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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A cigarra e a formiga


Era uma vez uma Cigarra e uma Formiga.

A primavera era linda e a Cigarra, muito alegre, tocava e dançava o tempo todo.

A Formiga, muito disciplinada, andava ocupadíssima a amealhar para o Inverno que sabia que viria; enquanto a Cigarra dançava, a Formiga carregava bagos de arroz; enquanto a Cigarra cantava a Formiga carregava grãos de milho. E enquanto a Cigarra dormia, a Formiga arrumava a despensa, para lá caber mais.

O Inverno chegou.

A Cigarra, cheia de frio e sem nada para comer, bateu à porta da Formiga e pediu-lhe ajuda. A Formiga, quentinha e farta, disse-lhe suavemente:

"Quem te mandou cantar e dançar o tempo todo? Eu, minha cara, passei esse tempo a trabalhar que nem uma escrava para não estar agora na situação em que tu estás. Antes nunca te preocupaste com o teu futuro; agora, eu não vou dividir o meu contigo, pois é fruto de muito sacrifício."

A cigarra ficou espantada.

"Achas que eu devia ter estado a carregar bagos e grãos, em vez de cantar e dançar? Mas assim não haveria alegria, nem música para te acompanhar no trabalho... Assim ninguém se ria nem esquecia por momentos o filho doente. Assim ninguém faria nada absolutamente disparatado, ninguém faria nada absolutamente altruísta, ninguém faria nada absolutamente descontraído... Ninguém faria nada diferente de acautelar a própria barriga!
Desculpa, Formiguinha, desculpa. Sempre te vi tão séria e determinada, não fazia ideia que eras triste. Mas olha, alegra-te agora, alegra-te que tens a despensa cheia, a casa quentinha, já não há nada para carregar; podes agora esquecer o trabalho por um bocadinho."

Esquecidos o frio e a fome e galvanizada por aquela revelação, dançou e cantou como poucas vezes o tinha feito. Um espectáculo sublime a que nem o facto da formiga ter fechado a porta tirou inspiração e brilho.

Terminado o bailado, sorriu e tocou novamente à campainha. A Formiga não abriu a porta...
A Cigarra foi-se embora, sorrindo ainda.

Ainda hoje, na Primavera, em toda a aldeia e alguns arredores se dançam e cantam as melodias da Cigarra.
Da Formiga ninguém sabe nada - se calhar está lá, com o que é só seu.





domingo, 25 de dezembro de 2011

Livros de Portugal


joaquim bispo






O Último Segredo de José Rodrigues dos Santos foi lançado oficialmente em outubro passado, perante “mais de quinhentas pessoas”, na monumental sala da Sociedade de Geografia em Lisboa.
O autor é um conhecido jornalista da televisão pública que, desde há uma dezena de anos, publica best-sellers de mais de quinhentas páginas, à média de um por ano. Os seus cinco ensaios e nove romances já venderam mais de um milhão de exemplares, só no diminuto mercado livreiro português. Os temas são apelativos e quase sempre polémicos: a possibilidade de Cristóvão Colombo ser português – O Codex 632; a prova científica da existência de Deus, a partir de uma fórmula de Einstein – A Fórmula de Deus; o cartel do petróleo e os problemas ambientais do planeta – O Sétimo Selo; a possibilidade de um ataque nuclear por terroristas islâmicos – Fúria Divina.
No livro agora lançado, promete-se revelar a verdadeira identidade de Cristo e desmistificar alguns dos erros, até fraudes, constantes na Bíblia. Como era de esperar, as reações dos setores ligados à Igreja foram adversas e violentas, a começar pelo apresentador do livro, um teólogo de Coimbra convidado pela editora. Senti-me espectador de um escândalo, o resultado de um erro de casting em que alguém se teria enganado na escolha do panegirista, que, em vez de tecer os habituais encómios entusiásticos à excelência da obra, proporcionada por não menos excelente escritor, se estendeu no apontar de erros do texto e em críticas à impreparação do autor para tratar tal matéria.













Foto: O teólogo apresenta o livro. JRS sentado.


JRS não pareceu nada incomodado com as críticas. A sua resposta foi calma, segura, e extensamente apontou vários aspetos ligados às escrituras que carecem de verosimilhança. Transmitindo a ideia de dominar as questões em causa por se ter debruçado afincadamente sobre elas, o saldo foi-lhe favorável.

Passados dias, a imprensa dava conta das reações oficiais da Igreja: “Confunde datas e factos, promete o que não tem, fala do que não sabe”; “a quantidade de incorreções produzidas em apenas três linhas, que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras quanto à indigência do seu estado de arte.”

JRS ripostou: “A Igreja Católica não negou nenhuma das afirmações constantes do meu livro”. “A Igreja nega ou não nega que Jesus era judeu - e, consequentemente, que Cristo não era cristão? A Igreja nega ou não nega que há fortes indícios na Bíblia de que Maria não era virgem? A Igreja nega ou não nega que existem textos fraudulentos no Novo Testamento? A Igreja nega ou não nega que nenhum dos autores do Novo Testamento conheceu pessoalmente o Jesus de carne e osso?"; “Nenhum dos Evangelhos descreve a ressurreição”; “Tudo o que no romance escrevi, no que diz respeito a citações bíblicas ou informações históricas ou científicas, é verdadeiro.” “Os académicos sabem disto, a Igreja também. O público é que não".

O livro já vendeu, até ao momento, 130.000 cópias.





* * *



Claraboia, lançado há dois meses, é o mais recente romance de José Saramago, que morreu há mais de um ano.
– Como? Importa-se de repetir?
Em 1953, Saramago enviou um original a uma editora. Era a história cruzada das seis famílias que habitavam um prédio de apartamentos em Lisboa. Segundo os especialistas, já se vislumbram nesta sua temporã escrita as mesmas preocupações sociais denotadas nas obras da maturidade, embora a pontuação seja “bem comportada”. A narrativa mostra “pessoas aparentemente “normais”, no entanto, nelas guardam os pensamentos e desejos proibidos dos vizinhos. Saramago mostra todas as suas mazelas, infelicidades, sonhos, relações matrimoniais penosas, a luta pela sobrevivência diária, e algo mais: relações incestuosas.”
A editora nunca deu qualquer resposta nem devolveu a obra. Presume-se que Saramago, então com cerca de 30 anos, terá ficado muito desmotivado pois esteve 25 anos sem voltar a tentar publicar. Esqueceu-se mesmo daquele original, até porque não possuía qualquer cópia. Há uns dez anos, aquela editora enviou-lhe uma carta em que dava conta que, numa mudança de instalações, tinha encontrado o seu original, e que o publicaria se o autor quisesse. Saramago ficou furioso, mas apressou-se a recuperar o romance esquecido. Não quis que fosse publicado em vida, mas que fizessem o que quisessem depois de morrer. Assim surge o seu último romance, que foi dos primeiros que escreveu.
O lançamento oficial realizou-se em novembro numa sessão informal que celebrava também o aniversário do autor, com a presença da viúva, Pilar del Rio, da filha, Violante, do atual editor, Zeferino Coelho, do realizador do filme José e Pilar, Miguel Gonçalves Mendes, e de amigos escritores, os veteranos Lídia Jorge e José Carlos Vasconcelos e os jovens Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto. Em fundo foram sendo passadas fotografias de Saramago, do tempo em que Claraboia foi escrito.













Tantos testemunhos próximos permitiram conhecer algumas pequenas histórias, como a da origem da ideia para o Ensaio sobre a Lucidez, quando Saramago tomou conhecimento que, numa localidade mexicana, um poderoso candidato concorreu sozinho e… perdeu, porque as pessoas votaram em branco.
Nesse mesmo dia tinha sido entregue a Pilar a chave do palacete quinhentista Casa dos Bicos, onde irá funcionar a Fundação Saramago.

