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quinta-feira, 26 de julho de 2018

Insaneamento


Duas guerras
Tsunami
Overdose
Aguentou

Três safenas
Dinamite
Tiau da Rita
Engoliu

Choque elétrico
Carcinoma
Tiroteio
Suplantou

Morreu mesmo
Aos trinta e seis
(Vai entender,
Acho esquisito)
Morreu mesmo
O grande herói
Foi de mosquito


Maria Amélia Elói





quarta-feira, 25 de julho de 2018

Sémen



O mundo desabou para Cátia e Flávio quando souberam que não podiam ter filhos. O veredito dos testes de fertilidade, em que ambos tinham andado enredados nos últimos meses, foi o mais cruel: tinham de abdicar da aspiração de transmitir vida. E criá-la. De construir um homem ou uma mulher, desde o nada à vida adulta.
Casados havia oito anos, tinham vivido tranquilos quanto a esse aspeto. Quando o decidissem, o ventre de Cátia incharia, tinham por seguro. No ano em que ela fez 35, decidiram que era tempo de terem um filho. Não convinha adiar mais.
Foi o período de maior e mais livre intimidade do casal. Todos os anteriores constrangimentos de gravidezes indesejadas tinham ficado para trás. Já não era preciso usar preservativo, já não era preciso tomar a pílula. Ou interromper o coito, quando ela descansava da pílula e tinham acabado os preservativos. O desfrute mútuo fora profundo e total.
Passaram os meses, mas as tentativas mantiveram-se infrutíferas, no sentido literal do termo. Depois tornaram-se frenéticas e cada vez mais angustiadas. Pressentiam-lhes a inutilidade. Por fim, tinham entregado as suas dúvidas à ciência, que os desenganou de vez.
Não é uma notícia com que um casal, ainda na casa dos trinta, lide bem. Só uns dias depois começaram a recordar e a dar atenção ao que mal tinham ouvido da boca da médica: Flávio é que não podia ter filhos. A sociedade moderna, felizmente, já dispõe de “soluções” que permitem ultrapassar esta situação de esterilidade, quer pela inseminação artificial, com base num banco de esperma, quer pela adoção. E há tantas crianças à espera de um lar de verdade!
Durante semanas levantaram hipóteses e trocaram dúvidas. Era evidente para Flávio que Cátia deveria tentar ser mãe biológica, antes de enveredarem pela adoção. Ela só punha a reserva do dador que lhe calharia: podia ser muito feio, podia ter taras. E outros medos que a situação de ausência de controlo lhe levantava. A brincar, disse que, como o bebé não se ia parecer com o marido, o ideal era que fosse tão bonito como o seu ídolo musical Vicente del Cuore.
A ideia surgiu e fixou-se, como mancha de cereja em toalha de linho. Por que não? A ideia parecera absurda quando lançada, mas expressa por palavras passou a ter uma existência de possibilidade. Havia a possibilidade de Cátia obter o sémen de Vicente; por que não? Podia apiedar-se do problema de Cátia e doá-lo caridosamente. Ou podia agradar-se do corpo de Cátia, que era uma mulher bonita: corpo bem torneado, rosto oval, olhos azuis, cabelo castanho claro caído sobre o seio esquerdo. Assim Cátia conseguisse seduzi-lo. Quando a ideia ganhou vantagem sobre outras e as expulsou, Cátia passou mesmo a pôr a hipótese de sequestrá-lo e obter o sémen pela força do Viagra, caso outras soluções não resultassem. Flávio estava por tudo.
Como primeiro passo, Cátia definiu a inscrição no clube de fãs de Vicente del Cuore. Depois, aproximou-se do grupo que acompanhava o cantor a todos os espetáculos. Ficou logo um pouco desanimada quando soube que, daquele enorme grupo de trinta ou quarenta mulheres em que metade queria meter-se na cama com o ídolo, apenas duas se vangloriavam disso. E que del Cuore devia ser muito cuidadoso, pois usara preservativo em ambos os casos. Não valia a pena pedir-lhe ajuda procriadora. Nem iria ser fácil roubar-lhe o sémen.
