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sábado, 27 de fevereiro de 2021

A Promessa



Bruno conduzia a velha motorizada, em velocidade, a caminho de casa, na noite fria de inverno. O impulso que trazia era mais devido à inclinação da estrada do que propriamente pela potência do cansado motor. A ausência de receio nas curvas apertadas, essa, era devido aos copos de tinto que sorvera na tasca do Guedes, por entre as cartas da sueca e as anedotas porcas com amigos e colegas de trabalho. Na saca do almoço, presa na grelha traseira, seguiam duas garrafas de verde tinto, de beber e chorar por mais. Não seria a estrada serrana e as bermas compostas por penhascos de dezenas de metros, que haveriam de atrasar ainda mais o regresso ao covil onde habitava a sua Madalena. A adorada esposa, por estas horas, havia de estar a soprar fogo pelas ventas, com o retardo do marido, em dia de recebimento.

Cumpriram-se naquele dia quarenta e oito anos, que saíra do ventre prenhe de sua mãe, de onde haviam saído os outros sete irmãos em anos anteriores. Começara a trabalhar nas obras de construção civil aos onze. A família não podia manter quem não contribuía para o rendimento mensal, fortemente debilitado pelo consumo desregrado de tabaco e vinho do pater familias, também ele “mestre” trolha. Por isso, “deu com os lombos” a trabalhar nas construções, ao lado do pai, logo que terminou a escola primária. Estava-se nos últimos anos da ditadura não precisava de estudar mais. Não se pense por isso que o trabalho lhe fora facilitado, nunca esqueceu as “lambadas” que levava cada vez que se demorava a entregar o que lhe pediam, ou os dolorosos chutos nos fundilhos, que descarregavam a frustração do progenitor.

Agora, com estes agravos quase diluídos nos anos que se passaram, resolvera passar pela tasca, festejar e beber um copo com os amigos, depois de um dia muito longo. Bem sabia que prometera a Madalena não tornar a gastar na taberna o que lhes fazia tanta falta, mas que sabia ela das necessidades de um homem? "Reduzi aos cigarros e deixei de passar na tasca todos os dias, não deveria haver uma compensação de vez em quando? E afinal, para que servem as promessas, se não for para serem quebradas?" Argumentou para si próprio. "Se ela se puser com muita conversa, ainda vai enfardar uns tabefes."

Ruminava nestes pensamentos desde que saíra do estabelecimento, já noite, mais leve cinquenta euros, de cabeça pesada e ouvidos a zunir. O barulho irritante do motor da motorizada tornava-se quase hipnotizante, mesmo na estrada sinuosa e reluzente do gelo que se começava a formar nos pequenos fios de água que atravessavam o asfalto. O capacete parecia-lhe cada vez mais pesado e as pálpebras pareciam ficar coladas quando as fechava. Foi num ápice que sentiu o motociclo deslizar numa curva gelada e se viu, impotente, a rebolar para berma até se lançar no vazio.

Após uns segundos de incredulidade, tomou consciência da sua situação. Estava em cima de uma árvore seca, um velho castanheiro, debruçado sobre um barranco de mais de dez metros. Conseguia divisar a vegetação, no escuro, a acompanhar todo o declive até quase desaparecer de vista no fraguedo que o aguardava no fundo.

— Meu Deus! — Gemeu alto, aflito. A árvore estremeceu, ameaçando soltar-se e ele teve de agarrar-se com mais força.

Olhou o céu gélido, coberto de pequenos pontos luminosos, onde reinava o enorme disco prateado que parecia olhá-lo desdenhosamente, perfeitamente insensível ao seu drama. Olhou a toda a volta, em busca de uma solução para o seu problema, antes de se tornar a focar nas ominosas fragas que representavam, estragos muito dolorosos, se não mesmo a morte. O tronco onde se agarrava estremeceu de novo, avisando-o que tinha de arranjar uma solução urgentemente.

— Meu Deus! — Recomeçou, olhando o céu. — Minha Nossa Senhora de Fátima, pedi por mim a Nosso Senhor que perdoe as minhas faltas.

Como resposta, o castanheiro deu mais um sacão, soltando terra e algumas raízes, ameaçando colapsar a qualquer momento. Com uma lentidão exasperante, todo o tronco começou a inclinar-se para o vazio. Um verdadeiro réptil, Bruno rastejou sobre os ramos, procurando o corpo principal da árvore

— Eu prometo, Meu Deus! — Chorou, arrastando-se ao longo do tronco, tentando chegar às giestas que se eriçavam no declive. — Eu vou cumprir a promessa feita à minha Madalena. — Mais uns centímetros de inclinação, arrancaram a promessa final. — Eu deixo de beber, eu juro, eu prometo! Não volto a levar um copo aos lábios, Meu Deus, deixa-me voltar para a minha doce Madalena!

Ao invés de tombar de uma vez, o castanheiro encostou-se completamente ao declive, permitindo a Bruno agarrar-se com todas as suas forças à vegetação rasteira e iniciar a escalada para a salvação. Um enorme monte de terra saliente assinalava o local onde a raiz se libertara, deixando uma cratera. Na subida, teve de se esquivar das pedras e terra solta que parecia querer acompanhar a arvore na sua caminhada final.

— Obrigado Meu Deus! — As lágrimas, sangue e o muco do nariz, misturados com a terra, transformaram-no numa criatura de terror. Os cotovelos e os joelhos sangravam em manchas no vestuário. — Eu prometo, Meu Deus, eu prometo! — Arrastou-se, exausto, para a berma do asfalto e deitou-se no chão, a chorar desabridamente.

Cerca de um metro à sua frente, a pasta do almoço estava tombada e aberta, a marmita espalhara os restos do arroz misturando-os com o carmim de uma garrafa que se quebrara na queda. A outra, intacta, rebolara na sua direção.

Bruno sentou-se no chão e apanhou a vasilha, mirando-a com a saliva a formar-se na boca. Atrás e abaixo dele, o velho castanheiro devia estar a arrastar um pedaço da encosta, na sua agonia. Tirou a rolha, limpou o gargalo com a manga e deu dois grandes goles.

— Tendes de me perdoar Meu Deus. — Exclamou passando a língua nos lábios húmidos do néctar. — Preciso mesmo de uns goles… além do mais, eu prometi que não tornaria a levar um copo à boca, não uma garrafa.

Soltou uma gargalhada que ecoou no vale, mas foi a última, pois, no seu apego à terra onde nascera, o carvalho provocou uma enorme avalanche e metade da estrada foi arrastada, levando o perjuro para a sepultura, numa torrente de terra e pedras.







quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Um acaso improvável

 

Marco não admitia que tinha um problema de jogo. É certo que sempre estivera envolvido em ambiências de fortuna e azar, quer na adolescência, em que começara por jogar King a meio centavo o ponto, depois “abafa” e “lerpa” na tropa, com incursões cada vez mais frequentes na zona de máquinas do Casino do Estoril, até às posteriores dependências da roleta e aos seus mais recentes empolgamentos com o póquer on line.

Na tropa, apostava o vencimento de oficial miliciano. Quando as sucessivas noites de jogatina corriam mal e o vencimento se ia, iam-se também as saídas do quartel. Felizmente, havia a messe e o preço das refeições era descontado no fim do mês. E não parava de jogar: ficava a dever, apoiado na garantia do vencimento seguinte.

