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domingo, 28 de maio de 2023

Olho por Olho

 



Na Madrugada dos Tempos – Parte 10    

A guerra é, a princípio, a esperança de que a vida nos venha a correr melhor,

a seguir, a expectativa de que corra pior aos outros,

depois, a satisfação por ela também não correr melhor aos outros, e,

mais tarde, a surpresa por ela correr pior a ambos.

Karl Kraus, Escritor austríaco

  (1874-1936)

Partiram ainda noite escura, em silêncio, uma extensa fila com vinte e dois elementos que marchava com dificuldade sobre a neve fofa debaixo de um ameaçador céu de chumbo. Entre as lanças empunhadas pela maioria destacavam-se os dois arcos de madeira e osso, fabricados por Alim e Beki, os nómadas adotados na aldeia. Este último e também Dogan, sobrinho-neto de Erem eram exímios atiradores e tornaram-se uma mais-valia entre os caçadores, permitindo-lhes matar ou ferir as presas, surpreendendo-as a grande distância.

À cabeça do grupo seguiam Erem e Naci. Se o primeiro seguia de cenho carregado e apreensivo, o segundo exibia um ar de satisfação feroz. Atrás seguiam os restantes, maioritariamente homens, escolhidos a dedo por Lemi que, com exceção dos estrangeiros, conhecia intimamente cada um deles a quem ensinara as artes da caça desde crianças. As quatro mulheres escolhidas eram Ezgi e Eda, que já tinham revelado a sua mestria com a funda no primeiro ataque e duas outras estrangeiras, empunhando lanças e que quase só se distinguiam dos homens por não terem barba. Zia não acompanhou o grupo, para desilusão desta; o chefe convenceu-a a ficar com Nehir e Asil, porque decidira que desta vez não arriscaria que toda a governação do clã se perdesse de uma vez só.

A luz da manhã já iluminava, tristonha, os montes de cristas nevadas e a paisagem ondulante de vegetação rasteira coberta por um manto branco. Esta região distinguia-se dos planaltos onde o clã vivia, era agreste, com pouquíssimas árvores e cortada por profundas brechas ou montes desproporcionais. Os deuses deviam estar furiosos quando fizeram aquela parte do mundo e via-se que era um terreno de exílio para uma espécie que se refugiava, a terra que ninguém queria.

Num autêntico “déjà-vu”, o grupo reuniu-se no promontório que permitia uma ampla vista da entrada da gruta, mas que estava separado desta por uma funda garganta. Aquele era um bom ponto de observação, conseguiam ver, não só o seu objetivo, como uma grande distância em redor… o local ideal para uma sentinela. As pegadas recentes na neve fofa testemunhavam que houve atividade ali nas últimas horas. Havia a forte possibilidade de terem sido avistados.

Erem observou atentamente todos os pormenores, enquanto lamentava não ter trazido Lemi, o seu indiscutível estratega. Ao fim de alguns segundos fez um gesto aos outros e todos se afastaram da crista para uma zona onde não seriam vistos pelo inimigo.

O chefe ficou em silêncio fitando o chão, formados em círculo à sua volta, os outros respeitavam a introspeção. Depois ele ergueu os olhos para cada um deles, fixando-se nos dois archeiros.

— Acham que conseguem atingir a entrada da gruta desde este promontório? — Atirou Erem repentinamente. — Derrubar quem apareça à entrada?

Dogan, um dos mais jovens do grupo, fez uma expressão de incerteza, mas Beki, o mais velho dos filhos do nómada Alim, acenou com a cabeça afirmativamente.

— Então está decidido. — O chefe concluiu. — Desta vez não seremos surpreendidos antes de estarmos todos no planalto de entrada. Eles manterão a vigilância, — explicou dirigindo-se aos outros — e se algum daqueles monstros sair, será morto ou pelo menos afugentado. Vamos escalar a parede até ao planalto e ninguém — aqui olhou conspicuamente para Naci —, repito, ninguém, ataca sem todos terminarem a subida. Subiremos em linhas de quatro, os mais novos e fortes à frente e ajudam os outros assim que chegarem. — Tomando a dianteira, ordenou: — Agora vamos!

Os dois archeiros tomaram posição, o olhar fixo na entrada da gruta, sem descurar os companheiros que desciam a garganta.

Uma águia piou no alto, na sua busca por alguma presa que se aventurasse fora da toca em cima da neve fofa. Tirando isso, não se avistava vivalma, o que começava a ser estranho. Era dia claro e aparentemente ninguém saía da gruta… esperavam que, pelo menos os caçadores, já estivessem fora há muito.

Foram estes pensamentos que fizeram Beki olhar pelas redondezas dos seus companheiros e detetar o pequeno grupo de homens-macaco que, no fundo da garganta, saía de uma fenda na parede e avançava na direção deles. Gritou o alarme e começou a enviar dardos na direção dos inimigos. A primeira flecha cravou-se no tronco de um e a segunda no pescoço de outro, os restantes inimigos, porém, saíram da vista do atirador refugiando-se na parede contrária. Uma última flecha partiu-se contra as pedras; Dogan conseguira finalmente vencer as tremuras e atirar o primeiro dardo.

Naci, Fikri, Altan e dois dos estrangeiros, à cabeça dos restantes, correram na direção indicada por Beki. Gritos de guerra e dor ecoavam no fundo da garganta fora da vista dos aflitos archeiros. Por fim, à medida que o restolho da refrega reduzia, viram um dos mais jovens estrangeiros a fugir perseguido de perto por um homem-macaco. Beki armou o arco e preparava-se para desfechar sobre o inimigo quando se apercebeu que Fikri corria logo a seguir. O corpulento inimigo estava quase a deitar as mãos ao franzino rapaz quando a lança do filho de Lemi cravou-se com um baque surdo nas costas dele, derrubando-o. O fugitivo parou imediatamente de correr e, fazendo jus à sede vingativa que os movia a todos, saltou sobre o homem-macaco tombado e começou a espetá-lo furiosamente com a faca de sílex. Era o filho de uma das mulheres assassinadas no assalto à aldeia. Fikri arrancou o seu dardo das costas do inimigo e ergueu-o num gesto de triunfo para os dois archeiros. Lentamente, os atacantes reuniram-se no fundo da garganta, havia feridos, mas não parecia faltar ninguém.

Não havia agora dúvidas de que haviam sido avistados e os homens-macaco já estavam à espera do ataque. Deixaram aqueles fora da gruta para os apanhar pelas costas enquanto subiam e decerto haveria mais surpresas pela frente.

Rapidamente e sem hesitação, todos se lançaram na escalada. Os dois archeiros mantinham-se vigilantes entre a observação atenta da entrada da gruta e a preocupação dos companheiros que subiam com esforço. Conseguiram perceber que alguém espreitava rapidamente da abertura escura e avisaram por gestos os primeiros que concluíram a subida, invariavelmente Naci e Fikri.

Enquanto os archeiros concentravam a sua atenção nos companheiros, um restolho fê-los voltar-se de supetão; um homem-macaco erguia uma temível clava sobre Dogan. Tinha a cabeça e o rosto coberto de sangue pingando profusamente da haste partida de uma flecha cravada logo abaixo do ombro esquerdo. Beki, que nunca deixara de ter um dardo a postos no seu arco, lançou-o imediatamente sobre o inimigo, mas demasiado tarde para evitar que este descarregasse a moca em cima do companheiro. O infeliz Dogan ainda tentou esquivar-se da pancada, mas esta atingiu-o com violência sobre a clavícula e o braço com que se protegeu. O arco que empunhava desfez-se em pedaços quando o jovem rolou sobre ele.

