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sábado, 28 de janeiro de 2023

Os Outros Homens

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 6

O espírito de propriedade duplica a força do homem.

Voltaire

Filósofo francês

(1694-1778)

Imbuído de uma força de vontade impressionante, o novo local de oração do Clã do Leão das Montanhas começou a ganhar forma. Nehir e Zia, reconhecidas pelos seus conhecimentos astronómicos, marcaram a primeira pedra para que ficasse apontada às estrelas-que-guiam; o conjunto das estrelas mais brilhantes do céu que formam um retângulo que parece arrastar três outras[1], indicaria o Ner[2]. Mais três outras pedras assinalariam Swol[3], Hewsos[4] e outra Wes[5], teriam assim um santuário perfeitamente alinhado com as divindades. Usaram uma corda de tendões entrançados, com o comprimento de três homens e amarraram o ídolo central, caminhando depois em volta dele; assim desenharam o círculo onde iriam erguer os seus monólitos. Terminaram os preparativos com um sacrifício onde abriram duas lebres nas entranhas das quais Zia leu o futuro que parecia ser auspicioso. Naquela noite, após ofertarem pelo fogo as entranhas de algumas cabras, banquetearam-se na presença dos deuses.

A cada quatro noites, que é o número das estrelas-guias, um grupo de quatro mais quatro homens e mulheres eram escolhidos para retomar o trabalho onde grupo anterior o interrompera. A equipa chefiada por Nehir percorria os montes até encontrar a pedra da qualidade e tamanho certos que era depois desbastada com recurso a pedaços de basalto. Assim que estivesse pronta, era arrastada pela paisagem num enorme trenó de madeira; por vezes os obstáculos eram tão formidáveis que precisavam recorrer a ajuda adicional da aldeia. Por fim, chegados ao local da construção, abriam uma cova com cerca de um quarto da altura da pedra, onde depositavam a extremidade mais volumosa. O monólito era depois erguido com alavancas de madeira e puxado por grossas cordas trançadas com fibras vegetais. As pás de osso das omoplatas de burros e as picaretas de cornos de bisonte trabalhavam incessantemente a abrir covas e a endireitar o chão.

Menos de vinte dias depois do ataque aos homens-macaco, morreu Ediz. Há algum tempo que jazia na enxerga coberta de peles sem dar acordo de si e o ferimento na barriga, por mais esforços que Nehir fizesse, estava com mau aspeto e exalava um odor forte e desagradável. Nos últimos dias em que ainda mantinha a consciência pedira para ficar no santuário que estavam a construir. Foi numa tarde dominada por um vento gelado que o corpo do guerreiro, agora quase só pele e osso, foi depositado na terra aos pés dos ídolos do sol e da lua. Ao pescoço levava o colar de couro adornado com os dentes de vítimas das suas muitas caçadas e a seu lado depositaram a lança e a faca de sílex. O seu saco de couro continha as habituais oferendas com comida e bebida para a viagem que faria para o mundo das sombras. Cobriram-no com alguns seixos do rio, mas maioritariamente com os retraços do desbaste dos monólitos, antes de cobrir tudo com a terra endurecida do frio. Zia, entre lágrimas, em pé em cima do túmulo recente, proferiu um grande elogio ao irmão perdido, encorajando os outros a seguir-lhe o exemplo. Depois todos se recolherem às suas casas onde os aguardava o aconchego da fogueira. Ediz deixava a jovem Ayla sozinha com duas crianças ainda pequenas.

Conforme esperado, o frio crescente trazia a escassez de caça e os caçadores precisavam de cobrir áreas cada vez maiores. Mesmo os mamutes eram raros, em grupos pequenos e mais vigilantes; não permitiam a aproximação dos humanos. As expedições, que era raro durarem mais de um dia, agora prolongavam-se o dobro e às vezes o triplo. Para juntar às preocupações de Erem, os caçadores informaram que foram vistos outros grupos de humanos na área e que haviam seguido um deles em direção a poente onde se depararam com um povoado. Possuía tendas e casas de pedra com alguns invernos de existência. Afinal, já não estavam sozinhos nas montanhas.

Quando chegou a vez de Erem incluir um grupo de caça, decidiram seguir em direção a sul e evitar a proximidade do outro povoado; iriam até à Pedra do Leão da Montanha para rever a enorme planície do lago salgado de onde haviam partido há dez invernos. Foi uma desilusão, porém, já não conseguiram sequer encontrar o promontório de onde se despediram de Birol e o seu clã. Os pontos de referência e toda a planície que esperavam ver, estavam agora debaixo de uma descomunal massa de água que se estendia a perder de vista… se as águas continuassem a subir daquela maneira, todo o mundo desapareceria em breve.

Vaguearam um pouco pelas margens e entraram pelo lado nascente de um povoado onde foram olhados com alguma desconfiança. Eram bastantes as habitações de pedra, algumas compridas e com esquinas, em vez de simplesmente redondas, como as que conheciam e faziam. Os habitantes vestiam maioritariamente roupas de linho e lã, em vez das peles costuradas que Erem e os seus usavam. Tratava-se de uma população muito numerosa, a avaliar pelo número de construções e pelos bandos de crianças que os cercaram e seguiam, rindo e fazendo troça das suas roupas grosseiras, até se cansarem e desparecerem. Havia muito peixe e pouca carne a secar junto das casas. No meio das águas, alguns homens sentados no que pareciam bocados de madeira, pescavam calmamente com canas, outros em pé sobre plataformas faziam-no com lanças. Quando por fim chegaram ao limite poente da extensa aldeia, havia uma azáfama com várias dezenas de homens e mulheres, uns arrastando troncos, outros a apará-los e outros ainda a erguê-los numa fila ininterrupta que já se estendia há umas dezenas de metros. Os buracos feitos no chão pareciam indicar que preparavam uma parede em volta do casario.

Não tardou que fossem abordados por um grupo de homens armados de lanças e arcos que transportavam no braço um grande pedaço de couro redondo.

O que parecia ser o chefe interpelou-os numa fala áspera, que se compreendia com dificuldade. Queria saber quem eram e o que estavam ali a fazer. Erem assumiu o seu papel de líder e explicou que eram uma expedição de caça de uma aldeia situada a uns dias de viagem de costas para o sol. Depararam com a povoação por puro acaso.

O comandante dos guerreiros olhou-os um a um com desconfiança antes de sentenciar: — Não têm nada a fazer por aqui se não vêm fazer trocas. Vão-se embora depressa. — Ele apontou o caminho para fora da aldeia com a lança, cuja ponta rubra e reluzente chamou a atenção de Erem.

— Mas… não entendo. — Contestou este enquanto os seus homens tomavam posições defensivas perante os outros que ameaçavam cercá-los. — Estamos só de passagem, não estamos a fazer mal nenhum…

— Fomos atacados várias vezes nos últimos dias por gentes vindas desses lados. — Explicou o chefe. — Por isso estamos a erguer as nossas defesas e não queremos cá estranhos. Vão-se embora, rápido!

