Marco não admitia que tinha um
problema de jogo. É certo que sempre estivera envolvido em
ambiências de fortuna e azar, quer na adolescência, em que começara
por jogar King a meio centavo o ponto, depois “abafa” e
“lerpa” na tropa, com incursões cada vez mais frequentes na zona
de máquinas do Casino do Estoril, até às posteriores dependências
da roleta e aos seus mais recentes empolgamentos com o póquer on
line.
Na tropa, apostava o vencimento
de oficial miliciano. Quando as sucessivas noites de jogatina corriam
mal e o vencimento se ia, iam-se também as saídas do quartel.
Felizmente, havia a messe e o preço das refeições era descontado
no fim do mês. E não parava de jogar: ficava a dever, apoiado na
garantia do vencimento seguinte.
A fase da roleta foi das piores,
em termos de perdas. Muitas noites saiu do casino de bolsos vazios,
mas convencido que estivera perto de ganhar. E na noite seguinte
estava de volta. A adrenalina de ver a bolinha a saltar e a
perspetiva de ganho só era equivalente à da perspetiva de uma
conquista galante. Pediu muito dinheiro emprestado.
Recentemente era o póquer. Sentia que
visualizava com rapidez as várias variantes possíveis, e era
agressivo nas apostas, mas continuava a perder “algum” dinheiro.
— Tens um problema de jogo! —
disse-lhe Jacinto, um amigo que encontrou por acaso e se apercebeu de
alguns aspetos menos simpáticos desta dependência.
Depois de meia hora de disputa —
ele a negar, com argumentos de “nada de mais”, o amigo a
insistir, com argumentos de “sê sincero contigo próprio” —,
aceitou acompanhá-lo a uma sessão dos Jogadores Anónimos:
— É só porque já não te
posso ouvir…
Era mais ou menos o que esperava: uma sala com cadeiras a formar um círculo; um psicólogo a tentar que as pessoas se abrissem e assumissem o seu problema de jogo. A experiência não foi especialmente inspiradora, mas, como ia com o amigo, que, por sinal, também estava a tentar livrar-se da dependência do jogo on line, voltou várias outras vezes.
Aos poucos, foi ouvindo histórias
extraordinárias de vício de jogo — perdas gigantescas numa só
noite, endividamentos extremos, roubos a familiares para jogo,
autoestimas destruídas, tentativas de suicídio:
«Atolada em dívidas e incapaz
de parar de jogar, tentei suicidar-me à frente dos meus quatro
filhos.» «Os problemas com o jogo levaram-me a desviar milhares de
euros do local de trabalho.» «Vivi durante quatro anos praticamente
sem comer nem dormir. Quase enlouqueci.» «No espaço de poucos
meses, acabei com os plafonds
de três cartões de crédito e o ordenado de economista deixou de
chegar para pagar as dívidas ao banco.» «Acumulei seis créditos
em bancos diferentes e uma dívida de mais de sessenta mil euros.»
«Cheguei a roubar dinheiro do mealheiro dos meus filhos.» «Em
desespero, vendi um aquecedor a óleo na feira, por cinco euros.»
«Todas as noites acabavam da mesma maneira: sem dinheiro no bolso e
a braços com crises de choro, ansiedade e insónias.» «Em 2009,
gastei o ordenado de dois mil euros em apenas meia hora.» «Cheguei
a estar doze horas seguidas à frente de uma slot machine.»
«Cheguei a remexer em gavetas em casa à procura de moedas, para
poder comprar uma lata de atum para matar a fome.»
Com exceção de algumas diferenças de escala, havia semelhanças com a sua história. Quase todos falavam de um ganho importante, no início, e referiam o gosto pelo ganho fácil, pelo poder, pelas sensações fortes, pela novidade. Culpavam a vontade de ganhar mais, quando ganhavam, e a premência de tentar recuperar, quando perdiam.
Para além dos casos pessoais,
foi apanhando uma ou outra máxima, difíceis de aceitar, a
princípio, verdades sábias, depois: “A dependência do jogo é
uma doença que não tem cura”; “Um jogador compulsivo nunca
deixa de o ser”.