Tendo uma das ameaças eliminada, o homem-macaco, agora com nova flecha cravada no pescoço, soltou um grunhido inumano ao mesmo tempo que levantava a clava para atacar o outro. Beki recebeu-o atabalhoadamente com novo dardo no peito, mas não parou o ataque. Dogan, tombado aos pés do inimigo e com um braço sem ação, apanhou uma pedra e feriu-o várias vezes na parte desprotegida das pernas entre as botas de pele e a túnica de couro que envergava. Surpreendido pela dor inesperada, o formidável adversário saltou para o lado, pronto para lhe esmagar a cabeça, mas estes segundos foram preciosos para Beki empunhar a sua faca de cobre e saltar sobre ele. Sem espaço para manobrar a clava e sem poder fazer mais do que tentar esmagar o inimigo que se colava a ele, o homem-macaco caiu e debateu-se, enquanto Beki lhe cravava sucessivamente a adaga até aos copos, procurando atingir o coração. Dogan conseguiu arrastar-se até junto dos contendores e rasgou-lhe a garganta com a faca de sílex. Só assim terminou o combate.

Beki ergueu-se ofegante e ajudou o companheiro, que se retorcia com dores, a sentar-se mais comodamente. Aparentava ter o úmero e a clavícula partidos e fora um esforço sobre-humano para se arrastar e ajudá-lo. Devia-lhe a vida com toda a certeza. Depois olhou para os restantes companheiros que terminavam a escalada, ignorando a luta de vida ou morte que acabara de ser travada.

No patamar de acesso à gruta, os atacantes ajudaram os últimos a terminar a escalada e começaram a formar uma linha de cada lado da entrada. Começavam a tombar suavemente diáfanos flocos que pousavam sobre a neve calcada e suja do chão. Não se escutava qualquer ruído do interior escuro e intimidante. Um dos estrangeiros, ansioso por mostrar-se mais valente que os restantes ou incapaz de suportar a expetativa, avançou para a goela negra, tendo sido presenteado com uma lança no peito que o projetou para fora. Tombou numa posição pouco natural, com o peso do dardo a curvar-lhe o corpo para trás, os olhos esbugalhados perderam o brilho rapidamente… uma mancha rubra espalhou-se imediatamente sobre o tapete alvo.

Desta vez, Naci tivera o bom senso de não se precipitar, mas mais dois corajosos jovens se lançaram para a abertura hiante para serem confrontados de imediato com um homem-macaco que derrubou ambos com possantes pancadas da clava que empunhava. Por estarem demasiado próximos, nenhum deles teve tempo de usar a lança que empunhava. Este foi o sinal, porém, para Erem gritar para o resto do grupo se lançar decididamente no ataque. Uns ainda com as lanças, outros, optando por armas mais manejáveis em lugares estreitos, largaram-nas e empunharam os machados de sílex que traziam à cintura.

Chocados com a diferença entre a luz exterior e a penumbra da gruta, os primeiros invasores tiveram de combater por instinto com os quatro inimigos que os receberam com clavas e lanças. A vaga inicial quase foi travada, não fosse Naci espetar a sua lança, por cima do ombro de um dos companheiros, diretamente no pescoço de um dos defensores. Imitando a técnica, os seus companheiros eliminaram rapidamente a resistência e passaram por cima de mortos e feridos. Com os machados e as facas, acabaram violenta e sangrentamente com quantos inimigos tombados depararam. A presença dos amigos feridos e mortos só serviram para aumentar o ódio e raiva que sentiam. Ninguém ficou para os ajudar, todos respingados e inebriados de sangue, como demónios ululantes, atravessaram a estreita entrada e desembocaram numa ampla gruta fracamente iluminada pela fogueira que ardia sozinha no centro. As silhuetas de vários homens-macaco movimentavam-se a esconder-se nas sombras ou nas cavidades em redor.

Soltando gritos horrendos, a horda demoníaca lançou-se como um rio que desagua num lago de águas calmas. Para ambos os lados partiram homens e mulheres com os machados ensanguentados em punho. Atacaram todas as figuras difusas que lhes apareciam pela frente. Fosse a fugir, fosse a defender-se, todos tombavam perante aquela maré de fúria homicida. Gritos apavorados de mulheres e crianças, misturavam-se com urros masculinos de dor ou raiva. Palavras desconhecidas misturavam-se com maldições, todas ecoando na alta abóbada da gruta.

Ferido num braço por uma lança e a sangrar da cabeça por uma pancada de uma clava, para Erem tudo não passava de uma névoa rosada, enquanto se desviava dos ataques e devolvia pancadas selvagens com o seu machado. O corpo e os ferimentos doíam-lhe e começavam a faltar-lhe as forças para manejar a arma.

Gradualmente, a gritaria converteu-se em murmúrios e gemidos, alguns calados violentamente ao som de pancadas surdas.

Sem inimigos à vista, Erem deixou-se sentar pesadamente, arrastando as costas pela parede áspera. O chão de pedra estava morno e viscoso. Passou a mão pela cara para limpar os olhos, mas ficou a ver ainda pior. Deixou cair a cabeça para a frente e fechou os olhos, esgotado.

— Pai? — A voz de Naci sobressaltou-o. — Estás bem?

Levantou o rosto e sentiu a água gelada que lhe despejavam na cara. Esfregou os olhos e estava novamente na penumbra avermelhada da caverna. O cheiro fétido a sangue e carne era indescritível e misturava-se com o fedor de cabelos e pele queimados. Por onde os seus olhos vagueavam só via corpos caídos de bruços ou dorsal, em posições pouco naturais… quase só mulheres e crianças. Havia mesmo bebés tombados sem vida ao lado das progenitoras…

Suspirou e escondeu o rosto entre as mãos. O estupor tomava conta dele ao mesmo tempo que se inteirava da enormidade do que haviam feito. Sentia as forças a faltar-lhe e era de muito longe que lhe chegavam as vozes dos companheiros.

— Vencemos! — Apregoavam uns.

— Acabamos com eles todos! — Gritavam outros.

— Viva Erem, que nos trouxe a uma grande vitória! — Soltou outra voz, logo ovacionada por todos.

O chefe ergueu-se ajudado por Naci e Fikri, que se haviam colocado um de cada lado e depois olhou os seus valorosos companheiros, onde não havia um rosto incólume. Abraçou o filho e deu umas palmadas afetuosas no ombro do filho de Lemi, enquanto sorria e acenava a cabeça tristemente para os outros.

— Vamos pegar os nossos mortos e feridos e vamos embora deste lugar maldito. — Soltou Erem num quase gemido.

Foi num silêncio quase total que revistaram o espaço pejado de cadáveres em busca dos companheiros perdidos, antes de se reunirem todos no exterior. O ataque “bem-sucedido”, saldara-se em seis mortos e quatro feridos com gravidade. Na realidade, ninguém escapara sem ferimentos e a distinção era apenas se precisava de ajuda para andar ou não. Da parte dos homens-macaco, a derrota fora total; quase trinta adultos e várias crianças. Não restara nenhum vivo, os atacantes certificaram-se disso enquanto procuravam os amigos.

