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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Arte e Vida Severina


Quando nasceu, um anjo baldio desses que fingem brincar de Deus disse: vai, menino, ser feliz na vida! E ele foi! Desde então vem ele bordando no tecido do tempo sua arte e vida severina. É possível que ele siga as linhas invisíveis do risco de um bordado previamente traçado. Ele pouco sabe. Desconfia apenas de sua sina de tecelão e, graças a ela, entrega-se ao ofício de tramar os fios da vida. Enquanto isso, o tempo, um senhor tão bonito, brinca ao redor do caminho daquele menino.

Lá está ele, menino-criança, entregue às experiências inaugurais, aquelas que pavimentam o chão da memória com pedrinhas de brilhante. É o tempo dos primeiros encantamentos, das primeiras descobertas, dos primeiros sustos, das primeiras letras, da alegria da vida solta, da revoada de primos da mesma idade, das frutas colhidas no pé, do pé no chão. É o tempo da vida miúda na miúda Buriti Alegre, pequenino lugarejo encantado, beira-planalto, nos confins de Goiás. Só quase vereda, mas tão de repente mítico! É o tempo do abandono do pai. Havia no pai um desejo de rio – e o pai se deixou navegar errante pelas correntezas até aportar numa terceira margem.

Um pouco mais, já é um menino-adolescente, entregue aos sonhos impossíveis, aqueles que insistem em povoar o casulo da imaginação. É o tempo dos primeiros conflitos, dos desconfortos com um crescer estabanado, do maravilhamento com as surpresas do corpo, dos primeiros tremores do coração. É o tempo da busca de um norte. Havia no menino um desejo de barco – mas seu coração era bússola desnorteada e o menino aprisionava-se na insegurança e na indecisão.

Mais adiante e ei-lo menino-rapaz, entregue aos sonhos possíveis, aqueles que migraram do casulo da imaginação para o palco da ação. É o tempo do desassossego, do sobressalto, da mudança para uma cidade nova, do desafio do vestibular, da descoberta da leitura, do encantamento diante de tudo que leva a assinatura da imaginação, do mergulho na arte (a arte que sustenta a vida real). É o tempo das grandes dificuldades, dos grandes medos, das grandes incertezas. É o tempo de uma conquista fundamental – o ingresso no Banco do Brasil. É o tempo de uma tranqüilidade financeira inédita para um menino que, junto com a mãe e dois irmãos, vinha cumprindo, sem amargura, sem revolta, o estatuto civil da pobreza. É hora de dizer que havia na mãe um desejo de raiz – e a mãe fez o que pôde para manter seus frutos ao abrigo de sua árvore. 

Ali na curva dos trinta, menino-homem, está ele entregue a uma paixão com contornos de para sempre, daquelas que parecem decretar o início, o fim e o meio. É o tempo de sedimentar conquistas, de se apegar mais ainda à vida e seu incessante cortejo de dor e delícia, de acreditar que nas dobras do ordinário pode estar o extraordinário. É o tempo de ensaiar mais um vôo. Havia no menino um desejo de asas – e ele acabou pousando numa das asas de Brasília, o seu sonho feliz de cidade, de onde só pensa voar rumo ao derradeiro pouso.

Agora, para sempre homenino, está ele entregue à travessia da casa dos quarenta, inteiramente despreocupado com o final dessa travessia. É o tempo da vida tranqüila, da paixão que virou uma amizade mais que amorosa, da calmaria de quem quer muito pouco. É o tempo de apreciar a vida se vivendo nele e ao redor dele. Há sempre no homenino um desejo de vela – e ele cuida de manter seu barco o mais possível na rota dos ventos favoráveis. 

Mas quem é esse menino? É um menino do Brasil que se confunde com outros tantos meninos severinos, iguais em tudo na vida, iguais em tudo e na sina. É um menino brasileiro que não se cansa de ter a esperança de um dia ser tudo o que quer.






quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Nascente



Nado contra a corrente

Todo rio de sujeira

começa em um mar de gente


______________________________



Para acompanhar o poema acima, indico o curta-metragem Ilha da Flores:





terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Premonição


Uma aragem fria varre as ruas desertas.

As folhas secas dançam a dança louca dos objectos inanimados e os animais livres encolhem-se de medo e frio.

A figura negra avança devagar e traz com ela um presságio agourento, abafado, uma tragédia à beira de acontecer. Os animais encolhem-se mais, reduzindo ao máximo a sua presença – se pudessem, desapareceriam por algum tempo.

Há luz mas não se vê o sol, aprisionado nas grandes nuvens pesadas, cinzentas e tristes. Não chove e a promessa de vida que qualquer água contém não alivia o prenúncio de desgraça.

Ao longo da rua as árvores erguem ao céu os esguios braços nus, quais figuras pedindo compaixão a um qualquer deus maldoso. Longas filas de silenciosas suplicantes, tristes e sem esperança, tornam a rua por onde avança a figura um caminho de desolação.

Os pássaros desapareceram. Não há um par de asas no ar e nem um pipilar tímido distrai a atmosfera pesada.

A figura pára. Será que sente, ela própria, a angústia que o seu movimento lento e inevitável espalha? Terá estremecido? Será de frio, será de medo, o seu estremecer?

A silhueta dobra-se um pouco, sobre o malmequer selvagem que, teimoso como só um selvagem pode ser, medrou entre as pedras do passeio. Um pequeno malmequer amarelo que floresceu contra tudo e contra todos, arrancado agora com um gesto seco.

A figura abre o capote que a cobre, uma peça estranha, escura e pesada. Abre pouco, apenas o suficiente para meter a mão com o malmequer. Lá dentro, a criança suspensa sorri e estende a mão, pegando no pé da flor com um cuidado anormal para a tenra idade. A figura fecha novamente o capote impedindo o frio de entrar.
 