Só no terceiro mês percebeu que
tinha de “abrir o jogo” e parar de jogar. Foi quase insuportável
a sensação seguinte de tédio, de vazio, de carência de qualquer
coisa. Felizmente, o amigo Jacinto, indivíduo curioso, sempre a
tentar perceber melhor alguns fenómenos, deu-lhe apoio e foi
desmistificando alguns dos mitos que perdem o jogador.
— “Não jogue nunca!”,
dizia Dale Carnegie num livro que li há muitos anos. Porquê? Porque
todos os sistemas de jogo estão construídos para vencerem o jogador
e lhe ficarem com o dinheiro. É de uma grande ingenuidade ele pensar
que pode derrotar uma máquina que está programada para o vencer.
Ela até pode dar-lhe prémios chorudos, que o deslumbram com esse
ganho esporádico. Ao fim de muitas jogadas, a máquina ganha sempre.
A máquina ou qualquer sistema. Porque o número de possibilidades de
ganho do jogador é sempre inferior ao número de possibilidades de
ganho do organizador do jogo. Seja roleta, slot machine,
lotaria, raspadinha, concurso televisivo. O casino e os outros
organizadores de jogos são os únicos que estão do lado certo do
jogo. Como organizadores, dispõem de vantagens em relação aos
jogadores: na roleta do casino, há 37 números — do 0 ao 36, como
sabes; 18 são vermelhos e 18 são pretos; se jogares nos vermelhos e
sair vermelho ganhas o dobro, se sair preto, perdes. Quando sai 0,
ganha o casino. Portanto, apostas em 18 números, mas o Casino dispõe
de 19 números. A longo prazo ganha sempre. Sempre!
— Sim, claro, mas é possível
derrotar o casino — ripostou Marco, certo do que dizia. — É
preciso é contar bem as saídas de pretos e vermelhos e apostar no
que tenha saído menos vezes. O que tenha saído menos vezes tem
maior probabilidade de sair, claro!
Então, Jacinto disse o que ele
não esperava ouvir e que mudou radicalmente a sua conceção dos
jogos aleatórios:
— A bola não tem memória das
jogadas anteriores. A probabilidade de sair vermelho é a mesma de
sair preto. Em todas as circunstâncias. Mesmo que tenham saído 90
vermelhos contra 10 pretos, a probabilidade de sair preto na jogada
seguinte é igual à de sair vermelho.
— Mas, como assim? —
revoltou-se Marco. — Sei bem que a média em lançamentos
aleatórios de duas possibilidades é de 50% de resultados para cada
uma… Como é isto possível, se a cor que saiu menos vezes não
passar a sair mais vezes?
— É. Repara!
Puxando do telemóvel para fazer
os cálculos, mostrou-lhe, então, com números, como a média se
aproxima de 50–50%, sim, mas, geralmente, só à medida que o
número de lançamentos sobe para os milhares.
— No exemplo anterior, a percentagem era de 90% vermelhos contra 10% pretos, certo? Se continuarmos a fazer lançamentos e obtivermos, por exemplo, totais de 600 vermelhos contra 400 pretos, a percentagem passou para 60% vermelhos contra 40% pretos, que é muito mais próxima de 50–50, sim, apesar de os pretos terem continuado a sair menos. Os tais pretos que “obrigatoriamente” teriam de sair mais vezes…
Manteve-se em silêncio, mais
para não dar a vitória ao amigo, apesar da clareza da explicação.
Engoliu em seco despercebidamente. Não estava a ser fácil dar de
barato o que lhe pareciam verdades inquestionáveis.
— Eu era um maluquinho das
simulações — continuou Jacinto. — Com programas informáticos
simples que eu próprio elaborava, fiz todo o tipo de experiências.
Posso garantir-te: não se consegue ganhar à roleta. O zero a favor
do casino é a vantagem que lhe garante a vitória final contra
qualquer jogador. A este só lhe resta parar de jogar.
— Desculpa lá… — tentou
Marco levantar-se —, jogando o dobro de cada vez que perco, acabo
por recuperar…
— Essa é outra ilusão. Nem os
milionários têm dinheiro para isso. Já foram registadas séries de
22 resultados da mesma cor, seguidos — esmagou Jacinto, voltando à
calculadora do telemóvel. — Isso significa que um jogador que
estivesse a fazer apostas de um euro com essa estratégia, se
perdesse um euro e continuasse a apostar o dobro, ao fim de 22
jogadas teria já perdido 4 194 303 euros e teria de ainda pôr
4 194 304 euros na mesa da roleta para conseguir recuperar as perdas
na 23ª aposta. E ganhar um euro... Apostar mais de oito milhões
para ganhar um euro? Há investimentos mais acessíveis e mais
seguros! E úteis.