Havia poucos deles em condições para arrastar um corpo morto durante as várias horas que lhes levaria o regresso à aldeia, além disso, precisavam de transportar a carne seca e os cereais que encontraram por isso e após animada discussão, resolveram deixá-los. Os cadáveres dos companheiros foram alinhados numa pira feita com a lenha que os inimigos haviam armazenado e incendiada. Os corpos dos homens-macaco ficaram onde caíram, os lobos e os abutres teriam o festim assegurado por vários dias.

 

9 - Velhos InimigosParte 9 – Velhos Inimigos

A seguir:         

Parte 11 – O Povo de Barinak

Na Madrugada dos TemposIntrodução – Na Madrugada dos tempos  

 

 

 

 

Manuel Amaro Mendonça

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quinta-feira, 25 de maio de 2023

A inspiração de Hudai

 


Constantino Leixões não tinha muito que o distinguisse dos outros cascaenses de gema, nascidos na década de 80. Chegado à faculdade, formou-se em História e em adulto ingressou no Arquivo Histórico Municipal de Cascais. Nada fazia prever a sua obra futura.

Numa pós-graduação desenvolveu um estudo histórico sobre as consequências do terramoto de 1755 na Vila. Encontrou relatos impressivos e perturbadores, como: «o tremor de terra fez-se sentir por nove minutos e transformou a grande povoação em insensível e frio cadáver do que havia sido e uma desfeita cena do que já não era». Lidar com o assunto trouxe-lhe preocupações pela segurança sísmica da Vila. Mas, se o problema da destruição sísmica estava já claramente muito mitigado pelas normas anti-sísmicas de construção de então, o problema da destruição por um eventual e provável tsunami resultante era mais do que angustiante. Os textos avisavam: «O posterior maremoto fez avançar o oceano terra adentro por várias vezes, dando origem a duzentas e duas mortes, nos 5109 habitantes do concelho»; «a vila toda ficou arruinada até ao chão. Não há casa que ou não caísse em terra ou não ficasse abalada e ameaçando ruína. Tudo está demolido e feito em pó.»

Aprofundou leituras, inteirou-se das terríveis consequências dos grandes tsunamis e, por aí, entrou em contacto com tentativas de proteção executadas em vários pontos da costa japonesa.

Pouco depois, aconteceu o grande terramoto de 2011 nos mares do Japão. As imagens do tsunami subsequente eram angustiantes: carros a vaguear ao sabor da maré alta, barcos atirados para terra, o mar grosso a entrar por povoações adentro, casas arrastadas e paulatinamente esfaceladas. Também ali encontrou casos animadores, como o de Hudai, onde um visionário tinha construído um dique, havia trinta anos, que salvou a sua aldeia, exemplo que sentiu como inspirador.

Foi nesse tempo que as imagens pavorosas se associaram às suas sensibilidade e formação e o levaram a tomar a defesa de Cascais contra tsunamis como desígnio pessoal. Juntou-se a um grupo ecologista regional e foi desenvolvendo atividade política, enquanto ia associando jovens engenheiros ao projeto pessoal e à investigação adaptada a Cascais do que os japoneses já faziam.

Ganhou a Câmara nas eleições autárquicas de 2037, com o lema de campanha “Salvar Cascais”. A mensagem era a de que, mais tarde ou mais cedo, haveria outro grande terramoto ao largo da costa portuguesa e haveria que tomar medidas o quanto antes.

Em meados do segundo mandato, a Câmara lançou a discussão pública de um grande projeto, que envolvera muita gente e muitos estudos, até com a participação de experimentados engenheiros japoneses.

A discussão não foi fácil. O preço era proibitivo e obrigava a autarquia a endividar-se. A Comunicação Visual chamava-lhe projeto megalómano, quando havia tantos pobres no concelho e tantas empresas em dificuldades. Megalómano e inútil, porque era gastar rodos de dinheiro numa eventualidade que não dava mostras de acontecer, havia 300 anos. Também foram levantadas muitas dúvidas sobre o aspeto e a viabilidade de utilização das praias da zona e dos danos para o turismo que a obra acarretaria.

O concurso de construção foi lançado no início do terceiro mandato e a obra ficou concluída seis meses antes de a autarquia mudar de mãos. Era constituída por duas séries de estruturas submersas que seriam acionadas automaticamente pela força tremenda do tsunami.

Numa faixa compreendida entre os 700 e os 1000 metros da costa, elevar-se-iam, nessa eventualidade, centenas de vigas metálicas articuladas, como pernas submersas, de perfil em T, de dois metros de largura, dobrando-se, com o empurrão profundo da vaga a fazer elevar o “joelho” aos cerca de 20 metros acima do nível médio do mar, em ângulo de 70 graus, que constituiriam a primeira defesa contra a onda inicial. Não para a travar, mas para a desorganizar. O corpo firme de cada viga atenuaria um pouco a força inicial, mas seria sobretudo a localização desfasada da rede de vigas que introduziria micro-movimentos contraditórios na vaga, que quebrariam a sua força.

A cerca de trezentos metros da costa, e desdobrando-se em leque, erguer-se-iam, então, aos 17 metros, forçadas igualmente pela força marinha, duas barreiras solidárias de grossas, mas leves, placas de cimento, reforçadas em ambas as faces com uma malha de fibra de vidro, resistentes à água e aos impactos, que funcionariam como parede inultrapassável, fortalecendo-se mutuamente.

Nada da estrutura era visível, mesmo na maré baixa e qualquer veraneante pôde continuar a usufruir das excelentes praias da zona, mesmo da Praia dos Pescadores.

A obra era grandiosa e, admitamos, megalómana. O seu obsessivo proponente conseguiu o que procurava, mas o esforço deve ter sido demasiado. Morreu três anos depois, dizia-se que com alguma amargura.

A 11 de março de 2071 ocorreu um acontecimento sísmico semelhante àquele para o qual tinha sido pensada a obra de proteção de Cascais. O epicentro do sismo de grau 8,4 da escala de Richter situou-se a 90 quilómetros a oeste do cabo Espichel e a 30 quilómetros de profundidade. A onda chegou à vista da Vila com cerca de 14 metros de altura. A maior parte do sistema de placas desenrolou-se conforme o esperado, aproveitando a força da onda, mas, talvez, um quarto não deu sinal de si. Tinham passado muitos anos sem manutenção. A parte da estrutura que funcionou, bem alicerçada e inclinada para o mar, resistiu e quebrou bastante o embate, mas houve parcelas da onda que, aqui e ali, avançaram pela baixa adentro, atingindo os três metros de altura. Muita água chegou a vários pontos da Vila, mas de fluxo e força nada comparáveis com os que teria sem o sistema anti-tsunami. Não houve mortos, só grandes inundações nas áreas baixas, com os correspondentes prejuízos materiais.

Do mesmo não se podiam confortar cidades como Setúbal e Lisboa e toda a linha do Estoril. As imagens que chegavam a toda a gente, de maneira torrencial, eram mais do que confrangedoras, avassaladoras. Outro “tsunami de 1755” tinha acontecido.