Fotos (sem flash): joaquim bispo





sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Esperando o Noel


Sabe? Por muito tempo eu não gostava de natal. Eu não sei quando foi que aconteceu, mas acordei um dia e simplesmente não gostava mais. Talvez, tenha sido quando descobri que quem trazia os presentes não era o Papai Noel, que quem pagava por eles era o meu pai. E, antes mesmo de descobrir que Papai Noel não existia, eu já sabia que o pai trabalhava duro para pagar as contas de casa e mãe sempre o ajudava. Ela vendia aqueles produtos das revistas. É verdade, que em casa as coisas nunca foram fáceis, mas também nunca faltou nada de comer. Bons tempos. Quando lembro da minha infância, aquele menino que eu era fala comigo.
No natal, tínhamos sempre a ceia. Cheia de frutas, com peru ou chester, as vezes um frango; a cerveja pro pai e refrigerante para mim. Gostava mesmo era da coca-cola gelada com a comida, mas na salada de frutas eu sempre usava fanta para misturar com as frutas. Eu lembro de acordar no dia 25, depois das 10h e ir tomar “café”. A salada de frutas com fanta. natal para mim sempre foi sinônimo de fartura, de presentes, de união, dafamília junta reunida. É claro que gostava de presentes, mas não era o brinquedo o que fazia diferença. Para mim era aquela lembrança que alguém tinha de mim. Era como se fosse uma renovação do amor que as pessoas tinham por mim. E para mim elas demonstravam isso dando-me presentes. A situação era difícil. Eu não entendia direito as coisas, mas sentia de alguma maneira que se alguém priorizou o tempo e o dinheiro para me compra um presente era porque eu significava algo para essa pessoa. Então eu me sentia importante. Acho que no fundo era porque eu sentia que estava sendo amado. Minha mãe sempre dizia que gostava mais de dar do que receber. Então o tempo passou. Eu cresci. Continuava jantando com a família, mas depois da meia-noite, saia com meus amigos. Mesmo nessa minha “juventude” eu queria estar com os meus pais e meu irmão. Não tinha natal sem eles, isso não fazia sentido para mim e talvez ainda hoje não faça.
O meu irmão teve um tempo que não vinha mais para o natal, não entendia a razão. Tempo depois descobri que ele e o pai tinha brigados, que eles não se falavam. A mãe fica triste no natal, eu disfarçava, mas também tinha um lado meu que começou a entender que as coisas haviam mudado.
Houve um ano em que a mãe começou a falar mal do natal, falar que era besteira. Nesse ano, achei que minha mãe era o próprio Scrooge. E tinha esperança que os fantasmas dos natais viessem e mostrassem pra minha mãe a mágia do natal, para que eu pudesse sentir amado novamente e poder comer salada de fruta com fanta no dia seguinte. Mas depois entendi minha mãe. O que ela tinha não era avareza, era falta de amor. A mãe tinha sido casada antes. No primeiro casamento o marido dela a traia com uma amiga. Ela descobriu a traição em um dia de natal. Então todo o ano ela ficava triste porque lembrava disso. Era a época triste do ano pra mãe, mas no fundo eu sei que ela gostava do natal. É que nessa época eu e o mano estavamos juntos em casa, então ela ficava feliz. Ela também sentia que era amada novamente. É muito triste não se sentir amado, mas é mais triste ainda não se sentir amado no natal, onde todos estão com as suas familias. Sei lá, acho que quando a gente cresce, nós fizemos de tudo para esquecer disso e passa a não ligar. A gente acha que não é amado, mas não admite. Esconde que precisa de amor e de carinho, e diz que não gosta do natal. Que o natal é uma época só para comprar. Então, um dia também chegou a minha vez. E eu perdi o encantamento com o natal.
Depois de muitos anos, o meu irmão voltou a passar o natal conosco. Ele e o pai fizeram as pazes. Fiquei feliz, mas já era tarde, agora eu também via as coisas diferentes. Via que embora todos guardasse a tristeza no natal, assim mesmo ela estava presente. Pelo menos a minha estava. Percebi que não era mais divertido, esperar acordado até a meia-noite para comer, queria comer antes. Mas por alguma razão eu continuava dando presentes e esperando recebê-los. Para mim, era como se conseguisse materializar na troca dos presentes algo de puro, de renovador que o natal proporciona. Sabia que o Noel não existia, mas por algum motivo queria acreditar na mágia do natal. Acreditar que os sonhos eram possíveis. Talvez por isso, eu sempre passava o natal na casa dos meus pais.
Há alguns anos, o último em que todos estavam presentes. A mãe estava com um tumor e por conta disso estava muito fraca. Há mais ou menos um ano, ela tinha feito uma cirurgia para retirá-lo, mas o tumor havia voltado. Lembro da fraqueza, dos seus olhos brilhantes e da força de sua alma. Dizíamos para ela deitar-se, descansar, mas como nos anos anteriores, ela dizia-nos que ia jantar primeiro. E no natal a gente só janta depois da meia-noite. Ela aguentou firme até a meia-noite. A gente via que ela sofria. Burra e teimosa eu pensava, mas no fundo eu estava era orgulhoso da mãe que eu tinha. Orgulhoso da força que ela demonstrava em esperar a meia-noite. Ela jantou conosco e foi para cama. Nós fomos para o quarto dela. Ficamos com a mãe um pouco, trocamos presentes e então ela foi dormir. Dois meses depois a mãe faleceria. Depois disso o natal nunca foi o mesmo.
Eu continuei indo a casa do pai, passar a meia-noite com ele, mas não era a mesma coisa. Ele e meu irmão brigavam. A gente não trocava mais presentes. Parecia que tínhamos deixado de se amar. Acho que foi por esses dias que percebi que não acreditava mais no natal. Até queria lembrar da minha infância, lembrar de como os natais eram felizes, mas não conseguia. Queria que os fantasmas do Dickens viessem mostrar-me onte eu tinha errado. Não conseguia entender. Só sabia que não acreditava mais, não conseguia mais inventar o meu natal. Fechava os olhos para imaginá-lo. Tentava lembrar do Noel, mas nada acontecia. Foi o dia que percebi ser “adulto” não tinha graça. Mas tudo se resolve. Como diz aquele cara, se não deu certo é porque não chegou ao fim ainda.
Comigo não foi diferente. Era véspera do natal. Eu tinha terminado com a minha namorada e estava triste que ia passar o natal sozinho. Fui encher a cara com uns amigos. Lá pela madrugada, depois de algumas cervejas e muitas doses de whisky. Um velho sentou ao meu lado. Disse para eu não me preocupar, que ele era o Noel e que se eu pagasse uma dose ele iria me visitar no natal. Eu, bem que achei aquele cara familiar, então lembrei era o Bukowski. Aquele bêbado filha da... As vezes acontece isso, depois de algumas doses converso com um personagem ou com um escritor, poeta, um desses artistas. No natal passado, veio o Scrooge me dizer que aquela história de fantasmas do Dickens não existia coisa nenhuma. Que ele, o Scrooge, já tava de saco cheio de ficar sozinho. Precisava de uma desculpa desculpa para se aproximar das pessoas e então os fantasmas foram iventados. Assim como no Scrooge, no caso do Bukowski eu também não dei atenção. Mas tinha algo diferente.
No dia seguinte, quando acordei, por algum motivo eu estava acreditando em natal. Acho mesmo que esse ano vai se diferente. Eu acredito menos nas palavras do Bukowski do que no Papai Noel, mas quando fecho os olhos e tento imaginar o natal. Vejo um velho vestido de vermelho, bebendo um vinho na garrafa e segurando um cigarro na outra. E ele tem a cara do Bukowski. Todos nós temos o Natal que acreditamos, que nos faz feliz. No meu, o Papai Noel chamava-se Bukowski e depois do trabalho ele vem aqui em casa. Ficamos, até altas horas, conversando sobre mulheres, porres e bebidas.
No ano passado foi assim e espero que esse ano se repita. E agora no Natal, sinto como se fosse uma criança, esperando o Papai Noel. Eu até já separei uma garrafa pra ele porque sei que vai aparecer. Será logo depois que ele entregar os presentes. Eu sei que vai dar um pulo aqui em casa porque eu acredito no Papai Noel.





quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Genuflexório

As marcas de sua fé
impressas no genuflexório
não me farão voltar
Tente a mandinga
umbandista
de um ebó poderoso
Mas se eu fosse você
tentava laicamente me conquistar
apenas com os feitiços
de sua mágica sedução
Esqueça, desista
Não adianta chorar
sobre paixões derramadas 





terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Ceia de Natal

José Guilherme Vereza

Desconfiou que atrás daquela barba falsa e das bochechas rosadas havia muito mais que um Papai Noel de shopping. Morgana espremeu-se entre as crianças que faziam fila para tirar foto, até que, ao chegar sua vez, ficou intrigada com a origem daqueles olhos verdes estonteantes. Sem cerimônia, sem medo de parecer ridícula, sentou-se na perna direita do Papai Noel, passou o braço atrás dos ombros vermelhos e aveludados,
e encostou rosto com rosto para uma foto. A barba de fios artificiais fez cosquinha no seu nariz. E Morgana mandou entre os dentes sorridentes, olhando para a câmera para não perder a pose:

- Te conheço de algum lugar.
- Sou Papai Noel. Você não acredita?

