrasse
de começar a fumar cachimbo, e logo às seis da manhã. Ou que tivesse convidados
que o fizessem. Além de que o cheiro a tabaco tem tendência a permanecer no ar
durante longo tempo, não desaparecendo daquela maneira tão brusca e repentina.
Sabia bem que já não seria capaz de voltar a adormecer,
pelo que decidiu levantar-se. O seu primeiro gesto foi ir até à porta e
experimentá-la com cautela. Estava fechada à chave, tal como a deixara na noite
anterior quando se retirara depois do jantar. Tinha a certeza de que assim
seria, pois a mania de se fechar estava de tal modo arreigada nele que até
mesmo o fazia sempre que utilizava o quarto de banho que fazia parte dos seus
aposentos privativos. Mas gostou de o confirmar pois havia sempre a
possibilidade de desta vez se ter esquecido de o fazer, o que teria permitido a
entrada no seu quarto a qualquer um dos outros moradores da casa, por engano ou
voluntariamente.
Sentindo-se cada vez mais confuso com a situação vestiu o
seu grosso roupão, para se proteger do frio da madrugada, e foi sentar-se no
fundo cadeirão colocado frente à única janela do quarto. Era o seu local
favorito, pois tinha à mão tudo de que precisava para o ajudar a passar os dias sempre vazios: uma estante recheada de
livros e numa mesa baixa, o pequeno rádio portátil, revistas, a prancha de
madeira e os instrumentos de desenho. Através das finas cortinas quase
transparentes podia ver que o dia mal começava a nascer. Raras vezes estava a
pé para observar este acontecimento, que não lhe agradava particularmente e
hoje ainda se sentia com menos paciência do que habitualmente para os espetáculos
da Natureza. Pegou em vários livros ao acaso, que folheou e logo abandonou por
não conseguir concentrar-se em nenhum. Finalmente descobriu numa revista um
artigo divertido, conseguindo assim distrair-se até à hora a que habitualmente
se levantava.
O resto do dia decorreu na mais completa normalidade. Não
havia hóspedes novos ou convidados a assinalar, as refeições servidas foram as
habituais para aquele dia da semana e época do ano, as conversas à mesa tiveram
a banalidade do costume e as suas atividades seguiram a mesma rotina dos
milhares de dias que passara como residente naquela casa de hóspedes. De tal
modo que quando se retirou já mal se lembrava dos acontecimentos que tinham
precedido e provocado o prematuro despertar dessa manhã. E o mesmo aconteceu
nos três dias seguintes. Convenceu-se, então, de que nada de real se passara
naquela estranha ocasião. Fora, apenas, vítima de mais um dos seus sonhos mais
reais que a própria realidade.
Ao quarto dia, porém, algo sucedeu que abalou
profundamente esta sua convicção. Foi logo a seguir ao almoço, quando se
preparava para passar a tarde muito bem instalado no seu confortável cadeirão,
a reler um dos seus livros preferidos. Ao abrir a porta do quarto sentiu de
novo no ar aquele mesmo cheiro a tabaco de cachimbo, forte e um tanto ou quanto
adocicado, que apesar de tudo continuava a associar no seu espírito ao acordar
intempestivo daquela manhã ainda tão recente. Espantado, parou no umbral, sem
saber se havia de entrar ou de sair. Mas como o cheiro em breve desapareceu,
tão completamente que era quase como se nunca tivesse existido, decidiu-se a
penetrar no que até então considerara o seu refúgio, fechando a porta atrás de
si.
A primeira coisa que viu foi um livro aberto em cima da
mesa. Ora isso era uma coisa que ele nunca fazia. Quando interrompia a leitura
por qualquer motivo, nem que fosse por breves instantes, fechava sempre o
volume em questão, depois de marcar cuidadosamente o ponto em que ia com a
ajuda de um marcador em fino couro lavrado, de que possuía uma vasta quantidade
de todas as cores e feitios. Pousar um livro assim aberto daquela maneira só
servia para lhe partir a lombada e permitir que a poeira existente no ar se
acumulasse nas suas páginas.