A fase da roleta foi das piores, em termos de perdas. Muitas noites saiu do casino de bolsos vazios, mas convencido que estivera perto de ganhar. E na noite seguinte estava de volta. A adrenalina de ver a bolinha a saltar e a perspetiva de ganho só era equivalente à da perspetiva de uma conquista galante. Pediu muito dinheiro emprestado.

Recentemente era o póquer. Sentia que visualizava com rapidez as várias variantes possíveis, e era agressivo nas apostas, mas continuava a perder “algum” dinheiro.

Tens um problema de jogo! — disse-lhe Jacinto, um amigo que encontrou por acaso e se apercebeu de alguns aspetos menos simpáticos desta dependência.

Depois de meia hora de disputa — ele a negar, com argumentos de “nada de mais”, o amigo a insistir, com argumentos de “sê sincero contigo próprio” —, aceitou acompanhá-lo a uma sessão dos Jogadores Anónimos:

É só porque já não te posso ouvir…

Era mais ou menos o que esperava: uma sala com cadeiras a formar um círculo; um psicólogo a tentar que as pessoas se abrissem e assumissem o seu problema de jogo. A experiência não foi especialmente inspiradora, mas, como ia com o amigo, que, por sinal, também estava a tentar livrar-se da dependência do jogo on line, voltou várias outras vezes.

Aos poucos, foi ouvindo histórias extraordinárias de vício de jogo — perdas gigantescas numa só noite, endividamentos extremos, roubos a familiares para jogo, autoestimas destruídas, tentativas de suicídio:

«Atolada em dívidas e incapaz de parar de jogar, tentei suicidar-me à frente dos meus quatro filhos.» «Os problemas com o jogo levaram-me a desviar milhares de euros do local de trabalho.» «Vivi durante quatro anos praticamente sem comer nem dormir. Quase enlouqueci.» «No espaço de poucos meses, acabei com os plafonds de três cartões de crédito e o ordenado de economista deixou de chegar para pagar as dívidas ao banco.» «Acumulei seis créditos em bancos diferentes e uma dívida de mais de sessenta mil euros.» «Cheguei a roubar dinheiro do mealheiro dos meus filhos.» «Em desespero, vendi um aquecedor a óleo na feira, por cinco euros.» «Todas as noites acabavam da mesma maneira: sem dinheiro no bolso e a braços com crises de choro, ansiedade e insónias.» «Em 2009, gastei o ordenado de dois mil euros em apenas meia hora.» «Cheguei a estar doze horas seguidas à frente de uma slot machine.» «Cheguei a remexer em gavetas em casa à procura de moedas, para poder comprar uma lata de atum para matar a fome.»

Com exceção de algumas diferenças de escala, havia semelhanças com a sua história. Quase todos falavam de um ganho importante, no início, e referiam o gosto pelo ganho fácil, pelo poder, pelas sensações fortes, pela novidade. Culpavam a vontade de ganhar mais, quando ganhavam, e a premência de tentar recuperar, quando perdiam.

Para além dos casos pessoais, foi apanhando uma ou outra máxima, difíceis de aceitar, a princípio, verdades sábias, depois: “A dependência do jogo é uma doença que não tem cura”; “Um jogador compulsivo nunca deixa de o ser”.

Só no terceiro mês percebeu que tinha de “abrir o jogo” e parar de jogar. Foi quase insuportável a sensação seguinte de tédio, de vazio, de carência de qualquer coisa. Felizmente, o amigo Jacinto, indivíduo curioso, sempre a tentar perceber melhor alguns fenómenos, deu-lhe apoio e foi desmistificando alguns dos mitos que perdem o jogador.

— “Não jogue nunca!”, dizia Dale Carnegie num livro que li há muitos anos. Porquê? Porque todos os sistemas de jogo estão construídos para vencerem o jogador e lhe ficarem com o dinheiro. É de uma grande ingenuidade ele pensar que pode derrotar uma máquina que está programada para o vencer. Ela até pode dar-lhe prémios chorudos, que o deslumbram com esse ganho esporádico. Ao fim de muitas jogadas, a máquina ganha sempre. A máquina ou qualquer sistema. Porque o número de possibilidades de ganho do jogador é sempre inferior ao número de possibilidades de ganho do organizador do jogo. Seja roleta, slot machine, lotaria, raspadinha, concurso televisivo. O casino e os outros organizadores de jogos são os únicos que estão do lado certo do jogo. Como organizadores, dispõem de vantagens em relação aos jogadores: na roleta do casino, há 37 números — do 0 ao 36, como sabes; 18 são vermelhos e 18 são pretos; se jogares nos vermelhos e sair vermelho ganhas o dobro, se sair preto, perdes. Quando sai 0, ganha o casino. Portanto, apostas em 18 números, mas o Casino dispõe de 19 números. A longo prazo ganha sempre. Sempre!

Sim, claro, mas é possível derrotar o casino — ripostou Marco, certo do que dizia. — É preciso é contar bem as saídas de pretos e vermelhos e apostar no que tenha saído menos vezes. O que tenha saído menos vezes tem maior probabilidade de sair, claro!

Então, Jacinto disse o que ele não esperava ouvir e que mudou radicalmente a sua conceção dos jogos aleatórios:

A bola não tem memória das jogadas anteriores. A probabilidade de sair vermelho é a mesma de sair preto. Em todas as circunstâncias. Mesmo que tenham saído 90 vermelhos contra 10 pretos, a probabilidade de sair preto na jogada seguinte é igual à de sair vermelho.

Mas, como assim? — revoltou-se Marco. — Sei bem que a média em lançamentos aleatórios de duas possibilidades é de 50% de resultados para cada uma… Como é isto possível, se a cor que saiu menos vezes não passar a sair mais vezes?

É. Repara!

Puxando do telemóvel para fazer os cálculos, mostrou-lhe, então, com números, como a média se aproxima de 50–50%, sim, mas, geralmente, só à medida que o número de lançamentos sobe para os milhares.

No exemplo anterior, a percentagem era de 90% vermelhos contra 10% pretos, certo? Se continuarmos a fazer lançamentos e obtivermos, por exemplo, totais de 600 vermelhos contra 400 pretos, a percentagem passou para 60% vermelhos contra 40% pretos, que é muito mais próxima de 50–50, sim, apesar de os pretos terem continuado a sair menos. Os tais pretos que “obrigatoriamente” teriam de sair mais vezes…

Manteve-se em silêncio, mais para não dar a vitória ao amigo, apesar da clareza da explicação. Engoliu em seco despercebidamente. Não estava a ser fácil dar de barato o que lhe pareciam verdades inquestionáveis.

Eu era um maluquinho das simulações — continuou Jacinto. — Com programas informáticos simples que eu próprio elaborava, fiz todo o tipo de experiências. Posso garantir-te: não se consegue ganhar à roleta. O zero a favor do casino é a vantagem que lhe garante a vitória final contra qualquer jogador. A este só lhe resta parar de jogar.

Desculpa lá… — tentou Marco levantar-se —, jogando o dobro de cada vez que perco, acabo por recuperar…

Essa é outra ilusão. Nem os milionários têm dinheiro para isso. Já foram registadas séries de 22 resultados da mesma cor, seguidos — esmagou Jacinto, voltando à calculadora do telemóvel. — Isso significa que um jogador que estivesse a fazer apostas de um euro com essa estratégia, se perdesse um euro e continuasse a apostar o dobro, ao fim de 22 jogadas teria já perdido 4 194 303 euros e teria de ainda pôr 4 194 304 euros na mesa da roleta para conseguir recuperar as perdas na 23ª aposta. E ganhar um euro... Apostar mais de oito milhões para ganhar um euro? Há investimentos mais acessíveis e mais seguros! E úteis.