No céu esvoaça agora uma andorinha, sabe-se lá vinda de onde.





segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Dia do Juízo Final


Joaquim Bispo



Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, relevem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos – continuem a enviar currículos. Devem estar, por isso, curiosos em saber como decorreu esta edição do Juízo Final. Eu conto:

O Juízo Final deste outono – inverno estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que nessa altura andava distraído com o hobby de desenvolver a peste negra, que foi um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente que Ele é que tinha criado a Evolução.

Desta vez, cumpriu-se a escritura. O cenário, feericamente iluminado, era deslumbrante: em círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins, serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo, santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.

Os pagãos estavam visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio, temendo perder o último transporte para casa.

Finalmente, aí pelas dez e meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo anunciou: «Sua Omnipotência: Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a sessão.»

Como era evidente, julgar todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios, isto falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de defesa aos réus. Deus, para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, anunciou que a sessão era única e inapelável. Na verdade, não houve defesa, ninguém pôde justificar-se e as sentenças foram coletivas.

Por exemplo: «Aí em baixo, toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem – fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei, multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?: abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de inocência. Do tipo: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa que as crianças não engravidem!».

 A seguir, disse Deus: «Todos os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores, desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os fabricantes de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação. Diabo, toma nota: reciclagem!»

Depois: «Budistas, maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos em geral, votantes em salvadores da pátria e outros crentes em milagres – reciclagem! Não conheço gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral. Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver se começam a ter uma ideia de Inferno!»

«Mais: automobilistas, gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios por Mim!»

Apontou, então, para americanos, ingleses, australianos, e outros falantes de inglês de várias nacionalidades, decretando: «por tentarem reunificar as línguas que Eu confundi na Torre de Babel: oito anos de martírio! Diabo, manda aí o teu amigo Bush, contar-lhes as piadas dele!» Pela segunda vez, um “Misericórdia!” rouco saiu de milhões de gargantas.

A sessão ainda se estendeu por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado, adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha dum querubim, anunciando: «Por hoje é tudo. A audiência deste tribunal fica suspensa. Recomeça daqui a dez mil anos, à mesma hora.»

Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e eram milhões as vozes alteradas a exigir que os Juízos Finais sejam privatizados. Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou umas dez semanas. Foi por isso que só cheguei agora. 





domingo, 24 de fevereiro de 2013

QUATRO NANOCONTOS DE EDWEINE LOUREIRO


NO ALTAR

― Eu, João, prometo amar Teresa, digo, Laura...

*

O CORREDOR

Olhava, envaidecido, para o público que o aplaudia, quando tropeçou.

*

PESAR

Lendo sobre o massacre na favela, o prefeito lamenta:

― Quantos votos perdidos...

*

FILMAGEM PORNÔ

― Corta! – gritou o diretor a Lorena Bobbitt.





sábado, 23 de fevereiro de 2013

O Amor 2.0 de Ana

I
- Oi Rodrigo, tudo bem?
- Oi Ana, tudo. O que houve você parece triste?
- Ai eu to cansada de ser sozinho, queria me apaixonar, ter um amor de verdade.
- Não fique triste eu tenho a solução para o seu problema. Tem um novo App para achar um grande amor; Não é site de relacionamento, basta você dizer como você quer o seu parceiro e ele aparece perfeito na sua frente.
- Precisa pagar.
- Não, não precisa pagar nada. É de graça.
- Ai que bom vou testar.

Trrimm
- Oi Ana, O quê? Você precisa de ajuda para instalar o App?

II

- Oi Ana, tudo bem?
- Oi Rodrigo, tudo bem sim. Estou tão feliz com aquela aplicação é tudo que eu precisava, a vida esta perfeita agora. Essas duas últimas semanas foram incriveis.Tenho alguém para fazer as coisas comigo, conversar, que esta ao meu lado quando em preciso e que não é ciumento. Só me preocupo que isso vá acabar um dia.
- Ana é uma aplicação, talvez eles passem a cobrar pelo uso do seu amor, mas enquanto a empresa existir você poderá ficar tranquila.
- É mas, eu queria que durasse para sempre que eu não me preocupasse com que um dia você acabar.
- Ah eu não lembro, mas eu acho que tem um App para isso. Você instala ela e ela garante que os seus outros App vão durar para sempre.
- Sério? Aí que bom. Assim posso viver feliz para sempre. Não sei o que seria de mim sem você... Ah lá vem Daniel, é como eu chamo o meu amor. Preciso ir, nos falamos depois.

III

- Oi Rodrigo,
- Ai Ana, é você? que horas são?
- São 2:30, você pode falar?
- Claro. Nossa quanto tempo, acho que faz uns três meses que não nos falamos. Algo errado?
- Ah é verdade faz tempo mesmo. Ai Rodrigo, to com problema sim. Essa App não esta funcionando direito.
- Pode ser, é uma versão beta, gratuita, você espera o quê?
- Ah mas ele não podem distribuir um App com problemas assim.
- Mas qual é o problema Ana?
- O Daniel, por exemplo, ele deu para gostar de futebol e sai de vez em quando para assistir jogos e beber com os amigos. Eu não quero alguém que goste de futebol e que me deixe sozinha em casa.
- Ana é um App. Ele é criado com base na suas preferências.
- É mas eu não pedi isso.
- O que você pediu:
- Eu pedi um homem, um brasileiro, que não enchesse meu saco, que me entendesse, que saísse comigo, que me desse um espaço de vez em quando e que conversasse.
- Bem, a maioria dos homens brasileiros gostam de futebol, talvez seja isso que o programa entendeu. Ele tem saído seguido?
- Todo mês ele encontra esses amigos.
- De repente é a maneira dele te dar um espaço de vez em quando, não?
- Mas tem que sair para beber e assistir futebol?
- Não dá para ele ficar em casa quieto, sem falar comigo?
- Não sei. Eu acho que esta de acordo com o quê você pediu.
- Ai deixa pra lá Rodrigo. Não sei porquê eu liguei para você. Vocês homens sempre defendendo uns aos outros. E além do mais você não me entende mesmo.

