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domingo, 28 de junho de 2015

DA GRAÇA E NATURALIDADE DE SE SER VEADO

Acredito que poucas pessoas saibam como o substantivo “veado” tornou-se o desagradável adjetivo que comumente é utilizado para que certa leva de pessoas se refira a homossexuais masculinos, como se estes não possuíssem um nome de batismo. Bem, é sabido que gente preconceituosa e intolerante geralmente é desprovida de discernimento e quase não possui criatividade alguma, portanto, precisa recorrer à observação de seus limitados, enrijecidos e metódicos cotidianos a fim de edificar analogias capazes de realizar e projetar no mundo suas fobias sociais.

 É bem provável que o termo “veado”, quando empregado para se referir a homens gays, tenha sido utilizado pela primeira vez em alguma floresta europeia ou norte-americana, onde ainda hoje o animal em questão é caçado em grande escala. Fiemo-nos à hipótese de que um determinado caçador ― valendo-se de sua generosa e infinita estupidez ― estivesse em uma manhã qualquer de domingo a satisfazer suas sádicas taras mortuárias por meio da caça ao veado, o animal, não pelo valor de sua carne, mas pelo sabor do troféu. Digamos ainda que, durante a caçada, este homem de hábitos prosaicos, irredutível em sua colossal macheza, tenha conseguido se surpreender com uma cena extremamente corriqueira na natureza, quando os veados se encontram em época de reprodução: Os machos têm inúmeras, repetidas e vigorosas relações sexuais entre si. Isto acontece porque, no período dos cios, os veados machos produzem muito líquido seminal. E, como não são todos que conseguem acasalar, eles se livram do sêmen acumulado nos testículos montando uns sobre os outros, a fim de aliviar a carga de esperma. Acontece que, mesmo após o coito, muitos machos acabam criando laços afetivos e convivendo como um casal. Somando isso aos trejeitos delicados e graciosos do animal, o apelido foi vinculado à imagem do homem gay.

 Imagine quantos pensamentos devem ter passado na conservadora e e perversa mente de nosso viril caçador que, a fim de restabelecer a ordem natural das coisas, deve ter se especializado em caçar veados machos que praticassem sexo com outros de mesmo gênero. Quem sabe a prática tenha ganhado adeptos, deixado as florestas e chegado não só às pequenas e distantes cidades do interior, pois também os grandes centros ― que, pensava-se, eram povoados apenas por homens de mente aberta e pouco inclinados à caça predatória ― desenvolveram gosto pelo hediondo esporte.

 No meio deste processo de injustificável carnificina, o veado antropomorfizou-se, mas não adquiriu os direitos reservados a todos os seres humanos. Como seus colegas selvagens, o veado humano só pode existir até segunda ordem. Todavia, em desacordo com a regra que limita a matança dos veados quadrúpedes, para os bípedes não há temporada em que sua caça seja proibida. Quando não são assassinados à custa de armas ou espancamentos, abatem-nos com o gesto doloroso, com a palavra agressiva e contumaz.

Não somos veados. A palavra não nos agride, é um belo animal, mas não somos veados. Ninguém pode usar da mesma arbitrariedade sobre nossas vidas com a qual caçadores conduzem o covarde abate destes animais.

 Por todo o mundo, aquele que persegue e agride impiedosamente outro ser humano, muitas vezes é chamado de “animal”. Errado. Animais não matam por capricho, ignorância ou diversão. Tirar a vida de alguém ― ou privar uma pessoa de sua liberdade de ser ― é uma atitude essencialmente humana. Onde houver segregação, atrocidades, ou gestos de covardia, não se enganem, lá haverá não um animal, mas um homem. Seja ele veado ou não.

Emerson Braga





sábado, 27 de junho de 2015

Colcha de Retalhos #10

Seguem alguns breves textos da coluna Colcha de Retalhos, homônima do livro que está disponível gratuitamente AQUI:


INTENÇÃO

Ela chegou chorando, nervosa. Ofereci meu ombro, ela aceitou.
Ofereceu-me a boca, eu aceitei. Não sei se por consolo ou por vingança.