— Mas, então... — estava sem
palavras. — Nem “à moedinha”, para o café?
— Em teoria, é isso mesmo, Marco! “Não
jogues nunca!” O jogo só é inofensivo e prazeroso quando não se
tenta forçar um ganho. Claro que eu jogo duas apostas de euromilhões
por semana, não mais. O suficiente para uma vivência social normal.
E podemos jogar à moedinha. Três, para as que vierem — vaticinou
ele, estendendo a mão fechada, que podia trazer 1, 2, 3 moedas, ou
nenhuma.
— Ok, já percebi. Eu pago-te o
café!
Entraram numa pastelaria, com Marco
numa espécie de estado de graça. Sentia que a sua vida de jogo —
já não tinha medo das palavras — iria mudar radicalmente.
Passaria a ser muito racional sempre que fosse confrontado com
solicitações de ganhos miríficos, em acasos de jogo.
— Acho que agora vejo as coisas
duma maneira muito mais clara. Nem sei como te agradecer!
— Para que servem os amigos?
Uma semana depois, voltaram a
tomar café.
Marco estava pouco falador,
cabisbaixo mesmo. Mexeu o café, pensativo, muito mais do que o
necessário. Por fim, falou.
— Jacinto, há alguns anos que
não nos víamos e, em pouco tempo, temos convivido bastante. Só por
isso é que me atrevo a pedir-te um favor — começou ele de rosto
muito constrangido. — Só o faço porque as coisas não vão nada
bem. Espero que não leves a mal.
— Que se passa? — estranhou
Jacinto. — Se eu puder ajudar… Não me esqueço dos amigos de
longa data.
Marco fez um compasso de espera,
cabeça baixa, como se não soubesse bem o que dizer.
— Ainda são sequelas do jogo.
Na altura, pedi bastante dinheiro ao banco e não consigo dar conta
dos compromissos. Há dias penhoraram-me o ordenado. Dois terços já
não me chegam às mãos. Fico só com um terço para as despesas
todas. Preciso que me emprestes dois mil euros.
Com o desenrolar da conversa,
percebia-se o que vinha aí, mas o número…
— Eh, pá, dois mil euros…
Estás mesmo a precisar de tanto? É que isso é mais do que eu
recebo.
— A sério? Estás a ganhar
pouco! Ó Jacinto, eu não te pedia se não estivesse a precisar. Eu
depois pago-te quando as coisas melhorarem.
Ainda tentou descartar a hipótese
que entretanto o assaltara:
— Por acaso não voltaste a
jogar, não?
— Ó pá, agora magoaste-me.
Então eu ia pedir-te dinheiro para jogar?
Jacinto aceitou fazer a
transferência, mas no mês seguinte o amigo voltou à carga:
— Mil euros, Jacinto! É que a
Besilde ficou desempregada...
Continuaram a encontrar-se
semanalmente nos Jogadores Anónimos, mas a situação estava a
tornar-se pungente. Um dia Marco pedia um carregamento de telemóvel;
noutro o passe do metro. E ia dizendo que era a última vez, que não
pedia mais, mas na semana seguinte voltava ao mesmo. Jacinto já
começava a não achar graça nenhuma àquela amizade. Quando pediu mais mil euros, confrontou-o:
— Marco, isto assim não pode
ser! Ainda não me pagaste nada do que te emprestei. Como é que
achas que vais pagar?
— Amigo, ainda não foi
possível, mas eu vou pagar-te, está descansado. Anda lá a casa
jantar amanhã para falarmos disso, pode ser?
Jacinto não queria ser
indelicado, apesar da situação que se vinha a criar. Acabou por
aceitar. Marco morava com a mulher na Pontinha, na zona antiga, e não
tinham filhos. Receberam-no com muito carinho e Besilde apresentou um
esparguete com um molho realmente saboroso. Naquele momento, Jacinto
invejou-o. Aquele tipo, com enormes problemas económicos, tinha um
aconchego familiar apetecível: comidinha caseira e uma mulher que,
não sendo esplendorosa, era muito bonita e atraente. O jantar foi
amigável, mesmo afável e não se tocou no assunto “dinheiro” durante
toda a refeição, apesar de Jacinto vir à espera disso. Depois do
café, ficaram os dois a conversar nos sofás da sala, enquanto a
mulher se retirara para a cozinha.