tu. tu. tu.
V

- Oi Rodrigo, como você está?
- Estou bem. E com você?
- Ai, não estou nada bem. Fiz algumas atualizações no meu Amor, mas não estou feliz;
- O que aconteceu?
- Ai, primeiro eu tirei aquela opção de me dar espaço, foi ótimo, no inicio. Depois ele começou a me sufocar, bajular a toda hora. Ia ao meu trabalho sem me avisar. Não podia nem fazer compras com as minhas amigas. Tentei conversar com ela, mas não teve jeito. Ele dizia que me amava e que só queria ficar perto de mim. Afeee, um grude só. Então eu mudei ele um pouquinho novamente. Pedi para que ele continuasse me levando para jantar e fazendo surpresas. Mas ativei o modo social dele, o que permite que compartilhar informações com outros Amores do mesmo tipo para melhorar a performance e que ele saísse de vez em quando sozinho.
- E qual o problema?
- Primeiro descobri que ele anda contando sobre o que nós fazemos para todo mundo. O jeito que eu transo, as nossas fantasias, até o jeito que estou gemendo.
- Mas em geral os homens fazem isso, né? Com seus amigos?
- Ai Rodrigo, estou cansada dele? preciso de um novo amor.
- Porque vocẽ não deleta?
- Porque eles ainda não desenvolveram essa função na aplicação. Preciso esperar até a nova versão.
- Então é só questão de tempo né.
- É mas essa é a pior App que você já me indicou. Como eles não tem a opção de excluir. Tão comum. Até eu que não entendo muito disso, sei que todo App vem com a opção de excluir. Lamentável Rodrigo.
- Olha desculpa, eu só ouvi falar, nunca testei esse App. Achei que poderia ser útil para você.
- É mas não foi. Agora tenho que ficar com um cara que eu não gosto só porque não posso excluir. Ai você e suas Apps Rodrigo. Preciso ir, depois a gente se fala.

V

- Oi Ana é o Rodrigo, você pode falar?
- Oi Rodrigo, claro que posso. Como você esta?
- Estou bem, estou ligando para saber como você esta.
- Estou ótima. Ontem, finalmente consegui excluir o meu Amor. Vou ficar recebendo umas mensagens do sistema de três a seis meses para saber se eu quero voltar, mas já decidi que não, não tem mais volta.
- Ai que bom que você esta bem.
- É estou sim. Ai uma coisa tão simples. Um botãozinho chamado excluir e eles demoraram tanto tempo para criar. Como é que pode né?
- É verdade. É tão simples excluir um Amor... 





sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Para ela, que não virá

Chega. De antemão te peço desculpas por não insistir mais em caber no molde. Eu tentei, me esforcei, mesmo. Namorei sério, morei junto, amei para valer, criei a cena adequada, posicionei os personagens, e não. Suportei cobranças das mais descabidas, desnecessárias e antigas, perdi para a frustração e ganhei dela tantas vezes, segui à risca anos de terapia, mas não consegui. O desejo de dar a passagem nunca nasceu em mim. Não é pessoal, não tenho nada contra quem és ou quem te tornarias. Estou certa de que serias alguém decente e realizada apesar da minha proximidade. Tu, do lado de fora, não me assustas. Meu fracasso está no meio do processo. Minhas mãos suam e algo na região da barriga se retorce quando te imagino ganhando o mundo, descolada de mim. Sofro de pavor, de agonia, de medo de morrer com dor, urrando. São pensamentos assim e outros piores que preenchem qualquer espaço vago que haja para a vontade da maternidade.

As vezes sinto que não seria segura a nossa convivência, pelo menos nos primeiros anos. Tenho tido um sonho recorrente, que me atordoa durante os dias que seguem o episódio: sou eu te olhando bem de perto enquanto dormes, meus braços apoiados no limite do berço, sou eu absolutamente feliz te contemplando. O sol da manhã ilumina o quarto e poucos de vento sacodem a cortina de voil branco. De repente, o calor me invade pelas tripas e sobe até a nuca, entendo que estou prestes a perder o controle e embora queira parar, é outra quem me comanda. É meio que possessão, estou em mim, mas me divido com esse duplo meu, uma louca. Grito forte que a outra não ouse, paraliso, e ela me ignora. Desliza as minhas mãos e age, não posso impedir. Apertamos o teu pescoço até que o contorno da tua boca de recém-parida escureça e teu choro acabe. Então, acordo desnorteada, querendo esquecer, mas é impossível. Não és tu o que me assombra, entendes? 