Mas, então... — estava sem palavras. — Nem “à moedinha”, para o café?

Em teoria, é isso mesmo, Marco! “Não jogues nunca!” O jogo só é inofensivo e prazeroso quando não se tenta forçar um ganho. Claro que eu jogo duas apostas de euromilhões por semana, não mais. O suficiente para uma vivência social normal. E podemos jogar à moedinha. Três, para as que vierem — vaticinou ele, estendendo a mão fechada, que podia trazer 1, 2, 3 moedas, ou nenhuma.

Ok, já percebi. Eu pago-te o café!

Entraram numa pastelaria, com Marco numa espécie de estado de graça. Sentia que a sua vida de jogo — já não tinha medo das palavras — iria mudar radicalmente. Passaria a ser muito racional sempre que fosse confrontado com solicitações de ganhos miríficos, em acasos de jogo.

Acho que agora vejo as coisas duma maneira muito mais clara. Nem sei como te agradecer!

Para que servem os amigos?

Uma semana depois, voltaram a tomar café.

Marco estava pouco falador, cabisbaixo mesmo. Mexeu o café, pensativo, muito mais do que o necessário. Por fim, falou.

Jacinto, há alguns anos que não nos víamos e, em pouco tempo, temos convivido bastante. Só por isso é que me atrevo a pedir-te um favor — começou ele de rosto muito constrangido. — Só o faço porque as coisas não vão nada bem. Espero que não leves a mal.

Que se passa? — estranhou Jacinto. — Se eu puder ajudar… Não me esqueço dos amigos de longa data.

Marco fez um compasso de espera, cabeça baixa, como se não soubesse bem o que dizer.

Ainda são sequelas do jogo. Na altura, pedi bastante dinheiro ao banco e não consigo dar conta dos compromissos. Há dias penhoraram-me o ordenado. Dois terços já não me chegam às mãos. Fico só com um terço para as despesas todas. Preciso que me emprestes dois mil euros.

Com o desenrolar da conversa, percebia-se o que vinha aí, mas o número…

Eh, pá, dois mil euros… Estás mesmo a precisar de tanto? É que isso é mais do que eu recebo.

A sério? Estás a ganhar pouco! Ó Jacinto, eu não te pedia se não estivesse a precisar. Eu depois pago-te quando as coisas melhorarem.

Ainda tentou descartar a hipótese que entretanto o assaltara:

Por acaso não voltaste a jogar, não?

Ó pá, agora magoaste-me. Então eu ia pedir-te dinheiro para jogar?

Jacinto aceitou fazer a transferência, mas no mês seguinte o amigo voltou à carga:

Mil euros, Jacinto! É que a Besilde ficou desempregada...

Continuaram a encontrar-se semanalmente nos Jogadores Anónimos, mas a situação estava a tornar-se pungente. Um dia Marco pedia um carregamento de telemóvel; noutro o passe do metro. E ia dizendo que era a última vez, que não pedia mais, mas na semana seguinte voltava ao mesmo. Jacinto já começava a não achar graça nenhuma àquela amizade. Quando pediu mais mil euros, confrontou-o:

Marco, isto assim não pode ser! Ainda não me pagaste nada do que te emprestei. Como é que achas que vais pagar?

Amigo, ainda não foi possível, mas eu vou pagar-te, está descansado. Anda lá a casa jantar amanhã para falarmos disso, pode ser?

Jacinto não queria ser indelicado, apesar da situação que se vinha a criar. Acabou por aceitar. Marco morava com a mulher na Pontinha, na zona antiga, e não tinham filhos. Receberam-no com muito carinho e Besilde apresentou um esparguete com um molho realmente saboroso. Naquele momento, Jacinto invejou-o. Aquele tipo, com enormes problemas económicos, tinha um aconchego familiar apetecível: comidinha caseira e uma mulher que, não sendo esplendorosa, era muito bonita e atraente. O jantar foi amigável, mesmo afável e não se tocou no assunto “dinheiro” durante toda a refeição, apesar de Jacinto vir à espera disso. Depois do café, ficaram os dois a conversar nos sofás da sala, enquanto a mulher se retirara para a cozinha.

Preciso mesmo desses mil euros e quero realmente pagar-te — começou Marco —, mas não está fácil. O dinheiro que entra é pouco e acaba-se depressa. A Besilde vai fazendo uns biscates, que é o que vai valendo. Estivemos a pensar e lembrámo-nos que talvez não te importes de receber alguma coisa que precises, mesmo sem ser dinheiro. Espero que não leves a mal.

Não respondeu logo; não lhe agradava deixar de receber em dinheiro vivo, tal como emprestara. Por outro lado, não se vislumbrando outra maneira, talvez Marco tivesse objetos de que se quisesse desfazer e lhe dessem jeito. Do mal o menos.

Não sei, Marco! Tens coisas para vender? Eu já tenho a casa cheia de tralhas. Sem ofensa!

Sim, temos bens que te podem convir. Depende do teu interesse. Estarias disposto a receber, sem ser dinheiro mesmo? É que nós queríamos pagar estes empréstimos, mas dinheiro não temos.

Não é preciso eu receber já. Se achas que dentro de algum tempo me consegues pagar… — descaiu-se Jacinto, arrependendo-me logo de seguida. Estava a abrir a porta para receber daí a muitos anos ou no “dia de São Nunca”. — Mas diz lá o que tinhas em mente. Pode ser que me interesse.

Jacinto, só te vou propor isto porque sei que és um tipo sério, a quem estou muito agradecido. Devo algum dinheiro a outras pessoas — pouco — mas a esses não proponho pagamentos destes; não me merecem respeito, apesar de me terem emprestado dinheiro. Pensa bem antes de responderes.

Ok, ok, diz lá!

Jacinto, estamos com quarenta e tal anos, já nos conhecemos há uns tempos, já vamos percebendo os pontos positivos e os negativos de cada um. Sei que também tiveste problemas de jogo, mas que estás a ultrapassar; sei que não vives mal economicamente, mas que vives sozinho desde que te separaste da tua mulher — fez uma pausa neste ponto. — Um homem não vive bem sem uma mulher. Mesmo que o dia corra bem no emprego. À noite vai beber um copo com os amigos, sem que ninguém o chateie? Sim, é verdade, mas quando chega a casa também não tem ninguém que lhe dê um carinho. Percebo bem as tuas carências nesse ponto. Nós não temos muito mais para te oferecer… O que me dizes? Não leves a mal!

«Quê? O que é que ele está a querer dizer? Será o que parece?» — pensou Jacinto. «Não, não pode ser… assim, com esta desfaçatez? Com a mulher ali na cozinha? Este tipo está parvo ou sou eu que tenho uma mente perversa?»

Marco, não sei se estou a compreender. Estás a dizer o que eu estou a pensar?

Não te sintas constrangido. Se não quiseres, nós compreendemos. Mas isso ia magoar a Besilde. Ia ver isso como uma rejeição pessoal.

Mas, quê? Diz, diz tu!

Uma vez ou duas por semana vinhas cá a casa. Ou a Besilde ia à tua. Até pode viver contigo uma semana por mês. Como quiseres. Acho que é uma maneira de te compensar, já que não temos meios de te pagar de outro modo.

Estás maluco! Eu não posso aceitar isso — reclamou Jacinto, numa atitude genuína de respeito pela dignidade humana.

Marco hesitou. De repente, pareceu apanhado de surpresa.

