É com grande pesar que constato mais um lento e agonizante padecer na língua portuguesa. Desta vez é o pronome pessoal “nós” que está na UTI, em coma profundo. E sua morte não foi decretada por nenhum acordo ortográfico, deu-se misteriosamente através de um silêncio tácito, onde (vai saber) a preguiça foi a mentora. Quase ninguém mais o utiliza, sendo gradativamente substituído pelo famigerado “a gente”.
– Quem vai?
– A gente.
A sonoridade tônica e incisiva do “nós”, que em tempos idos possuía espaço nas rodas, agora só é encontrada em algumas poucas rimas poéticas, fazendo par com um avulso “sós”, como no "Romance de nós", de Luiz Filipe Castro:
"(...)
Que resta do amor
a quem é como nós?
Envergonha-me pôr
em verso: «somos sós;
(...)"
Arriscar esse bonito pronome numa conversa informal hoje em dia é algo não apenas esdrúxulo como também petulante.
– Nós vínhamos devagar.
(que sujeito metido...)
– A gente vinha devagar.
(ah, bom!)
O problema é que as pessoas ainda acham que o "nós" pode se recuperar e que o "a gente" vai deixar de ser esse assassino impiedoso. Enquanto isso não acontece, o pessoal vai se confundindo com as flexões. “Nós” está morrendo, mas sua concordância verbal inadvertidamente permanece, criando orações ridículas:
– A gente vamos.
– Nós vai.
Não dá para negar que o “a gente” destruiu a plasticidade pomposa das três letrinhas. E não podemos nem falar em economia de sílabas pois "nós" só possui uma. O "a gente" vem sendo, sem trocadilho, um agente exterminador pronominal: está asfixiando o "nós", mas já detonou o oblíqüo "nos" e, como se não bastasse, arruinou também o formoso "conosco". Nada de "ele nos encontrou". Agora é "ele encontrou a gente". Ela veio conosco? Negativo. Ela veio com a gente.
“Nós” está tomando o mesmo destino do robusto e vistoso “vós”. Esta segunda pessoa do plural morreu, como se diz, Cristo era menino. Só o ouvimos agora nas liturgias, quando Cristo era menino (ou mesmo adulto). “Porquanto vós todos sois filhos da luz, e filhos do dia; nós não somos da noite, nem das trevas”. Tessalonicenses 5:5. Não sei se é por causa dessa verve bíblica do “vós” que quando ele é citado já lembro do Charlton Heston, do Yul Brynner ou do meu avô me chamando para a missa dominical.
O “você” (corruptela do reverente “vossa mercê”) tomou, aos poucos – quando está pluralizado – o lugar do “vós”. E, sem maiores alardes, o internetês tratou de simplificar tudo isso em algumas consoantes frugais: “vcs” (vocês) ou “vc” (no singular). Como no inglês, onde "you" (você) é grafado com uma simplicidade atroz: "u".
Por falar em "você", o “tu” não se rendeu facilmente a este pronome. Tanto ele quanto o "ti" possuem uma blindagem regionalista notável. Em determinados locais do Brasil o "você" quase não tem vez: "Tu vais à festa de Nando?", "Abração pra ti!".
Dos pronomes pessoais do caso reto só mesmo o “eu”, o “ele” e o “eles”, de uma forma geral, ainda se mantêm vivos. Mas, mesmo assim, sofrem com a sanha do resumo de informações. Muitos não falam “eu não sei”, simplesmente dizem: “sei não”. Não tardará o tempo em que “eu” também sucumbirá ante a virose que já assolou os pronomes “nós” e “vós”. Estes, pelo menos, em ambientes poéticos e religiosos, ainda são venerados.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
"Nós" está morrendo
por Anônimo
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