Aborrecidos por serem enxotados como ratos, obedeceram à ordem e iniciaram o regresso à sua própria aldeia. Pelo caminho conseguiram encontrar um numeroso grupo de auroques. Isolaram, perseguiram e mataram um velho macho … com mais de quinhentos quilos de carne para levar para o seu povo, a caçada compensara. Desmancharam a carcaça rapidamente, antes que o cheiro a sangue fresco atraísse predadores perigosos e distribuíram o peso entre eles. Tinham de se deslocar rapidamente, um urso poderia ser um adversário formidável e não se coibiria de os enfrentar, apesar de estar em inferioridade numérica, mas também as hienas das cavernas ou mesmo leões se podiam atrever contra grupos de humanos.

Quando, com alívio, chegaram à aldeia, Erem comentou com os seus companheiros como se tornava evidente que havia uma anormal falta de caça. A aproximação do inverno provocava naturalmente uma redução de animais disponíveis, mas cada nova estação o seu número parecia menor. Recordavam-se que, nos primeiros anos da separação do clã de Birol, avistavam-se algumas manadas de mamutes e atualmente apenas esporádicos grupos familiares. As manadas de auroques, que antes eram enormes, agora apenas tinham cerca de metade dos elementos e mesmo ursos ou leões não eram tão vulgares… decididamente não se podiam atribuir todas as culpas à estação fria, mas sim ao aumento das populações humanas na região. Gastava-se cada vez mais tempo na caça, o seu povo, se queria crescer e desenvolver-se, teria de apostar mais na agricultura e aumentar o número de cabras e ovelhas no rebanho.

Uma tarde, quando Erem aguardava o regresso de um grupo de caça, foi alertado da proximidade de alguns humanos e dirigiu-se para o extremo nascente da aldeia, onde assistiu à aproximação dos estranhos.

Eram apenas dez; quatro adultos, três adolescentes e três crianças, uma delas de colo. Estavam cansados e pareciam famintos. Pararam hesitantes a uns vinte metros das primeiras casas e hesitavam entre avançar e afastarem-se, a agitação entre os adultos aumentou ao verem que Erem e vários vizinhos se aproximavam, alguns com as lanças a postos.

Fikri, um dos filhos de Lemi, colocou-se à frente de Erem, com a lança em riste e olhou interrogativamente para o chefe, que lhe devolveu um aceno negativo com a cabeça.

— Queres que vá saber o que querem? — Interrogou o jovem ainda sem alterar a pose defensiva.

— Não. Deixa-os aproximarem-se e falarem livremente. — Comandou Erem fazendo um gesto aos estranhos para que se aproximassem. — Não vês que têm fome e pelo menos um deles está ferido? Não são uma ameaça.

O pequeno grupo aproximou-se e um dos homens ergueu as mãos em prece ao meio do rosto para Erem, num gesto de agradecimento. Mais perto viam que todos tinham arranhões e hematomas, sinal de que estiveram envolvidos em combates o que lançou a desconfiança entre os residentes.

O mais interativo dos forasteiros falou algumas palavras que ninguém entendeu e depois, vendo que não o compreendiam, experimentou outras com sonoridade diferente, mas que se entendiam com alguma dificuldade. Expressou a gratidão do grupo e explicou que vagueavam de aldeia em aldeia e foram atacados ao chegar a uma delas a cerca de um dia de viagem para nascente. Quase tudo o que tinham foi-lhes roubado nesse ataque e, quando tentaram refugiar-se na aldeia, foram corridos à pedrada.

Erem indicou-lhes o caminho para o centro da aldeia e mandou que acendessem a fogueira para darem as boas-vindas aos recém-chegados. Rapidamente, fortes labaredas expulsavam os maus espíritos do céu, alimentadas pelos troncos que se guardavam secos debaixo de peles e colmo. Sentaram-se em volta do fogo em pequenos tocos de madeira que foram trazidos de várias casas.

Lemi e o grupo que estava assignado à construção chegaram quase ao mesmo tempo que os caçadores e todos ficaram apreensivos com os estranhos. Eram as primeiras “visitas” em muitos anos.

Apenas Erem e depois Zia, chegada posteriormente, se sentaram com os forasteiros e partilharam com eles algumas lascas de pão duro e carne seca. Os restantes, cujo número foi aumentando até estarem todos os habitantes da aldeia, ficaram em círculo escutando e observando tudo o que se passava.

Todos tinham olhos castanhos, amendoados, cabelos compridos, ondulados e pele escura e os homens, mesmo o mais velho, tinham apenas uma penugem em vez das barbas espessas dos seus anfitriões. Vestiam capotes de pele sobre grossos camisolões de lã e calçavam peludas botas de pele de carneiro. Estavam bem preparados para o frio que chegava. O homem mais velho chamava-se Alim e a mulher Nadi e viajavam com três filhos, a mulher do mais velho deles e três netos…

Alim e a sua família eram provenientes de uma aldeia que se desmembrou com a subida do nível do mar. Alguns mudaram-se para pontos elevados, outros para aldeias distantes e outros ainda, como eles, tornaram-se errantes vivendo alternadamente vários locais. Aos poucos, foram reunindo os mais diversos bens que trocavam por outros. Já possuíam quatro vacas e seis cabras, além de uma grande quantidade de produtos e procuravam assentar em breve nalguma aldeia. Há uns dias, tudo lhes fora roubado, além da vida de um irmão de Alim que os acompanhava. Foram atacados por uns homens enormes de cabelos e barbas soltas, armados com espadas e machados.

— Que são espadas? — Perguntou Erem sem se conter.

— Não sabes o que são espadas? — O estrangeiro não conseguiu conter a admiração. — São como facas, mas muito mais compridas.

— Facas compridas? — O chefe da tribo continuava surpreendido exibindo a sua faca de sílex do tamanho de uma mão. — Se a pedra for mais comprida do que isto, parte-se e não serve de nada.

— Pedra?!? — O estrangeiro sorriu surpreendido, enquanto mostrava um punhal de cobre trabalhado. — Não de pedra, de metal; maior do que esta faca!

— Para Hewsos[6] daqui, — interrompeu Beki, o filho de Alim, despejando um conjunto de pequenas peças metálicas na palma de uma mão —, praticamente já ninguém usa sílex para as armas, isto são pontas de seta que trazemos para vender. Salvaram-se porque as trazia comigo, em vez de estarem no trenó com o resto das coisas.

Zia pegou numa das pontas de flecha e observou-a cuidadosamente enquanto Erem estudava o peso e a maneabilidade do punhal, simulando movimento e estocada… passou a lâmina na mão e fitou pensativamente o fio de sangue que se soltou… se havia muitas armas como aquela, o mundo estava a mudar… e a ficar muito mais perigoso.


[1] Constelação da Ursa-menor, cuja última estrela da cauda indica o Norte.