Soube, no entanto, que o cantor, embora esquivo nos contactos de intimidade total, era pródigo em contactos mais egoístas: oito confessaram, um tanto envergonhadas, que já tinham aceitado na boca a desejada semente do irresistível ídolo.
Por aí enveredou o seu plano. Pois que fosse na boca. Andaria sempre prevenida com um frasquinho de plástico. Se algum dia conseguisse o que antevia — e então isso parecia-lhe bem ao seu alcance —, disfarçadamente o verteria no frasquinho e de seguida, na casa de banho ou no carro, o introduziria em si, com um longo aplicador de plástico. Resultaria? Por que não?
Iniciou o jogo de sedução com olhares e sorrisos de coqueteria, na receção coletiva que o cantor sempre concedia às fãs depois de cada espetáculo. A que só ia em período de ovulação. Não queria desperdiçar a oportunidade, que provavelmente surgiria.
Uns sete meses depois, o artista deu pela flor que ela empunhava:
Minha querida, por si, pela beleza dessa flor que me quer oferecer, vou recebê-la a sós. Para me explicar por onde andou toda a minha vida essa sua beleza que suplanta a da flor.
O narrador dispensa aqui os pormenores sórdidos das técnicas e das manobras que um artista idolatrado usa de modo a transferir a veneração idealista de uma admiradora para práticas de submissão à sua vontade lúbrica. Neste caso, era um cordeiro que ingenuamente tencionava “comer” o lobo. Só que os lobos têm mais experiência que os cordeiros e antecipam as frágeis manhas das presas. Quando Vicente del Cuore percebeu que Cátia executava movimentos inesperados, logo após o orgasmo dele, deu-lhe um safanão que fez saltar o frasquinho e o seu precioso conteúdo para debaixo de uma cadeira. Levantou-se brusco e irado, abriu a porta do camarim e gritou pelo segurança:
Luís, tira-me já esta gaja daqui!
Cátia nem teve tempo de cobrir o peito. O segurança, entroncado e de braços tatuados, agarrou-a pelos cabelos, empurrou-a para outra divisão e obrigou-a a ajoelhar-se e a abocanhar o seu membro. Quando atingiu alguma excitação, forçou-a a dobrar-se sobre o tampo de uma mesa e penetrou-a brutalmente. A dor foi fina e cortante. Cátia gritou, mas levou um murro na cara, de través. Dois minutos depois foi abandonada no chão, ensanguentada, em lágrimas silenciosas.
Flávio levou muito tempo a conseguir que a mulher lhe explicasse o que tinha acontecido. Sentados no leito onde já tinham vivido tantas euforias, ela quase só chorava. Sentia-se humilhada e traída por todos, até pelo marido. Fora a sua infertilidade que a levara ali. Flávio mostrou-se revoltado e queria arranjar um grupo para dar uma sova no segurança de del Cuore. A não ser que ela fizesse queixa à Polícia. Cátia só tentava dormir. Não queria nem lembrar-se daquele animal.
O fisiológico, no entanto, segue o seu próprio caminho, sem cuidar das alegrias ou dos sofrimentos que pode desencadear no emocional. Um mês depois, Cátia soube que estava grávida.
Flávio ficou dividido: no fim de contas, era uma oportunidade de ela ser mãe. Que podia não se repetir. Cátia não via o lado útil da situação. Sentia-se magoada e atraiçoada até pelo seu corpo. Não era assim que imaginara ter um filho. Fruto de uma violação, como acontece nos cenários de guerra. Conseguiria amar e criar uma criança gerada naquelas circunstâncias? O que estava verdadeiramente em causa? Precisava de meditar profundamente.
Durante uma semana ouviu o seu íntimo, atenta e honestamente. Depois tomou a sua decisão.

Joaquim Bispo

*
Este conto integra — páginas 128 a 131 — a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de junho de 2018: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__o

*
Imagem: António Grancho, Transmutação, 2017.