As mães aflitas da fila não deram chance ao diálogo. Crianças impacientes. Olhares indignados. Pulando sacolas e pacotes, Morgana saiu de fininho, deixando um rastro de olhar para os olhos verdes de um Papai Noel igualmente embevecido.

….

Morgana Amaral. 33 anos, recém descasada, sem filhos, ainda às voltas com a arrumação do flat para onde acabara de se mudar. Como uma gata em beco novo, tudo experimentava até encontrar seu aconchego. Tão logo se separara de um marido monótono e possessivo, deu seu grito de solteirice. Sentiu-se de bem com a vida, auto estima lá em cima, revigorada e energizada. Homens variados - e selecionados -
batiam à sua porta. A cada semana uma novidade. Um gemido novo, um calor inusitado, um gosto de aventuras na língua, sussurros diferentes no pescoço, visitantes pulsantes nos seus interiores. Até cansar.

- Chega. Pelos menos neste Natal, quero ficar sozinha.

E saiu por dezembro a curtir sua solidão. Despiu-se das ansiedades, dos planos, dos projetos de vida nova. Exceção para o que seria a ceia do dia 24 na casa dos pais velhinhos, ele cadeirante de boca torta, a mãe faladeira e prestativa,
rainha dos fornos e fogões dos rituais familiares, além da tia agregada e surda, estridente entusiasta de cânticos natalinos. E assim aconteceu. Cheiro de tender no ar, o calor de derreter miolos, o peru com farofa à mesa, o empadão de bacalhau de receita centenária, o prosecco que poderia estar mais gelado, o amigo oculto decepcionante - este ano não teve livro de Rubem Fonseca -, sobrinhos furiosos rasgando presentes, irmã estressada, cunhado de cara cheia e inconveniente.

- E aí, Morganinha, como é seu primeiro Natal sem o chato do seu ex marido?

Bom sinal para ir embora. A chuva molha os presentes e o papel que envolve o prato da rabanada que sobrou. Morgana entra no carro e parte pelas ruas cintilantes para sua primeira noite de Natal sozinha depois de quase oito anos.
Sensação esquisita. Nem boa nem má, mas diferente de tudo que viveu ou planejava viver. E antes que caraminholas assaltassem seus pensamentos, dormiu no sofá,
embalada pelo prosecco que deixara para gelar e pela reprise do Roberto Carlos na Globo.

….

Blim blom.

- Que diabo! Numa hora dessas?

Trôpega e sôfrega, Morgana abre a porta sem cuidado. Pisca sem parar, dá tapinhas no rosto, olha de novo.
E paralisa.
Atrás daquela barba falsa e da bochecha rosada havia muito mais que um sujeito vestido de Papai Noel que errou de porta. A barriga entreaberta de enchimento e fingimento mal esconde um tanquinho másculo, bem definido e sarado. Os olhos verdes estonteantes fuzilam. O sorriso lindo dá o tiro de misericórdia.

- Ho, ho, ho!
- Desculpe, deve haver algum engano, o senhor não errou de porta?
- Perdi a chave do meu flat, bem aqui ao lado do seu. Eu só queria pular da sua varanda para a minha.

Morgana soltou uma gargalhada interior. A ficha caiu. Seus olhos brilharam ao lembrar os olhos verdes do vizinho eternizados num único encontro no elevador semanas atrás. Sua voz foi firme e cuidadosa. A gata encontrava seu aconchego.

- Isso pode ser muito perigoso, Papai Noel. O senhor não está mais na idade de pular de varanda em varanda. Vem, amanhã a gente arranja um chaveiro.

Nada mais se disseram. Naquele instante, trocaram de fantasias.
Ele despiu-se ali mesmo, espalhando a roupa calorenta pela sala, entre caixas de mudança, um prato de rabanada na cadeira, casquinhas de nozes no sofá e uma árvore colorindo a noite de luzinhas intermitentes. Ela vestiu um sonho travesso.
O feliz Natal, enfim, pleno de celebrações, surpresas e delícias noite adentro,
estava apenas começando.





segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Greve

(Maristela Scheuer Deves)

O problema maior de um escritor, acredito eu, é quando os personagens insistem em tomar o rumo da história. Tudo bem é que a história é mesmo deles, mas se eu, seu Criador, não tenho o direito de decidir o que vai acontecer, qual será então o meu papel? Sim, eu sei, no mundo real existe uma coisa chamada livre arbítrio, que é o direito que todos temos de decidir o que fazer de nossas vidas. Mas esse direito não se estende a personagens de faz de conta, onde já se viu.

Por isso, baixei uma lei: nas minhas histórias, ninguém fala se eu não mandar. Até que isso vinha funcionando direito. Vinha, não vem mais. Nos últimos dias, os personagens resolveram fazer greve. Isso mesmo, greve. Dá para acreditar?

Tudo começou quando eu cheguei em casa, fui ao escritório e liguei o computador, pensando em escrever mais um conto. Computador ligado, chamei minha turma de personagens, para selecionar quem iria participar daquela história. Em vez de pularem de alegria, como sempre faziam, disputando para ver quem seria escolhido, eles simplesmente se sentaram lá na escrivaninha, de braços cruzados e cara amarrada.

- O que está acontecendo aqui? - perguntei, estranhando.

Nenhuma resposta. Nem mesmo um piscar de olhos.

- Vocês não querem trabalhar? Olhem que são papéis importantes - tentei eu, novamente.

Eles continuaram lá, mudos, como se não fosse com eles.

Eu já não sabia se ficava irritado ou se pagava na mesma moeda, ignorando-os também. Decidi insistir, mas me fixando em um deles em vez de falar com todos.

- Dom Raimundo, o senhor pode me dizer o que houve?

- Poder, eu posso, e já que você disse para eu falar, eu vou falar. Estamos em greve, e não trabalharemos até termos nossas reivindicações atendidas - respondeu o velhote de barba grisalha.

Fiquei perplexo, mas também um pouco divertido.

- E que reivindicações são essas, posso saber? - indaguei.

- Como não recebemos sequer salário, queremos ao menos o direito de escolhermos nossos papéis.

- E nossas falas - acrescentou Dona Joaninha.

- É isso aí - apoiaram os outros, em coro.

Eu fiquei parado, boquiaberto, olhando para eles. Será que adiantava tentar negociar?

- E não aceitamos contrapropostas - disse Dom Raimundo, como se estivesse lendo a minha mente.

- Se vocês escolherem as falas, vão fazer a maior bagunça - argumentei.

- E daí? Então você pode nos meter nas maiores encrencas, e nós nem podemos bagunçar um pouco? - teimou Dona Joaninha.

Dom Raimundo aproveitou e abriu seu caderninho, onde anotara, na sua letra miúda, outra dezena de reivindicações. Seguro para quem atuasse nas histórias policiais e de terror, dublê para as aventuras, mais histórias passadas no Exterior e, por último, dois períodos de férias por ano.

- E desde quando alguém tira férias duas vezes por ano? - reclamei.

- Nossos colegas que trabalham nos livros escolares tiram - retrucou Dona Joaninha, e os outros aplaudiram.

Sem saber o que fazer, eu apelei: tirei a língua para eles e disse que nada feito. Ora bolas, eu iria procurar novos personagens para ocupar o lugar deles. Eles iam ver, esses personagens rebeldes.

Só que eu não encontrei. Quer dizer, personagens existem aos montes por aí. O problema é que os que estão procurando um escritor são tão desaforados quanto os meus, ou ainda mais. Um deles chegou a me dizer que só atuaria nas minhas histórias se fossem romances, e não contos, e se ele ganhasse o papel de rei. Ah, tá, vai ganhar, mesmo, mas no dia de São Nunca.

Ou seja, voltei à estaca zero. Sem personagens, não tem histórias. Por isso, vou convocar uma nova reunião para daqui a pouco. Como não tenho escolhas, vou aceitar os termos deles. Mas vou colocar um aviso em cada livro, em letras maiúsculas e bem grandes, para deixar claro: ESSA HISTÓRIA É DE RESPONSABILIDADE DOS PERSONAGENS. QUALQUER RECLAMAÇÃO, FALAR COM DOM RAIMUNDO OU DONA JOANINHA, NA PÁGINA TAL. E tenho dito.