Muitos cascaenses se lembraram então, do esforçado Presidente da Câmara e da sua luta obsessiva e titânica. E às dezenas foram visitar o cinerário coletivo no Alto dos Gaios, onde se dizia que tinham sido vertidas as suas cinzas, e agradeciam silenciosos e de cabeça baixa.

Joaquim Bispo

*

Ilustração: Imagem de Inteligência Artificial, gerada ao comando de “Onda enorme ameaça Cascais, ao estilo de Turner”, 2023.

* * *





segunda-feira, 22 de maio de 2023

Bela a Filha, Belíssima a Mãe

 


Difícil não considerar certas inversões da ordem natural como uma depravação existencial ou divina, e dentre tantos casos manifestos cita-se o dos filhos que morrem antes dos pais. Embora o exemplo a seguir seja menos atroz e aviltante, ele igualmente demonstra ao ser humano a sua cômica e trágica posição no tabuleiro da vida, também a sua impotência, pois apesar dos incontáveis métodos destinados a embelezar homens e mulheres, nenhum é eficaz contra os que se revelam ocorrências emblemáticas desse princípio, como quando a filha perde em beleza para a mãe.

Assim deu-se com Isabela, linda desde o nascimento, linda até o morrer e o após. Compridos, lisos e claros, seus cabelos assemelhavam-se às quedas da água em uma cachoeira, os olhos a despontar feito rochas luminosas que porventura marcassem o precipício. Ao contrário da boca, carnuda e, porém, inocente, eram olhos lascivos, afeitos à carne e conhecedores dela, e se não fosse a silhueta de menina, as costelas e os quadris de criança, seria de uma beleza afrontosa aos deuses ou aos números.

E igualmente bela era a mãe, Gertrude.

Modelo original de mulher, além do rosto encantador Gertrude manifestava tantas curvas quanto exigia o esplendor, e tantas reentrâncias quanto suportava o imaginário de homens e astros. Quem sabe por ser a perfeição fruto de sua desmedida e independente vontade, amaldiçoou-a a fortuna com uma bela, mas não tão bela, filha, e malgrado as gafes ouvidas pelas duas, como quando confundiam-nas com irmãs ou amigas, ou como quando mais elogiavam o perfil de Gertrude, o relacionamento entre elas era primoroso e pacífico, contrário ao suposto mito da rivalidade feminina; e quem sabe se por entender a superioridade estética da mãe como efêmera e temporária, afinal Gertrude haveria de envelhecer, Isabela não se afetava, ou não demonstrava ser afetada, pelo segundo lugar.

Assim viviam, e viveram, em harmonia, mesmo quando o tempo, contestando o tácito entendimento de que os dotes físicos de Gertrude haveriam de definhar antes dos primores juvenis de Isabela, ampliou o abismo de beleza entre as duas – abismo este fundamentado em rugas, estrias e pelancas, em sinais ou manchas e na flacidez da pele, mas um abismo que, com a licença da razão, pendia para o lado de Isabela, pois Gertrude conservava-se idêntica não obstante os anos, não obstante as décadas. Tamanha transformação manifestava-se em novas indiscrições, em gafes cuja imprudência, se destinadas a outras mulheres, às intolerantes mortais, resultaria em agressões e ofensas – dir-se-ia quando acreditavam ser Isabela mãe de Gertrude.

Conquanto os enganos e comparações de terceiros, ou o ofensivo contraste entre mãe e filha, amavam-se elas de amanhã à manhã, amigas e companheiras de sempre, e não se pense que com a idade Isabela conheceu da feiura e decrepitude. Não, continuava linda, linda acima das outras, só não acima da mãe, e é de se indagar se o seu dote não era, ao invés de virtude carnal, o da plenitude interior, a faculdade de aceitar a natureza, as circunstâncias e o acaso e, a despeito das angústias e consternações, gozar da vida em sua totalidade.

Contrapartes à excelência visual de Gertrude, assomavam nela, com a idade, as falhas e deficiências características aos mais velhos, súbitos esquecimentos e desequilíbrios infantis, devaneios e distrações, o último e fatal deles ocorrendo ao descer um degrau. Acompanhadas dos familiares, visitavam elas pontos turísticos estrangeiros, e ao pisar de mau jeito, ao contemplar a união do oceano com o horizonte, Gertrude desestabilizou-se, abriu os braços em desespero e pendeu rumo à escadaria. No meio instante anterior à queda, Isabela assistiu a mãe esvoaçar e, em câmera lenta, tombar para trás, e se não esticou as mãos e salvou-a foi porque nunca antes a vira tão sublime.

Durante o velório, com estranhos e fugidios sorrisos, Isabela não disfarçava a sua felicidade.


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sexta-feira, 19 de maio de 2023

É querer muito

 