Difícil de admitir é que a minha parte insana talvez não more lá, em uma casa onírica. É provável que já tenha se mudado de mala, cuia e chinelinhos para a vida real. Tem sido rotineiro vê-la saltar e complicar as coisas. Faz pouco, surtamos. Repetiram aquela pergunta desgraçada, para a qual não sei dar a resposta que exigem com olhos e sorrisinhos maliciosos, “e quando vem o bebê”, me torturam. Que tanto querem saber, afinal? Ela não virá. Não virá. A informação me sai entre dentes. Não sei de onde tirei a certeza de que, caso viesse a gerar, meu broto seria mulher como eu. Me julgam pelas palavras. Dizem que me referir a ti assim já é meu corpo e minha alma querendo a tua presença aqui. Agora. Reparei que meus ossos, seios e cabelos estão diferentes e reconheço que o relógio biológico avança, pedindo também explicações. Perdoa, filha, por não te deixar me atravessar. Por favor, se não puderes entender, minimamente aceita que meu conflito escancara uma covardia tremenda. De um jeito torto, já te protejo, e quase me convenço que isso, por si, vai dando à luz uma mãe. É a melhor que podes ter. Por hora, sigo na combinação anticoncepcional/camisinhas, com todo meu respeito a ti. E a mim.





quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O Telemarketing e o Cronista II


— Devagax, Kátia Demal Comavida, bom dia. Com quem eu falo?
— Bom dia meu nome é Zulmar Lopes e...
— Em que posso ajudá-lo, senhor Lopes?
— Bem, eu ontem fiz um pedido de visita técnica para verificação da nossa conexão e...
— Qual o número com DDD do telefone onde a conexão está ligada?
— (69)1234-5678...
— Um momento, por favor...
Cinco minutos depois...
— Mais um momento por favor...
Dois minutos depois...
— Senhor Lopes, aqui não consta nenhum pedido de visita do técnico ao endereço onde a linha está ligada.
— Mas como? Eu mesmo fiz o pedido ontem e...
— Em nossos registros constam que seu último pedido de visita técnica foi em 30 de fevereiro de 2010...
— 2010? Mas eu fiz o pedido ontem e...
— O senhor vai me deixar concluir?
— Mas é você que está me interrompendo a todo momento! Eu só quero que minha conexão funcione! Está tudo parado há quase 24 horas e...
— O senhor não precisa se exaltar. O senhor não está falando com nenhum dos seus subordinados.
— Que subordinados, minha filha?
— Meu nome é Kátia, senhor.
— “Minha filha” foi uma forma de tratamento gentil, por favor.
— Senhor Lopes, assim eu serei obrigada a encerrar o atendimento já que o senhor está sendo irônico...
— Mas como irônico? Eu só quero a nossa conexão funcionando.
— Se o senhor continuar com essas ironias, terei que encerrar o atendimento.
— Mas que ironia? Pelo amor de Deus!
— Sua respiração foi uma demonstração de deboche.
— E eu vou ter que parar de respirar agora? E esta pergunta não é em tom de deboche, ok? Vamos fazer uma coisa? Vamos recomeçar o nosso diálogo do zero?
— Se o senhor me deixar concluir...
— Então conclua, por favor.
— Como eu estava dizendo antes de ser bruscamente interrompida, sua última visita técnica agendada foi no dia 30 de fevereiro de 2010. Aqui em meus registros consta que ontem o senhor pediu o conserto de sua conexão de banda larga. Nossos técnicos estão verificando a viabilidade de conserto direto. Em caso de impossibilidade aí sim será agendada uma visita.
— Kátia, posso perguntar uma coisa? Não estou sendo irônico.
— Claro que pode, senhor Lopes.
— Fui informado que o meu caso deveria ser resolvido em oito horas. Já faz mais de um dia que eu estou sem internet. Como podemos resolver este problema?
— Recomendamos que o senhor aguarde. Farei um pedido de urgência para o seu protocolo aberto. Quer anotar o número?
— Claro que sim! E não estou sendo irônico, ok?
— o número é. 39485945008772298569020985874040339475767455587783948559-3. Anotou?
— Sim, sim. Mais uma coisa: vocês têm uma Ouvidoria?
— As reclamações só podem ser feitas através do nosso site.
— E como eu vou acionar o site se eu estou sem conexão?
— O senhor está sendo irônico de novo, terei que encerrar o atendimento.
— Não! Por favor! Peço desculpas, ok? Você aceita? Sem ironias.
— O senhor não tem necessidade de me pedir desculpas, senhor Lopes. Estou aqui apenas para atendê-lo da melhor maneira possível, mas isto não lhe dá o direito de ser rude comigo.
— Ok, Ok. Só para encerrar. Porque você não vai trocar o absorvente que seu mal é chico?
— O senhor está sendo grosseiro.
— Mas pelo menos não usei de ironia, não é verdade? Tenha uma boa tarde, do fundo do coração.
Cinco minutos depois, a conexão volta a funcionar.





quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A arte de Fausto Olívio


Fausto Olívio sempre foi um homem feminino. Não que desmunhecasse
ou tivesse preferências homossexuais. Muito pelo contrário. Transitou por grandes amores héteros, viveu romances arrebatadores, frequentou as entranhas de belas mulheres, daquelas que muito marmanjo clássico nem ousava merecer chegar perto.
Mas desde pequeno, bocas de Matilde:
- Sei não, esse menino é meio maricas.

Fausto Olívio não gostava de futebol. Dizia ser rude e violento correr atrás de bolas, roçar canelas ou encostar nos músculos suados dos meninos. Por isso, praguejavam sua pecha de pintinho doce na vila, mimadinho e delicado, ou coisa de pouca machesa. Tudo inveja dos moleques suarentos, nhaquentos repulsivos às menininhas em flor, que rodeavam Fausto Olívio com olhares cúmplices e suspiros das maiores profundezas.

Se não gostava de bonecas, era doido por panelinhas. Picava plantinha, amassava florzinha, misturava com aguinha. - Tá pronta a comidinha, quem vai querer?
E não havia, entre elas, menina que não raspasse as panelas ou lambesse os tenros beiços vestais.