(A gaúcha Maristela Scheuer Deves é jornalista e escritora, autora do romance policial A Culpa é dos Teus Pais e da aventura infanto-juvenil de mistério O Caso do Buraco, ambos publicados pela editora AGE)





domingo, 18 de dezembro de 2011

Por falar em violência

Bom, ingressei nesse fim-de-semana acompanhado de uma pneumonia. Essa seria pra mim a pior notícia do mês não fosse a que veio de Goiás, onde uma enfermeira acabou de matar a pancadas seu cachorrinho na frente da filha de 2 anos.

Os casos de maus-tratos a animais no país não é coisa nova, mas está, ainda bem, sendo mais veiculado, debatido e criando, felizmente, picos de indignação. O grande problema, como se sabe, é a impunidade ou a fragilidade da lei penal brasileira. Maus-tratos a animais aqui é regido pela lei de Crimes Ambientais de 1998 e dá, no máximo, 1 ano pra um sujeito que extermina com crueldade um gato, um papagaio ou qualquer outro bicho. Nos EUA um indivíduo foi condenado a 9 anos de prisão por ter queimado um pitbull.

Gandhi certa vez disse “pode-se medir a qualidade de um país pela forma como seus animais são tratados”. No Brasil a cultura da indiferença ao sofrimento e ao não temor pela punição começa desde cedo. Vemos crianças atirando pedras em cães ou em cavalos e achamos normal. E daí para um patamar superior, com jovens matando animais com creueldade, pelo prazer do ato, é um ato “criminoso” no papel apenas. Cestas básicas ou termos circunstanciados resolvem e o psicopata está de volta às ruas para continuar espalhando seu modo cancerígeno de viver a vida.

Desse estágio em diante encontramos mães que largam seus bebês à própria sorte em caçambas de lixo, em sacos plásticos nas calçadas, etc. Que criação tiveram? Em que valores se espelharam? Que tipo de vida pretendem ter? Matar um filhote de gato foi só o início.

Dizer que a culpa é só do governo é hipocrisia. Dizer que a culpa é só da família que não educou, também. O controle de natalidade é uma ferramenta importante a ser trabalhada, mas passa-se primeiro pelo ajuste do campo social de emergência. Nesse ponto, o primeiro passo é uma consciência ampla de família. Trabalhar a mente do pai e da mãe nesse sentido: há condições de ter filhos? É necessário tê-los? Essa é primeira meta. Mas esse tipo de pensamento também passa por uma reforma política. Porque é sabido que a miséria gera votos. A miséria, ela própria, cria uma indústria de votos. Então, esperar que o cenário macro mude sem a mudança micro, é como querer que o adulto não seja traumatizado, estranho, rude ou violento se o que ele viu na infância foi barbárie, se ele, aos 2 anos, viu sua mãe matar um cachorrinho na pancada.





sábado, 17 de dezembro de 2011

DISPARIDADE

eles são todos redondos
que farei eu de minhas quinas?
logo eu, tão cheia de ângulos!

eu não caibo
nada encaixa

eles, tão planos e circulares
parecem plenos
desavisados de um diâmetro tão pequeno...

e eu aqui
eternamente a conformar minhas arestas
nas helicoidais difusas
desta minha conchacaixa





sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Dia de morte

Créditos da imagem: flickr
De: Fred Matos — As marcas da vida

Conto: Cinthia Kriemler

        Olho o cão aos meus pés e me apercebo de como são iguais os sinais em nossas vidas. Os pelos brancos, o arquejar que vem do coração que falha, o corpo lento que ora cambaleia ao andar, ora recolhe pelas frestas da janela um pouco de sol para dar alento aos ossos. Tem sido sempre assim, desde que nos acompanhamos um ao outro.
Tento refazer o passado, retocando-lhe os traços com o lápis da memória, mas, a despeito do esforço, não consigo ser, ao mesmo tempo, personagem e narrador.  E a intenção esvai-se num pedaço de bolo que me distrai o paladar.
Não preciso de lembranças. Não as desejo. Faz um bocado que perdi de mim a menina que declamava poemas e que deslizava ao piano dedos de Bach e de Chopin. Que foi-se embora a moça que sorria com os olhos e não queria dormir para se aproveitar das horas. No ontem, havia a certeza de um tempo para errar. E havia sussurros nos ouvidos, sexo com nome de amor, possibilidades. Havia até sonhos. E a sensação de que nenhum deles precisava ter sentido.
Lembranças são mentiras que se fincam na existência como alfinetes perdidos sobre a cama, espetando de surpresa. Essas mentiras levaram-me tudo, num sangradouro maldito. Ou quase tudo. Deixaram-me os lençóis sem marcas, as feridas que nunca se fecham, e um desejo de saber como eu teria sido se pudesse ser feliz.
Meu suicídio não é planejado. Não terei sobre seu desfecho qualquer controle. Pode ser que se dê pelas artérias, que cansarão de ser entupidas por mim,  ou pelo açúcar que me amputará um a um os membros, ou talvez por aquela doença maldita que já afastou de mim tanta gente, e à qual alimento de tabaco tantas vezes ao dia. Talvez, se dê pelo cansaço. Ou pela solidão.
Mas se, antes, essa lenta imprecisão me era indiferente, agora, não mais o é. Não depois que Beatriz surgiu em minha vida conformada.
— Dia ruim?  — interrompe-me a sua voz carregada de acentos.
É sempre igual este começo. Ela toma sem permissão o meu espaço e obriga-me a respostas que eu preferia calar.
— Nem ruim, nem bom. Nada de novo. Mas você está feliz. Dá pra ver no seu rosto — digo, tentando mudar de assunto.
Não sou eu quem me interessa. De mim sei as falas de cor; conheço-me as máscaras que os anos trouxeram.
— Você é impossível mesmo!  Só de olhar pra mim já sabe como eu estou! — ela responde, com uma gargalhada presunçosa.
Engraçado... Eu costumava dizer o mesmo à minha mãe, que media meus humores pelo jeito dos meus passos. Mas Beatriz não é minha filha e não há entre nós nenhuma gota de sangue que nos leve a tal afinidade. A cria que pari se desfez de mim assim que me tornei amarga. Não conseguiu transpor a armadura que ajustei ao meu redor para afastar o mundo. Sentiu-se rechaçada. Foi-se embora. Mas não sem antes me dizer o que pensava de mim. E de levar consigo um resto de fé na qual eu enterrava as garras já tão cheias de sangue. Ela não teve culpa. Não tem. Não pediu para nascer de mim. Soltei os dedos da crença quando ela se foi, e nunca mais nos vimos ou nos falamos para mais insultos.
Beatriz não é minha amiga. Não é sequer dessas almas que vertem bondades por caridade ou vaidade. Beatriz é apenas alguém que permito ao meu vazio. Quando eu a conheci, nem gostei dela. Tive medo da sua intensidade, da sua mania de me arrastar para a luz. Mas, agora... Agora, aquela morte a conta-gotas se esqueceu de mim. E é Beatriz quem lhe ordena o esquecimento.
— ... numa exposição de artes. — está dizendo ela, indo em meio a algum assunto que me arranca das reflexões. — Ele só foi lá por acaso, você acredita? Para fazer companhia à filha recém-separada. E a gente se conheceu.
— Vocês já saíram juntos? — tento acompanhar a história.
— Você não está me escutando? Já faz mais de dois meses que estamos saindo!  Este último fim de semana, nós fomos para a serra. Com este frio, imagina como foi bom! Lareira, vinho... Um tapete tão alto, mas tão alto que dava para afundar as mãos! E os corpos, também... — acrescenta com malícia.
— Vocês estão dormindo juntos desde quando?
— Desde o segundo encontro — responde, indiferente.
É assim que me fala de sua intimidade, como se tudo fosse normal e esperado.
— Lá na serra, transamos o tempo todo! Pela manhã, à tarde e à noite, embaixo de um cobertor elétrico. Eu não deixei que ele percebesse, mas eu estava morrendo de medo daquilo me eletrocutar! Já imaginou morrer assim? Fazendo amor?
Não, não me imagino mais fazendo amor. É doloroso. Mas consigo imaginar a morte. E, por isso, surpreende-me que também Beatriz tenha pensado nela, dessemelhantes que somos. Temos a mesma idade, entretanto, nossas diferenças me envelhecem. Ela não caminha pelas noites insones, pelos dias sem viço, pela vida sem nuanças. Não tem medos, não descarta vontades, não se conforma com restos.
Quando se convidou para morar comigo, avisou, simplesmente: “A partir de amanhã venho morar aqui. Ando preocupada com essa sua cara de nada. De perto, cuido de você melhor”. Mas chegou naquela mesma noite, trazendo um champanha que me relaxou as fibras do corpo, como um instrumento que finalmente desentesa-se. E eu deixei que falasse, e falasse, e falasse, até que me veio um sono sem remédios.
Agora, preciso que Beatriz me deixe. Que me devolva o silêncio da casa e a escuridão da minha vida vazia. Porque começo a ter inveja dela. Inveja dos homens com quem sai e se deita, das flores que esparrama sem respeito pelos móveis, das suas gargalhadas que me inibem a tristeza, da sua pele sem mágoas que afronta os sulcos do meu rosto.
Eu lhe peço que se cale um pouco. Mas ela não se cala. Não tem pressentimentos. Obriga-me os ouvidos ao que não tive, não tenho. E ainda convida-me a viver! Tenta-me com lugares e pessoas que eu gostaria de rever, com ofertas que me parecem possíveis. E quase me alcança.
Por isso, hoje, eu vou matá-la.
Antes que ela alcance a porta, terei rasgado todos os papéis sobre a escrivaninha. E terei lançado fora as canetas, e desligado as máquinas às quais me reconduzo sempre a imaginar-lhe enredos e capítulos. Ela tentará implorar, como já fez de outras vezes em que se sentiu ameaçada. Vai usar dos artifícios que conheço para encher-me os olhos de lágrimas e comandar meus dedos novamente às folhas e ao teclado. Não cederei. Hoje, não. Hoje, cessarei Beatriz.
Depois que ela se for, vou sentar-me com o cão aos meus pés. E seguiremos desalterados em nossa morte.





quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Carlos, amanuense em Elvas, seu primo





Ultimamente, é este tremor na mão esquerda que não a deixa escrever como antes. Coisa ainda leve, mas incomoda-a, e a letra sai tremida, torta, sem semelhança com a letra alongada que é a sua, a que trouxe da primária. Mas hoje, Maria da Piedade quer escrever a carta que tem em atraso para a amiga Margarida.
Entra no quarto a tia Eunice. Maria da Piedade reconhece-lhe os passinhos miúdos, e volta-se na cadeira. Não roda o corpo. Quase não mexe uma fibra do pijama que ainda tem vestido, e nem do robe, tudo em flanela, azul muito escuro. Vira apenas a cabeça num jeito de inquirir quem entra, mas cala-se, ou melhor dizendo, fica-lhe nos olhos uma fala muda: que queres a esta hora, tia Eunice? a tia deixando a porta do quarto entreaberta na medida justa de ter passado nela o seu corpo muito magro. O corpo que quase se alonga de modo a ficar depressa junto da sobrinha. Uns poucos de passos, e ainda assim são meia duzia os que precisa, que a tia Eunice os dá pequeninos enquanto vai dizendo num tom de voz baixo e levemente nasalado:
– O carteiro trouxe esta carta, mesmo agora!
E estende o envelope que trazia num bolso disfarçado na costura lateral da saia.
Com um estilete que retira do copinho de loiça que tem sobre a mesa, Maria da Piedade corta rente o envelope. Corta mesmo sobre o local onde terá lambido quem remeteu a carta: a humidade da língua a dar à cola do debrum o poder de ficar fechado, até que o abra o destinatário, ou outro a seu mando, como é o caso. Apenas um golpe, e seria rápido, não fosse aquele tremor na mão esquerda que Maria da Piedade não domina.
E a tia Eunice a olhar-lhe o gesto. A tia a acompanhar o percurso do metal correndo no papel, e depois os dois dedos da sobrinha a retirarem a folha: papel de seda coberto de dizeres.
A tia Eunice, com a respiração suspensa, debruça-se apenas um imperceptível ângulo sobre o ombro de Maria da Piedade.
Defronte, no parapeito da janela, a espreitar na nesga que está aberta sobre a rua, poisa um pássaro. Um pardalito à toa, enquanto tia e sobrinha estão suspensas da carta que enviou o Carlos, amanuense em Elvas. Sabem disso as duas, que o exterior do envelope não deixa dúvidas: remete Carlos Diamantino Silva Cruzes, Sítio do Forte, Elvas. E a tia, se não sabe juntar duas letras, reconhece muito bem aquela caligrafia.
Maria da Piedade segura a carta com a mão direita. Firme, sem a tremura da outra mão, que assim  até a esquece.
E ainda a passar os olhos numa leitura silenciosa, anuncia:
–  Tia Eunice, o Carlos vem amanhã no combóio das quatro.
O sol dessa manhã de Fevereiro entra pela janela. Bate em cheio no cabelo que Maria da Piedade tem ainda em desalinho. E a tia Eunice a querer saber mais do que possa estar escrito:
– Ele não diz se está curado? não diz nada da febre?!
E é só então que Maria da Piedade se vira na cadeira, empurra-a até um pouquinho para retirar as pernas debaixo da mesa.  Maria da Piedade de pé, muito esbelta apesar de ser notório que de há muito passou a juventude. Sinal disso, aquela multidão de pequeninas rugas que lhe saltitam pelo rosto. As duas, que tem aos cantos dos lábios, aparecem sempre que sorri, como agora, que empurra a cadeira e diz à tia:
– Senhora, o seu filho diz aqui na carta que a febre passou de um dia ao outro, esteja descansada.
E propõe-lhe sorrindo, a dirgir-se para a porta do quarto:
– Vá mas é pensando no que fazer para a ceia, quando ele chegar.
Maria da Piedade a acompanhar os passinhos da tia, acrescenta amistosa:
– Podia pedir à Lurdes que matasse um pato: fazíamos um arroz. Que acha?
A Lurdes é a mulher que trabalha lá em casa: arrumos e limpezas grandes. É ela que encera e caia, quando é necessário.
Chegada ao corredor que a levará ao resto da casa, a tia Eunice nem se volta, ela que já recebeu notícias do filho.  
– Logo mais, logo mais – vai dizendo, a afastar-se.
E Maria da Piedade retorna para o quarto.
Volta a sentar-se em frente da folha de papel ainda em branco.  Alisa-a com a mão que lhe treme. A sua mão esquerda. Aquela com que escreve e com que come, que a tia Eunice, que a criou desde o berço, foi falar com a professora: que não corrigisse a sobrinha, que deixasse a menina escrever como melhor lhe dava. Foi na primeira classe, e seguiu assim de ali em diante: sempre a mão canhota a impor-se à outra.
Maria da Piedade pega com essa mão a caneta de tinta permanente: um prémio que ganhou no liceu por ter sido a melhor aluna. Era quase sempre: ou ela, ou o primo Carlos.
Maria da Piedade começa a escrever: querida amiga. Mas a mão treme-lhe. Poisa a caneta e sacode aquela mão desobediente. Sacoleja-a como se a tivesse atacada de dormência. E não é. Maria da Piedade sabe. O doutor disse-lhe: os medicamentos acalmam os sintomas, mas não curam.
Maria da Piedade irá tentar, até que tenha escrito a folha inteira, e mais do outro lado: uma carta enorme para aquela amiga.
E quando acaba, relê, palavra atrás de palavra.
Está nisso, quando  repara que o sol já não lhe bate nos cabelos. Será já o meio-dia e ela ainda em roupa de cama.  Levanta-se para ver no relógio. Deixa na mesa a carta escrita em papel muito fino. O papel repleto de palavras de um lado e do outro, ali à mercê do golpe de vento que se dá, inusitado. Um golpe que deixa escancarada a janela e afugenta o pássaro.  
E no chão do quarto fica, estatelada, a carta escrita por Maria da Piedade à amiga Margarida.
Uma mancha de palavras cor de céu no chão de soalho. E Maria da Piedade aflita a tentar apanhar aquele conto.
Que as letras não se soltem, que não vão revoando pelo espaço que fica para lá do quarto. Que não dêem em desarvorar pelo corredor. Que elas, assim juntinhas em palavras, não invadam, com seus contos segredados, o resto da casa.
Maria da Piedade a tentar que as palavras não vão voando pela janela fora com os contos feitos à sua amiga Margarida, para serem lidos só por ela. Que as palavras não vão por aí troando: sabes Margarida, o Carlos chega amanhã ao fim da tarde; e sabes? eu ainda o espero como o fazia antes, lembras-te? como quando andávamos no liceu e ele me disse: se não fosse teu primo, pedia-te em casamento; eu ainda o espero, e eu ainda sou apaixonada dele; vamos fazer arroz de pato, Margarida, sabes? e eu vou comer à mesa com ele e sentir-lhe o quente do corpo por baixo da toalha; sabes Margarida?
Que Maria da Piedade escreveu isso e escreveu muito mais. Encheu duas folhas com letra miudinha, tanto quanto lhe foi permitido pela mão que lhe treme. Letras que, assim escritas, soltas por aí, desvendariam segredos tão calados.
Que as palavras não voem.
E Maria da Piedade sem conseguir prender com dois dedos aquela carta. A mão esquerda a desobedecer-lhe, e Maria da Piedade com a mão direita inerte, essa mão que ela desabituou de tomar a iniciativa.
E de repente, o pássaro, voando, entra pelo quarto
O pássaro que teria ficado ali por perto, volteou um pouco junto ao tecto, e desceu rente ao soalho. E assim fazendo, pegou a carta com o bico. E no mesmo instante em que se ergueu para tornar voando, deixou que caissem pelo chão todas as letras. Um fiozinho de nada a despegar-se do papel de seda. Uma correnteza de alfabeto a cair por ali abaixo. As letras de todas as palavras a desirmanarem-se, desfeitos ditongos e sílabas, e as letras a formarem um montinho em cima do soalho.
Com a mão esquerda num tremor desesperado, e ainda assim, Maria da Piedade apanha-as.
E uma a uma, empurrando-as de leve, segurando-as frente ao bico da caneta como se fosse pássaro a alimentar o filho, Maria da Piedade faz com que as letras retornem à caneta de tinta permanente de onde nunca as deveria ter solto em contos de segredos.





terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Defunto



Conto, por Wellington Souza..

"e sentiu os movimentos que um coração sossegado produz no corpo. O outro sentiu asco ao tocar um defunto"


Os três formaram um triângulo. Ou: os dois e um cadáver, não se sabe ainda.

A noite tinha sido boa, mas pela manhã restavam dois bêbados conversando sobre Freud, Camus, e quais times de futebol eles torceriam se tivessem nascido no morro ‘Canta Galo’. A conversa ia nesse rumo até perceberem o um terceiro, inanimado, no sofá.

Para um o corpo estava vivo; para o outro, estava morto. O dito nada achava, apenas estava.

O ‘está’ ‘não está’ ‘está’ ‘não está’ ‘está’ ‘não está’ durou tempo o suficiente para perceberem de isso de nada adiantaria, pois a filosofia ajuda até certo ponto: depois somente a prática ensina.

Um colou o ouvido no nariz do desfalecido e escutou a respiração. Ordenou, triunfante, que o outro também fizesse o teste. Feito, tudo voltou ao inicial, pois o outro nada ouviu.

‘Respira!’ ‘Não respira’. ‘Respira.’ ‘Não respira’. ‘Respira!’ ‘Não respira!’.

Um tomou o pulso, e sentiu os movimentos que um coração sossegado produz no corpo. O outro sentiu asco ao tocar um defunto, ainda fresco, mas gelado e inanimado.

‘Pulsa’, ‘não pulsa’. ‘Pulsa’, ‘não pulsa’. ‘Pulsa’, ‘não pulsa’.

‘Um tapa! Se acordar, você me paga mil moedas’. ‘Aposto. E aposto que nem um vermelhãozinho a bofetada produzirá’. ‘Por que vermelhão?’ ‘Fica vermelho apenas quando o sangue está circulando.’

Um respirou fundo para dar o maior tablefe da sua vida. O outro, respirou fundo como pura resposta à tensão do momento. Agora iria doer no bolso.

O tapa fez um estalo que assustou o cachorro e o tirou da soneca. E mais nada: só um rosto virado e a alegria do outro por ter ganho algum (embora tenha perdido um amigo de copo). ‘Opá, opa! Olha lá, não acordou mas ficou vermelho! Ficou um vermelhão no lugar da bofetada. Ele não deve ter acordado por estar em coma-alcoólico’. ‘Marmelada! Ficou a marca porque ainda é defunto fresco!’ ‘Que nada! Vamos ligar para a ambulância!’.’Não! Você me deve e vamos ligar para o necrotério!’

‘Ambulância’. ‘Necrotério’. ‘Ambulância’. ‘Necrotério’. ‘Ambulância’. ‘Necrotério’. Nisso um pegou o telefone e o outro foi impedir a ligação. Caíram os dois rolando sobre o terceiro e ficaram todos rolando em meio às garrafas, bitucas de cigarro e copos com cerveja quente.

Até que largou de briga, se levantou, e foi até a cozinha. Voltou com uma faca de cortar carne.

‘Se ele gemer, é porque está vivo e eu ganho. Se ele continuar na mesma, é porque já está em outra e você ganha’. O outro nada respondeu, atônito. Só virou o rosto para não terminar de ver a facada certeira na barriga que o um deu no coitado.

Virou-se lentamente para ver o que acontecera.

Com a poça de sangue que se formou, o outro nem pensou em comemorar o seu triunfo. Apenas se mexeu para impedir o cão de ir cheirar e, quem sabe, lamber o sangue. ‘Se não estava morto, agora está’; se atreveu a pensar.

‘Nem necrotério, nem ambulância', um pensou ':é polícia. E o difícil será explicar a aposta para eles... Pelo menos perdi a aposta e ele já estava morto!’

E os dois saíram, cambaleando, para abrirem a saideira.

*

Créditos da imagem: flickr
De Mr Conguito





segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Missão (Mariana Valle)

Todo dia, essa página me olha com cara de nada. E começo a escrever besteiras, alucinada.

Não, mentira. Vira e mexe e escrevo coisas que prestam. Com calma.
Quando as palavras me emprestam suas almas.

Nessas horas, a inspiração é genuína. Pareço uma menina deslumbrada com as descobertas!

Porque a poesia me desperta pra vida. É ela que cura as feridas e me mostra o caminho, compreende?

Sem poesia, minha vida não rende.

E pra quem não sente o mesmo, nem adianta explicar. Escreviver o poema me é como inspirar o ar.

Inspirada, inspirando, por vezes pirando com essa mistura. É vício e ao mesmo tempo cura.

Depois que a poesia se impôs em minha vida, virei prisioneira, fanática, fiel, daquelas bem lunáticas, sabe? E isso não é problema, é poema. Não é inferno, é céu. Os poetas moram na lua mesmo.

Fato é que, agora, não ando mais a esmo. Tenho destino certo: perder-me na vida. Para depois me achar nas palavras e poder dizer: missão cumprida.





domingo, 11 de dezembro de 2011

Ritual do amor



Cupidon et Psiché, de Jacques-Louis David. 


 Meu canto de amor é como um gemido do blues:
rasgado, sofrido, melodioso, perdido...
como os apelos desencantados da vida.



Uma sensação... um ombro descoberto,
um olhar.
Um coração em pulsação, um fio de esperança.
Uma fagulha de desejo
e o desaguar do coração.

O resto são choramingos da razão,
das dores descobertas,
da exposição crua
da infelicidade de ser.

De afetos contaminados
de seres perecíveis.

Amor é dor,
dos afetos rotos
da morte prematura,

é abstinência da razão
clamores incinerados
perda de si mesmo,

é o jardim dos esquecidos,
é a vitória desprogramada,

amor é odor,
incolor, inodor, tira dor

clamor silenciado
dos sentenciados...
dos injustiçados...
dos injuriados
dos anestesiados
dos enfezados.

Os sintomas do amor
são atemporais, universais...
O amor é a sentença da razão.

Você está preso!