[2] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal Norte) por oposição ao sol do meio-dia

[3] Proto Indo-Europeu: Sol é um dos principais deuses do panteão, mas também significa o sol do meio-dia, um dos pontos cardeais que originará o Sul

[4] Proto Indo-Europeu: Madrugada é uma das deusas do panteão, mas também um dos pontos cardeais que dará origem ao Leste

[5] Proto Indo-Europeu: Noite é um dos pontos cardeais que dará origem ao Oeste

[6] Proto Indo-Europeu: Madrugada ou Nascente

 

 

 

5 - Os Deuses e os Homens[4]

Parte 5 – Os Deuses e os Homens

A seguir:         

Parte 7 – A Obra Nasce

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

 

Manuel Amaro Mendonça

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quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O capuchinho vermelho

 

Quando Mera menstruou pela primeira vez, estava a fazer 12 anos. O momento era importante. A mãe não tardou a dar a notícia à irmã e vizinha, usando a expressão “capuchinho vermelho”, em referência metafórica à forma anatómica da parte superior dos pequenos lábios, em situação rubra.

Na comunidade Fula em que a rapariga vivia, era tempo de prepará-la para casar. E isso implicava alguns procedimentos prévios na área genital, executados por uma mulher idosa, designada por fanateca. Excisão do capuz e do clitóris ou, pelo menos, cortes e furos com espinhos de acácia era o procedimento básico. Havia exigências mais drásticas, como ablação dos pequenos e até dos grandes lábios, sem falar da radical infibulação ou cosimento. Mas estas eram práticas menos frequentes, na tradição de intervenção na genitália feminina, largamente enraizada, não só ali, em Gabu, como nas outras regiões da Guiné-Bissau.

Passada uma semana, a mãe da menina, depois de ter avisado Fali, o marido apalavrado — um belo rapaz de trinta anos, também Fula —, para se ir preparando, meteu num cesto tradicional um pequeno pano branco ritual e mais dois panos de tear coloridos, como pagamento, e mandou a menina a casa da avó, que morava no mato, numa minúscula área de exploração de castanha de caju. Mas recomendou-lhe:

— Vai pela vereda do mato; não vás pela estrada, porque podes encontrar algum “nefasto”.

A mãe referia-se aos membros ou às pessoas que colaboravam com a Comissão Nacional para Abandono das Práticas Nefastas, entidade governamental que tentava erradicar costumes arcaicos e desumanos. Esta entidade, apoiada numa lei de 2011, tinha fornecido muita informação às fanatecas, a quem também prometera compensações pelas perdas económicas. Como medida dissuasora, a lei ditava explicitamente que os pais que não impedissem a prática da excisão seriam punidos com pena de prisão de 1 a 5 anos. Com esta ameaça, parecia que as práticas de mutilação genital feminina diminuiriam, mas continuavam a realizar-se muitas, às escondidas. A procura rebentava os diques governamentais.

Mera sabia que o que a avó lhe ia fazer era para seu bem, para que o futuro marido ficasse agradado com ela. Em breve a casariam, mas, antes, devia ser “fanada” segundo as exigências dele ou, pelo menos, segundo a tradição regional.

A menina pôs-se a caminho, mas, ao entrar na vereda da mata, deparou-se com Fali, o prometido marido.

— Tão cedo por aqui, Mé? — saudou ele, tratando-a pelo diminutivo carinhoso.

— Vou a casa da minha avó. Mas é segredo.

— Não queres que eu vá contigo? A mata é perigosa.

— Eu não tenho medo. Já conheço os animais todos que andam por aqui. E tenho de ir sozinha, sem ninguém ver, disse a minha mãe.

— Está bem, adeus. Mas, já que vais pela vereda da mata, leva umas flores à tua avó.

— Boa ideia. Ela vai gostar.

Assim que viu Mera embrenhar-se na mata e começar a colher flores, Fali montou na sua motoreta e, pela estrada, daí a pouco estava nas imediações da casa da avó de Mera. Da estrada lá, eram poucas centenas de metros. Dona Salimata estava ocupada na separação da produção: para um lado, as castanhas rijas e recurvas, para outro, o restante fruto polpudo e doce, para preparar uma cajuada, mais tarde.

— Bons dias, Mãe Grande. A sua bênção! — anunciou-se o homem.

— Viva, Fali! — correspondeu a idosa. — Vens sozinho? Estou à espera da minha neta. O que te traz por cá?

— Ela vem mais tarde. Mas eu queria falar com a senhora. Como sabe, vou casar com a Mera, na próxima estação da lavra. Vai ser a minha segunda mulher. Queria pedir à senhora que fizesse um trabalho mesmo bem feito. A fanateca que fanou a minha primeira deixou muito capuz. E o grelinho também arrebita um pouco, lá quando a senhora sabe. Incomoda.

— Eu sei, eu sei. Mas incomoda assim tanto?

— Mais ou menos. Mas eu também queria que a minha menina se apresentasse muito limpa e bonita.

— Tá bem; mas a limpeza não precisa de passar por cortes. Tu não cortas os dedos quando tens as mãos sujas.

— Eu não quero nada de mais; só o tradicional. E o que o livro santo manda.

— Claro, claro. Mas olha que o livro sagrado não manda fazer isso. E há homens santos que dizem que Deus fez a mulher já perfeita, sem precisar de correções.

— Faz isso pra mim, Salimata. Eu queria tanto ser feliz com a minha menina.

— Com certeza, Fali. E não gostavas que ela também fosse feliz contigo?

— Mas vai ser. Eu sou o homem. Se eu estiver feliz, ela também está.

— Tens a certeza? A tua primeira está feliz depois de fazerem aquilo?

— Nem por isso. Ela não gosta tanto de sexo, como eu. Felizmente. Uma mulher deve ser séria.

— E tu, não és sério por gostares de sexo? Ela não gosta porque não tem. As excisadas, na realidade, não fazem sexo: alguém faz com elas. Têm uma vida infeliz. Sem clitóris ou com ele fanado, as mulheres não conhecem o prazer.

— Como é que sabes, Salimata?

— Eu sou excisada, Fali. Como metade das mulheres guineenses. Desde os seis anos. Mas sei o que sentem as não excisadas. Não tem comparação.

— Foi alguma que te contou?

— Esqueces-te que eu sou uma mulher da mata, há muitos anos. Conheço muitas ervas, muitas árvores, muitos frutos e cascas. Sei fazer remédios para sentir como os corpos das outras.

— Ai, Salimata, isso é fantástico! Ensinas-me a sentir como uma mulher? Eu não gosto de homens, claro, mas tenho curiosidade pelo que sente uma mulher.

— Queres mesmo, Fali? Uma excisada ou uma completa?

— Uma completa, claro; uma que goze como os homens. Como uma maluca que conheci uma vez em Bissau. Estava inteira. Rebolava-se toda, gritava. Um reboliço. Quase que eu é que não gozava.

— Tá bem. Senta-te aí, enquanto acendo o lume.

Dona Salimata começou a ajeitar uns paus no pequeno terreiro à frente da cobertura de palha em que tinham estado protegidos do sol, acendeu o lume e colocou uma lata junto ao fogo. A seguir, entrou na casa tradicional em que vivia, voltou com uns raminhos secos, atados por um cordel de fibras vegetais, que lançou à água, quando começou a ferver. Daí a minutos, verteu um pouco daquele chá numa malga de barro e entregou a Fali duas bolas de resinas de árvore cor de âmbar.