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sexta-feira, 20 de julho de 2018

FUNDO DO POÇO

Ico voltava da roça para o casebre de barro salpicado, quando avistou a
sogra balançando na rede e a filha brincando de acertar o bico do galo
com o milho. Viu que a menina não acertava uma, deixando o galo irritado
de tanto perder o milho para a galinhas em volta. Galo magro e bobo. Ico
fez da enxada um pau para se encostar, passou a mão grossa na testa suada
e sorriu para a menina, que quando o percebeu espantou a galinhada e veio
correndo pular no colo do pai.
- Fininha, assim você vai matar o galo.
Os dois se abraçaram em rodopio, fazendo alvoroço na poeira do chão seco.
A velha levantou a cabeça, espiou com cara feia e rachada. Não gostava
daquele homem que tinha emprenhado a filha quatro anos antes, e o pior:
se aboletado no casebre em troca de dar conta do roçado em volta. Não era
terra extensa e rica. Muito pelo contrário, do amanhecer até o sol a pino,
Ico percorria o roçado, mexendo e cavucando a terra com enxada e ancinho,
misturando bosta de boi e água do poço, espalhando grão de milho, na
esperança de que aquilo em um tempo desse em milharal.
Acontecia. Sempre antes do Dias de Reis, enchia meia-dúzia de balaios de
espiga, sendo que cinco eram vendidos aos atravessadores e um inteirinho,
o de melhor qualidade, deixava dentro de casa. E tal como o galo e as galinhas,
iam os quatro – ele, mulher embuchada, sogra de maus fígados e filha pequena,
levando a vida como Deus quisesse.
Havia também mais uma boca para alimentar: a porca, que se satisfazia com
uma mistureba de espigas que não prestavam, restos de caules e folhas,
poucas sobras dos pratos e das latas de banha que faziam as vezes de panelas.
Durante um desses rodopios rotineiros, Ico ouviu gritos vindos da direção do poço.
Reconheceu a voz. Largou a menina no chão e enlouqueceu-se em torno de um buraco
fundo, cavado até onde a água quisesse aparecer. Lá dentro, sua mulher Dininha
gritava por socorro.
Pela largura do poço mal cabiam duas pessoas. Mas Ico se meteu assim mesmo,
até desabar sobre Dininha, que já nos últimos respiros da exaustão, agarrou-se
ao marido, puxando mais ainda para as profundezas, onde água e lama já lhes
cobriam as cabeças.  Debateram-se e gritaram por mais de horas, sem que ninguém
notasse suas agonias. Aos poucos foram se entregando ao destino.
A menina percebeu que o pai a tinha largado esbaforido correndo para trás do casebre.
Na sua inocência de quatro anos, custou a perceber que ele não voltaria mais.
E quando se deu conta, puxou a avó para catar pai e mãe pelo terreiro, enxotando
galinhas, chutando a porca. Na beira do poço, viu sandálias descalçadas. Mesmo inocente,
atinou para o que tinha acontecido.
Já era fim de tarde do dia seguinte, quando dois vizinhos distantes da roça apareceram
montados em seus cavalos. O sujeito maior de apelido Pau de Coqueiro - acompanhado de
seu menino adolescente chamado Filho do Coco - por ser magro e comprido, meteu-se no
buraco de cabeça para baixo com a corda de laçar reses amarrada na cintura.
Por mais de meia hora ficou por lá, pelejando, pelejando. Até que, dado um sinal,
seu filho amarrou a corda nos animais, que às chicotadas e aos gritos de ôs, ôs, ôs,
puxaram tudo que vinha lá do poço. Primeiro apareceu Pau de Coco, depois, amarrado a
seus pés o casal grudado pela lama, abraçadinho como se dormisse pela primeira vez. Fedia.
A velha gritou de horror. Ameaçou se atirar no poço, mas ficou entalada na beirada.
Tentou se jogar entre as patas dos cavalos, engoliu terra, gritou para que o senhor
lhe mandasse um raio, fez de tudo para morrer de desespero, ali, na hora, naquele
pavoroso cenário. Vagou pelo terreiro, esconjurou a vida e a neta, fruto da desgraça
enlameada.
- Que o diabo te carregue! Eu é que não tenho que te carregar, sua peste!
A menina fez que ia abrir um berreiro, mas nem chorou. Na sua cabecinha de quase quatro
anos, desabou a certeza de que estava sem ninguém na vida. E jurou limpar aquele lamaçal
da memória. Não se sabe se conseguiu, mas por um longo tempo, não só deixou de falar de
pai e mãe, mas trancou a boca para qualquer outro tipo de prosa.  Custou a tomar tenência
para fugir. Mas até a madrugada que decidiu largar Abiricó para trás na carroça de milho,
por um tempo mais interminável que a eternidade, teve que ser carregada pelo diabo
em forma de velha coscorenta. 