E Fausto Olívio foi crescendo, sempre com seu jeito fofinho, desses ursinhos
que dá vontade de dormir abraçadinho. Tomou corpo o rapaz de homem feito e bonitão.
Mesmo ser se dado a esportes, tinha músculos bem definidos, porte de garanhão e volume no calção. Mas do macho que se espera macho, provedor e donatário, ciumento e proprietário, era pura ilusão.

Do que ele gostava mesmo era de estar com as meninas. Vaidoso e bon vivant, bom de papo e confidente, com seu chame diferente, recitava poesia, falava prosas bonitas,
trocavam segredos e opiniões.

Desenhava as amigas como ninguém. Até no papel de pão, fotografava com lápis a alma e expressão das moças, ousando às vezes imaginá-las nuas, com detalhes de curvas e traços, púbis e pelos, jeitos e olhares. Nunca levou um tapa na cara por causa disso. Era a ousadia quase sempre premiada. Seguiam-se, não raro, beijos, abraços, afagos, entregas intensas noite adentro.

Sabia as músicas que cada uma gostava e arriscava o que podia num plangente violão.
Fausto Olívio cozinhava para as mulheres. Do omelete ao cassoulet, do assado ao guisado, no forno, nas trempes ou no fogão,era um mestre em encontrar o Ponto G nas papilas gustativas.

Haja encantamento. Conhecia a alma feminina, a essência da mulher, os mistérios das fêmeas, tudo por intenção ou intuição, tanto fazia, o resultado é que nunca vivia sozinho, micado ou abandonado.  

E assim, Fausto Olívio foi enfileirando uma a uma. Primeiro as da vila da infância. Depois as do colégio, em seguida as da Escola de Belas Artes e da vida que fervia ao seu redor. Até que se ajeitou firme com uma atriz, um tico mais velha que ele, com quem se casou e mudou. Tiverem um casal de filhos, uma casa com fogão de lenha, atelier e jardim. Como casamento convencional chegou a durar muito. Mas sem aviso nem sinais, a atriz, de danado coração, tomou um desvio sem volta, deixando Fausto Olívio triste, sem chão. Chorou, gemeu, urrou de dor e saudade. Quis morrer, parar de comer, não parar de beber. Mas nada é tão sedutor do que um homem de alma aberta, assumida sensibilidade, artista e apaixonado, carente e abandonado.

Choveu de tudo no seu jardim. Amigas da meninice, colegas da Belas Artes, musas dos primeiros rabiscos, parceiras de excentricidades, transeuntes de suas esquinas. Todas a ex,  reais, platônicas e virtuais, aparecerem em seu socorro. Sem falar naquelas que o tempo reservou para encantos mais recentes. Mas mesmo assim, Fausto Olívio não se casou de novo, sem nunca se sentir sozinho. Teve genro, nora e neto. E uma infinidade de mulheres ao estalar dos dedos.

Fim de semana passado, Fausto Olívio fez 70 anos. Abriu os portões do jardim. Foi para o fogão de lenha e se esbaldou nos caldeirões. Vinho a rodo, champanhe até dizer chega, vodkas polonesas, pinga, cerveja, uisque de todos os anos e muito absinto, o néctar dos artistas atrevidos.
A festa corria solta, música sem parar. De homem, um filho, um genro, um neto e só.
No mais, o gênero feminino em peso: noras, primas, colegas, artistas, amigas e todas as ex que os tais 70 anos guardaram, em segredo, ou escancarados, nada importava naquele momento de tantas namoradas, amantes, casinhos e paixões, mulheres que pintou, musas que desnudou, amores vividos ou a viver. Nada faltou de afeto, carinho e delírio naquela tarde de domingo.

Já era noite quando o neto tomou a palavra. Tlim tlim, garfo batendo no copo, segura esse baticum:
"Quero fazer um brinde ao meu avô. Este homem invejável, espelho espelho meu, exemplo de sensibilidade, sabedoria e querideza. Mas antes, uma pergunta que me persegue há anos de admiração: vovô, qual o segredo desta vida plena, ditosa, enriquecida
de tantos amores e amores reunidos?"

Fausto Olívio levantou-se. Com ele, a taça de vinho, já cansada de tanto trabalhar. Cambaleou. Olhou a mulherada a perder de vista no jardim. Todas estavam lá, um harém respeitoso, cada qual com seu olhar embevecido e guloso. Voz pastosa e pigarreante, o homenageado foi breve:
- Meu querido neto, a arte de amar e ser amado por uma mulher,
é... é... é...  nunca gozar antes dela!

Segue-se um silêncio constrangedor. Apenas um solitário e estridente:
- É por isso que eu te amo!

Muitas se entreolharam de cabeças baixas. Respirações foram suspensas, suspiros contidos e sorrisos desenharam-se de soslaio. Dizem até que houve um princípio de estapeamento atrás de um bouganville. Mas o neto expedito não deixou a coisa degringolar: gritou um Viva ao vovô! e emendou um urgente e providencial Parabéns pra você!

Claro, suspenderam a bebida e trataram de cortar o bolo.   
Uma ressaca de segunda feira começava a despontar.






terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Um filme à meia-noite (parte 1)

(Maristela Scheuer Deves)

Ela se arrependeu no momento em que colocou os pés na sala de cinema. De onde tirara aquela ideia maluca de ir ver um filme naquele horário e, ainda por cima, sozinha? Mas era a última sessão, amanhã ele sairia de cartaz, e, afinal, já estava mesmo no shopping, justificou-se para si mesma. Saíra do trabalho tarde, eram quase dez horas da noite, e passara ali para comer alguma coisa. Até que terminara de jantar, já passava das onze, e avistara o cartaz do longa que queria tanto ver e ficara adiando... Num impulso, comprara o ingresso, e agora, faltando dez minutos para a meia-noite, ali estava, procurando sua poltrona na sala vazia.