Por instantes acalentou a ideia de que talvez uma das
empregadas fosse a autora de tão irresponsável ato. Mas isso não era possível,
pois estivera a desenhar no quarto muito depois de completada a sua limpeza e
tudo estava então no seu lugar. Além disso, em tantos anos de estadia nunca
nenhum dos seus pertences fora mexido ou perturbado para além do que era
estritamente necessário para assegurar um serviço perfeito e bem executado. E
nenhum dos outros hóspedes poderia ter entrado no quarto durante a sua
ausência, a menos que possuísse um duplicado da chave.
Sentindo-se mais curioso do que verdadeiramente
preocupado, aproximou-se da mesa e pegou no livro que tão descuidadamente ali
fora deixado por mão desconhecida. Eram os poemas completos de William Blake,
um pesado volume ricamente encadernado que herdara do pai e que raras vezes
lera na totalidade. Mesmo sem querer leu algumas linhas de um dos poemas e
antes de se dar conta do que acontecia tinha-se instalado no seu já velho
cadeirão de modo a continuar a leitura numa situação de maior conforto.
Passou uma tarde bastante agradável, redescobrindo poemas
de que mal se lembrava e que, por qualquer razão, lhe pareciam agora ser muito
belos e profundos. Não conseguia sequer perceber porque nunca apreciara
devidamente Blake, que sempre achara pedante e muito rebuscado. Só parou para
acender a luz e para jantar, tendo prosseguido a leitura mal regressou ao
quarto. Deitou-se já muito tarde, quase de madrugada, com a sensação de ter
vivido nesse dia algo de novo, o que de há muito lhe não acontecia. Nem achou
estranho não ter dedicado mais tempo à análise e tentativa de resolução do
mistério da identidade do invasor da sua privacidade.
No manhã seguinte deu-se nova ocorrência estranha. Era o
dia em que habitualmente ia ao banco levantar o dinheiro que se destinava às
suas pequenas despesas mensais. Ao regressar encontrou a prancha de madeira
caída no tapete aos pés da cama e presa a ela um desenho inacabado. Representava
uma árvore totalmente despida de folhagem, meia encostada a uma rocha de forma
estranha e ameaçadora, tendo ao fundo umas montanhas apenas esboçadas. O estilo
era muito diferente do dele, pois limitava-se a desenhar arranjos de flores e
pequenas paisagens idílicas. Tudo muito suave e levemente colorido. No ar
pairava ainda o já inevitável cheiro a tabaco.
Desta vez sentiu-se bastante assustado. Um livro deixado
aberto em cima de uma mesa podia muito bem ser obra de uma das empregadas,
embora esta hipótese não fosse de facto credível. Ou até mesmo resultar de um
descuido seu, de que se esquecera por qualquer motivo. Mas este desenho nunca
poderia ter saído da sua mão e, que soubesse, não havia na casa mais ninguém
que se dedicasse a qualquer tipo de atividade artística. Mesmo supondo que
alguém desenhava, mantendo até então a sua atividade em segredo, como é que
tivera acesso ao seu quarto, sempre bem fechado quer ele ali estivesse quer
não?
A ideia de um duplicado clandestino da sua chave voltou a
aflorar-lhe a mente, embora não conseguisse imaginar quem o poderia ter obtido
e com que fins. Com o seu exemplar, único segundo fora informado, ninguém
entrara de certeza, uma vez que nunca o largava fosse para o que fosse. Se por
qualquer razão tinha de sair durante as horas em que era efetuada a limpeza,
então esta era muito simplesmente adiada para mais tarde ou até mesmo para o
dia seguinte. Fora esta uma das condições que exigira ao alugar os melhores
aposentos disponíveis na modesta casa de hóspedes que descobrira por acaso ao
mudar-se para esta pequena cidade de província.
Embora não acreditasse muito na existência desta segunda
chave estava suficientemente alarmado para agir sem perda de tempo. Voltou, por
isso, a sair a fim de adquirir uma nova fechadura para a porta do quarto.
Esperou que todos se deitassem e só passado algumas horas, quando lhe pareceu
que mais ninguém estaria acordado, procedeu à mudança. Foi um trabalho bastante
difícil por causa da necessidade de evitar barulhos que pudessem despertar e
alarmar os restantes hóspedes, levando-os a fazer perguntas a que só com grande
dificuldade seria capaz de responder. Acabada esta tarefa sentiu-se logo muito
melhor e foi com o espírito sereno e em paz que adormeceu mal pousou a cabeça
na almofada.