terça-feira, 17 de julho de 2018

Rua 1 - Fragmento de Nestor de Miranda



RUA 1



Bahia com Afonso Pena, uma hora da tarde, domingo.
Um homem, de mãos dadas com um menino de
menos de seis anos, vem pelo passeio, em direção
oposta a minha. O menino − com um sorriso trivial,
dolorosamente inocente − aponta para um canto (sujo)
da calçada e diz:

− Olha, pai, é ali que a vovó ficava.

O homem nada fala: franze o cenho, segura a mão da
criança com um pouco mais de força, aperta o passo.
Seguem, desaparecem entre os transeuntes.

− Olha, pai, é ali que a vovó ficava.




Do livro Silhuetas (Editora Calamares).



A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas em pé e atividades ao ar livre


https://www.editoracalamares.com.br/
https://conformitatisosor.wordpress.com/







segunda-feira, 16 de julho de 2018

Opinião

(Ilustração Claudio Delamare, feita para este  conto — in memoriam)

Discutiram desde os primeiros encontros. Porque ele gostava de cães e ela amava gatos. Porque o melhor dia da semana era sexta-feira, mas não para ele, que preferia o sábado. Assistir ao jogo ouvindo rádio, coisa de maluco, ela debochava. Ou não, rebatia ele. Lavar os cabelos todos os dias. Ou em dias alternados. Tomar chope com ou sem colarinho. Ser protestante. Ser católico, espírita, budista, ateu.
Com os anos, casaram-se. Igreja ou cartório. Poucos ou muitos convidados. Pela manhã, no inverno; à noite, na primavera. Não tiveram filhos. Ninguém queria. Mas discutiram até sobre os porquês. Ela, porque era mulher de carreira, bem sucedida e sem tempo. Ele, por qualquer motivo diferente do dela. 
Carro branco; moto preta. Macarrão com molho de alcaparras; camarão na moranga. Lispector, a melhor. Hilst, a incomparável. E enquanto ela escutava jazz no home theatre, ele aumentava o volume dos clássicos no headphone.
Discutiram muito sobre sexo. O deles, o dos outros, o dos anjos. E sobre a cor do mar: azul, verde, acinzentado. Sobre verduras, estrelas, rodapés, sentimentos, fantasmas, sogras, drogas, duendes, países, escovas de dentes. Cada um seguiu em frente — com sua couve ou agrião, com hipernovas ou anãs, com sua Áustria ou Dinamarca. Prontos, sempre, para a próxima rodada de opiniões.
Quando ela ficou doente, discutiram sobre o diagnóstico, antes e depois de o médico dizer que era grave. Tratamento tradicional ou alternativo. Em casa ou no hospital. Com ou sem cirurgia. Ela pediu para morrer. Ele disse que não.
Ela morreu assim mesmo.
Ele foi para casa. Fechou as cortinas, arrumou, lavou, recolheu o lixo. Recolheu em algumas malas tudo o que era dela. Depois, carregou para o quarto o porta-retratos prateado e o colocou no travesseiro ao seu lado. 
Antes de dormir, disse para a foto dela: 

Você diz que morreu.  Mas amanhã nós vamos discutir sobre isso, viu?