Gostas de mulheres, não? Não achas a Besilde interessante?

Sim, sim! Quero dizer... não. Isto é, acho-a muito bonita e interessante, mas não quero pensar nela dessa maneira. É a tua mulher… — atrapalhava-se Jacinto, em pressupostos. — E a Besilde? Não tem voto na matéria? — atirou ainda, mas já temendo que o argumento pegasse…

Claro que tem! Já falámos muito, já pusemos muitas hipóteses. Ela está disposta a tentar; deu-me há pouco o aval. Estamos nisto juntos.

Mas, não é penoso para ela?; não é humilhante para ti? — contrapôs Jacinto, de regresso a uma posição mais ética, menos egoísta.

A Besilde gostou de ti. Achou-te interessante e, além disso, também está muito reconhecida pela ajuda que nos tens dado. Por mim, é bem melhor que fique entre amigos.

Mesmo assim, parece que estou a pagar por sexo. A ela, a ti. É… desconfortável.

Era bom que esta proposta não passasse de uma espécie de ilustração teórica dos perigos do jogo. Infelizmente, é a realidade de muita gente. Há quem venda o corpo na rua. Nós, até agora, temos conseguido não chegar aí. Esta solução não nos traz constrangimentos; estamos decididos.

Perante o silêncio do amigo, continuou:

Mas, se preferes, podemos deixar a decisão à sorte — sugeriu, tirando uma moeda de 20 cêntimos e colocando-a sobre a unha do polegar direito, pronto a dar-lhe um piparote. — Se sair coroa, ficas à espera do dinheiro; se sair cara… aceitas a Besilde.

Não, não. Não me tentes com jogos! — declarou num sofisma.

Jacinto aceitou a proposta, com sentimentos mistos. Uma luta entre respeito humano e egoísmo lúbrico não deixou de se travar no seu íntimo. A primeira saída não passou de um jantar num pequeno restaurante, como num namoro formal, mais por pedido dele. Durante os meses que durou o “pagamento da dívida”, Besilde passou quase todos os fins de semana em casa de Jacinto. À medida que se aproximava o fim do período previsto, crescia nele um certo sentimento de angústia. Não queria perder aquele mimo feminino que tão bem lhe fazia. Quando, esporadicamente, Marco voltou a pedir-lhe dinheiro emprestado, facultou-lho sem reservas. Até com um sentimento de satisfação. Perto do fim do prazo mais recente, foi o próprio Marco que o libertou mais uma vez da ansiedade.

Jacinto, estamos contentes não só por conseguirmos pagar a dívida, como por nos teres permitido fazê-lo deste modo. Estivemos a falar e resolvemos propor-te… uma extensão do acordo. Dava-nos jeito uma entrada extra de dinheiro. Mas só se tu quiseres.

Jacinto manteve o rosto impassível, mas por dentro rejubilava. Não era coisa que não lhe tivesse já passado pela cabeça, mas não tinha tido coragem de ser ele a propô-lo. Envergonhava-se.

Cerca de dois anos mais mantiveram o acordo de dama e cavalheiros, se é que algum merecia a dignidade desses epítetos. Numa das poucas vezes que Jacinto visitou a casa do casal, percebeu pelo ecrã esquecido em jogos on line que o jogo nunca tinha abandonado verdadeiramente aquela casa. Há certos apelos que nem conhecimentos teóricos nem sofrimentos conseguem ultrapassar.

A intimidade com Besilde aprofundava-se. Em momentos de confidências, ela foi revelando penas passadas, como as de ter feito hotéis e apartamentos em certos períodos extremos. Fizera-o com espírito de sacrifício pela família, com esperanças de redenção.

A um constrangedor sentimento inicial de dever, Besilde foi passando a cumplicidade e ganhando ternura por Jacinto, ao mesmo tempo que ia ficando cada vez mais desesperançada na mudança do marido. Por fim, tomou uma decisão — ficar de vez com Jacinto. Para ela, foi a libertação; para ele, um momento de jackpot. Quem diria que seria pelos caminhos do acaso dos jogos que encontraria a mulher da sua vida?

Continua a frequentar os Jogadores Anónimos, porque bem sabe que “a dependência do jogo é uma doença que não tem cura”. Encontra lá o amigo, que agora anda a “tentar jogar pouco” e a “viver um dia de cada vez”. Falam dos velhos tempos, com o muito em comum que os acasos da vida favoreceram. Marco pergunta pela Besilde, mas esse é um assunto que Jacinto evita e um ganho que não arrisca perder.

Joaquim Bispo


*

Imagem: Paul Cézanne, Os Jogadores de Cartas, 1894–1895.

Museu d’Orsay, Paris.

* * *





terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

PAUSA PARA BALANÇO

 



 

Conheci uma pessoa de outro tempo. Ou de outro mundo. Como qualquer outra, concebida não sei se por descuido ou de maneira programada, e que chegou ao mundo em casa, pelas mãos de uma parteira. A mesma parteira que pegara seus irmãos, seus primos, e todas as crianças que por ali chegaram naquelas últimas décadas.

Cresceu, teimosamente, numa época onde não existiam vacinas, onde a pólio corria solta. Não havia família que não contabilizasse o infortúnio da morte de uma ou mais crianças nos primeiros anos de vida. Se não pelo sarampo, pela pólio, pela tosse comprida, elas sucumbiam por pequenas infecções que, por falta da penicilina ali na vila, se alastravam pelo corpo. E, impiedosamente, morriam...

Pessoa astuta, sem sossego, sem parada com as pernas e com a cabeça, vivendo num lugar aonde a água chegava por braços que giravam os sarilhos das velhas cisternas, aonde a luz chegou como resultado da engenhoca de imensos geradores movidos a óleo-diesel, e que funcionavam com horário marcado. Isso mesmo! A iluminação era oferecida aos moradores a partir das seis horas da tarde, e era interrompida pontualmente às nove horas da noite. Durante três horas, era como se o dia se prolongasse, mas, pontualmente às nove horas, impreterivelmente, tudo virava breu...

E, para os pequenos, se o breu os pegasse na rua, era hora de tirarem os chinelos, e, com um em cada mão, desatarem numa carreira desenfreada pelas ruas de terra e pedregulhos até que ganhassem suas casas.

O escuro era temerário, a imaginação ficava solta e buscava, infalivelmente, o medo.

E assim, nessa realidade incrivelmente simples, aos cinco anos de idade, na avidez de descobrir o mundo, além do compromisso das brincadeiras de todos os dias, da largueza, da liberdade incondicional onde não havia descanso nem feriado, realizava-se assistindo às aulas do curso de adultos que funcionava num salão a dois quarteirões de sua casa.

Diariamente, as aulas começavam às sete horas da noite e terminavam às nove, razão pela qual sempre estava a correr pelo breu com os chinelos nas mãos...

Encantava-se com aqueles homens e mulheres de modos simples, de trajes humildes e puídos, rostos cansados, peles maltratadas pelo sol excessivo de anos e anos a fio, mãos calosas e duras, mas que ali, instalados desajeitadamente naquelas velhas carteiras feitas para crianças, ali, naquela sala de aula, escondiam-se atrás do brilho dos olhos querentes por aprender. E a professora, paciente e terna, de carteira em carteira, segurava mão por mão, flexionava braço por braço, punho por punho, e com muito esforço ensinava cada um a fazer um círculo, um traço, um rabisco funcional. E, como num milagre, chegava à letra “a”, “e”, “i”... Tudo como se fosse mágica!

