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terça-feira, 29 de maio de 2012

SAMIZDAT 33

SAMIZDAT 33


Por que Samizdat?, Henry Alfred Bugalho

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA
A Mulher da Areia, Edweine Loureiro
Ensaio sobre a Feiura, Edelson Nagues
Resenha do texto “Este mundo da injustiça globalizada”, Leonardo Araújo Oliveira

AUTOR EM LÍNGUA PORTUGUESA
Uma Cena Grega, Manuel Teixeira Gomes

CONTOS
O Intruso, Joaquim Bispo
Audácia, Rodrigo Domit
Diário Paulista, Maycon Batestin
Mulher de Verdade, Eduardo Moura
Aos Perdedores, as Cascas, Ramon Barbosa Franco
A Chuva, Gilson Mateus Damas
O Gato Pardo, Diogo Almeida
O Outro Lado do Espelho, Otávio Martins
Novíssimas de Bentinho Casmurro a seu Filho, Maria de Fátima Santos
Libertação, José Ronaldo Siqueira Mendes

TRADUÇÃO
Flores do Mal, Charles Baudelaire

TEORIA LITERÁRIA
O que ninguém lhe dirá numa oficina literária - parte 2 (A Publicação), Henry Alfred Bugalho
Quando é Crime Existir: a Representação do Feminino em Meia Culpa, Meia Própria Culpa, Tatiana Alves

CRÔNICA
Sexo Antes, Amor Depois, Thamires Lourenço
Nascido para a Chuva, Fabio Martins Moreira
Viajando com Charley, Luís Roberto Amabile

POESIA
O Tamanho de uma Cor, Bruno Gaudêncio
Não-Sim, Paulino Pereira Lima
Tiflose, Daniel Queissada
Taipas, Índios, Seca do meu Sertão, Eduardo de Almeira Rufino
O Último Beijo, Welington Mariano

Links para a SAMIZDAT 33

Scribd - http://www.scribd.com/doc/95148094/SAMIZDAT-33
Calaméo - http://en.calameo.com/books/000002238b3687a94aa36
Recanto das Letras - http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/3694012





sábado, 26 de maio de 2012

Caca de cão


Sentada no banco do jardim, chorava.
As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nada as impedia, as mãos enclavinhadas no colo na posição centenária de estoicismo.

A postura era rígida mas discreta: nenhum dos passantes lhe dirigiu um segundo olhar. 
A silhueta madura não atraía os jovens e o drama passava despercebido aos outros, aos solidários como aos abutres; talvez fosse essa a razão pela qual a postura se lhe tinha tornado familiar, uma defesa contra intromissões inconsequentes.

Os olhos abertos perscrutavam sem ver a linha do horizonte, uma coisa feia de prédios velhos e sujos. Não a via, os olhos só viam o que se tinha perdido, sem esperança e sem remédio. Sentia-se velha e trôpega, no dia do seu meio centenário
O seu tempo fora julgado sem préstimo, toda uma maneira de proceder, um conhecimento e uma experiência, toda uma maneira de estar, todas as escolhas da sua vida, tudo ajuizado sem utilidade. Como caca de cão.

Quando não há capacidade para todos no bote, lança-se ao mar os que pesam mais do que o que valem na travessia. Tinha sido lançada ao mar e a pena por si própria era maior do que alguma vez pensara possível.

O pombo aproximou-se, o olho vermelho a avaliar a possibilidade de haver pão naquela figura pesada. Voltou a cabeça para ver com o outro olho, igualmente vermelho de saúde; mas não havia dúvida que dali nada viria, era demasiado agourenta, demasiado escura, a figura.

As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nem viu o pombo que, também ele, a ajuizara sem valor.





sexta-feira, 25 de maio de 2012

Um dia de sonho

Joaquim Bispo

O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços.

Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. Entretanto, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça, era o prazer da perseguição.

E chegou a uma grande clareira onde espinoteava uma dúzia de cachorros. Santa mãe cadela!

Ladrou de alegria; os outros deram-lhe as boas vindas, em latidos cristalinos. Voltearam em perseguições que alternavam com fugas. Dentes de fora em exibição festiva, na farsa do combate. Este era o seu dia mais feliz.