— Mastiga bem esta mistura e depois engole com este chá.

— E não dói?

— Não. Vais sentir-te um pouco tonto, mas deixa-te ir.

O homem seguiu as instruções, os minutos passavam, mas não sentia nada. Quando estava quase a duvidar, o mundo começou a transfigurar-se. Sentia o corpo diferente, alheio. Já não estava numa clareira da mata, mas numa cama que desconhecia. Isso não o assustava, antes pelo contrário. Só estranhava perceber que o seu corpo, agora, era de mulher, mas sentia uma euforia difusa, porque estava prestes a fazer amor com o seu namorado.

Daí a pouco, possuída e embriagada de paixão, entregava-se totalmente ao desejo e ao prazer, que a agitavam em ondas físicas e amorosas. Numa réstia de ligação ao real, pensou como era avassalador o prazer de uma mulher, comparado com o de um homem. O seu parceiro, infelizmente, terminou pouco depois, mas ela manteve-se ainda alguns momentos num estado de graça física e mental.

Então, alguém lhe pôs na boca umas bolinhas pintalgadas que lhe pareceram joaninhas. O resultado não demorou. Viu-se novamente menino, rodeado de feiticeiros que o agarraram, o manietaram e, com uma faca recurva, lhe deceparam o membro logo abaixo do freio. Envolto em dor, percebeu que lhe removiam as duas principais zonas de prazer, equivalentes ao clitóris e ao capuz femininos. O sangue jorrou, as dores eram lancinantes, mas os homens continuaram calmamente a aplicar-lhe uma “boneca” de ervas mastigadas, para cicatrizar.

No meio do caos doloroso, o cenário mudou em segundos e viu-se adulto a tentar fazer amor com uma rapariga lindíssima. Apesar de a desejar, não conseguia sentir grande coisa, fisicamente. Tinha pouco com quê. Apetecia-lhe, era ligeiramente agradável, mas um coto cicatrizado era tudo menos o adequado. Perturbava-o, irritava-o e sentia uma espécie de dor no que já não existia. A rapariga também se mostrava incomodada. Finalmente, ele desistiu de sentir prazer e interrompeu a relação física. A humilhação e uma sensação de menoridade para a vida toda atingiram-o em cheio. Gemia, queria sair dali, queria rogar pragas aos seus fanatecos. Quando recuperou um pouco, viu-se no terreiro de Dona Salimata, incrédulo, os olhos em pavor.

— O que me fizeste, Salimata? — urrou.

— Já sabes o que sente uma excisada? — perguntou a velha, num misto de cinismo e carinho.

— Não me avisaste!

— A maioria das meninas também não sabia o que lhe iam fazer. Sobretudo, nenhuma sabia o que ia perder para toda a vida — concluiu Salimata, em tom menos suave e pedagógico do que o tom usado pelos da Comissão.

Daí a pouco, chegou Mera, com a cesta cheia de flores silvestres. Era uma menina, uma criança em idade de crescer e aprender a viver, muito longe de ter corpo e anseios de adulta. Fali, olhou-a, como se a visse pela primeira vez. Não, não podia deixar fanar a menina. Queria que fosse sua mulher, mas completa, a ter prazer sexual, a ser feliz com ele e como ele. Dissessem o que dissessem. Não deixaria Dona Salimata tirar-lhe nada. E teria de ter uma conversa com a mãe de Mera. Passar-lhe a sua nova visão sobre o assunto. Convencê-la. Dar-lhe garantias. Sossegá-la.

A avó recebeu a neta com um abraço, depois mandou-os sentar a ambos e ofereceu-lhes meia dúzia de frutos polposos e doces. Era a primeira refeição que o futuro casal tomava em conjunto.


Joaquim Bispo

*

Imagem:

David Huguet, Portal principal do Mosteiro da Batalha, 1402–1438.

Batalha, Portugal.

Foto de JFVP.

* * *






domingo, 22 de janeiro de 2023

O Laço da Perversão

 


Era Heitor o seu nome. Heitor, nome de doutor em medicina, direito ou física, nome de autoridade insofismável, nome de homem taciturno e silente, mas, ao conhecê-lo, homens e mulheres admiravam-se ao descobrirem um jovem sorridente e alegre, imaturo, avesso às soturnas insinuações do vocativo. Ria e gargalhava com facilidade, cantarolava em corredores e assoviava em elevadores, e nele era ainda mais contrária à severidade do nome o vício de, desde criança e desde o berço, espionar em buracos de fechadura. Voyeur, declarava no silêncio da tentação. Assim sou, voyeur, e incitava o fervilhar da saliva na língua, o estalar do céu da boca em calor.

Entretanto o voyeurismo, à semelhança dos demais fetiches, só se efetiva com o reconhecimento do ato – pois os crimes consumam-se através da revelação a terceiros, através do vínculo entre infrator e vítima, testemunha –, e como Heitor vivia em silêncio, como a tara ele não anunciava ou divulgava, decidiu revelar-se a uma amiga e cerrar o último nó de sua obsessão. Pois à Marilene confessou o fetiche, justo à Marilene, evangélica e casta, modelo de honestidade digno de irritar o mais severo dos deuses, e ao ouvi-lo ela então contorceu o rosto e rugiu.

É doença, disse ela. É doença.

Heitor, satisfeito e leve, falou de como era inofensivo, de como somente nos atos de voyeurismo sentia-se sadio e afortunado, de como a mente esvaía-se no nada e no nada mais, e de como ele, nos instantes de voyeurismo, não era algo ou alguém.

Mas é doença, garoto, disse Marilene. É doença.

Heitor prometeu não se entregar novamente a sua obsessão e falsamente jurou estar, com a confissão, curado. Eles abraçaram-se e distaram-se, e sendo um dos motivos do encontro a outrora afinidade entre ele e Marilene, constatou o esvanecer-se da amizade e do entendimento – qual o ego nos instantes da obsessão. Chegou em casa o jovem Heitor, banhou-se, deitou-se na exígua cama de solteiro e dormiu até ser despertado pelo tresloucado ritmo de seu coração. Sentou-se ele no limite do colchão e cumulou-se de julgamentos e críticas, censuras e condenações, e farto de acusar-se concordou, numa dessas súbitas e súteis percepções, com Marilene: era um doente.

Mas sou tão inofensivo, sussurrou um de seus teimosos recessos. Sou só de olhares.

Na manhã acordou com uma vaticinante enxaqueca, e ao vestir-se não abriu a janela ou desviou das sombras, não se uniu às insinuações do sol nas almofadas. Mais encaminhou-se Heitor ao escuro, ao florescer de um remorso nem tanto íntimo mas oriundo de influências exteriores, dir-se-ia o fantasma de suas contrições. Os dias seguintes Heitor exibiu um semblante de sombria desmotivação, segmentado em estrias e rugas, humor logo associado a ele, antes homem alegre e saltitante. Estranharam-no os amigos e conhecidos, e estranhou-se Heitor ao emagrecer, ao ser-se assim. Sentia-se, como relatou nas entradas de seu blog, criminoso, dos outros alienado, e acusou da crescente solidão o maior dos seus fardos, aos leitores descrevendo como assemelhava-se ela a uma ausência de reflexo. O voyeurismo pelo buraco da fechadura é uma farsa, escreveu ele. No mundo real não há dos meus, não há ninguém como eu. Quiçá o voyeurismo é a fronteira da solidão, registrou Heitor em última nota, momentos antes de ingerir uma vintena de medicamentos e encaminhar-se ao escritório, onde caiu de rosto na mesa e, alheio ao indiscreto olhar dos colegas, desmaiou.