Vazia mesmo, não era força de expressão. Quando comprara o bilhete, vira que apenas dois outros lugares estava vendidos, e ainda pensara se a sessão ocorreria com tão poucos espectadores. Agora, entretanto, nem esses dois outros cinéfilos noturnos haviam aparecido. Mas ainda tem um tempinho, pensou, enquanto localizava a poltrona escolhida. G6, ali estava. Sorriu consigo ao sentar: se não tinha ninguém mais ali, que diferença fazia onde ela se sentava?

Enquanto esperava, olhou para a tela ainda às escuras, para a saída de emergência, para as fileiras e mais fileiras de poltronas da sala que, sem sua lotação habitual das tardes domingueiras, parecia imensa. Lá no fundo, uma espécie de janela dava para a sala de projeção. Não conseguia enxergar direito lá dentro, mas parecia ter alguém ali. Claro que tinha, disse a si mesma: afinal, alguém precisava passar o filme.

Finalmente, chegou a meia-noite, sem que os outros dois que haviam comprado ingressos dessem as caras. Ainda pensava se a sessão ocorreria quando a tela se iluminou e começaram os trailers. Checou na bolsa se o celular estava desligado. Tudo certo. Ajeitou os óculos 3D sobre os óculos de grau e recostou-se na poltrona, pronta para aproveitar ao máximo aquele luxo: uma sessão de cinema só para ela...

Foi lá pelo meio do filme que ela pensou ter ouvido um barulho algumas fileiras atrás da sua. Gente mal educada, não sabe se comportar no cinema, pensou, e só então lembrou-se que não havia mais ninguém ali. É o som do filme, racionalizou, e voltou sua atenção para a história. Logo depois, o barulho se repetiu, e dessa vez ela teve certeza de que não vinha das caixas de som.

Sentiu um arrepio, e olhou para trás assustada. Não havia nada ali, claro, e sentiu-se grata por não estar acompanhada - assim, ninguém saberia desse momento de fraqueza. Voltou o olhar para a tela e soltou um grito: bem naquele momento, o protanista arremessara uma flecha, que com os óculos 3D parecia voar bem na sua direção. Mico número dois, murmurou, com um riso amarelo e o coração ainda acelerado.

Mais meia hora de filme e, de repente, a tela ficou branca, depois escureceu. Sentada na poltrona G6, pernas erguidas sobre a poltrona em frente, ela não teve sequer tempo de pensar se aquilo era uma falha técnica quando as luzes de emergência também se apagaram. Do fundo da sala  - bem para trás, mas com certeza dentro da sala -, veio um novo barulho. Agora, o som era de passos. E eles se aproximavam...

(continua no dia 19 de março)





segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

SINUCA DE BICO



Otávio Martins
                                                                                                                  
  Ainda não consegui sair desta sinuca de bico. Mas, nem por isso me sinto derrotado. Sair de uma sinuca de bico é como acertar numa centena no jogo do bicho; uma contra novecentas e noventa e nove. A chance de ver alguém sair de uma sinuca de bico, já se pode considerar um privilégio. Talvez, para se entender melhor, seja necessário evocar um samba de Noel: “... Batuque é um privilégio/Ninguém aprende samba no colégio...”. Do contrário, eu e alguns amigos meus, que varáramos as noites, jogando por aí, teríamos aprendido a superar essa dificuldade da sinuca.

  Ter assistido a uma partida entre o Praça e o Carne Frita (duas feras do pano verde), também, pode-se considerar um privilégio. Tudo aconteceu num snoker que ficava ali na Ipiranga, quase esquina com a São João, em frente à banca de jornal. Anos sessenta. Para adentrar a sinuca, propriamente dita, teria que passar por um corredor com suas oito cadeiras de engraxate; quatro de cada lado; colocadas acima do nível da passarela.

  Numa fria madrugada de agosto, formávamos uma plateia de uns quinze amantes do jogo, o qual se desenvolvia sobre o pano verde de uma bem postada mesa, sustentada por seus possantes seis pés. Foram mais de dez minutos de suspense. O Carne Frita colocou o Praça numa verdadeira sinuca de bico, naquela mesa do meio; caçapa do canto, à direita.

  O Praça era um dos maiores nomes da sinuca nessa época. Lembro, também, do Rui Chapéu. Grande figura e, ainda, um taco de respeito; tinha um estilo próprio, até mesmo para passar o giz. O Carne Frita, sem comentário.

  O Praça, com a ajuda do seu taco e algumas miradas, de um olho só, quase encostando o rosto na lateral da mesa, media, ou calculava, as tabelas e efeitos que seriam necessários pra sair daquela situação criada pela quase malícia do Carne Frita. Parecia que a bola branca havia sido colocada com a mão. Eu, acho que todos os outros, suava frio durante aqueles dez minutos que pareciam intermináveis. Conjecturas, imagino, mirabolantes; silenciosas, a que o Praça se obrigava.

  Uma verdadeira tacada de mestre. A bola rodopiou sobre o próprio eixo, imaginário, na largada; pegou um efeito diabólico. Seis tabelas e bola. Exatamente como ele havia cantado:
     
  - Seis tabelas e bola – ainda por cima, matou a bola seis, a rosinha, na caçapa do meio. Com oito pontos à frente do Carne Frita, era o fim. Talvez a maior final de todos os tempos da Sinuca Nacional.
  O Carne Frita ficou quase dois meses sem aparecer lá no snoker da Ipiranga. Efeito moral ou, quem sabe, penitência. A verdade é que a sinuca melhor freqüentada da cidade viu-se privada, por todo aquele tempo, da maestria do Carne Frita.