Ladrou alto e então acordou. Deu por si confinado à varanda do seu dono, como sempre, e lá em baixo exibia-se, arrogante, o sinistro rottweiler do bairro.





quarta-feira, 23 de maio de 2012

O cara legal


O Butuca era o cara mais legal da turma, tomava altos tragos com a galera, sempre conseguia o melhor baseado e até descolava um pra nós de vez em quando. Sempre conseguia as mina mais tri e todo findi tava com uma diferente. Eu tinha dez anos e quando crescesse mais queria ser que nem o Butuca, o cara era muito legal. Teve uma vez que ele até deixou eu dar uma pitada num baseado. Sempre conseguia uns troco pra gente comprar uns crivo. Pô! o cara era legal a beça. Enganava os porco direitinho, nunca conseguiram pegar ele. A gente nunca sabia qual era a parada dele, mas ele era muito esperto. Tinha dezesseis anos e ia ser pai de duas minas, mas é claro elas não sabia uma da outra, nóis e a galera do Butuca é que sabia.

Teve uma vez que apareceu na banda, um troxa que quis dar uma de pai pra cima da gente. O tio começou o maior sermão pra cima da gente, dizendo que a gente não podia fumar, que era muito novo. Mandei ele se fudê. O tio não gostou e disse que ia chamar os porco. Quando o Butuca viu o tio falar em porco. Ele odiava porco, e com toda razão os cara aparecia na zona pra leva um de nós, dizendo que a gente tinha metido alguém, viagem viagem. A moral é que quando a viatura aparecia é porque eles tava sem o barato e via rouba da gente e sempre a mesma história, dessa vez a gente libera vocês mas da próxima grade. As vezes, por diversão, eles davam uns piteco na gente e manda nós cala a boca.

Naquele dia o Butuca não gostou de ouvir o tio fala assim, saiu do canto dele e veio pra cima do coroa, chegou junto, deu um encontrão pra abrir espaço e guindou um soco no nariz. Pronto o babaca tava sangrando, e ainda por cima gritou com o Butuca, chamou ele de marginal. O Butuca não era marginal, ele era um cara gente fina, um cara legal. Ouviu e não gostou. Deu outra no tio. O velho foi pro chão, daí o Butuca tirou o ferro e apontou pro babaca. Eu pensei que o Butuca ia apagar o velho ali mesmo, deu até pena de ver o tio se mijando na calça, mas o Butuca, pra mostrar que era um cara legal, deixou a gente dar uns chute no tio. Aquilo foi da hora, vou muito legal. Dei um que chegou a quebrar uns dentes do velho. Dente mesmo, porque a dentadura tinha voado longe, depois o Butuca tirou a grana do coroa e deu pra nós. Daí a gente foi comprar doces e bebida pra todo mundo. Não sei o que houve com o tio, quando a gente voltou ele não tava mais lá. A gente acha que ele fugiu de tanto medo, mas tem uns cara da banda que diz que o Butuca apagou ele. Mas é mentira, o Butuca era um cara legal.

que é foda, os cara legal morre cedo. Teve uma vez que o Butuca conseguiu um grana fudida e comprou um monte de pó. Deu a metade pra galera e a outra ele levou pra baia. O Butuca se chapou e quiz mais, e mais. Não deu, o cara era legal mas morreu. Não agüentou o tranco, se foi. Eu até tive vontade de chorar, mas aprendi com o Butuca que homem não chora, mulher e veado é que chora.

A merda é que agora não tem mais o Butuca. ficou mané na galera, os cara não querem saber de beber, nem de curtir um barato. Os parceiro, os amigão do Butuca não aparece mais lá. Que foda, agora ninguém vai descola unzinho pra gente consegui uns crivo. A gente precisava mesmo era de um cara lelgal. Paciência, vamo te que se vira.