— Preciso mesmo desses mil euros e quero realmente pagar-te —
começou Marco —, mas não está fácil. O dinheiro que entra é
pouco e acaba-se depressa. A Besilde vai fazendo uns biscates, que é
o que vai valendo. Estivemos a pensar e lembrámo-nos que talvez não
te importes de receber alguma coisa que precises, mesmo sem ser
dinheiro. Espero que não leves a mal.
Não respondeu logo; não lhe
agradava deixar de receber em dinheiro vivo, tal como emprestara. Por
outro lado, não se vislumbrando outra maneira, talvez Marco tivesse
objetos de que se quisesse desfazer e lhe dessem jeito. Do mal o
menos.
— Não sei, Marco! Tens coisas
para vender? Eu já tenho a casa cheia de tralhas. Sem ofensa!
— Sim, temos bens que te podem
convir. Depende do teu interesse. Estarias disposto a receber, sem
ser dinheiro mesmo? É que nós queríamos pagar estes empréstimos, mas
dinheiro não temos.
— Não é preciso eu receber
já. Se achas que dentro de algum tempo me consegues pagar… —
descaiu-se Jacinto, arrependendo-me logo de seguida. Estava a abrir a
porta para receber daí a muitos anos ou no “dia de São Nunca”.
— Mas diz lá o que tinhas em mente. Pode ser que me interesse.
— Jacinto, só te vou propor
isto porque sei que és um tipo sério, a quem estou muito agradecido.
Devo algum dinheiro a outras pessoas — pouco — mas a esses não
proponho pagamentos destes; não me merecem respeito, apesar de me
terem emprestado dinheiro. Pensa bem antes de responderes.
— Ok, ok, diz lá!
— Jacinto, estamos com quarenta
e tal anos, já nos conhecemos há uns tempos, já vamos percebendo
os pontos positivos e os negativos de cada um. Sei que também
tiveste problemas de jogo, mas que estás a ultrapassar; sei que não
vives mal economicamente, mas que vives sozinho desde que te
separaste da tua mulher — fez uma pausa neste ponto. — Um homem
não vive bem sem uma mulher. Mesmo que o dia corra bem no emprego. À
noite vai beber um copo com os amigos, sem que ninguém o chateie?
Sim, é verdade, mas quando chega a casa também não tem ninguém
que lhe dê um carinho. Percebo bem as tuas carências nesse ponto.
Nós não temos muito mais para te oferecer… O que me dizes? Não
leves a mal!
«Quê? O que é que ele está a
querer dizer? Será o que parece?» — pensou Jacinto. «Não, não
pode ser… assim, com esta desfaçatez? Com a mulher ali na cozinha?
Este tipo está parvo ou sou eu que tenho uma mente perversa?»
— Marco, não sei se estou a
compreender. Estás a dizer o que eu estou a pensar?
— Não te sintas constrangido.
Se não quiseres, nós compreendemos. Mas isso ia magoar a Besilde.
Ia ver isso como uma rejeição pessoal.
— Mas, quê? Diz, diz tu!
— Uma vez ou duas por semana
vinhas cá a casa. Ou a Besilde ia à tua. Até pode viver contigo
uma semana por mês. Como quiseres. Acho que é uma maneira de te
compensar, já que não temos meios de te pagar de outro modo.
— Estás maluco! Eu não posso
aceitar isso — reclamou Jacinto, numa atitude genuína de respeito
pela dignidade humana.
Marco hesitou. De repente,
pareceu apanhado de surpresa.
— Gostas de mulheres, não?
Não achas a Besilde interessante?
— Sim, sim! Quero dizer... não.
Isto é, acho-a muito bonita e interessante, mas não quero pensar
nela dessa maneira. É a tua mulher… — atrapalhava-se Jacinto, em
pressupostos. — E a Besilde? Não tem voto na matéria? — atirou
ainda, mas já temendo que o argumento pegasse…
— Claro que tem! Já falámos
muito, já pusemos muitas hipóteses. Ela está disposta a tentar;
deu-me há pouco o aval. Estamos nisto juntos.