Mesmo com dores fortíssimas ela foi mandada para casa três vezes, em três semanas seguidas: “A senhora não tem nada, dona Alzira. Volte para casa e descanse. Isso é mal de preocupação”. A voz do médico me doía, porque vó, no mesmo compasso, gemia baixinho, se contorcia e se encolhia que nem embuá atacado, para “não incomodar o povo”. Ali, eu tinha dezesseis anos. Não podia fazer muito, a não ser chorar, para tentar comover aquela ruma de gente que passava de branco, de um lado para outro, já cansada de tudo. Lembro-me que uma senhora, que cuidava de uma criança, chegou perto e nos perguntou se poderia ajudar. Vó respondeu que estava tudo bem; que “o menino” chorava porque era “manhoso”. “Criado por vó, sabe como é, né, minha filha?!”. A minha raiva no momento era deixar como estava, não mexer mais em nada, já que ela queria o fim. Contudo, vinham, no instante seguinte, o peso na consciência e o medo da solidão. “Se vó morrer, tô lascado… Meu pai não quer saber de mim. Minha mãe morreu. Não tenho chance, morro também”. Colei na perna de um médico. “Menino, o que é isso, me solte agora, ou vou ter de chamar os seguranças!”. Soltei-o, mas caí de joelhos, com as mãos postas, em sinal de súplica: “Por favor, doutor, minha vó está morrendo. Não tenho mais ninguém. Cuida dela pra mim”. Ele me levantou do chão, confuso, colocou-me numa cadeira, ao lado de vó, e fez um montão de perguntas. Parece que eu a sensibilizei; ela já não respondia por si; estava, agora, preocupada com o neto, o único neto, que ficaria, se ela morresse, entregue às maldições do mundo. “Doutor, minha barriga tá embolando, as tripas se apertam, fico em ares de ter um passamento… O senhor é um filho de Deus, me acuda!”. O médico, enfim, relaxou a cara amarrada, olhou para os lados e chamou uma assistente. “Essa senhora deveria estar na emergência. Prepare os papéis para transferi-la. Ela vem para a minha sala para avaliações clínicas”. A senhora que estava com a criança, sorridente, me olhou e deu uma piscadela; talvez a primeira fã do espetáculo que montei. Fomos à sala do médico e lá compreendemos a gravidade. “Olha, Sra. Luiza, há decerto uma inflamação na região abdominal. Noto a presença de algum corpo estranho, que pode estar comprometendo o funcionamento regular dos órgãos. Vou pedir exames de imagem”. Vó, apesar da dor, se sentiu gente aí; revigorou até a fisionomia; havia interesse e curiosidade. Sendo caso de emergência, esperamos o tempo mínimo: oito horas no corredor do hospital. Vi gente sendo carregada, com perfuração na barriga, sangue escorrendo pelo chão; vi ressuscitação, com choques elétricos; vi um velhinho morrer no colo da filha. Para mim, a demora era penosa, estava comendo tempo precioso de vida. Um senhor, com a perna esfacelada, esperava há dois dias vaga para fazer a cirurgia. Ele gritou – de raiva, não de dor – dizendo que vendia a moto para pagar a cirurgia – coitado, desesperado, num hospital público. Já me preparava para dormir aí uma eternidade. Por sorte, vó conseguiu fazer o bendito exame. Ainda demoraria para sair o resultado. Eu preferia que ficássemos um, dois dias, para resolver de uma vez. Às onze da noite o resultado exame saiu e foi direto para as mãos do médico. Ele nos chamou e disse que tínhamos sorte, porque hoje era o seu dia de plantão e, por isso, poderia assumir a demanda. Vó gemia e agradecia, espremida, se vendo de dor”. Só assim, confirmado o quadro, mandou que ela tomasse doses pesadas de analgésico. Em seguida, me chamou no canto e contou: “Você é um menino responsável… Fique o máximo de tempo que der com a sua vozinha: ela está com câncer. Não creio que dure muito, mas faremos o possível para que não sinta dor”. Enquanto vó recebia a medicação, eu varava pelos corredores do hospital, com as mãos na cabeça, pedindo que Deus me ouvisse; se fosse de levar “voinha”, que me levasse junto. Morri um pouco a cada dia, nos dezessete que permanecemos no hospital. Ela foi mandada para casa, para morrer, porque “nada mais pode ser feito. Sinto muito, João. Seja forte. Você é um menino ajuizado. Conte comigo em alguma precisão”. Acompanhei a mulher se desmanchar em casa. Ela tinha uma fraqueza na barriga e se esvaía em sangue. De minha parte, queria que vó partisse, de uma vez por todas; não aguentava mais vê-la sofrer. Ela morreu no sétimo dia. Tive de chamar uma vizinha, a Cida, para preparar o funeral. Foi rápido. Tudo que eu precisava era bolar um plano para sobreviver. Cida prometeu que, enquanto pudesse, me daria um prato de comida por dia; não mais, pois não podia. Nunca me escorei. Primeiro, comprei umas frutas, com um dinheirinho que vó guardava, e fui vender nos sinais. Aprendi a ser paciente, a ter humildade e a saber conquistar. Alguns compravam por pena, dava para ver; outros, para se verem livres da minha cara de abandono. Nunca fingi. Usei somente a arte a meu favor. Pouco tempo depois conheci a Jana – Janaína Santos –, uma puta atriz, que me chamou para acompanhá-la nos seus eventos. Ficamos amigos e logo ganhei a sua confiança. Subi ao palco pela primeira vez em 02 de maio de 2003. De lá para cá, muita emoção e suor. Hoje, vivo dignamente na mesma casinha de vó, para não me apartar de seu cheiro, de suas lembranças. Tenho certeza: ela, divina, providenciou as melhores oportunidades. Claro, é um dom, mas também é querer muito viver.






quarta-feira, 17 de maio de 2023

Pacto de senhores - poema de Marina Grandolpho.

PACTO DE SENHORES



cotidianamente observamos
a celebração de um fatídico
acordo de senhores,
tratando do destino de
meninas moças senhoras

no noticiário
: todo dia
mulheres e meninas
violadas
agredidas
assassinadas

todo
santo
dia
mas nenhum pio
dos senhores

silêncio,
por favor!
pacto
— e o horror.









sábado, 13 de maio de 2023

Uma amiga

 

Uma amiga

Um homem, vestido como se estivesse a contracenar nalgum palco, dos muitos que existiam em teatros da cidade, caminhava, trôpego, ao sabor da corrente humana. Ia alheio a tudo e a todos. Deixava-se levar, como se nada já o interessasse.

Naqueles preparos, e escondido atrás de uma máscara, personificava a figura de um velho, talvez próximo da loucura, que carregava, dolorosamente, o peso dos anos. Pelo aspecto, parecia realmente um velho e louco. Na realidade, não era nem uma coisa, nem outra. Não tinha sido o passar dos anos, mas as recentes agruras da vida que lhe tinham deixado profundas marcas no corpo e, especialmente, na alma. A barba crescida, o cabelo desgrenhado, a sair dum amarrotado chapéu, a magreza do corpo e as exóticas roupagens, não deixavam ninguém indiferente à sua passagem.

Mesmo na sua louca correria, os passantes, não deixavam de lançar um olhar interrogativo e admirativo para aquela estranha figura. Tinha grandes parecenças com o cavaleiro da triste figura, embora, mais a preceito: com um cavaleiro da figura triste. Também podemos afirmar que, se ele chamava a atenção dos outros, os outros para ele, seguiam à margem da sua indiferença.

─ Ó António! ─ ouviu-se gritar uma voz feminina, por cima do barulho próprio do vai e vem dos transeuntes.

O interpelado, olhou para o sítio de onde veio o chamamento, reduziu o andamento e parou no passeio, à espera da mulher do grito. Um ligeiro movimento da cabeça e um franzir da testa, davam a impressão de que ele não estaria a reconhecer quem seria aquela pessoa que o tinha chamado.

─ Bom dia, meu amigo! Há quanto tempo. Onde vais com tanta pressa e vestido com essas roupas? Vais a algum teatro de rua ou agora andas também a fazer de estátua? ─ disparou de rajada. E, sem esperar de resposta, continuou: ─ Não tenho nada contra aquela malta que ganha a vida dessa forma, mas não te estou a ver parado ali horas e horas. Tu és um homem de acção, de movimento. É certo que nos temos de adaptar às vicissitudes da vida. É verdade que e a vida agora parou e nós temos de andar.

─ Ó meu Deus…não posso acreditar…És a…

─ Mas…, porque vais tão disfarçado! – antecipou-se a mulher. ─ Será uma forma de luta? Será outra coisa qualquer? Ou será que queres passar despercebido? Se é isso, digo-te que, até eu, tua amiga e companheira de muitas lides, só te conheci, vê lá, pelas mãos. Estás irreconhecível.

─ Júlia! Que agradável surpresa, não sabia que já tinhas regressado, por isso, não te reconheci de imediato. Também estas máscaras iludem-nos, um pouco. Porque não disseste nada?

─ Afinal não me enganei, és tu! Cheguei há poucos dias e encontrei a vida da cidade virada do avesso. Ia procurar-te assim que tivesse a ideias mais arrumadas. Fomos todos apanhados pelo olho deste furacão. ─ respondeu, muito contente, mas meio atrapalhada e com um tom de voz a roçar a desculpa.   

─ Compreendo. ─ disse  o amigo, num tom magoado, E num repente, numa inflexão de voz, própria de grande um actor, atirou: ─ Querida amiga, há quanto tempo. Perdi o contacto desde que foste para Nova Iorque e com essa máscara nem te reconhecia, se não falasses. Parecemos seres do outro mundo, não conseguimos distinguir os rostos atrás das máscaras.