Todavia, resoluto como todo viciado, não morreu.

Abandonaram-no na emergência de um centro clínico, e lá abandonaram-no vomitado e torto, os olhos abertos, vagos como galáxias a se extinguir em distâncias siderais. Acordou com mãos que o esganavam, cutucavam-no, mãos que ignoravam seus rogos e gemidos de culminante aflição. Exausto e cansado ouviu o ciciar de anjos ou demônios, as orientações sobre como deveria adormecer e sonhar, sonhar e adormecer, e ao acatar os conselhos dedicou-se a um sono obscuro, o sono dos nascimentos não satisfeitos, eterno até Heitor voltar a si e descobrir-se coberto de sondas, cateteres, curativos e amarras. Malgrado desorientado e a sós, ainda a sós, sobrevinha-lhe nesse claustro o desejo de a tudo olhar e observar, de a tudo ver, característica intrínseca ao homem de sua categoria. Heitor escrutou o dormitório e pouco avistou além da janela, pouco escutou além de um mecânico assoviar. Na porta chamou-o a fechadura, grande e antiga, sedutora, e nela vislumbrou a iluminação do cômodo ou corredor contíguo. Ali firmou o olhar, contemplou o símbolo de um passado e de um mesmo futuro, atento ao auspicioso cintilar dos vãos até estes escurecerem como se, do outro lado, alguém se movesse, curvasse e olhasse no buraco da fechadura, espiasse-o.

Disso soube de imediato.

Mesmo com o rosto recluso em sondas, sorriu.

Não mais estava a sós em seu mal.


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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A vontade


 


A vontade que nunca quer cessar. O estranho gosto de viver, ao menos mais um segundo, ainda que na imprevisão. Prometi a ele que não acabaria assim. Não podia. A sorte de termos nos encontrado no mesmo país, na mesma cidade, na mesma era… Quem sabe, fomos almas que perambularam sem destino, descrentes, em vidas passadas, e nos achamos. E logo agora, que sabíamos que éramos únicos, um para o outro? Não, não devia acabar. Acabaríamos pelos desejos mesquinhos dos outros? Minha mãe nunca entendeu de amor, coitada. Casou-se muito nova, sequestrada por meu pai, pensando que a aventura os sustentaria. Com nove meses exatos nasci. Ela longe de casa, tendo que dar conta de mim, dos afazeres domésticos, da labuta diária; tudo isso sendo mulher de vaqueiro errante. Soube que mamãe passou nove meses vivendo sozinha, olhando para o céu, esperando alguma salvação. O casebre ficava a uns seis quilômetros da cidade, para a qual ela foi, desnorteada, à procura de ajuda. Não intuía modo de arranjar comida, depois que a reserva havia terminado. Na cidadezinha, por sorte, recebeu um pouco de alento. Morando na rodoviária, por dois dias, conheceu dona Lindalva, que a levou para casa, para que trabalhasse na limpeza da pensão. Era um casarão imenso, com sete quartos, uma cozinha, três banheiros, duas salas, varanda e um abrigo, nos fundos, para os serviçais. Os demais não gostaram muito de minha presença, porque chorava dia e noite. Dona Lindalva me trouxe para o seu quarto suntuoso e me deixava aí enquanto mãe estivesse ocupada. Vivíamos, apesar dos pesares, bem; estávamos guardadas e comendo o que davam – e era justo e suficiente. Depois de um mês, pai voltou nervoso, ameaçando. Mãe teve de baixar a cabeça e seguir o marido. Dona Lindalva ainda tentou impedir, mas o delegado lhe avisou que meu pai era bandido e que com essa laia não devia se meter. Mudamos de cidade mais uma vez; pai era procurado. Descobrimos que ele era vaqueiro só no nome, para melhor se apresentar; na verdade, era jagunço de profissão, prendia e matava gente para faturar uns trocados e ganhar fama. Revelou-se, com o passar dos anos, um homem doente, assustado, cismado, e por isso descontava na gente. Não podíamos sair de seu encalço. Vivíamos como prisioneiras. Batia em mamãe porque dizia que ela era murcha das tripas, que não lhe dava um filho homem. Talvez Deus a tenha poupado de ver o sofrimento de mais um filho. Eu quis fugir, mas mãe tinha muito medo, pedia que aguentasse até o velho morrer ou ser morto; mais dia, menos dia, não tardaria. Pude estudar em Pedreiras, uma cidadezinha já perto da capital. No começo, pai ia me deixar e me buscar, mas, como dava uma hora de ida e uma de volta, ele desistiu. Achava que também eu fosse desistir. Arrumei um cavalo magro de um compadre de meu pai. Ele me deu garantindo que “Pé de pano” morreria em breve. Durou pelo menos quatro anos comigo. Comia da minha comida. Éramos carne e unha. E não me deixava na mão. Doce era percorrer os quilômetros até a cidade, no seu lombo, dormindo e sonhando que logo teria a minha casa e a minha família, e não dependeria dessa gente esfacelada. Conheci Sóstenes quando fazíamos a quarta série. Ele veio para Pedreiras por promessa de emprego ao seu pai. Teria ficado danado por sair de Viçosa, onde morava; deixara amigos e familiares para trás, sem prevenção. Com dez anos, eu também tinha medo do novo. Na segunda semana de aula, a professora pediu que ele se sentasse ao meu lado, para realizarmos uma tarefa. Ele era tímido, mas sorria o céu. Falava pouco, só o necessário; o bastante para nos conectarmos. Ele era lindo. Tinha os cabelos lisos e olhos puxados como de um índio. Era diferente de tudo que eu havia visto. Sonhei longas noites com ele, beijando-o, abraçando-o e correndo por lindos campos. Ele me pedia calma, enquanto eu o forçava a fugir. Será que o sonho queria me dizer que a sina era de fugir, como aconteceu com pai e mãe? Tive medo de agarrar o mesmo destino. Aumentamos no querer. Ficávamos sós na hora do recreio. Ele fingia que não gostava de bola, quando os meninos o chamavam para brincar, para ficar correndo e pulando nas árvores comigo. Na sexta e sétima séries nos descobrimos no amor. Ele prometeu que, quando crescesse, se casaria. Eu queria me casar logo, com medo de acontecer algum revés. Aconteceu, como acontece em todas as histórias de amor: Sóstenes devia seguir para um novo trajeto, por conta do trabalho de seu pai. Desta vez, iria para outro Estado. Não tínhamos idade ou dinheiro. Mamãe, quando soube da minha intenção, disse que era loucura, que eu iria me arrepender. Que homem é tudo igual. Que perderia a minha família e ficaria como ela, largada. Que me aperrearia e depois seria muito tarde. Pai, nessa altura, não se distinguia de uma porta, bruto e insensível; não sentiria a minha falta. Mãe chorou por uma semana, prevendo o pior: ficaria só. Tive pena e dor. Não queria guardar essa imagem dela. Não queria ser a razão de sua desgraça. E eu não era. Tinha de me convencer disso. Fiz tudo para mãe se livrar do fardo. Ela não quis. E eu precisava viver. Quando menos esperei, Sóstenes estava na minha porta. “O que você veio fazer aqui, seu maluco?!”. Ele olhava para mim sorrindo, sem um pingo de medo do que pudesse nos acontecer. Pedi que me esperasse na praça da cidadezinha, que iria preparar a minha mala. Mãe se agoniou, disse que não queria mais me ver e me deserdou no ato. Aquela vontade absurda me dominava. Saí sem olhar para trás, com duas mudas de roupa e meu par de sapatos preferido. Alcancei Sóstenes e pedi para sair dali. Ele já tinha as passagens compradas para a cidade de Aurora. Chorei toda a jornada e mais uns meses. Sóstenes me aquietava com o seu amor. Não nos faltou trabalho. Fomos, durante anos, faz-tudo da fazenda Rancho Dourado. A vontade genuína me trouxe até aqui, me deu dois filhos, uma casa, um marido bom e mais vontade de seguir.





terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Cebola - poema de Karina Maia




CEBOLA





Cebola, hoje cortei.

As cebolas nascem debaixo da terra

Assim nascem os mortos

Eu nasci morta, logo sou uma cebola

Sou ácida e se você me cortar eu

solto um gás que dói nos seus olhos

Mas deixe-me de molho e ficarei doce. 

Como todos os que nascem mortos e vivem

Eu tive que aprender a gostar da vida

E não é fácil, amar viver e buscar sentido e

As razões de abrir os olhos todas as manhãs

Colocar um pé na frente do outro pé

Chutar a pedra, abrir a porta, tirar o pó

A morte é inerte e mais sedutora e íntima

A vida exige de você provas de amor e afeto o tempo inteiro, e como a vida é sua tudo é tudo pra si 

mesmo, ora a morte só quer você deitado

Descansado, desligado, legitimamente amorfo

O sinal de desamor pela vida é bem discreto, você vai surfar buscando uma boa onda que te ame, 

vai naufragar em lágrimas

E quando você rir o riso será de desespero, porque alegria é uma invenção boa que todo mundo sabe

que o é, mas não sabe onde fica. Quer um conselho? Quando cortar uma cebola proteja os olhos.

Mas não estou falando de nada além daquilo que guardo nas entrecamadas do meu self bolha.

Parti. Fiquei só metade, apartada da outra eu, onde ela foi?

Só, fiquei exalando meu cheiro, e qualquer coisa que estivesse ao meu alcance foi inundado de mim.

Camadas.















sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

O Violino

 

Uma jovem bonita, com um corpo esbelto de vermelho vestido, com um ramo de rosas brancas na mão, há muito que caminhava sem destino pelas ruas de um bairro situado num centro histórico, apreciando ao acaso algumas das casas classificadas como património de interesse mundial.

Quando estava prestes a deixar o bairro, foi atraída por um padrão nada usual em azulejos, que revestia a fachada principal de uma casa. Imediatamente encaminhou-se para o objecto daquele súbito interesse e entrou num esconso beco. 

No momento em que se preparava para admirar aqueles azulejos únicos, ouviu um som musical que a prendeu de imediato e a arrancou ao que vinha. Nada mais a interessou, os azulejos varreram-se-lhe da vista e da memória. Aquele maravilhoso timbre suplantou tudo, parecia ser do outro mundo.

Seguiu o caminho do som e de repente deu com um velho de barbas e cabelos brancos deitado no chão. A posição do corpo e a boca aberta davam a nítida impressão de que estava a dormir. A sua mão esquerda agarrava um violino.

A jovem olhou atentamente para o homem e depois desviou o olhar para o violino. Num relance avaliou-o. Uma maravilhosa obra de arte, sem dúvida. Os seus profundos conhecimentos de música e de instrumentos musicais não a deixavam enganar-se.

 Segura da descoberta, sentou-se, poisou no chão o ramo de rosas brancas que trazia e voltou à avaliação, agora com olhos mais científicos. Não se enganara, aquele som só podia ter saído daquele instrumento. Sentiu um frémito a percorrer-lhe o corpo e num impulso estendeu o braço para se apoderar do violino, mas conteve-se a tempo e encolheu o braço.

«Se o homem está a dormir tão profundamente quem terá arrancado aquele som do outro mundo»?

Poisou os olhos no rosto adormecido e assim ficou durante alguns momentos mantendo um olhar atento e mais prolongado, tentando descodificar aquele estado de vida.

«Estará de facto a dormir ou estará morto»?

A dúvida instalou-se no seu consciente. Para se certificar da situação, ergueu-se, inclinou um pouco o seu corpo e a medo tocou-lhe ao de leve no ombro e abanou-o. O velho continuou de boca aberta e nem se mexeu. O que parecia ser uma coisa passou rapidamente a outra. Afinal poderia estar morto.

A jovem ainda desconfiada de que tudo não passasse de uma encenação ou que ele poderia estar a passar mal abanou-o com mais força, ao mesmo tempo que lhe gritava ao ouvido. Como nem os abanões violentos nem o grito deram quaisquer resultados a jovem concluiu que o velho estava mesmo morto.

«Provavelmente teve algum ataque cardíaco fulminante, após ter tocado aquele som. O corpo não mostra qualquer sinal de violência ou de roubo». 

Voltou a sentar -se no chão e ficou a olhar pensativamente para aquela cena. Passado algum tempo, levantou-se e arrancou delicadamente da mão do velho o violino. De seguida depositou as rosas brancas ao lado do morto. Feita a troca e antes de lhe virar as costas, apanhou o arco que estava caído no chão, apressou os passos e afastou-se rapidamente daquele beco.

Agora que já estava bem longe daquele local começou a pensar no que lhe acontecera:

«Fui passear, entretanto pelo caminho comprei um lindo ramo de rosas brancas e regressei com uma autêntica obra-prima. Não me podia queixar da sorte»

 Mas um sexto sentido parecia querer avisá-la de que se deve desconfiar de tanta sorte.

«Mas que mal me pode acontecer? Apesar de me ter apoderado de uma coisa que não me pertence não fiz nada de errado. Não tenho que ficar apreensiva. A troca beneficiou os dois, o morto ficou flores e eu com o violino. Que mais gostaria ele de ter na hora da morte? Flores como toda agente. Aquele violino já não lhe ia trazer qualquer préstimo.»

 Este auto convencimento devolveu-lhe o ânimo e afastou qualquer espécie de medo. Só um pequeno senão bailava insistentemente na sua mente:

«Quem seria aquele velho e como é que ele possuía um violino daquele quilate»?