LUTO

Regou o túmulo por dias, até secarem os olhos, vermelhos e ásperos.
Uns dizem que foi por compaixão. Outros, sussurram que foi por culpa.




MULHERES

Contrariado, Francisco matou José de tiro. Antes do sangue secar, Severino matou Francisco na faca. Por vingança, Chiquinho matou Severino a golpe de enxada. Traiçoeiro, Zico colocou uma cobra na cama de Chiquinho. Traiçoeira, a cobra mordeu Zico também.
Só sobraram as comadres, que sentaram à varanda, agulhas à mão, e comentaram com desdém:
- Esses homens...




PONTINHOS

Durante a noite, na praia, viu as luzes dos barcos em alto mar, isolados. Pensou em quão triste seria viver dessa maneira, passar o dia no mar, trabalhando, e à noite virar um pontinho em meio a outros pontinhos perdidos na escuridão.
No caminho de volta para a cidade, reparou nos pontinhos, todos empilhados, mas, ainda assim, isolados.






sexta-feira, 26 de junho de 2015

Herança

Era bonita a comoção do pai antes da última frase do diálogo: “O importante é você ser feliz”. Ele pronunciava “filiz” lenta e enfaticamente — o que deixava o momento mais carinhoso e intenso.
Maria presenciou aquilo várias vezes. O homem sempre rijo, respeitado e poderoso desabava em sentimento ao lidar com as delicadezas existenciais da filha. Ao orador nato, prolixo e convincente, por vezes faltaram palavras diante dos pleitos da moça.

Quando ela contou sobre o primeiro amor, a situação foi decerto tensa. Seu Oliveira não esperava a notícia. Foi surpreendido pelo desejo de namorar de sua menina. A fala saiu meio atropelada, discurso improvisado de susto, rigor, tristeza, preocupação: “Não pense que vai ficar saindo com esse garoto toda noite. Moça de família não chega tarde nem fica na casa de namorado. Não se iluda muito. Você é romântica, inocente; ele poderá magoá-la. Não seja tão transparente nem se deixe levar por conversinha mole”. Ao final do sermão, ele soltou o que a menina, aos 15 para 16 anos, queria ouvir: “Vocês podem namorar, mas sem excessos. O importante é você ser filiz”.

O pai tinha razão nas admoestações prévias. O namorico durou quatro meses, e a paixão dela pelo frangote continuou por mais dois ou três invernos: ela implorando para reatarem, recusando relacionamento com outros rapazes, negando beijo, escrevendo cartinhas lacrimosas e se humilhando, como se o primeiro rabicho merecesse crédito ou padecimento.

Quando, aos 21 anos, Maria se formou na faculdade e foi comunicar ao pai que logo ficaria noiva do namorado gente boa — porque, afinal, ambos já tinham concluído o curso superior e estavam empregados —, Seu Oliveira demonstrou preocupação: “Você vai casar só por isso? Só por terem terminado o ensino superior e por trabalharem fora? O motivo é fraco. Não justifica. Você só deve casar pra ser filiz”.

Ela entendeu o recado. Tão simples! Faltava amor. Pelo menos para assumir um matrimônio. Ela não precisava se casar ainda. Não amava o suficiente. O namoro já durava três anos, era legalzinho, mas aquele bom moço não cabia no plano da felicidade... Necessário esperar a paixão ardida que transbordaria e exigiria presença, cumplicidade, drama, comédia, suspense, entrega, desassossego, desejo de eternidade. Maria deveria se espelhar na história de seus pais, lealmente unidos há décadas, convictos da escolha acertada.

Antes de adentrar a igreja com a filha, Seu Oliveira teve a chance de repetir que aquele seria um dos passos mais importantes da vida dela, senão o mais decisivo: “Ainda dá tempo de você recuar, se quiser. Você só deve ir adiante se o principal objetivo for a legitimação da sua felicidade”. Quando Maria reafirmou que aquele era mesmo seu desejo, que o noivo no altar era quem ela desejava para a vida toda, o pai abriu um sorrisão emocionado, deu o braço para a filha e deixou o cerimonialista abrir a porta do santuário.