domingo, 20 de maio de 2012

O padre e a tia

Os verões na fazenda da família deixaram a memória de Paulo Cássio entulhada de cheiros, sons e sensações. Até hoje fecha os olhos, sente o aromático feijão no fogão de lenha e o gosto da goiaba vermelha, ouve mugidos longos da vaca Amorosa e a voz aflautada de Tia Antonieta
puxando os cânticos na missa, vê a paisagem sem fim de morros sobre morros e o rosto severo do reverendo Batistini, que sempre chegava para o jantar. Era sempre assim. Primeiro jantavam as crianças. Depois, a mesa era reposta para padre agregado e para  a senhora da fazenda.
Tia Antonieta tinha enviuvado cedo, não tendo tempo para  maternidade. Viu-se, pelas trapaças trágicas do destino, herdeira da propriedade. Nem teve tempo para chorar. Vestiu-se de preto até o pescoço, e embora jovem e de traços bonitos, despiu-se da vaidade. Com mão de ferro dedicou-se a cuidar dos bois, dos cavalos, dos porcos, dos pomares, dos empregados e da penca de sobrinhos,
tidos como filhos postiços e temporários, cujos pais os entregavam em custódia à tia durante os quase três meses do verão. Dos quatro aos doze anos, Paulo Cássio não conheceu férias que não fossem de pé no chão, espantando galinhas, montando cavalos em pelo, subindo em árvores, mergulhando no riacho, crescendo junto com primos e assustando o irmão caçula com histórias de assombração.
Na última noite de uma dessas férias, Paulo Cássio teve uma insônia de encharcar os lençóis. Fez de tudo para retomar o sono. Contou buracos na janela, inventou musiquinhas com o ressonar ritmado do irmão ao lado, deu nome às sombras que se projetavam na parede. De tanto esquentar a cabeça, desistiu. Saiu pé ante pé pelo casarão, pisando com cuidado para que as tábuas corridas não rangessem. Olhou bem para os santos em cima da cristaleira, acompanhou com medo os olhos côncavos do Cristo na parede, que seguiam as crianças onde quer que fossem. Apressou-se em alcançar a varanda, por onde desceu lentamente as escadas. Embalado pelo silêncio salpicado de grilos e sapos martelos, prosseguiu seu caminhar curioso, sentindo medo e frisson com o balé das arvores sob e vento e o luar. Rodeou a casa até o lado oposto e estranhou a luz tênue que vinha das frestas de um janelão semi aberto. Lá dentro, o quarto da tia, o misterioso e proibido quarto da tia.
Aproximou-se com as mãos suadas que seguravam o coração, apertou os olhos e paralisou. Viu um vulto de camisola branca acocorado ao pé da janela.
- Quem é que tá aí? Era a prima Irene, na plenitude de seus treze anos, menina danada em corpo de mulher quase feita, rainha das travessuras.
- Pssiu… fala baixo. A tia Antonieta está se confessando ao reverendo Batistini. 
- Como é que você sabe?
- Eu conheço voz de padre.
- E você está xeretando a confissão dela? É pecado, menina!
- Não dá para ouvir direito. Eles falam baixinho. Ela parece que chora. Ele tem problemas de respiração. Ouve só.

Os dois encostam o ouvido na parede, bem embaixo da janela. Ouvem sôfregas palavras, indecifráveis excitações, rezas suspirosas, um rosário de gemidos. Irene pega a mão do primo e coloca no seu coração.
- Sente só. Estou com medo.
- Vamos embora, Irene.
- Não. Fica comigo. É um medão gostoso. Vem cá, vem.

Paulo sente sua mão ser conduzida por dentro da camisola da prima. Primeiro o coração forte, depois um passeio pelos mamilos, pitombinhas delicadas querendo brotar. E segue a mão seu destino insidioso, encontrando com os dedos a nascente úmida da pequena relva que já se formava entre as pernas de Irene. As bocas se encostam provocando uma pororoca de línguas, não tinham idéia que fosse assim. Sem se descolarem um do outro, entrelaçados pelos cordames dos instintos, a mão da prima vasculha o pijama do primo, descobrindo o que há de mais quente, indócil e pulsante naquela tenra idade. As ditas orações sôfregas vêm das frestas da janela com mais intensidade. Ao mesmo tempo, na tocaia embaixo do parapeito, Irene e Paulo Cássio, aos toques de mãos e esfregações inocentes, entram no mesmo ritmo do padre e da tia, e atingem a uma sensação jamais imaginada. Extasiados, se abraçam apertado quase sem fôlego.
- Que é isso? Sentiu o que eu senti? De onde veio? Para onde foi?
- É o diabo, Irene, vamos embora, tô morrendo de medo.
- Não, seu burro. Foi um anjo que entrou por dentro da gente.