E nessa magia de todas as noites, como ajudante da professora sábia e generosa, apagava o quadro-negro, recolhia e distribuía os cadernos, varria a sala, recolhia o lixo, abria e fechava as janelas e porta nas noites de chuva e ventania. E prestava muita atenção a tudo o que era ensinado e falado. No final daquele ano, quando completou seis anos, estava alfabetizada. Lia mais facilmente do que escrevia. Mas, escrevia...

E, assim, o mundo se abriu...

Sabia ler, e agora poderia assistir até às sessões do Cine Santa Maria! Tudo ganhara novo encanto! Era capaz de ler todas as legendas dos filmes estrangeiros, se bem que muitas vezes algumas apagavam antes que conseguisse ler tudo. Na verdade, a leitura ainda estava um pouco lenta.    

Foi brilhante no curso primário, e menos, bem menos no ginasial. A mudança, de uma única professora, aquela que na sua cabeça funcionava como uma mãe adotiva, única, sábia, onipotente, para vários professores, cada um restrito a uma matéria, essa mudança demorou a ser digerida por ela, se é que foi... Um tremendo desconforto.

Da aritmética, estudada até então, passou para a matemática moderna. De repente, a ciência exata não se resumia apenas a somar, subtrair, multiplicar e dividir. Não bastava ter decorado a tabuada. Passou a ser: conjunto, intersecção... E isso não fazia sentido na sua cabeça. Depois vieram teoremas e teoremas... Para que aprenderia aquilo?!

E em toda a sua vida acadêmica, não se lembra de ter estudado física, química, e sabe que, por mais que tenha tentado, nunca entendeu a matemática. Nunca soube o que era logaritmo, álgebra, mecânica quântica, como se calculava a velocidade, a potência, a capacidade, o impacto... Não sabia nada de nada... E participava de tudo. Dos desfiles comemorativos, dos jogos, dos eventos religiosos, políticos, festivos... E andava... Como andava! Era feito serelepe. Conhecia cada palmo de chão da pequena vila. E sabia do costume de cada morador, de cada um dos amigos.

Quando não estava na escola, a programação era quase que sacramentada. Às duas horas da tarde pontualmente, durante os dias de semana, precisava estar na casa de Dona Nair para ouvir a novela do rádio. E tinha novela que se estendia por mais de um ano! E foi através do rádio que soube da morte de James Dean, de Jeff Chandler, da execução monstruosa de Caryl Chessman, da morte do presidente Kennedy, de Marilyn Monroe...

E, aos doze anos, conheceu a TV, aos treze, conheceu o telefone. Apaixonantes! Como a imagem, feito um cinema em caixa, chegava até às casas?! Como uma pessoa falava de outra cidade, distante, e podia ser ouvida através daquele aparelho preto que era encostado no ouvido, na orelha?! Era possível ouvir tudo como se a pessoa estivesse no cômodo ao lado!

E quando com quatorze anos, foi estudar em outra cidade, conheceu de perto o semáforo. Verdade! Até ali aprendera, através de desenhos, gravuras e filmes, as cores do semáforo, o que representavam: PARE - OLHE – PASSE. Mas ali estava diante de um, ao vivo, em cores. E naquela noite não dormiu direito. Ficou intrigada e matutando... Como é que o semáforo sabia que estava vindo carro do outro lado, e sinalizava para que o trânsito contrário parasse?! Levou tempo para perceber, isso sem perguntar a ninguém, que o semáforo NÃO SABIA que havia carro vindo do outro lado, que tudo era apenas uma questão de tempo cronometrado para um lado e para o outro, tudo fruto de um dispositivo que fazia parte da máquina, da engenhoca do semáforo.

E foi normalista...

E curtiu a MPB, a Jovem Guarda, o Tropicalismo, a Beatlemania...

E viu o homem chegar à lua...

E curtiu a Copa de 70...

E dançou muito...

E, aos dezoito anos, conheceu o mar. E se deslumbrou. E não acreditou.

Pela primeira vez via uma montanha, uma serra. Aqueles picos altos, que enxergava diante dos seus olhos, deixavam de ser a ilusão criada inicialmente por gravuras que a professora colocava diante da classe para que fosse feita uma descrição, ou para que se inventasse um texto, deixando a imaginação correr solta. A serra estava ali, diante dos olhos. As montanhas, com as quais sempre sonhara sem nunca ter visto antes, estavam ali. E se encantou...

E estudou, e se formou, e se casou, e teve filhos...

E feito formiguinha, trabalhou, trabalhou...

E como qualquer outra pessoa, sonhou, acreditou, amou, sorriu, chorou...

E aprendeu a dirigir aos trinta e dois anos...

E, aos quarenta e dois anos, viajou de avião...

E conheceu o computador, com ele teve que trabalhar. Que dureza!

E, aos quarenta e seis anos, foi avó. Talvez como um presente para suavizar e enternecer o coração abalado pelos atentados, pelas catástrofes, pelas tragédias do mundo moderno. Ninguém continua igual depois de tantos solavancos... Mas a doçura devia ser preservada..

E sobreviveu tentando resguardar alguns poucos sonhos. E lutou para não se deixar endurecer demais, para superar o medo, a angústia, a insegurança, a solidão. Como lutou, misericórdia!

E envelheceu...

E continua aqui. Se não com a mesma astúcia deixada pelo longo caminho, nem com a mesma avidez de aprender, mas ainda com a mesma disposição de cuidar dos seus amores, que são muitos e que foram se somando ao longo da vida. Só ficou mais apressada. O tempo ficou precioso demais para ela. A jornada adiante é infinitamente mais curta do que a já percorrida, e isso a angustia. Sempre pensa que há tanta coisa a ser feita! Esta pressa que sente está atrelada ao viver, e não a qualquer outra coisa. Morrer é inevitável, mas não desejável. E não há pressa alguma nessa fila. Ninguém quer passar à frente, não existe tumulto. Ninguém reclama por esperar. Existe apenas uma ordem desconhecida e silenciosa, e a fervorosa torcida para que tudo siga a sequência natural, sem inversão, sem sobressaltos... Os avós, os pais, ela, os filhos...

Conheci esta pessoa há muito tempo, é uma amizade que vem de longa data, foi uma convivência intensa. Desfrutei de suas virtudes, sofri com seus infinitos defeitos, tentei respeitá-la, mas, por muitas vezes, não consegui.

E confesso que, mesmo me esforçando muito, infelizmente nunca me apaixonei por ela. Muitos dirão: “que pena!”. Mas só eu sei o que ela me fez passar... Quanto aborrecimento, quanto medo, quanta solidão, quanta insegurança, quanta vergonha! Eu senti tudo isso na pele...