The end





sábado, 10 de dezembro de 2011

O Moedor de Café

Coffee Grinder

Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão.
Isto vem de longa data; lembro-me de quando eu era criança e, na casa de amigos, na hora do lanchinho da tarde, as mães deles preparavam a mesa e nos serviam, e da minha cara quando elas enchiam meu copo com café.
— Não toma?
E eu negava com a cabeça. Então, elas rapidamente trocavam meu copo por um outro, enchiam-no com leite e novamente aquela expressão de repulsa na minha cara.
— Também não toma?
— Só com Nescau — eu respondia, o que as forçava a procurar no fundo de algum armário, resmungando, por aquele pote de Nescau ou Toddy já vencido de tão velho.
Este fato também me trazia embaraços durante o tempo que morei na Europa. Toda vez que eu recusava uma xícara de café colombiano — dizem que é excelente — ou um cappuccino, imediatamente fulminavam-me com os olhos, como se eu houvesse proferido alguma heresia e o papa Bento XVI estivesse prestes a me excomungar por isto.
— Não gosto, porra, simples assim!
— Brasileiro que não gosta de café não existe — retrucavam.
“Eu existo, logo brasileiro que não gosta de café também”, lógica elementar.
No entanto, paradoxalmente, um dos meus grandes prazeres quando eu contava uns dez anos era, nas férias, ao irmos para a casa de minha vó no interior, moer café.
Talvez você nunca tenha visto um antigo moedor de café na vida, eu mesmo não o teria se não fosse por causa destas viagens, mas o princípio é simples: é um aparelho de ferro, fixo numa mesa, com uma entrada no topo semelhante a um funil, uma manivela que aciona uma roda para triturar o café torrado, e uma abertura no fundo, de onde se recolhe o pó.
Então, toda vez que minha vó perguntava:
— Quem quer moer o café?
Eu logo erguia a mão, apanhava o bocado de grãos torrados e corria para um galpão atrás da casa, onde ficava o moedor. Meus primos e primas se deliciavam com este período de folga, porque durante a minha breve visita eles se viam livres desta atividade era obrigação diária.
E era neste mesmo depósito que ficavam armazenadas sacas e mais sacas de café, cuja existência nunca compreendi. Não sabia se eram para ser revendidas, ou apenas para consumo próprio, mesmo que fosse impossível para uma única família beber tanto café na vida.
Sozinho naquele depósito sujo, úmido, escuro, cheio de teias de aranha e, pelo que meus primos me diziam, de onde era muito fácil sair apinhado de piolhos, eu girava a manivela, imerso no cheiro de café torrado que subia do moedor.
Este divertimento perdurou até uns treze anos, mas depois disto, eu só continuei perfazendo-o porque não conseguia contrariar minha avó que, ao abrir um sorrisão que quase arremessava sua dentadura pra fora, perguntava, fitando-me:
— Quem quer moer o café?
E já antecipando minha resposta, ela me estendia o saco de café e, constrangido, eu me via forçado a ir para o galpão moê-lo, não sem antes ouvir os risinhos dos primos e os cochichos:
— Se ferrou!
Mas este depósito representaria mais para mim do que um mero prazer tornado martírio.
Era aniversário de quatorze anos dum dos primos e toda a vizinhança foi convidada para a casa da minha vó. Não era exatamente uma superprodução de festa; minha vó sempre foi muito humilde — apesar de eu ter ouvido que ela tinha umas quinhentas cabeças de gado pastando numa de suas fazendas —, por isto ela fazia questão de que tudo fosse muito simples.
As minhas tias assumiam o papel de quituteiras, enrolando brigadeiros, beijinhos e fritando um punhado de coxinhas. Minha mãe, que não tinha talento algum para a cozinha, organizava a piazada para os preparativos: encher bexigas, arrumar as mesas no quintal, enxotava os menorzinhos que filavam uns docinhos, ou mandava as primas para o banho. Meu primo, que já emanava ares de adultos — um ralo bigode e, segundo ele, um razoável chumaço de pentelhos —, achava toda aquela balbúrdia ridícula.
— Pô, mãe, eu não sou mais criança! Pra que bexiga?
Uma das provas de que ele não se sentia mais criança podia ser encontrada nas convidadas; logo avistamos uma revoada de meninas chegando pela rua, vindo em direção à casa de minha vó.
A presença de garotas, ainda mais garotas de nossa idade, atiçou toda a molecada.
— É hoje que vou me dar bem! — cada um dizia para si, mesmo que muitos não tivessem coragem de se aproximarem delas. Por outro lado, eu ainda me sentia o mais inexperiente de todos ali, apesar de ser um pouco mais velho do que eles. Quase todos os meus primos já haviam perdido a virgindade, alguns com menininhas do sítio, outros com putas mesmo, encorajados por seus pais. Apenas os mais novos, menores de doze anos, e eu é que ainda estávamos na fila para sermos descabaçados.
O aniversariante veio até mim e me disse:
— Está vendo aquela ali? Diz que viu você na missa ontem. Vai lá, rapaz, que ela é facinha.
— Sério?
— Sim. Todo mundo já traçou a Rafinha. É só chegar que ela dá.
E esta última frase foi fatal para mim. Minhas pernas começaram a tremer e eu fiquei tão aterrorizado de que aquela noite poderia ser a minha vez, que eu passei a vagar pelos cantos da festa, só me expondo para ir catar uns salgadinhos.
Foi numa destas oportunidades que Rafinha me abordou.
— Oi? — ela molhou os lábios e mexeu no cabelo.
Não me lembro o que respondi, mas gaguejei e ela riu.
— Você é tão bonitinho — ela disse.
Quando percebi, já nos atracávamos atrás duma árvore no quintal. Eu não era o rapaz mais experiente do mundo, mas já havia pegado nuns peitinhos antes. No entanto, logo estes meus poucos truques se esgotaram. Eu estava muito excitado, mas não tinha muita certeza de até onde poderia ir.
Novamente, a iniciativa foi de Rafinha:
— Vamos pr’um lugar mais calmo?
E, num reflexo, pensei no depósito: lugar mais calmo não havia.
Foi naquele canto escuro, úmido, teias de aranhas — quiçá, piolhos! —, atrás das sacas de café, que meu suor se misturou com o de Rafinha, que pela primeira vez me senti dentro duma mulher.
Há momentos que mudam a vida duma pessoa: de alguns deles não nos lembramos, nem temos como: a data de nosso nascimento, nossas primeiras palavras ditas, a primeira vez que nos espantamos diante do nascer do sol, e talvez o dia de nossa morte, pois não sabemos se há algo para além ou se é meramente o fim; mas há também aqueles inesquecíveis: o primeiro dia na escola, aquele Natal no qual descobrimos que Papai Noel não existe, o dia em que passamos no vestibular, a aquisição do primeiro carro, o nascimento dos filhos, a morte de nossos pais... Eu e Rafinha, corpos nus entrelaçados, é uma destas lembranças.
Eu me apaixonei por ela, adoeci de amor. Voltei para minha cidade e tudo me trazia a memória daquela noite. Ao chegar em casa, depois da aula, eu me jogava na cama, punha um CD de Johnny Rivers, e sonhava acordado, angustiado, aborrecido, oprimido pela saudade. À noite, antes de dormir, o desejo me consumia. As horas se arrastavam. Tinha de acordar cedo e o relógio na cabeceira indicava três horas da manhã. Batia uma punheta assistindo aqueles filmes eróticos da madrugada e, por mais aquele dia, eu vivia sem Rafinha.
O passar dos meses foi uma eternidade. Só retornaria à casa de minha avó para as férias do fim de ano. De julho a dezembro, um, dois, três, quatro meses. Mas o tempo simplesmente havia parado e, no meu peito, uma paixão como eu nunca sentira antes.
Minha mãe comprou as passagens de ônibus e pude respirar aliviado, faltavam apenas mais alguns dias.
Chegamos à minha vó de manhã bem cedo. Todos acordaram para nos receber, como era de praxe. Vovó preparou um café para a gente, leite com Nescau pra mim, é óbvio! Meus primos também despertaram, olhos cheios de remelas e marcas de travesseiro no rosto. Puxei um deles pelo braço até o quarto e perguntei:
— E Rafinha, como ela está?
— Bem... acho.
— Eu preciso ver aquela menina de novo.
— Sai desta, rapaz, ela já deu pra você. Cata outra.
Mas eu não queria outra. Meu primo me tranquilizou: comemoraríamos o aniversário duma das primas e Rafinha também viria. O repeteco prometia ser bom.
A festa foi organizada, a mesma baderna de antes, criançada correndo pela casa, bexigas infladas e o cheiro de fritura. Os convidados chegaram.
Contudo, tudo estava diferente.
Rafinha sequer olhava para mim. Eu forçava um encontro, aproximava-me, mas era como se eu houvesse me tornado o homem-invisível.
— Deixa disso, — me disseram — ela é só uma piranhazinha.
Então, eu não a vi mais. Perguntei aos primos e primas, mas ninguém sabia onde ela estava. Fui até atrás da mesma árvore em que estivemos, e nada. Decidi arriscar, por fim, o depósito.
Ouvi alguns ruídos vindos de dentro, gemidos abafados.
Estendi o braço e gentilmente entreabri a porta. Pela fresta, pude ver Rafinha sentada sobre o balcão do moedor de café, vestido erguido até a cintura, calcinha arriada até os tornozelos, e no meio de suas pernas, um homem com a bunda exposta.
Dei um passo adiante e terminei de abrir a porta. O ranger fez com que ambos olhassem em minha direção. O olhar do homem pousou sobre mim, num misto de espanto, raiva e excitação.
— Tio? — perguntei, e antes que eu pudesse ter qualquer reação, ele abandonou Rafinha com as pernas arreganhadas e veio com a benga balançando até mim. Segurou-me com força pelo braço, fechou a porta e me jogou contra a parede.
— Você não vai contar nada pra sua tia, moleque, senão eu te mato. Te mato!