quarta-feira, 16 de maio de 2012

Uma moça feliz

Foto: Google Imagens
Convenceram-na de que o Amor seria um, e para toda a vida. E a costurar esse convencimento, os laços de seda das almofadas que teriam o seu nome e o dele, em anagramas, e as colchas de babados em que ele a deitaria delicadamente, e onde lhe faria carícias em curtos ais. Havia ainda, a completar essa imagem perfumada, filhos saudáveis, uma casa com escadas, miosótis em vasinhos e longos lírios brancos plantados num jardim ensolarado de verão. Uma vida em rendas de guipûre, lavandas e rezas.
E ela se tornou, assim, uma moça feliz.
Convenceram-na de que ela deveria aguardar pelo homem certo, que chegaria de surpresa numa tarde de chuva, tomando-a em seus braços fortes para impedir que ela escorregasse na calçada molhada. Eles se olhariam com devoção incontida e, sem palavras, compreenderiam que eram duas almas entrelaçadas pelo destino. E encostariam, juntos, suas cabeças na vidraça enfumaçada pelo vapor da primavera.
E ela se manteve, assim, uma moça feliz.
Convenceram-na, mais uma vez, depois que os anos já haviam lhe trazido pequenos sulcos ao redor dos olhos, de que os ventos de outono ainda poderiam esconder encantamentos, e que ela escutaria, nas folhas amareladas e secas, os passos calmos e seguros daquele que viria para beijá-la na testa e oferecer-lhe o ombro largo e acolhedor. Falariam de livros e ela tocaria para ele Bach ou Chopin, para que ele não pensasse que era apenas uma tola a dedilhar o Pour Elise.
E ela prosseguiu, assim, uma moça feliz.
Convenceram-na, por fim, tão logo os fios brancos se alastraram atrevidos pela cabeleira longa, que era hora de fazer-se fria como os dias do inverno rigoroso, e amanhecer para cercar-se dos filhos de outras, das histórias de outras, das almofadas de outras... Com anagramas que não seriam seus. E ela faria fornadas de biscoitos enfeitados, e poderia trocar o chá por um cálice de licor de frutas, e viajar sozinha em excursões familiares, e contar às meninas sobre um futuro em rendas de guipûre, lavandas e rezas.
E ela não quis mais ser uma moça feliz...
Convenceram-na, no entanto, de que era ingrata. E que deveria conformar-se com a vida. E que deveria sentir-se agradecida ao Bom Deus por existir. E que deveria manter-se digna e honesta até o fim. Até o fim...
E ela pegou sua dor, seus cabelos longos, bastos e entremeados de branco, suas memórias de jardins de lírios, de vidraças com vapor de chuva, de carícias em curtos ais e de crianças que não eram suas, e lançou-se porta afora, mãos na cabeça, como a espremer da memória uma vida que também não era sua.
E ela entrou num bar, e fartou-se de álcool, e flertou com os homens, e viciou-se em procurar amor em lençóis baratos, em corpos suados, em bocas sem beijos.
Até um dia... Um dia em que seus olhos encontraram seus olhos no espelho. E neles havia anagramas, músicas, lavandas e tantas outras coisas que eram suas, só suas.
Convenceu-se, enfim, de que o Amor era mesmo só um. Para toda a vida.
E deitou a si mesma sobre a colcha de bordados. E se fez carícias.
Era, finalmente, uma moça feliz.