 

 

 

                                              Regina Ruth Rincon Caires

 

 

 

                                                                             

 

 

 

 

                                                              





sábado, 20 de fevereiro de 2021

OLHARES



Nas lonjuras do ginasial, me havia um professor de Ciências de sobrenome Lins, 

cujo nome não me apraz lembrar, talvez José, João, Juvenal, Jacinto, Jonas, 

Josué ou Jagúncio, este por conta da cachola, dado ao seu jeito baiano de maus 

bofes que não escondia parecer. Diziam que era médico, daí o “doutor” no lugar 

de "professor", como careciam os demais professores de serem chamados. Dr. Lins, 

como disse, era baiano, mas não tinha cor morena do baiano, nem simpatia de baiano, 

nem calmaria de baiano. Dentro de um terno de linho branco e largo, enfeitado por 

uma gravatinha borboleta, havia um nervosinho, magrinho, bigodinho de Amigo da Onça, 

testa longa que se encerrava num chumaço grudado à brilhantina, separando as ditas 

entradas tal como o já citado Amigo da Onça. Cismava comigo. Ao me curvar aos sapatos 

para buscar o lápis que havia caído, interrompeu a aula para me mandar “coçar minhas 

pulguinhas” em pé no canto do quadro negro até que a aula se fosse. E complementou: 

“Aquiete-se, Zé Bostengo. Estou de olho em você.” Baixei a cabeça a fugir da caçoada 

geral, um tanto intrigado sobre que diabo de pulgas havia ali por perto. Nem cachorro 

em casa tinha. Nunca entendi. Outra ocasião, encerrou o Dr. Lins aula inteira sobre o 

sistema solar, advertindo que quem espiasse o sol cego estaria para o resto da vida. 

Não mais cores, não mais formas, não mais a cara da minha mãe. Ia para o colégio cedo, 

dando bom dia às pedrinhas da rua, onde ali não haveria risco de encarar o sol. 

E assim foi. Por tempo suficiente para respirar coragem e ser o primeiro a abordar 

Dr. Lins logo que botou pé na sala. Desembestei. “Dr. Lins, o senhor disse que olhar o 

sol fica cego. Como os cientistas estudam o sol?”. “Mas que inconveniente esse Zé Bostengo! 

Mal cheguei já vem com perguntas? Vai se sentar e se aquiete. Estou de olho em você”. 

Não entendi. Nem nunca conheci resposta alguma da parte dele.  

Um dia surgiu pela porta carregando um embrulho em jornal desgrenhado. Parecia pesado, 

tanto que ao jogar sobre a mesa, esparramou de sangue os arredores. Era um coração de boi, já

com odores de carniça. Chamou os alunos em volta e danou a enfiar os dedos em aurículas, 

ventrículos, veias cavas, pulmonares, aorta e gorduras adjacentes. Não neguei minha expressão. 

“Tá com nojinho, Zé Bostengo? Atenção que isso cai na prova. Tô de olho em você”. O professor 

dito doutor, sacou do bolso um lenço encardido de sangue, fez que limpou dedos, sabugos e mãos, 

e me atirou no colo a víscera quase putrificada, me ordenando que a jogasse no terreno baldio 

atrás do pátio. E atravessei a escola com o cadáver na mão, espantando as pessoas de bem e 

bom nariz, criando motivos para odiar o colégio tal como a vida.

Maria Eugênia me emparelhava na carteira escolar e na timidez. Roía unha e o lápis na ponta 

que não escrevia. Dr. Lins se arregalou em fúria. “Menina Eugênia. O lápis que pões na boca 

é o mesmo que antes repousava sobre o tampo da carteira, que antes recebia contato com sua 

pasta de livros, que antes fora apoiada no chão do bonde que aqui a trouxe, chão este que 

antes de a senhorita assentar, recebeu a cusparada de um tísico desenganado. Donde se conclui 

que o bacilo da tuberculose foi do chão à tua pasta, da tua pasta ao tampo da mesa, onde teu 

lápis repousou antes de ir à sua boca. Portanto, menina Eugênia, a senhorita está degustando 

os resíduos salivares de um tuberculoso.” Maria Eugênia brotou lágrimas grossas. E eu, de 

caso pensado e sanha de vingança, esguichei meu café da manhã composto de Toddy e pão com 

manteiga  no sapato bicolor do Dr. Lins, que se fez um sapo em marcha a ré, a se esquivar do jato 

imparável, aos gritos de “Dona Dayse! Acode aqui!”. Deu-se o fuzuê. A inspetora de nome Dayse, 

cujas línguas boas e más diziam se deixar examinar às noites assíduas nua no consultório do Dr.Lins, 

prestimosa aos clamores do professor doutor, cuidou de aparecer com dois serventes, vassouras, rodos 

e panos de chão contra os efeitos do suco gástrico e complementos derramados. A função contagiou 

outros alunos, que não deram conta de resistir às ânsias, a sala virou convés de navio mar adentro em 

ondas revoltas. Naquele dia de enjoativa memória, as aulas foram suspensas, tanto quanto eu por oito 

dias, segundo comunicado do Grão Bedel a meu pai, convocado às pressas a comparecer para ouvir a 

sentença e me retirar do colégio, sob o olhar do Dr.Lins, empertigado com o pé direito envolto num 

saco plástico. “Aquiete-se, Zé Bostengo. Estou de olho em você.” Meu pai não gostou. Peitou o 

professor, apertou-lhe o pescoço, mal ajambrou a borboleta, a ponto de o mestre ajoelhar e miar. 

Me trocaram de escola. Fui parar no Liceu, mas deixei laços maus e laços bons naquele ginásio do 

baiano doido.

Tanto se passou, tanto se viveu, tantas pessoas partiram, tantas chegaram, tantas se multiplicaram 

por todos os lados. Não há noite mal dormida que não sonhe vez por outra com os olhos vigias do

Dr. Lins e suas mãos sujas de mortos corações. No início acordava suado, mas agora burro velho, 

acostumei a achar graça, dada tanta análise, maravilha curativa dos males da alma. 

Hoje estou numa praia na Bahia, que traz seu sotaque mais do que aparência. Ao meu lado, 

Maria Eugênia, parelha de carteira, timidez e vida. Em volta de nós, o tempo infinito do amor, 

a brisa que cochicha mansa, calor que aquece memória, cheiro que cheira bem viver. 

Não há saudade doída que aperreie, nem de coisa que não se fez. Celebramos coqueiros perfilados, 

o branco e o azul sem fins, caramanchões acolhedores, quiosques 

de bem querer, baianos no ir e vir em ondas, oferecendo trecos, cerveja, simpatia e acarajé. 

Olho Maria Eugenia, contemplo suas rugas feliz. No ímpeto de um beijo, um carinho, um cheiro, 

um roçar de pele gostoso, vem de sua voz a lembrança apinhada de ternura: 

“Se aquieta, Zé Bostengo. Estou de olho em você.”. 

E veio uma gargalhada estrondosa, um riso gostoso que só na Bahia tem.  


 





sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Diagnóstico

 


 