Não gosto de café. Não bebo. Nem uma única gota. E não se trata apenas do gosto, até o cheiro me causa aversão. Nunca gostei. Quando criança chegava a passar vergonha por causa disto na casa de amigos. Mas não era nojo, só não gostava. Mas hoje, toda vez que passo na frente dum boteco e vejo aquele líquido preto escorrendo do bule, fumegando, e o cheiro me alcança, não posso evitar de pensar em mim, em Rafinha, em sacas de café, no pau meio mole de meu tio e num moedor de café.
Não consigo.
Não dá.





quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

saída de emergência






no ônibus há tanta gente em pé quanto sentada
estou sentado
entre a janela e uma senhora
de casaco de lã marrom
e detalhes dourados

vejo um carro parado
não choveu
mas suas rodas estão enfiadas numa poça d'água
até quase a metade

vejo uma fazendinha
com cavalos pastando num campo alagado
há um ou dois deles com a água tocando-lhes a pança

(escurece)

pessoas falam ao celular
outras falam entre si
crianças falam sozinhas
ninguém fala com o motorista

no corredor há uma luz azul
fantasmagórica

nas poltronas
luzes amarelas indicam em que números deve-se sentar

sobre a cabeça do motorista
um display mostra que já se passaram dezenove horas e onze minutos do dia de hoje

mas no ônibus respira-se o mesmo ar
e há vários de nós temendo que esteja contaminado pela doença da vez

no pára-brisa
luzes amarelas vêm
luzes vermelhas vão
luzes brancas e alaranjadas estão paradas
à distância
(mas se aproximam
em relação a nós)

alguém explica
a uma criança
o que fazer se o ônibus incendiar
riem
a criança ri
"tem que quebrar a janela, nenê"

"se queimarem a porta e as janelas
vai queimar todo mundo

mãe?"

"vai"
eu penso
e se não for dessa vez
será numa próxima

estamos atolados
estamos todos com água até os joelhos
alguns até a pança
outros já precisam erguer a cabeça para respirar
o ar é infecto
andamos todos juntos
com a água subindo
na iminência de o ônibus pegar fogo
andamos
falando ao telefone
ou uns com os outros
ou sozinhos
a água sobe
e um de nós
está acendendo uma luz acima de si para escrever idiotices
ouvindo gente espirrando e tossindo

(será que eles não veem?)

na escuridão do corredor
sobre oito das poltronas
painéis luzem em vermelho

"saída de emergência"









quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Tristes Verdades

Autorretrato de Ju B. [17 semanas]

Você sabe
ou está prestes
a saber
de algumas
tristes verdades
e outras
pequenas
lindas
mentiras

Não tão pequenas
quanto é você
agora
nem tão lindas
quanto haverás
de ser
um dia

Só se vive
uma vez
uma vida
e nada além
mas isso é duro
demais para lhe dizer
então, por favor, não
pergunte antes
que eu possa responder

Mentiras
lhe darão muitas delas
desnecessárias
em sua maioria
mas nem sempre
espere de mim
a mais óbvia das respostas

Seremos uma surpresa
um ao outro
e isso é bom
não? muito
prazer em conhecê-lo
meu filho
ainda sem gênero
e sem ouvidos
pensei ter lhe dito:

"este mundo não é para você"

E ainda assim
você teima em vir
são suas as escolhas
e tudo o que me resta
a fazer é transformar
esse pequeno pedaço
do mundo em que vivemos
em um lugar melhor
para você

E é pra já
pois desconfio
que nem ele, nem você
haverão de esperar
que algum de nós
esteja verdadeiramente
pronto, então seja logo

Bem-vindo, meu bem
a um mundo cheio
de verdade
e de verdades
das quais
jamais poderei
lhe salvar
por mais que queira
ou tente, ou minta.





Entre sinos e grilhões natalinos

Ilustração de Jairo Tx

Tomo meu remédio com uma dose de martíni. Não que eu precise do primeiro ou goste do segundo, mas eram os favoritos dela. Não lembro de a ver fazendo desse jeito, mas esse é o meu jeito de dizer "I miss you, hun", como ela mesma diria.

"Martini combina com o meu vestido e com a decoração. Deveria ser eleita oficialmente a bebida do Natal! É por isso que eu adoro o Natal! Você não adora, hun?"


"Eu adoro você!"

As palavras soam de algum lugar entre o meu pensar e o ressonar dos sinos. Eles tocam ao longe... Muito longe para que eu possa vê-los, mas com força suficiente para alcançar os meus ouvidos. Ainda que eu não queira. Seu som me interpela e me ignora. Não passo de um obstáculo às ondas que passam.

Faz tempo que ela se foi. Tempo o suficiente para que as roupas com as quais a vesti já estejam fora de estação, mas não tempo o suficiente para que tenham sumido, consumidas pela terra, pelo tempo ou pelos vermes do esquecimento.

"Natal é tempo de recordar".

E quando será tempo de esquecer? Tempo nenhum é suficientemente longo para apagar certas memórias. Memórias de amor, de ódio, de dor. Sobretudo aquelas do que nem chegou a acontecer. Memórias forjadas  por planos, por desejos, pela utopia de um futuro jamais vivido. O tempo não as leva de fato, ele apenas as fragmenta em pedaços cada vez menores e os mistura, feito um mosaico.

Talvez um dia eu não mais saiba identificar nossos "quandos, ondes e porquês", talvez agora eu já não saiba. Mas ainda tenho o nosso mosaico e ele é tudo o que me resta.

"Como você pode me abandonar? Não era esse o plano!" 

Não falo sozinho, falo com um retrato, antigo e torto, pendurado na parede. Sou um clichê: a morte do espírito natalino. Ela certamente riria ao me ver num estado tão deplorável. Riria e depois abriria as cortinas e começaria a falar com seriedade, naquele tom que só as mulheres tem e que as faz parecer inquestionáveis  um tom que torna o mais duro dos dizeres doce e ao menos tempo irrefutável. Eu estaria perdido.

Pensando bem, estou perdido. Quase a vejo no balançar das cortinas. Ignoro o vento. Imagino as palavras que seriam ditas, mas não com força o suficiente para obedecê-las. Estou tão perdido quanto se pode estar. Como alguém que perde qualquer direção. Alguém que perde a vontade de seguir. Alguém que perde a si mesmo. Um corpo sem reflexo. Uma sombra sem corpo. Onde estou? Estou parado. Preso pelo medo de seguir por um caminho que não sei. Não quero seguir. Não quero saber.  Tudo o que quero é voltar a um tempo e lugar que nem sequer existem.

"Como você pode seguir sem mim?"

Tomo meu remédio com um copo de veneno. Nada tem efeito. Nada pode matar um homem morto. Nem trazê-lo de volta à vida  ainda se estivéssemos na Páscoa, mas é Natal. Outro maldito e estúpido Natal! Com todo o seu vermelho e verde, com seus estúpidos anjos e sinos.

A roupa com que me vestiram também está fora da estação. Mas não sinto frio nem calor. Não sinto fome, sono ou qualquer outra necessidade além dessa saudade de ser vivo. A saudade é uma necessidade não catalogada. Só estou aqui pelo desejo inútil de estar vivo. Pelo medo jamais ouvir novamente o badalar dos sinos, por mais estúpido que seja.

"Ao contrário de você!"

Já faz tanto tempo... Quanto tempo faz? E, afinal:

"Onde diabos está você?"