terça-feira, 15 de maio de 2012

dessimetrias



A sala enorme ficava debruçada sobre a rampa, sobre a rua, sobre uma zona ajardinada.
Uma sala com uma parede inteira em vidro transparente.
E, lá muito ao longe, via-se o casario da cidade.
E havia uma persiana.
Pregas esbranquiçadas que rolaram e taparam o vidro, e esconderam a rampa e a rua, e a zona ajardinada e o casario da cidade. Pregas que deslizaram devagarinho, e taparam também o sol intenso se bem que fosse já ao fim da tarde – a hora ela não pode saber ao certo, que nem tinha trazido relógio, e o que havia na sala de espera ficara exangue entre as duas e as três de um outro dia.
Ela não perguntou, e ninguém lhe disse.
Ninguém lhe disse mais que boa tarde e, num imperativo adocicado, que se sentasse:
– ali naquele banquinho.
Um banco em metal brilhante junto ao envidraçado.
Dava-lhe o sol em cheio antes de o homem ter corrido a persiana de alto a baixo.
E o coração dela a bater em descompasso, e Maria Irene a respirar em socalcos.
Estivesse a afogar-se em algum pego – água negra e profunda que nem poço – e não seria diferente aquele ficar-lhe o ar impedido e ela arfando, boca e narinas a latejarem num grito de socorro, e o ar apenas rondando. Tanto ar em volta e ela naquele desassossego. O ar deslizando-lhe para longe como que num jogo de esconde-esconde, e ela sentada muito quieta no tal banco, e os olhos, mais que tudo eram os olhos dela farejando. Maria Irene muda de receio e desconforto.
Ela à espera, e aqueles dois de um lado ao outro. Um homem e uma mulher azafamados:
– só mais um bocadinho dona, só mais um instante.
Na sala o chão era de soalho. Ripas brilhantes. Um espanto que fosse chão desse. Antes deveria ser chão de ladrilhos, tijoleira ou outro de melhor asseio, pensou Maria Irene a disfarçar a aflição que lhe era meter algum ar nos pulmões. E nem que fosse disso a sua queixa, que ela tinha dito ao médico: acho que cresceu. Um caroço de nada sob a pele.
E depois tinha sido o autocarro, e o combóio e ainda o táxi.
O médico apalpou, viu e disse-lhe: tem que fazer esse exame.
Meia dúzia de pelos a nascerem-lhe, muito loiros no local do bigode, e os olhos azuis sem qualquer brilho. O médico insistira numa vozinha turva: tem que fazer esse exame ainda hoje! e tinha-se levantado assim como que a dizer-lhe: não me vai pedir que lhe explique pormenores. Mas não disse. Levantou-se apenas, e fez que ela se erguesse na cadeira forrada em napa cor de vinho. Uma cor a dizer bem com as flores do cortinado na janela do consultório. E o médico desejou-lhe boa tarde a entreabrir a porta, e ela não perguntou o que quer que fosse.
Ainda bebeu um chá gelado na pastelaria que ficava defronte, e depois seria o autocarro e o combóio, e finalmente o táxi, e só então Maria Irene subiria a rampa.
E ainda fazia sol quando se sentou naquele banco.
Seria por volta do meio-dia quando saíu do consultório.
– vamos para ali, disse-lhe o homem a simular o gesto de ampará-la.
O mesmo homem que lhe tinha dito:
– tire tudo e vista isto.
Uma bata de material viscoso, um azul transparente estendido num braço peludo. Para que vestisse. E esse mesmo homem disse-lhe, depois:
– relaxe, dona.
E pegava-lhe num braço, numa perna, no tornozelo, no pescoço.
Pegava-lhe no corpo todo como se fosse coisa.
E finalmente, seco e preciso:
– e agora fique assim quietinha!
E foi só então que ela perguntou, sumida:
– quanto tempo?
Duas horas, tinham-lhe respondido.
E Maria Irene jura que foi nesse preciso instante que a sala enorme ficou reduzida ao tamanho do seu corpo. Nada mais que ela e a janela envidraçada e o cortinado. Tudo concentrado no seu corpo muito quieto por força do exame. E nem que fosse um pego, água negra e funda, nem que fosse isso, seria mais profundo o sorvo que ela desse para inspirar o ar necessário.
E foi nesse instante que Maria Irene jura que no cortinado se abriu uma fresta que se foi alargando. O cortinado a abrir-se lento.
E ela quis gritar que o fechassem.
Ela a respirar em sorvos e um frio de inverno a descer-lhe pelo corpo.
E nem terá gritado.
Maria Irene há-de contar que o sol entrou e encandeou-a. Um sol de meio-dia e era fim de tarde. Ou não seria.
Ela quis correr a persiana, mas o que havia era um cortinado longo, flores cor de sangue ou cor de vinho num pano que corria do lado de fora da porta envidraçada. Nem pensar em chegar-lhe, dirá ela, e dirá que o pano esvoaçava destapando o vidro.
O pano erguido pelas mãos de um e outro que passava.
Que os mandassem embora, queria ela gritar e não podia.
Um desaforo eles ali olhando, uns atrás dos outros a espreitarem debaixo do cortinado.
E Maria Irene há-de jurar que eram muitos olhos espreitando, e que nem havia persiana e sim um pano. E dirá que também os olhos dela andavam a passear lá fora, e ela muito quietinha como tinham mandado:
– não se mexa, dona.
E tinham deixado acesa uma luz vermelha.
Uma única lâmpada do tamanho do dedo grande do pé direito de Maria Irene, que por nascimento é muito maior que o dedo grande do seu pé esquerdo.