Não tardou, porém, a verificar que a sua atividade noturna
não passara de despesa e trabalho em vão. Nas semanas que se seguiram o intruso
continuou a invadir-lhe o quarto a qualquer hora e com toda a impunidade, sem
que lhe fosse possível descobrir o mínimo indício quanto à sua identidade ou
modo de atuação. O resultado das suas visitas era sempre bem visível: livros
deixados abertos em cima da mesa ou da cama, desenhos inacabados ou apenas
esboçados, revistas com páginas assinaladas a vermelho ou arrancadas,
fotografias retiradas do precioso álbum que guardava na terceira gaveta da
cómoda e espalhadas pelo chão ou pela cama, roupas que há muito não usava
dispostas com todo o cuidado por sobre as costas do cadeirão, quase como se
tivesse acabado de as despir, e, de uma única vez, o rádio que começou a tocar
uma música dos seus tempos de liceu mal ele tocou na maçaneta da porta. E
ficava sempre a pairar no ar, por breves momentos, o forte cheiro a tabaco de
cachimbo que detetara da primeira vez.
Aos poucos e poucos começou a detetar uma certa lógica,
quase um plano, por detrás das ações do seu visitante. Os livros pertenciam
sempre ao conjunto herdado da família e que tinham sido parte integrante da sua
juventude, influenciando de modo decisivo o seu modo de ser e de pensar. As
páginas assinaladas ou arrancadas das revistas eram as que traziam referências
a locais que em tempos frequentara, conhecera ou sempre desejara visitar ou a
assuntos por que se interessara num passado que há muito considerava morto e
esquecido. As fotografias eram sempre retratos de pessoas em que não pensava há
anos e de que já só possuía uma muito vaga recordação. As roupas, essas, eram
peças que guardara durante anos a um canto de um armário, nem ele sabia muito
bem porquê, talvez por representarem épocas ou acontecimentos que em tempos
considerara importantes ou particularmente felizes.
Sem mesmo se aperceber disso habituou-se a estas
estranhas e sempre inesperadas intervenções, deixando de se surpreender ou
espantar com estes factos que não podia explicar e nem percebia porque se
assustara tanto a princípio. Começou, também, a recordar com uma nitidez penosa
todo um passado que jurara enterrar para sempre após o acidente que o destruíra
e desfigurara, fazendo-o perder o gosto pela vida e pelo convívio com os outros
seres humanos. A rotina dos seus dias, até então sempre iguais, mudou por
completo, sendo agora comandada pelas ações do invisível visitante.
Se calhava deixar um livro aberto em qualquer página,
logo ele se apressava a lê-lo, saboreando passagens meio esquecidas ou que não
se lembrava de alguma vez ter apreciado devidamente. Reencontrou, assim, o
gosto pela leitura em profundidade, pela análise de ideias que muitas vezes lhe
tinham escapado nas suas leituras rotineiras e feitas apenas para preencher as
muitas horas vazias de cada dia. Dava a impressão de que esses livros eram
muitas vezes escolhidos por se relacionarem entre si, quer por mérito próprio
quer por associação de recordações e ideias relacionadas com a época em que os
lera pela primeira vez.
Por vezes acontecia que o sítio em que o livro ficava
aberto trazia referências a outras obras do mesmo ou de outros autores. De
início não prestou muita atenção a este pequeno pormenor, que lhe parecera
fruto do acaso, mas quando isto acontecia o livro voltava a aparecer, dia após
dia, e sempre aberto na mesma página. Finalmente rendeu-se à evidência e
apressou-se a procurar esses livros, quer em lojas, quer na Biblioteca Pública.
Deste modo, e pela primeira vez desde há muitos anos, fugiu ao universo
restrito de obras, todas elas originárias da sua vida de antes, que lia e relia
sem cessar, num círculo sem início e sem fim que em nada contribuía para
melhorar as suas ideias ou conhecimentos gerais.