Estou acometido por uma doença invisível, qual Jivago no romance infinito. Certo que Jivago entendia de diagnóstico; era médico. Eu, um mero operador civil das coisas burocráticas, ainda não consigo ligar os pontos. É preciso dizer, de início: o que falo não tem nada a ver com a provocação ao sentimento de pena, ou com melodrama de folhetim, para lhe comover, leitora; esse projétil de carta não tem direção – pode atingir tudo ou nada. A questão é que, estando eu nessa condição indizível, nem mesmo posso declarar aos meus, porque, como ocorreu em outros tempos, diriam que basta ter ânimo; que não é nada; ou, o pior, que isso é frescura ou molície programada de quem não quer enfrentar a vida. Desde menino, me compromete uma sensação de amargura ou, repetindo o que diz o mestre João Cabral de Melo Neto, uma melancolia entranhada. Houve um momento em que eu, introspectivo, escutando as músicas que empurravam as emoções para baixo, como Bach, Mozart, Debussy, Piazzolla, e até Eros Ramazzotti, me vi irremediavelmente dentro de um corpo insosso, diferente das crianças que atravessavam e bagunçavam a minha vida. Pois, do meu lugar, o instinto era de me esconder fundo e não sair. Quanto à intuição – essa que me confia algum socorro –, digo que me ajudava a preparar o terreno, para escapulir das complicações do bolo familiar. Quando meu pai vinha, numa quinta ou sexta, inteiro de cachaça, e arrebentava a tênue paz que insistia em se dispersar, eu, como um esquivo ratinho, me comprimia entre os móveis do quarto e permanecia aí, tapando os ouvidos, para não escutar os gritos e as determinações de minha mãe para que eu viesse, logo, resolver o imbróglio deles, dos seres grandes, imensos: os adultos; que eu teria, por obrigação tácita, de segurar o meu pai, que quase todo final de semana declarava que ia abandonar a casa, abandonar os pesos que supostamente carregava. No meu íntimo, sonhava que esse dia, de fato, acontecesse, contrariando as perspectivas de minha mãe: “a família margarina” – lustrosa por fora e gordurosa por dentro. Ela, acostumada às convenções e aos decadentes moldes sociais, queria que fosse assim, e parece que não se importava de que forma se daria a armação, se isso traria ou não consequências para os seus filhos. Sim, trouxe, pelo menos a mim. Estou aqui para desaguar as dores nas linhas do papel. Voltando ao ponto crucial, falo, hoje, que talvez tivesse sido percebido em minhas limitações se minha condição de ser autista leve fosse visível, algo palpável, para encher a mão e os olhos dos inquisidores, que não entendem – ou não querem entender – de soluções. Mês passado abandonei o trabalho que perturbava o meu coração, há tempos. Mês passado muita coisa aconteceu, penso eu que para melhor; matriculei-me num novo curso, porque o antigo, Direito, para mim, definitivamente não dá. Não suporto disputas e afins. O psicanalista dá indícios de que fui colocado numa espécie de funil da família tradicional, como se houvesse somente duas alternativas: ser doutor advogado ou doutor médico. A verdade é que havia cansado, lá atrás, de lutar contra a corrente dos “melhores juízos”. Felizmente, estou vivo, pulsando; buscando tratamento e autocompreensão. Construí uma nova família, uma família diferente, comprometida com os anseios de bem-estar subjetivo e social. Descobri-me autista, depressivo e ansioso no ápice da virada. Minha esposa entende e me ajuda a compartimentar ou a distribuir as potências. Meu filho é um lindo bebê, que não percebe as nuances, claro. Por todos que me amam e por mim, apesar do acúmulo de novidades – o que não é nada agradável para um autista –, estou seguro de que poderei, em breve, serenar os nervos e seguir viagem.






quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Sarah - Rubens Borba de Moraes

 Sarah


Rubens Borba de Moraes



I


Entrou. Sentou-se a um canto. Ninguém pôs-lhe reparo. Mas o mestre, que limpava modelos velhos, descobriu-a e perguntou-lhe :

— Que vieste fazer aqui?

Respondeu:

— Vim desenhar.

E ele compreendeu que ela não era como os outros e indagou que preferia desenhar.

— Um torso.

Deram-lhe um pedaço de papel. Mas pediu uma folha muito grande. Não havia folha bastante grande. Então uniram várias sobre uma prancha; e ela começou a desenhar um torso. Mas o torso era tão grande que não cabia no papel. Pouco importava, porque era belo.

E o mestre perguntou:

— Onde aprendeste anatomia?

— Que é anatomia?

— O estudo dos músculos, disseram-lhe.

Compreendeu e lembrou:

— Ora! vi tantas vezes as galinhas que corriam quando lhes levava milho; e meus músculos também, ao me banhar no rio...

E todos a amaram e lhe disseram que voltasse a desenhar. Respondeu que não tinha dinheiro. Mas o mestre acariciou-lhe os cabelos e disse:

— Aqui não se paga.


II


Voltou todos os dias. Sentada a um canto desenhava torsos, mas belos e puros. Uma vez chegou-se ao mestre e disse:

— “Me” corte os cabelos?

Ele, sorrindo:

— Nunca fiz isso, mas vou tentar.

E com uma enorme tesoura enferrujada cortou-lhe os longos cabelos negros, que tombavam mortos, em torno dela.

Quando acabou, ela disse:

— Sinto-me bem. Obrigada.

E partiu, feliz, a nuca fresca.


III


Chegou-se para nós e falou:

— Não posso voltar mais. Estou sem sapatos.

Mas um dos rapazes lembrou:

— Tenho três irmãos menores. As botinas do mais velho talvez te sirvam. Trarei um par usado.

Trouxe-lho. E ela continuou a vir diariamente, com os cabelos cortados e botinas de menino.


IV


Fiz anos.

Todos no meu quarto. Ela entrou e entregou-me uma reprodução de Gangin, dizendo :

— Dou-te isto.

Beijei-a; depois perguntei onde achará dinheiro para comprar o presente.

— Posei cinco dias, murmurou.

Quando voltei para São Paulo não chorou. Mas, ao beijar-me, seus lábios tremiam.


VI


Escreveu-me. Sobre a página branca havia:

“Tenho duas cerejas 

uma para mim outra guardo-a para ti.”

Só. Para que mais?


VII


Um dia, no atelier, recordavam-se de mim. E ela disse:

— Quero ir vê-lo no Brasil.

Mas o mestre contou-lhe que era muito longe o Brasil. Tão longe que não sabia calcular quanto tempo gastava para lá ir. Então um rapaz muito pálido e magro falou:

— Sei somar; e vou fazer a conta.

Sentaram-se todos em roda. Puseram diante dele uma folha de papel; mas como a soma era muito comprida pegaram uma grande folha de papel. E o rapaz muito pálido e magro somou dia por dia quanto tempo ela precisava para vir ao Brasil. Quando a soma estava pronta uma aluna que tinha nariz de trombeta aconselhou:

— Ponha dois dias para as dores de cabeça.

E o rapaz muito pálido e magro ajuntou mais dois dias para as dores de cabeça e anunciou que era preciso caminhar dois anos e dois dias para vir ao Brasil.

Mandaram-me o resultado da soma. Não mandaram todo o cálculo, porque era muito grande.


VIII


Espero-a. Sei que virá.


IX


Sarah!...





segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

O que é o Amor

 



    Apesar de já se terem passado duas semanas o Sr. Elias não conseguia esquecer a conversa das netas que ouvira por acaso. Em vez de deixar a mente divagar ao acaso enquanto trabalhava na horta ou no jardim ou quando se sentava em frente à televisão ao fim do dia, sem lhe prestar grande atenção, diga-se de passagem, dava por si a remoer aquelas poucas frases a que na altura não dera grande importância. Era incrível como umas meras palavras lançadas por umas miúdas podiam ter um impacto tão grande. Tinha até a certeza de que as netas já nem se lembravam do que tinham dito.

Tudo acontecera num domingo igual a tantos outros em que filhos e netos vinham “à terra” para o tradicional almoço dominical. Os seis filhos revezavam-se na visita aos pais idosos e calhara a vez ao filho mais novo, o João, divorciado tal como a restante tribo, mas que fazia questão de trazer sempre as duas filhas para que não perdessem o contacto com os avós. Depois do almoço, demasiado pesado para um quente mês de julho mas ninguém convencia Maria a mudar de hábitos, o filho ficara na sala à conversa com a mãe, a quem fora sempre muito chegado, enquanto as netas iam para a varanda das traseiras com os indispensáveis telemóveis e ele se metia na cozinha a tentar arranjar a banca que subitamente entupira.