  Afora a mesa da sinuca, lembrei de outro quadrado, este formado pelas esquinas da Ipiranga com a Avenida São João. Também garrei a imaginar o que aconteceria, hoje, no coração do Caetano Veloso, se cruzasse por lá?

  Escrevendo esta crônica, num breve momento, a memória trouxe-me a lembrança duma antevéspera de Natal, 1980. Tínhamos acabado de sair do Gato que Ri, o Adoniran Barbosa e eu, Largo do Arouche. Falou que gostaria de dar uma esticadinha até a São João com Ipiranga, antes de ir pra casa. Morava lá pro lado do Aeroporto. No restaurante, comemos uma bela macarronada al sugo. Era sempre ele quem pagava. Antes, uma dose de uísque cada um, depois, um cigarrinho. Pegamos a Vieira de Carvalho, costeamos aquele canto da Praça da República e entramos na Ipiranga; ainda olhamos, rapidamente, uns cartazes do Cine Marabá e logo chegamos ao cruzamento. Vasculhou, com o seu olhar, os quatro cantos, já com os olhos marejados; fingi que não vi. Acho que se lembrou de outros tempos. Pra mim, ainda era a mesma esquina. Virou-se, fez sinal prum táxi, já passava das dezesseis horas. Avançamos pela Ipiranga, entramos na São Luís. Depois de passar pelo farol, entre o início da Consolação e a Biblioteca Mário de Andrade, chegamos ao final do Viaduto Nove de Julho. Boca da Santo Antonio, quase chegando à Praça Craveiro Lopes. O táxi parou, era o meu ponto de descida. Antes de eu sair do táxi, vejam o que ele fez: meteu a mão no bolso de dentro do paletó – aquele xadrezinho, de lã – trazendo, na volta, algum dinheiro. Eu andava numa pindaíba de dar pena. Disse que era a minha comissão do show da Unicamp, o qual iria se realizar no dia oito de janeiro, do próximo ano. Queria ficar livre do compromisso, completou. Desci do táxi com um nó na garganta. Esses gênios apresentam cada uma...

  Onde era a sinuca, parece que virou um fliperama, depois, uma loja. Os engraxates sumiram, varridos pelo efeito Nike, ou Adidas. O Bar dos Artistas, lugar onde os músicos da noite, “desempregados” – formando uma grande orquestra em silêncio – ficavam aguardando algum chamado emergencial duma casa noturna qualquer. O Bar dos Artistas, que não fechava nunca, tinha o melhor sanduíche de pernil da cidade, feitos pelos sócios, dois portugueses, virou um bingo, informatizado. Atravesso a São João e não encontro o Jeca, onde, por muitas madrugadas, costumava tomar um caldo verde. Que tristeza! Dizem que passou o ponto pro cara do mate gelado, que funcionava logo descendo a São João, em direção ao Largo Paissandu.

  Lembram do esquinão, com aquele baita vidrão, parecendo uma grande vitrine, onde funcionava o Bar Brahma? Havia cedido a um consórcio de carros, ou de motos; nem sei que pôrra é aquilo. O Bar Brahma voltou, depois de um tempo, ao lado, pela São João. Como diria o cubado Silvio Rodriguez, que imortalizou a Yolanda do Pablo Milanês, “És lo mismo, pero no és igual”.  Espero que não venha acontecer ali, a cena de sangue prevista e cantada pelo Paulo Vanzolini, numa de suas rondas pelas noites paulistanas.

  “Em pé”, mesmo, só o Citi Bank. Esse eu quero ver tirarem dali, mesmo depois do escândalo dos Fundos de Pensões, onde esteve envolvido até a medula.
  Eta ferro, sô!





domingo, 17 de fevereiro de 2013






                             Não tenho aquecedor em minha casa. Tive de esquentar uma panela e colocá-la no quarto. Mas ela não esfriou, acho que afeiçoou-se a mim.