— Mas, não é penoso para
ela?; não é humilhante para ti? — contrapôs Jacinto, de regresso
a uma posição mais ética, menos egoísta.
— A Besilde gostou de ti.
Achou-te interessante e, além disso, também está muito reconhecida
pela ajuda que nos tens dado. Por mim, é bem melhor que fique entre
amigos.
— Mesmo assim, parece que estou
a pagar por sexo. A ela, a ti. É… desconfortável.
— Era bom que esta proposta não
passasse de uma espécie de ilustração teórica dos perigos do
jogo. Infelizmente, é a realidade de muita gente. Há quem venda o
corpo na rua. Nós, até agora, temos conseguido não chegar aí.
Esta solução não nos traz constrangimentos; estamos decididos.
Perante o silêncio do amigo,
continuou:
— Mas, se preferes, podemos
deixar a decisão à sorte — sugeriu, tirando uma moeda de 20
cêntimos e colocando-a sobre a unha do polegar direito, pronto a
dar-lhe um piparote. — Se sair coroa, ficas
à espera do dinheiro; se sair cara… aceitas a Besilde.
— Não, não. Não me tentes
com jogos! — declarou num sofisma.
Jacinto aceitou a proposta, com
sentimentos mistos. Uma luta entre respeito humano e egoísmo lúbrico
não deixou de se travar no seu íntimo. A primeira saída não passou de um jantar num pequeno restaurante, como num namoro formal, mais por pedido dele. Durante os meses que durou o “pagamento da dívida”, Besilde passou quase todos os fins de semana em casa de Jacinto. À medida que se aproximava o fim
do período previsto, crescia nele um certo sentimento de angústia.
Não queria perder aquele mimo feminino que tão bem lhe fazia.
Quando, esporadicamente, Marco voltou a pedir-lhe dinheiro
emprestado, facultou-lho sem reservas. Até com um sentimento de
satisfação. Perto do fim do prazo mais recente, foi o próprio
Marco que o libertou mais uma vez da ansiedade.
— Jacinto, estamos contentes
não só por conseguirmos pagar a dívida, como por nos teres
permitido fazê-lo deste modo. Estivemos a falar e resolvemos
propor-te… uma extensão do acordo. Dava-nos jeito uma entrada
extra de dinheiro. Mas só se tu quiseres.
Jacinto manteve o rosto
impassível, mas por dentro rejubilava. Não era coisa que não lhe
tivesse já passado pela cabeça, mas não tinha tido coragem de ser
ele a propô-lo. Envergonhava-se.
Cerca de dois anos mais
mantiveram o acordo de dama e cavalheiros, se é que algum merecia
a dignidade desses epítetos. Numa das poucas vezes que Jacinto visitou a casa do casal,
percebeu pelo ecrã esquecido em jogos on line que o jogo
nunca tinha abandonado verdadeiramente aquela casa. Há certos apelos
que nem conhecimentos teóricos nem sofrimentos conseguem
ultrapassar.
A intimidade com Besilde aprofundava-se. Em momentos de confidências, ela foi revelando penas passadas, como
as de ter feito hotéis e apartamentos em certos períodos extremos. Fizera-o com espírito de sacrifício pela família, com esperanças
de redenção.
A um constrangedor sentimento inicial de dever, Besilde foi passando a cumplicidade e ganhando ternura por Jacinto, ao mesmo tempo que ia ficando cada vez mais desesperançada na mudança do marido. Por fim, tomou uma decisão — ficar de vez com Jacinto. Para ela,
foi a libertação; para ele, um momento de jackpot. Quem
diria que seria pelos caminhos do acaso dos jogos que encontraria a
mulher da sua vida?
Continua a frequentar os
Jogadores Anónimos, porque bem sabe que “a dependência do jogo é
uma doença que não tem cura”. Encontra lá o amigo, que agora
anda a “tentar jogar pouco” e a “viver um dia de cada vez”.
Falam dos velhos tempos, com o muito em comum que os acasos da vida
favoreceram. Marco pergunta pela Besilde, mas esse é um assunto que Jacinto evita e um ganho que não arrisca perder.
Joaquim Bispo
*
Imagem: Paul Cézanne, Os
Jogadores de Cartas, 1894–1895.
Museu d’Orsay, Paris.
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