Com o calor acrescido de várias horas de fogão e forno ligados o ambiente escaldava e decidira abrir também a pequena janela lateral que dava para a varanda e que raramente abriam. Enquanto se dedicava ao trabalho, bem mais complicado do que pensara inicialmente, ouvia vagamente a voz das netas que deviam estar sentadas nas cadeiras de ferro um tanto enferrujadas que ali colocara há muitos anos com a vaga intenção de as usar para passar uns momentos entre o fim do trabalho e o jantar ou até depois deste, se a noite estivesse boa. Mas pouco uso tinham tido e com os anos a pesarem deixara até de as pintar periodicamente.

Atento ao que fazia, pouca atenção prestava ao que as netas diziam, até porque duvidava que falassem de algo que lhe pudesse interessar. Descobrira há muito que netos e netas tinham gostos e interesses que nada lhe diziam e embora gostasse de os ver, quem não gostaria, pouco convívio tinham. Tendo começado a trabalhar na terra muito novo pouco estudara, o que aprendera dava para ler algumas coisitas no jornal quando calhava ter um à mão e pouco mais. E o cultivo da terra nada dizia aos netos e os animais que criava ainda menos, passadas as primeiras tentativas de os tratarem como animais de estimação perdiam o interesse.

Mas quem sabe, a vida dá muitas voltas e podia muito bem acontecer que um dia um ou mais deles redescobrissem os prazeres de trabalhar a terra, como acontecera com a neta mais nova do seu vizinho, o Manel, que tendo perdido o emprego na capital por falência da empresa onde trabalhava se viera refugiar na aldeia do avô e agora não queria outra coisa, introduzira novas culturas de que nunca tinham sequer ouvido falar, restaurara a casa para acolher hóspedes e ganhava até mais do que antes, segundo dizia, com a vantagem acrescida de ser mais ativa fisicamente.

Não estava pois a ouvir conscientemente as netas, chegavam-lhe apenas algumas frases dispersas que pouco ou nada lhe diziam. Mas às tantas, enquanto esperava que a cola que aplicara secasse, aproximou-se da janelita numa tentativa de se refrescar um pouco e aí, sim, ouvi-as claramente.

Como previra, falavam de pessoas que desconhecia, talvez colegas ou amigas ou até cantores ou atores, com esta nova geração nunca se sabia, agiam como se os conhecessem pessoalmente à força de tanto lerem sobre eles. Só sabia que falavam da grande paixão entre um Brad e uma Angie e de como gostariam de vir a ter algo assim, enfim, uma conversa que na sua opinião não era exatamente própria de miúdas daquela idade, com 10 e 11 anos deviam era estar a brincar, a correr, a aproveitar o facto de terem ali tanto espaço para se mexerem à vontade. Mas ninguém lhe pedira a opinião e sabia bem que se a desse seria recebida com um encolher de ombros e um comentário tipo “os tempos agora são outros”.

Estava prestes a voltar à sua tarefa quando ouviu a neta mais nova, a Sofia, dizer à irmã, a Lia, que era a mais espevitada das duas:

— Porque é que achas que os avós ainda estão juntos? Não achas que se não se amam deviam ter ido cada um à sua vida, como os nossos pais?

— Mas porque é que achas que não se amam?

— Algumas vez os ouviste dizerem “amo-te”? Ou até beijarem-se como deve ser?

— Pois, nem nunca os vi estarem de mãos dadas ou isso.

A conversa deve ter continuado, mas para o Sr. Elias arranjar a banca era bem mais importante, a sua Maria ia precisar dela nessa noite para lavar a louça do jantar, nunca fora mulher de deixar a cozinha por arrumar, se não a pudesse usar iria certamente buscar água ao quarto de banho para encher um alguidar e depois da trabalheira com o almoço queria evitar que se cansasse desse modo. Por isso abdicara da sesta depois do almoço para vir à socapa fazer aquela reparação.

Mas nos dias seguintes deu consigo a remoer as palavras das netas. Nunca pensara no seu casamento em termos de “amor” nem lhe passara pela cabeça que a solidez de uma união estivesse em manifestações físicas em público.

Conhecera a mulher numa festa popular da vila mais próxima quando tinha quinze anos, achara-a bonitinha, mas a relação entre eles surgira aos poucos na feira semanal onde passara a ir vender o que a família ia cultivando ou criando e onde ela tinha uma banca mesmo ao lado da sua. Foram falando, descobriram que tinham ambos a mesma vontade de permanecer na terra e não de ir para a cidade como os respetivos irmãos e irmãs que assim que tinham idade suficiente partiam em busca de uma “vida melhor”. Nunca fora uma relação como as dos poucos filmes que vira, havia alguma atração, claro, mas havia, sobretudo, confiança e a vontade de percorrerem a vida juntos.

Foram poupando alguns tostões e acabaram por conseguir casar um pouco mais cedo do que antecipavam graças a um problema com o pai dele que o impediu de continuar a cultivar a terra, passando-a pois para o único filho que ali restava, o Sr. Elias.

Os filhos começaram a surgir quase logo, com as despesas e doenças usuais, aumentando as dificuldades de uma vida já de si laboriosa. Mas foram todos bem-vindos e se outros tivessem nascido também o teriam sido. E como os tempos tinham mudado, mandaram-nos estudar até onde quiseram ir, universidade incluída, apesar de saberem que isso implicaria partirem definitivamente da terra.

Casaram todos, tiveram filhos, divorciaram-se também todos, alguns voltaram até a casar ou a viver uma nova relação. E durante todo esse tempo o elemento constante nas suas vidas fora sempre a casa dos pais.

Quanto mais pensava no assunto mais confusão lhe fazia a opinião das netas. Sim, sabia bem graças à televisão e nas suas poucas idas à cidade para consultas médicas que o que se via agora eram casais agarradinhos em público, aos beijos assolapados, enfim, em cenas que, para ser sincero, o incomodavam um pouco, chamassem-lhe antiquado mas continuava a achar que certas coisas deviam ser guardadas para a intimidade. E mesmo aí, nunca se pusera naqueles propósitos com a sua Maria, não via razões para o fazer e duvidava seriamente que ela quisesse isso.

Pois, ouvia muito dizer as tais cenas eram amor verdadeiro, as netas pareciam ter a mesma opinião, mas a verdade é que os próprios filhos, tão “apaixonados” quando namoravam, começaram a ter quezílias cada vez mais intensas pouco de pois de casarem e acabaram por divorciar-se por, segundo lhe disseram na altura, terem descoberto que nada tinham em comum. Então o namoro não era para isso, para se conhecerem a fundo e verem se havia compatibilidade de gostos e ambições?

Mas, como dizia um dos netos, se não se evolui, morre-se. Por isso talvez não fosse má ideia tentar pôr um pouco mais do tal amor no seu casamento. Começar, talvez, com algo fácil, um simples “amo-te”.

Ensaiou a frase mais vezes do que um ator do D. Maria antes da estreia da sua primeira peça, planeou e descartou inúmeros cenários, enfim, andou de tal modo enfronhado que a Maria até lhe perguntou se estava a chocar alguma.

Chegou finalmente o grande momento, era agora ou nunca. Decidira fazê-lo ao fim da tarde, quando a mulher se sentava na sala a dar uns pontos enquanto via um concurso televisivo de que muito gostava. Esperou por um intervalo, sim, se o ia fazer mais valia não dividir “o palco” com o que se passava no ecrã.

Aproximou-se então dela e disse:

— Maria, eu... vou fazer um chá. Também queres?

Luísa Lopes
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