Tudo começou num longínquo tempo em casa de um famoso luthier e compositor que em honra do seu filho, um prodigioso violinista, prometeu construir um violino perfeito e compor uma obra de dimensão universal. Procurou as melhores madeiras, as cordas mais sensíveis, as melhores cerdas, as tintas e os vernizes de qualidade superior. Todos os utensílios fabricados para aquela obra foram especialmente por si concebidos e mandados executar pelos melhores artífices que trabalharam sob a sua orientação. Nada podia falhar, porque mais do que uma obra-prima ele queria a obra perfeita. E enquanto ia construindo o violino ia também criando a obra musical.

Muitos meses e talentos passados e o violino perfeito não havia maneira de ficar concluído. O timbre ou estava mais agudo ou menos aveludado, mais estridente outras vezes. Havia sempre um pormenor imperfeito e o som tocado nunca saía perfeito. O concerto estava prestes a ter lugar e o problema continuava insolúvel. Na solidão da sua angústia o luthier tentou tudo, até o impossível, e conseguiu.

No dia do concerto a Catedral encheu-se de melómanos, de amigos e de gente sem especiais qualificações musicais, todos interessados em assistirem àquele evento. À hora marcada o compositor luthier subiu ao altar e saudando os presentes anunciou o programa da noite. Apesar do seu auto controlo a ansiedade estava bem marcada no rosto e no timbre da sua voz. Dava a impressão que havia algo de misterioso, alguma coisa menos transparente naquele concerto, mas talvez fosse só da ansiedade própria de tão importante momento. Que mistério poderia haver num concerto de violino, ainda por cima num local santificado?

O prodigioso violinista, recebido com uma salva de palmas que encheu toda a catedral, era um jovem alto, de porte elegante, com os cabelos negros a tocarem ao de leve os ombros. Quando enfrentou o público, os seus olhos verdes que iam a matar com seu distinto traje de cerimónia brilhavam de satisfação.

Um maravilhoso som que parecia ser do outro mundo ainda se elevou ao cimo da nave da Catedral, mas por aí ficou, porque não se ouviu nem mais uma nota. O prodigioso violinista parou de tocar e caiu no altar. Gritos de angústia e de desespero ouviram-se por toda a Catedral. O pânico instalou-se ainda mais quando as pessoas das filas da frente se levantaram e em atropelo correram em direcção ao malogrado jovem violinista.

Ajoelhado o pai agarrava carinhosamente o corpo morto do seu único filho. Não se ouviu dele um grito, mas as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto marcado pela terrível tragédia. Carinhosamente o pai levantou-o do chão e deitou-o na pedra sagrada do altar. Aí repousou até ser transladado para uma urna onde ficou em câmara ardente durante as exéquias fúnebres.

O luthier ainda pensou em destruir o violino, mas não teve coragem de o fazer e encerrou-o num caixão de vidro que depositou num altar construído de propósito na sua oficina.

Durante o tempo em que foi vivo nunca mais saiu de casa e não mais construiu qualquer instrumento musical.

Entretanto passou a correr pela cidade uma explicação da causa da morte do jovem e famoso violinista: o pai para conseguir o violino perfeito fez um pacto com o Diabo, prometendo que se ele lhe desse o violino prefeito nunca qualquer casa de Deus teria a honra de ouvir daquele violino uma nota que fosse. Esquecido o pacto, foi na Sé Catedral da cidade que se realizou o concerto e foi lá que se ouviu a primeira e única nota. Foi a vingança do Diabo pela quebra do pacto. O Violino perfeito é uma obra amaldiçoada, quem tocar nele uma nota que seja morrerá de imediato.

E foi aquele velho de cabelos e barbas brancas que se introduziu, por meio de arrombamento, numa oficina de instrumentos musicais e que viu um homem caído no chão e que ainda agarrava com a mão um violino. E foi esse velho que se agachou e que arrancou o violino das mãos daquele homem. E foi esse velho que saiu para a rua com o saco às costas, levando nas mãos um arco e um violino.

 

 

 





terça-feira, 10 de janeiro de 2023

O troco do Saci


Quando eu vejo um redemoinho surgir do nada, já vou me preparando. O danado vai aprontar ou já aprontou alguma coisa. Há quem não acredite nas histórias do Saci. Eu nunca o vi, mas tenho certeza de que ele existe. Pode perguntar para qualquer um, as traquinagens dele são contadas por todos os povos. Acho até que ele muda de forma de acordo com o gosto e os medos de cada um. E você, como imagina o Saci? Já viu algum?

Também é certo que o Saci leva a fama das travessuras de alguns, que de seres mágicos ou mitológicos não tem nada. Mas há casos em que o Saci apronta e meninos e meninas sapecas levam a fama. Isto aconteceu com o meu primo Zeca, um sujeito que gostava de fazer das suas e jogar a culpa nos outros, principalmente nos mais novos.

Certa vez, na volta do colégio, num dia seco e empoeirado de junho, começaram a se formar vários redemoinhos. Alguns prejudicavam a corrida de bolinhas de gude, disputada pelo meu primo e alguns amigos da classe. O Zeca mirou com cuidado a bolinha preferida do Tito. Quando foi soltá-la, um dos redemoinhos formado jogou pó em seus olhos e ele errou feio. A jogada foi sem força e ele praticamente entregou a búrica para o Pedro.

- Seu Saci filho da mãe! Olha que eu lhe pego com a peneira, arranco o seu capuz, você perde os seus poderes e aí vamos nos entender. Quero ver o que consegue fazer trancado numa garrafa! - gritou o Zeca.

Você pode não acreditar, mas o redemoinho fez meia volta e envolveu o Zeca, que desesperado tentava proteger a boca e o nariz de tanto pó. A camisa branca do uniforme tornou-se vermelha. Nem que meu primo rolasse na estrada, conseguiria ficar tão sujo.

Meu primo disse alguns palavrões impublicáveis, ofendendo não só o Saci, mas toda a sua família, principalmente a mãe do capetinha.

O Natalino, assustado, disse:

- Não se brinca com Saci, quem dirá ofendê-lo! Meu vô diz que ele tem parte como o Demo!

- Pois você vai ver só! Vou fazer uma armadilha para ele! – quase cochichou o Zeca.

- E como você vai fazer isso?

- Eu faço arapuca para passarinho, rede para pregar peixe. Até espingarda para a onça já fabriquei. Não vai ser um sacizinho que vai fazer pouco de mim! Se ele resolver aparecer, meto fogo no taquaral e aí quero ver um outro Saci nascer. Quem mandou ele se meter a besta comigo!

De repente surgiu um novo redemoinho e cresceu, cresceu, cresceu. Todos ficaram assustados. Tão rápido quanto surgiu, desapareceu. Tudo ficou num silêncio só. Sem uma brisa sequer. Quase que dava para se ouvir o som das formigas que numa trilha levavam algumas folhas cortadas.
Passados alguns segundos, o Zeca disse:

- Está vendo, já se borrou de medo!