sábado, 16 de fevereiro de 2013

O possante e a bebedeira





Tomou o último gole da cerveja e ganhou a rua. A orla, iluminada pelos fogos de artifício, parecia um episódio de Guerra nas Estrelas. Acho que bebi demais... hehehe. Acho, não! Tenho certeza! Desistiu, quatro ou cinco passos adiante, de andar em linha reta e parou com as pernas abertas, imaginando se não seria melhor chamar um táxi e deixar o carro ali, pra pegar no dia seguinte. E se me roubarem o possante? Lindão do jeito que está, zero quilômetro... Puxa, o possante é praticamente uma virgem!
Decidiu: ia voltar dirigindo. Se estava bem o suficiente para pensar e ter consciência de que estava bêbado, então, não deveria estar tão bêbado, ora bolas! Fugiria dos guardas, andaria por ruas escuras e estreitas, mas ele mesmo ia voltar dirigindo o seu carrão maravilhoso. Hihihihi! Eu sou bom nisso de lógica. Sou do caral... Interrompeu o pensamento que causaria revolta aos ouvidos da mãe e de alguns leitores para se dar conta de que o possante não estava lá, no lugar em que ele pensava que o tinha estacionado horas antes. Um quarto do porre passou no susto. Outro quarto converteu-se em suor frio, tremedeira e uma náusea que ameaçava transformar-se em algo pior. Cerrou bem os olhos, mas com tanta, tanta força que começou a ver fulgurações flutuando entre a retina e a pálpebra. Pensa, maluco, pensa onde é que foi que você largou o carro! Bêbado, pé-de-cana, alcoool...alc...alcoo... Que merda!
Desistindo de articular as palavras, voltou a concentrar-se no carro. Ele ainda se lembrava que desistira de estacionar ao lado de uma lata de lixo que ficava quase em frente ao bar. O possante não podia ficar fedido! Mas por mais que espremesse os pensamentos enevoados não conseguia atinar no paradeiro daquela perfeição prateada. Precisava parar o carrossel desgovernado dentro da cabeça e pensar, pensar com muita calma sobre onde havia estacionado o cavalo prateado ... Merda! Cavalo prateado o caralho! Carro prateado, car-ro! Carrão!
Há meses se preparava para aquele dia. Quando, finalmente, tinha conseguido juntar o último dinheiro, fora cheio de marra até a concessionária para escolher — isso mesmo, escolher! — o carro que queria, na cor que queria, com tudo o que queria dentro! Um mês depois, recebeu a ligação com que tanto sonhava: “O carro está pronto. O senhor pode vir buscar hoje, às 17 horas”.
Às 16h40 já estava na frente do vendedor, tentando não parecer ansioso. Passados trinta minutos, saía da concessionária dirigindo o possante. Câmbio automático, bancos de couro de verdade, cheiro de carro novo no interior luxuoso, computador de bordo que só faltava dizer “eu te amo”, uma loucura!  Cara, o que vai chover de mulher! Nem quero pensar!
Primeiro passeou pela rua da praia fingindo que nem notava as pessoas. Não olhava pra ninguém diretamente, mas com o canto dos olhos conferia cada gatinha interessada, cada barbudo com inveja. Ele era um cara bonito, sabia disso. Agora então, bonito e de carro bonito, ele ia arrebentar!  Depois do passeio curto, mas lento, estacionou o carro e entrou num bar badalado. Como não havia mesa livre, sentou-se no tamborete de um balcão externo, improvisado para que os clientes esperassem sem se estressar. E tome espera. Sem conseguir uma mesa, não tinha chance de convidar ninguém para um chope. Mulher nenhuma toparia ficar de pé ou se sentar num tamborete. Por outro lado, ele não queria ir embora, porque o bar estava lotado de mulheres lindas, o chope era bem gelado e bem tirado, com um creme duplo de fazer pontinha. E, principalmente, porque tinha conseguido estacionar o possante prateado num lugar seguro e muito bom... Merda! Um lugar muito bom! Seguro! Eu me lembro! Um lugar sem perigo de multa ou de arranhão... Ao alcance da vista... Ao alcance da vista...
Desconsolado, voltou a procurar ao redor. Mexia o corpo inteiro, quase em câmera lenta, a cada vez que mudava de ângulo, já que os olhos, vidrados, não conseguiam cumprir os quatro comandos básicos: para cima, para baixo, direita, esquerda. Como é que eu fui ficar tão bêbado assim? Porra, eu só tomei chopinho! Tomei... Deixa eu ver...Três, seis, quinze... hahahaha... Só múltiplos de três, cara! Mas chopinho não me deixa assim tãããão bêbado! Eu só fico assim quando tomo ping... Caralho! Eu tomei pinga! Eu me lembro! Tomei muuuita pinga! Alguém me ofereceu uma pinga boa do ca... Tudo bem, tudo bem, chega de c-a-r-a-l-h-o! Uma pinga... danada de boa! Mas quem foi mesmo que me deu a malvada pra beber?
Enquanto franzia o nariz e a testa buscando pela memória, a náusea deu o alerta de que era chegada a tão temida hora. Banheiro, eu preciso de um banheiro! No meio da rua, não! Que fexa...vexa... Que saco! Alguém deve ter me dado um Boa Noite Cinderela... Pera aí, pera aí! Que eu não sou Cinderela coisa nenhuma! Eu sou é muito Hulk, muito Wolverine, muito... Alcançou o banheiro por um triz. Passou mal umas três vezes antes de se recompor e voltar à rua. E, como da primeira vez, a orla em festa por algum motivo que ele não lembrava agrediu os seus sentidos. Cara, esse episódio de hoje deve ser a Guerra dos Clones! Tá tudo dobrado!  
Foi quando ouviu a buzina. Uma buzininha irritante, daquelas sem personalidade, que só perturbam. De início não pensou que fosse com ele, mas o barulho chato, chato mesmo voltou a se repetir por mais algumas vezes. Com raiva do infeliz, voltou-se rapidamente para um “Psiu!” bem alto. E se psiu tivesse mais sílabas, não teria dado tempo de dizê-las todas de pé. A virada brusca fez com que se estatelasse na calçada imunda. Como é que um dia tão promissor, com tudo para ser perfeito podia terminar daquele jeito? Bêbado, carro novo desaparecido (imaginar roubado era dor que não cabia no seu peito) e sem poder chorar  porque homem que é homem só chora escondido , ele ainda tinha que escutar aquela buzina desgraçada. Com ódio etílico, gritou:
— Vai à merda com essa buzina do caralho, seu corno!
Ficou feliz de imediato. Nunca antes na história da sua vida ele tinha conseguido encaixar tão perfeitamente dois palavrões e um meio-palavrão numa frase só! E ainda por cima sentado numa calçada suja. E bêbado. Escutou, então, uma voz furiosa, vinda de cima: “Vai você, seu babaca!”. Sentiu na barriga as chaves que a loira deslumbrante atirou em cima dele com maus-modos, antes de ir embora apressada, cheia de moral e para nunca mais voltar.  A mesma loira que tinha lhe custado horas, chopes e pingas para conquistar. A mesma que tinha se oferecido para ir buscar o possante no estacionamento pago atrás do bar. A mesmíssima que tinha prometido levá-lo para casa e fazer sexo selvagem com ele.
Agora, ele lembrava.