─ É verdade, e nós até estamos habituados a conviver no nosso dia-a-dia com a caracterização, ou não fossemos, nós, artistas do teatro.

─ Pois é, mas parece que com esta maldita pandemia até nos esquecemos de que estamos a viver a realidade. A vida, para nós actores, tornou-se na própria ficção… mas não é ficção nenhuma, não tem fim escrito.

─ Mas ainda não me disseste o que andas a fazer assim vestido?

─ Ficção, por ficção, apeteceu-me andar por aí caracterizado, estamos na era da máscara, porque não andar vestido como se vivêssemos noutra época, encarnando um personagem de outros tempos. Sempre fujo um pouco à realidade. Finjo, ou não fosse eu um actor.

 ─ Estranha época a nossa. ─ disse a Júlia.

─ E, além disso, chamo a atenção para a nossa tragédia. Para a situação limite em que nos encontramos, para o eminente desastre. Temos reescrever esta peça de teatro em que foi transformada as nossas vidas.

─ Vá, vamos ali àquele café, tem esplanada e tudo, assim estamos mais à vontade. Aproveitamos e pomos a conversa em dia.

─ Deixa lá, fica para a próxima, estou com pressa. Tenho de ir tratar de uns assuntos inadiáveis, estou em cima da hora.

Estás a brincar comigo, não me consegues enganar, mesmo escondido por essa máscara, os teus olhos dizem tudo. Ainda não me esqueci de ler atrás do visível. Que assuntos?

─ Espertinha, o que é que vês, diante de ti? Um louco, a combater outras loucuras…

─ Não, não vejo nenhum louco, vejo um artista destes tempos, apanhado pelo desconhecido, por um presente virado ao contrário e por um futuro a sumir-se no infinito. Vejo um amigo a quer fugir de tudo, a desistir.

─ Bom dia! ─ saudou o empregado da pastelaria.

─ Bom dia! Dois cafés. Queres um bolinho acompanhar? ─ perguntou a Júlia.

─ Não obrigado, fico-me pelo café, minha querida amiga.

─ António, o que tens feito nestes últimos tempos?

─ Nada, a companhia desfez-se, sem espectáculos e sem subsídios, nada mais nos restou do que ir cada um para seu lado.

─ Então e o subsídio do estado para a cultura? Não te calhou nada em sorte?

─ Na primeira fase do confinamento ainda recebi alguma coisa, que deu para aguentar estes tempos de agrura, mas nesta segunda fase, dizem que estão a estudar as situações. Até ao momento, nem um ceitil para amostra.

  E como é que te tens aguentado?

─ Só Deus e eu é que sabemos. Um dia, quem sabe, talvez nas minhas memórias. Até lá, nem às paredes confesso…bem, agora tenho de ir embora. Ofereces-me o café?

Júlia seguiu, com o olhar, o amigo e companheiro de profissão. Um olhar carregado de preocupações, à mistura com uma sombra de angústia e medo.

Foi a primeira vez que António deixou de pagar o seu próprio café. Era estranho, porque ele fazia ponto de honra que cada pagasse o seu, não custava nada e ninguém saía sobrecarregado.

Naquele dia pediu à amiga que fosse ela a pagar.

Uma onda crescente de suicídios tinha tomado conta de número já muito significativo de pessoas, apanhadas nas malhas do desespero.

«O António, não! Era um lutador. Toda a sua vida tinha sido feita a pulso. Não seria, com toda a certeza, o terramoto social e laboral que o iriam destruir. Tudo aquilo que conquistara, a fama, o prestígio, a situação financeira, tinha sido obra dele e não favores ou benefícios. Nunca se vergara. O palco era o universo e ia para além dele, era o infinito.»

 E foi aqui, chegado a este ponto, que Júlia se sobressaltou ainda mais, sem palco, o infinito tinha fim e os actores também.

Levantou-se, pagou os cafés e correu, voando, atrás do amigo.

 

 

 





quarta-feira, 10 de maio de 2023

Violeta


 

No Salão Dourado, eu a observava sentada no sofá em estilo francês. Não olhando diretamente, mas por meio de um dos belos espelhos do salão. O reflexo dos lustres, do ouro que impregnava as paredes e a estrutura do banco, emolduravam a beleza dela. O Marido, o General Vidal trocava ideias com políticos locais, quem sabe falassem do interesse do país, que se declarava neutro em relação a Grande Guerra, na relação com os regimes fascistas da Europa. Ele a esqueceu no meio das senhoras mais velhas, preocupadas em desfilar os vestidos e chapéus, da última moda em Paris.

Faltava pouco tempo para a abertura da cortina de acesso ao palco principal. Mais uma vez o Teatro Cólon receberia a Ópera Aida, de Verdi, e foi justamente logo abaixo do busto de Verdi que eu me posicionei, estrategicamente, para vê-la passar pelo Salão de Bustos. Segui seus passos até a entrada do Salão Branco. Deste ponto não pude passar, restando-me a alternativa reservada para o meu nível social, se houvesse como defini-lo. Ela se instalou no balcão destinado às autoridades, ao lado do marido. Eu me posicionei por detrás das baignoires.

Ela conservava a mesma beleza dos seus dezoito anos. Lembro muito bem do brilho em seus olhos quando dançamos aquele tango no Café Beloni. Eu, já mais maduro, fazia minhas apresentações ao público e como parte do show, dançávamos com pessoas da plateia, ensinando um pouco do que sabíamos.

O número de pessoas com que fiz par é incontável, mas ela foi especial. O sorriso disfarçava um pouco de sua timidez. Aceitou dançar depois da insistência da irmã mais velha e da permissão do pai, um velho soldado a serviço do Governo.

Toquei sua cintura e parecia que o local havia sido feito para as minhas mãos. Eu morreria ali. Aproximei-me de seu rosto e o perfume em seu pescoço era inebriante. Pude perceber o arrepio em seu corpo quando joguei seu corpo para trás e com a mesma intensidade o trouxe de volta ao encontro do meu. Ela suspirou suavemente e tentou manter-se indiferente.

O bandoneón marcava o ritmo e os violinos acentuavam a melodia do tango de Gardel: Por una cabeza. Meu desejo era de que aquele momento fosse eterno, porém a triste melodia chegou ao fim e, desde então, começou um duro, porém doce período da minha vida. Ainda me lembro daqueles olhos negros me observando, numa leve torção da cabeça olhando para trás no momento em que ela saia do Café com a família.

Alguns anos mais tarde um novo governo assumiu o poder, depois do golpe militar de 4 de junho, e o pai de Violeta tornou-se uma das figuras mais poderosas e respeitadas de nosso país. Eu, juntei-me aos revoltosos que abominavam o regime ditatorial imposto à população. Isto aprofundou ainda mais o abismo que existia entre mim e a bela moça.

Certo dia quando eu subia a Cerrito, encontrei-me com ela que caminhava com outras duas jovens. Entreguei para as três jovens algumas das rosas que eu vendia para juntar alguns trocados. Para ela escolhi uma rosa vermelha. Antes de entregar, sorvi um pouco do perfume da flor. Ela sorriu e perguntou-me:

 Além de dançarino também é florista? Realmente sabe como encantar as mulheres!