Os outros meninos e eu, não tínhamos tanta certeza assim. Fomos para casa um pouco preocupados com o desafio do Zeca. Com o primo do tinhoso não se brinca. – Pensávamos, eu e os amigos do Zeca.
Antes de continuar a história, preciso lembrar uma coisa. Naquele tempo, as crianças, além de ir à escola, eram mais participativas nas atividades familiares, principalmente no interior. Minha tia, para complementar a renda da família, criava vacas leiteiras. As vaquinhas se alimentavam, na maior parte, com coisas que ela mesma plantava no terreno onde morava.

A ordenha também ficava por conta da minha tia. Aos meus primos cabia tarefas como preparar o trato para os animais e a entrega do leite. Os bichinhos não comiam pouco. Era preciso muito pasto, mandioca, abóbora, milho, além da ração, do sal e outros minerais. Tudo precisava ser cortado, picado, debulhado, medido, misturado e depois virava comida de vaca.

Ninguém reclamava de trabalhar um pouco. Todos iam bem na escola também. Trabalhar não doía. O trabalho ensinava-nos a valorizar mais cada conquista.

Voltemos a história do Saci. No fim da tarde, o Zeca nem lembrava mais dos xingamentos à família do Pererê, mas o rapazinho de uma perna só não tinha a memória curta assim.

Minha tia precisou fazer uma consulta médica, então, naquela tarde tudo ficaria por conta do meu primo, já que a minha prima, um pouco mais velha, serviu de companhia para a mãe. Então, além da entrega do leite, ajudei o Zeca no preparo da comida das vaquinhas. Sou testemunha de que meu primo fez tudo com o maior cuidado, já que minha tia havia prometido que se tudo fosse bem feito ele ganharia alguns trocados e que já tinham endereço certo: comprar alguns ingredientes para fabricar pólvora.

Quando minha tia chegou, já estava escuro e tudo parecia em ordem. Meu primo, cansado, dormia. Na mesa da cozinha estava os litros de leite que sobraram depois da ordenha e da entrega. Minha tia pensou em repreender meu primo por ter esquecido os litros fora da geladeira. Deixou para o dia seguinte.

Como de costume, mal o dia começava a amanhecer, minha tia já estava no quintal para retomar o trabalho diário. Mesmo depois do café forte, ela se sentia sonolenta. A quebra da rotina no dia anterior ainda deixava sinais de cansaço. Quando ela abriu o portão que separava o terreno da casa e a estrebaria, não acreditou no que via. Esfregou os olhos para ter certeza de que não sonhava. No quintal, a plantação de abóboras, de pepino e de hortaliças estava toda pisoteada pelas vacas, que naquela hora saboreavam algumas vagens de feijão-de-vara que pareciam perfeitamente alinhadas na plantação.

- O Zeca me paga! Pedi tantas vezes que não esquecesse o portão aberto! E que brincadeira é essa de fazer trança no rabo das vacas. Este menino merecia levar um coice de uma delas!

As vacas pareciam esfomeadas. Ela pensou que meu primo tivesse se distraído com alguma coisa e esquecido da comida das bichinhas. Apenas uma vaca, a mais velha, a Estrela, havia ficado em seu lugar e mugia desesperadamente, parecia assustada.

- Coitada da minha Estrela, minha vaquinha obediente. Está com fome? Espere aí que já vou te dar algo para comer. - falava minha tinha com a sua vaca, como se o animal fosse uma criança.

A tia foi procurar pelo velho facão, que havia sido do pai dela. O facão havia resistido ao tempo, quase tão velho quanto o seu antigo dono. No fim do dia ficava lá, fincado no cepo de imbuia. Como de costume, minha tia o pegou pelo cabo e puxou com vontade. Saiu muito fácil e minha tinha teve que dar um passo atrás para se reequilibrar. Já firme novamente, olhou com atenção para o facão. Metade dele havia ficado no cepo.
- Lazarento do Zeca, quebrou o facão e ainda o disfarçou! - esbravejou minha tia.

A sorte do Zeca e que ele havia saído mais cedo de casa, junto com o pai. Depois foi para a escola. Rapidinho a vizinhança soube do ocorrido, pois minha tia não economizava o tom de voz, nem os palavrões para descrever o ocorrido. Um menino, amigo do Zeca que ouviu um pouco do barulho de minha tia foi até a escola, na saída, para alertar o Zeca.

- Mas eu não fiz nada disso, meu primo está de prova!

- Eu falei, Zeca! Foi provocar o Saci, deu nisso! - afirmava o Natalino.

Meu primo, assustado, saiu correndo. Todos imaginavam que tivesse ido para casa. Desapareceu por dois dias. Minha tia chorava desesperada. Meu tio já havia chamado a polícia para ajudar nas buscas. Eu levei alguns tapas também, afinal de contas eu era um dos ajudantes do meu primo e não adiantou argumentar que havíamos feito tudo certinho.

- Menino é tudo igual. Um protege o outro, dizia uma outra tia mais velha, que também morava em frente.

No fim da tarde do segundo dia, eu estava na frente de casa, quando um redemoinho de formou. Ele passeava pela rua, ia e voltava, como se me chamasse. Resolvi segui-lo. Caminhei por quase um quilômetro pela estrada que dava acesso ao rio e que ladeava a fábrica de compensados. No final da rua, o redemoinho pareceu estacionar em frente a um tubo de concreto. Uma de nossas brincadeiras era imaginar que o tubo fosse um dos nossos foguetes, o Apollo 26. Olhávamos para o céu, pela abertura superior e nos imaginávamos cortando o espaço rumo a Lua.

Escalei a parede do tubo. Encontrei lá dentro o Zeca, coberto de barro e salpicado de penas de galinha. Chorando, abatido. Eu tinha um caqui no bolso da calça. Ofereci ao meu primo, que estava faminto. Não sei se ele lembrou de cuspir as sementes.

- Sabe primo, imaginei um bocado de armadilhas para o Saci, depois daquela manhã na volta da escola. Parece que caí em todas que eu mesmo imaginei. Ele armou elas para mim. A primeira, foi cair numa valeta, coberta por vassourinha. Depois, passei por um bando de galinhas assustadas que pularam em minha direção. Além do cheiro de bosta, parece que essas penas cresceram em mim. Quanto mais eu tiro, mais pena aparece!

- Vamos primo, em casa você toma um banho!

- Como está a minha mãe? Ainda brava comigo?

- Não sei se ela está mais brava ou mais preocupada. Tem uma coisa: desde ontem ela não larga uma vara de marmelo.

Mesmo assim, convenci meu primo a voltar para casa. Ao longe, redemoinhos se formavam. Meu primo seguiu o caminho todo arrepiado, não sei se sentia mais medo do capetinha ou da reação da minha tia.

Não consegui saber exatamente o que aconteceu depois que meu primo voltou, ele nunca me contou. Ficou por três dias fechado em casa. Eu, levei mais alguns puxões de orelha, por que pensaram que eu sabia desde o início onde meu primo se escondera.

Eu tive uma certeza, se foi mesmo o Saci quem aprontou para o meu primo, ele não é tão mal assim. Se fosse, não teria me avisado onde ele estava.

O Zeca não aprendeu a lição. Algum tempo depois, quebrou um de meus dedos, numa guerra de sabugos de milho.