Foi também, obrigado a sair mais de casa e a prolongar
mais essas saídas, pois nem sempre lhe era fácil encontrar as obras indicadas
pelo seu exigente mentor. Como alguns dos livros eram bastante caros e o
dinheiro que recebia mensalmente do seguro não lhe dava para grandes luxos
via-se frequentemente forçado a recorrer à sala de leitura da Biblioteca. A
princípio sentira grande relutância em entrar num local frequentado por tanta
gente desconhecida, e onde a sua cara cheia de cicatrizes atraía a curiosidade
e os olhares gerais. Mas irritava-o tanto encontrar dia após dia o mesmo livro
sempre aberto no mesmo sítio, que acabou por se decidir e agora até já nem
reparava se as pessoas olhavam para ele ou não. Tornara-se conhecido dos
frequentadores habituais e sentia-se um pouco como na casa de hóspedes: uma
parte integrante do cenário.
As revistas causaram-lhe um tipo muito diferente de
problemas, pois não gostava de recordar os projetos que outrora fizera e que o
seu acidente reduzira a nada. Deixara de adquirir revistas especializadas em
viagens ou assuntos científicos precisamente para evitar recordações dolorosas.
Infelizmente, até mesmo as revistas aparentemente mais inócuas traziam de
quando em quando um artigo ou referência a um dos assuntos que em tempos tinha
sido a sua grande paixão. Resistiu o mais que pôde, mas acabou por fazer
algumas concessões, raras e pequenas a princípio e depois cada vez maiores e
mais frequentes. Chegou mesmo ao ponto de assistir a um ciclo de conferências
sobre a reprodução das chitas, ignorando com firmeza o ar espantado com que os
restantes participantes acolheram a sua aparição um pouco tardia.
Mas foram as fotografias e as roupas velhas que lhe
infligiram os maiores sofrimentos e, simultaneamente, as principais mudanças no
seu modo de pensar e de viver. Arrependeu-se mais de uma vez de não ter tido
nunca a coragem de deitar tudo isso no caixote de lixo mais próximo, cortando
de vez com o passado. Chegou mesmo a empacotar o álbum e a maior parte do seu
guarda-roupa em sacos plásticos que pensava retirar do quarto um a um, de modo
a não provocar estranheza ou suspeitas nos seus companheiros de habitação. Mas
nunca conseguiu levar por diante o seu intento, nem mesmo quando a última
fotografia que tirara a Cristina e a João apareceu sobre a mesa de cabeceira,
apoiada ao candeeiro numa posição tal que foi a primeira coisa que viu mal
abriu a porta. Nesse dia o seu sofrimento atingiu uma intensidade tal que só
desejava ver na sua frente o impiedoso vasculhador da vida alheia para o poder
torturar, esfaquear ou estrangular. Bem contra a sua vontade deu por si a
recordar o seu próprio passado em todo o seu esplendor e miséria.
Nascera e fora criado numa grande cidade, no seio de uma
família numerosa, nem melhor nem pior do que muitas outras. Aluno mediano mas
interessado, sentira sempre uma certa atração por tudo o que dissesse respeito
a animais exóticos ou a locais pouco conhecidos e quase desertos. O seu sonho
de infância era vir a ser explorador ou domador de feras num circo. Formara-se
em Biologia, sem grande distinção, arranjando depois emprego como assistente
num grande laboratório de pesquisa médica. O trabalho não lhe agradava
totalmente pois, devido à falta de brilhantismo do seu intelecto destinavam-lhe
sempre os trabalhos mais repetitivos e monótonos. Mas compensava largamente a
sua frustração através da leitura de revistas sobre os seus assuntos favoritos,
ao mesmo tempo que planeava uma viagem de um a dois anos através do continente
africano, visitando muito particularmente as suas zonas menos frequentadas.
Conhecera Cristina numa festa dada por um colega de
trabalho e passado pouco tempo tornaram-se inseparáveis. Já anteriormente
tivera algumas ligações amorosas, mas nada de especial se comparadas com o
bem-estar e prazer que sentia quando estavam juntos. Casaram passados oito
meses, o que levou ao adiamento da viagem a África por tempo indefinido. João
nasceu ao fim de um ano e daí em diante a vida do casal entrou na rotina
satisfeita em que se conservou até ao fim. Eram felizes, de uma felicidade
calma e sem grandes sobressaltos, ganhando o suficiente para terem uma vida
desafogada, podendo mesmo oferecer-se um ou outro pequeno luxo de vez em
quando. Chegaram, até, a fazer algumas viagens, nada de especial quando
comparadas com a travessia de um continente, mas suficientemente interessantes
para acalmarem a sua sede de exótico e de aventura.