− Nessa vida, me interessa encantar apenas uma mulher. Eu aceitaria qualquer desafio para conquistá-la. Enfrentaria mesmo um exército com tal objetivo – respondi, contente por ela ter me reconhecido.

 Um exército inteiro? Que tal começar pelo noivo dela, o sujeito a nos observar da esquina? – Observou uma das amigas.

Cumprimentei o sujeito à distância, com um gesto de meu chapéu. Pelo uniforme, percebi tratar-se de um coronel. Um sujeito bem mais velho que a garota. Ela sorriu e seguiu seu caminho na companhia das amigas até encontrar-se com o seu noivo.

No dia seguinte, no mesmo horário, voltei para o mesmo local do dia anterior com meu cesto de flores, na esperança de encontrá-la. Esperei por um longo tempo, até que vi ao longe uma jovem que caminhava com o rosto encoberto pela sombrinha, que a protegia do sol daquela bela e agradável tarde de primavera. Os plátanos já haviam se coberto de novas folhas e embelezavam a avenida para o desfile daquela bela mulher.

Ela se aproximou e cumprimentou-me. Escolhi uma nova flor e entreguei a ela. Sutilmente ela colocou em minhas mãos, no momento de apanhar a flor, um papelzinho muito bem dobrado. Não sorriu, disfarçou o olhar e seguiu em frente. Acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na esquina. Antes disso, ela virou-se e fez um leve aceno, balançando a luva que segurava em sua mão.

No bilhete pedia que eu me encontrasse com ela na Basílica de Nossa Senhora do Pilar, no dia seguinte. Não dormi naquela noite e cheguei ao local com uma hora de antecedência.

Ela chegou no horário marcado, acompanhada de uma das jovens com quem caminhava no nosso primeiro encontro na Cerrito. A outra moça permaneceu nos fundos da igreja, enquanto Violeta sentou-se ao meu lado num dos bancos, próximo do altar. Rezou por alguns instantes, depois sussurrou um convite para que fossemos até o Cemitério da Recoleta. Pediu que eu fosse na frente.

Caminhamos por alguns minutos entre os jazigos e túmulos de figuras importantes na história da Capital. Trocamos algumas informações sobre nossas vidas. Enquanto caminhávamos lado a lado, minhas mãos roçaram nas dela e ela segurou na minha. Aproximei sua mão de meus lábios e a beijei. Ela aparentemente torceu o pé e caiu em minha direção. Nossos rostos ficaram próximos e eu toquei seus lábios suavemente. Ela abraçou-me por alguns instantes para logo em seguida afastar-me, com leveza. Pediu que retornássemos e permaneceu calada até nossa despedida já na praça em frente à Basílica.

Não houve um só minuto em que eu tenha deixado de pensar nela, nos dias que se seguiram. Ela não voltou mais ao meu ponto de vendas. Nas apresentações de tango eu tentava enxergar em cada parceira de dança a bela Violeta.

Depois do trabalho durante toda uma madrugada, eu perambulava pela Posadas quando o jornaleiro começava a distribuir o El Mundo.

Comprei um exemplar. A primeira página era estampada pela fotografia de Violeta ao lado do Coronel Vidal. O casamento, anunciado para o mês seguinte. Senti ainda mais raiva daquele governo e, em especial daquele sujeito de feições rudes e ar arrogante.

Dediquei-me ainda mais ao movimento oposicionista e por várias vezes estive muito próximo da morte. Perdi muitos companheiros de luta. Consegui manter-me protegido por detrás das minhas ocupações, fingindo simpatia a classe dominante. Com isso abastecia de informações meus companheiros.

Vidal teve uma carreira militar meteórica e em pouco tempo tornou-se general, guiado pelo pai de Violeta, que já estava a mais tempo no maior posto do exército. Vidal ganhou expressão política e era um dos fortes candidatos à sucessão presidencial. Eu, tornei-me um dos líderes do movimento, planejando nossas ações.

Naquela noite, enquanto o público, a elite do país, assistisse a ópera de Verdi, a carreira de Vidal chegaria ao fim. Eu havia depositado a minha arma em um local remoto em uma das salas do imenso subsolo do Teatro Colón. Ele morreria diante de todos e eu desapareceria através de uma passagem secreta.

Todos já haviam tomado os seus lugares. Me posicionei também. Por detrás das grades de bronze da baignoire, analisei todos os ângulos. Eu teria uma única chance.

Ele sorridente, estava muito próximo de Violeta. Sentavam-se na primeira fila do balcão do segundo pavimento, espaço reservado para as autoridades. Eu teria que ter muito cuidado para não a atingir. Eu confiava no treinamento dos últimos meses, porém era preciso esperar pelo momento certo. Já se haviam encerrados três dos quatro atos da ópera e eu ainda não havia encontrado a oportunidade. Meu corpo estava todo suado e a boca amarga. A ansiedade me desgastava.

Ela parece irritada e ele levanta a voz. Os dois saíram do balcão. Por um momento pensei ter perdido a oportunidade de livrar o país daquele sujeito. Violeta também ficaria livre.

Vidal voltou sozinho, com ar contrariado. Perfeito! Era o que eu precisava. Preparei a mira, concentrei-me.

No palco, Radamés se despede da vida e de sua amada. Aida surge para morrer em seus braços, enquanto Amneris reza por Radamés no templo de Vulcano. Neste momento, da cúpula do teatro, por detrás da grande aranha central, o coro entoa os cânticos dos sacerdotes e a acústica do teatro espalha o som com perfeição. Para mim mais parecia um coro de anjos que anunciava a vontade do Senhor e que eu estava fazendo a coisa certa: vingaria a morte e tortura de muitos de meus amigos. Talvez isto aliviasse o meu pecado. “Paz!”, pedia a ópera!

O quarto ato e o espetáculo chegavam ao fim. Seria agora. Preparei o dedo no gatilho. Por um breve instante tremi. Interrompi o movimento quando percebi um corpo cair da caixa do palco do Paraíso e em seguida ouvi o baque surdo do seu impacto contra o piso do teatro. Violeta dava fim a sua vida.

Um sentimento de culpa, misturado ao de insignificância tomou conta de mim. Talvez eu não tenha me esforçado para conseguir representar algo na vida de Violeta ou quem sabe fui muito menos do que imaginei. Não fui um motivo para que ela desejasse continuar vivendo, nem rápido o suficiente para livrá-la de Vidal.

Depois de um instante de silêncio, a perfeita acústica do teatro distribuía o som do burburinho que se formou. Lembrei do nosso tango, dançado naquela noite em que ela desabrochava para a vida em sociedade e em minha mente se repetia a frase final da canção:

“Si ella me olvida, qué importa perderme mil veces la vida. Para qué vivir”.





terça-feira, 9 de maio de 2023

Solidão da Pandemia?


 

A D. Mariazinha estava cada vez mais confusa com o que ouvia nos noticiários. Já se arrependera até mil vezes de lhes ter começado a prestar atenção, mas nas últimas vezes em que saíra entrara ligeiramente em pânico com as conversas que escutara nas lojas onde fora comprar as suas parcas necessidades e decidira que talvez fosse melhor informar-se devidamente, em vez de se limitar aos programas de entretenimento da manhã e da tarde que eram a sua única distração. Ainda temeu ter de ficar a pé até mais tarde para poder ver as notícias, mas descobriu encantada que havia noticiários a todas as horas e para todos os gostos.