João tinha feito há pouco os oito anos quando tudo isto
se desmoronou. Tinham ido passar a semana de férias da Páscoa com os pais de
Cristina, que possuíam uma bela quinta cheia de cavalos, cães e aves de todo o
tipo. Como não dispunham de muitos dias, o tempo estava mau e a distância era
grande decidiram não utilizar o carro. Ao regressarem a casa, o avião em que
viajavam tivera sérios problemas de motores no momento da aterragem e acabara
por se desfazer ao fundo da pista, num
inferno de chapas retorcidas e de violentas chamas. Houve muito poucos
sobreviventes, e destes a maioria com graves ferimentos. Cristina e João contavam-se
entre os mortos.
Quando finalmente saiu do hospital, com o corpo e a face
cobertos de cicatrizes, não chorou, não se lastimou, não bramou contra o
destino injusto que destruíra o seu mundo familiar. Decidiu, muito
simplesmente, abandonar tudo o que até então fizera parte da sua existência: o
emprego, os amigos, a restante família e, até, a cidade onde nascera e sempre
vivera. Com o dinheiro da indemnização oferecida pela companhia aérea mudara-se
para uma pequena povoação bem longe da sua terra natal, instalara-se naquela
discreta casa de hóspedes e ali passara vinte anos de uma vida recolhida e
rotineira. As únicas pessoas com quem contactava eram os outros hóspedes e
empregados, todos antigos na casa e a quem já se habituara, e os empregados do
banco e de uma ou outra loja da vizinhança, que satisfaziam as suas poucas
necessidades. Até que um leve cheiro a tabaco de cachimbo viera perturbar o
delicado equilíbrio que conseguira muito a custo estabelecer entre a sua dor e
a necessidade de esquecimento, quebrando o forte muro por detrás do qual
encerrara toda a sua angústia e revolta.
Nos dias imediatamente a seguir ao aparecimento da fotografia fatídica abandonou totalmente a leitura e as saídas a que se começara a habituar. Fechou-se ainda mais no quarto do que costumava fazer antes da intervenção do visitante, passando os dias e grande parte das noites sem nada fazer, muito simplesmente sentado no cadeirão a contemplar a janela com um olhar fixo que parecia nada ver. Esquecia-se das horas e eram obrigados a chamá-lo para as refeições, a que assistia de muito má vontade e com um ar distante e ofendido. Só não faltava por achar ainda mais incómoda a necessidade de responder às inevitáveis perguntas sobre o seu estado de saúde que a sua ausência acarretaria.
O desconhecido responsável por toda esta angustiosa situação respeitou a sua necessidade de isolamento e solidão durante exatamente três semanas. Durante este período nada no seu quarto foi perturbado ou mexido, parecendo até que tudo estava como sempre fora. Mas ao fim deste tempo voltou de novo a atuar. Todos os dias uma nova fotografia surgia nos locais mais inesperados, tão ardilosamente colocada que antes de ter tempo de se aperceber do que se passava já os seus olhos e a sua mente a tinham absorvido. Por vezes eram retratos de amigos, em festas ou reuniões, de outras vezes representavam familiares mais ou menos distantes, mas sempre intercaladas com elas havia cenas de Cristina e de João, obtidas em tempos mais felizes.
Com o passar do tempo foi-se apercebendo de que a visão
dessas faces tão queridas já não lhe causava o mesmo sofrimento atroz dos
primeiros momentos. Sentia saudades, isso sim, desgosto e tristeza também, mas
suportáveis. Tinha, até, um certo prazer melancólico em recordar pequenas
conversas ou brincadeiras que partilhara com o filho ou com a mulher. Voltou a
arrumar as suas coisas nos respetivos lugares, pondo totalmente de parte a
ideia de se desfazer dos poucos testemunhos visíveis que restavam da sua vida
passada.
Simultaneamente, e pela primeira vez desde que para ali fora, começou a interessar-se um pouco pelas pessoas que viviam debaixo do mesmo teto e que acotovelava diariamente sem mesmo demonstrar que as via. Verificou que pertenciam a todos os géneros humanos, medianas, razoáveis ou más, aborrecidas ou bem vivas, inteligentes ou pouco espertas, cultas ou ignorantes. Descobriu que até tinha alguns interesses em comum com umas poucas delas, o que contribuiu para aumentar o seu crescente amor e interesse pela vida.
Chegou mesmo a ir passar um fim de semana a observar pássaros na companhia de um vizinho de patamar que pertencia a uma organização local que se dedicava a esse tipo de atividades. Divertiu-se bastante, embora descobrisse que já pouco sabia do muito que aprendera durante os seus anos de faculdade. Mas isso só serviu para lhe estimular o gosto da leitura e a vontade de voltar a estudar assuntos por que em tempos se interessara de um modo bastante apaixonado.
Foi após esta pequena excursão que pararam
definitivamente todas as atividades inexplicáveis que tinham tido por cenário
os seus aposentos. Nada aparecia agora fora do seu lugar próprio e se queria
rever uma fotografia, então tinha de ser ele a procurá-la no álbum. Com grande
espanto seu sentiu bastantes saudades das visitas daquele alguém ou daquela
coisa de que tivera tanto medo e que tanto sofrimento e dor lhe tinham causado
ao revolver o passado de forma tão dura e impiedosa. Até teve pena de deixar de
sentir o aroma forte e um tanto ou quanto adocicado a tabaco de cachimbo que
assinalava cada uma das suas intervenções.
Cerca de dois anos depois de tudo ter terminado entrou
por acaso num café da vizinhança, que não costumava frequentar. O dia estava
frio e chuvoso e sentiu necessidade de beber alguma coisa quente que o
reconfortasse e aquecesse. Estava sentado frente a uma grande chávena de
chocolate quente quando sentiu algo de elusivo que lhe despertou uma sensação
de sofrimento e, simultaneamente, de grande alívio. A princípio não fazia a
menor ideia da origem de tão estranha reação. Olhou à sua volta, mas nada viu
que lhe pudesse despertar tão fortes emoções. Fechou os olhos para melhor se
concentrar, abstraindo-se o mais possível do som das vozes e do tilintar de
louças e talheres. Foi então que identificou a fugaz sensação que tantas vezes
sentira no refúgio do seu quarto. Era o mesmo cheiro a tabaco de cachimbo, só
que desta vez permanecia no ar, não se desvanecendo do modo abrupto a que se
habituara durante as estranhas visitações. Virou a cabeça em todas as direções,
embora de modo discreto, sem poder dizer se esperava e desejava encontrar um
verdadeiro fumador, algo deliberadamente fora do seu lugar ou uma mensagem que
lhe fosse especialmente dirigida.
Os seus olhos depararam-se finalmente com uma figura
estranha, o único fumador de cachimbo em todo o café. Era da mesa dele que se
evolava o tão conhecido e adocicado aroma. O seu aspeto não lhe era totalmente
desconhecido, pois tinha uma vaga recordação de já ter avistado em qualquer
lado aquele ser alto, magro, de cara afilada e barba pontiaguda, envolvido numa
longa capa negra com forro de seda verde escuro. As costas eram ligeiramente
arqueadas e a sua postura, dobrada sobre a mesa, era a de quem tenta proteger
alguma coisa de precioso e raro. A mão direita agarrava um belíssimo cachimbo maravilhosamente
esculpido numa substância clara, que levava à boca de tempos a tempos e donde
subia uma longa espiral de fumo cinzento claro.
Os seus olhares cruzaram-se por breves instantes e teve a
sensação de ler na expressão do outro um sinal de reconhecimento e satisfação.
Mas foi apenas questão de um momento. Apagando o cachimbo, o estranho
personagem guardou-o no bolso do seu longo casaco, colocou na cabeça um
antiquado chapéu escuro, levantou-se e saiu sem olhar para trás. Nunca mais o
viu.
Luísa Lopes
Photo by Adri Claassens from FreeImages