Percebeu pois que as coisas estavam bem feias e que se aconselhavam as pessoas, sobretudo as mais idosas, como ela, a não saírem de casa. Por ela tudo bem, pouco saía, mas vivendo sozinha e sem família na vila, como faria para se abastecer? Ainda por cima só podia trazer poucas coisas de cada vez, a paragem do autocarro ainda ficava longe, especialmente para alguém com dificuldades de locomoção, e o uso da bengala limitava muito o número de sacos que podia transportar.

Com grande espanto seu, esse problema foi-lhe resolvido sem ela bem saber como. Um dia, quase no início, e precisamente quando debatia mentalmente se devia ou não arriscar uma saída para ir comprar algumas coisitas que tinham acabado, tocaram-lhe à porta. Ainda hesitou, nunca se sabe quem aparece e uma velhota sozinha precisa de ter cuidado, mas estava-se a meio da manhã, mal seria que fosse alguém com más intenções – sim, a D. Mariazinha ainda era do tempo em que a noção de crime estava associada à noite, em particular a altas horas da noite...

Afinal eram três jovens que se identificaram como sendo da paróquia e que andavam a verificar as pessoas idosas da zona e o apoio que teriam nestes tempos conturbados.

Mandou-as entrar, claro, há muito que não tinha visitas mas hábitos aprendidos na juventude dificilmente desaparecem, oferecendo-lhes até um chazinho de camomila, o único que tinha em casa, chá “a sério” dava-lhe insónias.

Sendo uma pessoa honesta, apressou-se a informá-las de que nunca ia à missa nem frequentava o centro paroquial, que sabia que existia graças a uma vizinha, a sua única conhecida no prédio, que entretanto se mudara para um lar e com quem perdera o contacto.

Mas as jovens descansaram-na imediatamente, o seu serviço nada tinha a ver com isso, trabalhavam em coordenação com a Junta de Freguesia local atendendo ao elevado número de idosos da zona.

Eram muito simpáticas e a D. Mariazinha gostou imenso de falar com elas, uma grande novidade já que os únicos contactos que tinha normalmente eram com o pessoal da caixa das lojas a que ia e o senhor – muito prestável, diga-se de passagem – que a ajudava com o passe mensal para o autocarro. Até ao médico deixara de ir, para quê, a consulta era rapidíssima, mediam-lhe a tensão e pronto, já estava, passavam-lhe a renovação dos poucos medicamentos que tomava há anos. E que deixara de tomar para não ter o trabalho – e a despesa – de ir ao centro de saúde. Mas continuava sã como um pero, pelos vistos não lhe faziam falta e sempre eram uns dinheirinhos que poupava da parca reforma.

As simpáticas jovens frisaram repetidas vezes que era melhor a D. Mariazinha não sair de casa, a menos que fosse dar uma voltinha na rua à laia de exercício, uma vez que pertencia ao grupo mais em risco. E que nem pensasse em usar autocarros ou outros transportes, eram a maior fonte de contágio.

E para evitar que tivesse de se deslocar, alguém viria semanalmente a sua casa para receber a lista das compras a fazer, que lhe apareceriam depois à porta. Mais ainda, o Presidente da Junta, homem muito ponderado e dedicado ao “seu povo”, organizara uma espécie de rede telefónica para os que viviam sozinhos e que passariam a receber um telefonema diário para saberem se estava tudo bem. Deixaram-lhe também um número que poderia contactar se tivesse algum problema, não uma emergência, claro, para essas havia o 112, mas algo que a preocupasse ou que precisasse de resolver.

As semanas seguintes correram sobre rodas para a D. Mariazinha. Por volta das 9 da manhã recebia o telefonema diário. Nem sempre era a mesma pessoa, mas dava sempre para uns minutos de conversa. E se tinha a sorte de ser a Joana, então podia palrar à vontade sobre coisas da TV, recordações do seu passado – quase sempre da infância e juventude, em adulta pouco vivera, primeiro a cuidar da mãe doente durante muitos anos, depois a vida modesta que a módica pensão lhe permitia ter.

E uma vez por semana, lá aparecia alguém, quase sempre uma jovem, a perguntar-lhe sobre as coisas de que precisava e que apareciam prontamente ainda nesse dia ou, no máximo, na manhã seguinte. Nunca a casa andara tão bem abastecida e sem ter de mexer uma palha! E os jovens que apareciam eram sempre muito simpáticos, perguntavam sempre se podiam ajudar em mais alguma coisa. Até voltara a pedir a renovação da sua receita, sentindo-se afinal bem melhor agora que voltara à medicamentação.

Inicialmente ainda saíra um pouco à rua para o que sempre ouvira o pai chamar “passeio higiénico”, mas as ruas quase desertas por onde passavam ocasionalmente mascarados assustaram-na um pouco, sempre associara tapar a cara a assaltos e roubos, sabia que agora era uma exigência, ela própria o fazia, mas uma coisa é saber, outra bem diferente é sentir. Deixou-se pois ficar no seu aconchego, vendo os seus programas habituais e pelo menos um noticiário diário para se ir mantendo informada.

Mas a sua confusão manteve-se. Ouvia pessoas com um ar muito douto falarem na solidão crescente dos idosos e nos problemas mentais e emocionais que isso lhes iria inevitavelmente acarretar e não entendia. Que isolamento? Desde que isto começara tinha mais contactos semanais do que antes em vários meses. Nunca conversara tanto, nunca tivera tanta ajuda, nunca vivera tão bem!

Bendita pandemia! Que durasse muito, era o que desejava, embora soubesse que isso era um tanto egoísta. Mas iria ser-lhe difícil voltar à solidão e falta de ajudas da sua vida de antes da crise.

Luísa Lopes

Imagem criada com QuickWrite





quarta-feira, 3 de maio de 2023

FLORES DE CEMITÉRIO


 

Entre a vontade ferrenha do sonho

e o bloqueio efetivo do medo,

havia toda a extensão de uma noite

em que eu devia permanecer à porta

de sua casa velando o teu sono e

vendo a morte subterrânea do desejo.

 

Eu não estava sozinho nas ruas

de uma cidade quieta, havia sob os

meus pés toda uma horda de cadáveres

que se arrastavam feito minhocas e

viam com vivo interesse o desfecho

de minhas peripécias góticas.

 

Entre a fachada fechada de sua casa

e os portões de acesso ao cemitério,

havia todo um roteiro desesperado

que eu devia percorrer ao encalço de

minha lucidez no encosto das sacadas

ou seguir bêbado à procura de flores.

 

Eu não estava sorrindo nos bares

próximos a uma praça deserta, havia

solidão e pânico em meus propósitos

quando eu me dirigia ao cemitério e

com as mãos trêmulas sobre o canteiro

eu enchia de flores a bolsa de plástico.

 

Entre a calma indiferença do teu sono

e a obsessão doente da paixão, havia

todo um ritual de poesia que visava

alterar o descompasso entre o amor

caótico que eu sentia e o abismo

de silêncio e luz que te envolvia.

 

E daqui a alguns anos

(findo o mistério),

quando a vida estiver

muito longe e grande

for a fileira de sonhos,

tu então terá a certeza

de ter sido a primeira

a receber flores do cemitério.