Enquanto viveu, acompanhou grande parte dos arbítrios da filha — nos estudos, carreira e vida pessoal. Seu Oliveira tentou agir de forma equilibrada — ora com tom professoral, ora brincalhão, às vezes autoritário, às vezes condescendente, ora superprotegendo, ora incentivando a criatividade e a independência dela no enfrentamento à vida. Claro que houve excessos e negligências; afinal, a educação dos filhos é um constante avançar rumo à tradição e um volver à vanguarda, num processo sempre desregrado e sem mensuração de eficácia. E quem canta a felicidade não consegue ser comedido no amor!

Talvez mesmo por isso, a grande máxima de Seu Oliveira não há de perder jamais a magnitude e ternura. Vai resistir pra além da história de Maria, de seus filhos e netos. A voz embargada de saudade vai pra sempre ressoar aquele lento e enfático “O importante é você ser filiz”.





quinta-feira, 25 de junho de 2015

Errata



«A febre, que desagradável! Os suores. O mais penoso é a tosse.»
Não serão febres de África, doutor?
«”Santa mama preta da minha ama sudanesa”! Tuberculose! Ah, o fulgurante Manifesto! Paris. “A furiosa vassoura da loucura arrancou-nos de nós mesmos e enxotou-nos pelas ruas”. Dórdio, Amadeu, Manuel Jardim. O Diogo. Como o pobre me conheceu... À minha cintilante genialidade futurista. O porteiro do museu Carnavalet a enxotar-me, e eu aos urros, aos brados, em língua acabada de inventar. Só porque me sentei na cadeira de Voltaire. Sim, cruzei a perna e acendi um cigarro. Tinha de experimentar se um poucochinho do génio do antigo proprietário passava para mim, como dizem os hiperestésicos. Um tal Carrington. Como me fui lembrar ainda do nome? Já foi há uns sete anos. 1911? Faz sentido. Tempos gloriosos. “Um orgulho imenso intumescia os nossos peitos, pois sentíamo-nos os únicos, naquela hora, despertos e eretos, como faróis soberbos ou como sentinelas avançadas, diante do exército de estrelas inimigas, que olhavam furtivas dos seus acampamentos celestes.” E, para quê? A perfeita cópia da Olímpia foi considerada uma afronta revolucionária, por ser de Manet.»
Augusto, meu irmão, não deixes os meus quadros ficarem por aí, à mercê de qualquer professor, cicerone ou antiquário. Destrói-os todos. Promete!
«Claro que preferiam Ingres. Ou, mesmo, Cabanel. Com a Academia nas mãos do Veloso Salgado… Amargos de boca. Daquela vez que o retratei fielmente, integrado num Inferno, onde ele era o diabo-mor, rodeado das almas penadas dos alunos. Ah, ah! Antes de ir para Paris. Sansão e Dalila: a prova de concurso à pensão Valmor. Concedida, só em 1910. O ideal a acontecer. “Finalmente a mitologia e o ideal místico estão superados. Nós estamos prestes a assistir ao nascimento do Centauro”. Flanar em Paris ― dominar o mundo. Depois, a República e o embaixador. Cortar-me a pensão... Como se eu fosse monárquico. Claro que o tinha afrontado! “Saiamos da sabedoria como de uma casca horrível, e atiremo-nos, como frutos apimentados de orgulho, dentro da boca imensa e retorcida do vento!” Lisboa, de novo. Há, apenas, quatro anos. A minha espantosa postura. As roupas pretas, o cabelo longo. Lançar as pernas para a frente, em desafio à pequenez lisboeta. Lançar o Manifesto aqui e ver “voar os primeiros Anjos!” O Congresso Futurista. Minha saudosa Cervejaria Jansen! As sessões futuristas do Teatro República. O Almada ― que formidável apresentação! Os meus desenhos na Orpheu. E os títulos! Síntese geometral de uma cabeça x infinito plástico de ambiente x transcendentalismo físico. Chamam-me irreverente e delirante. Uns acham-me Hamlet; outros, espantalho. Lisboa é demasiado pequena. Daquela vez que quis arrendar os Jerónimos para pintar uma tela enorme, eh! Gosto de a afrontar, de provocar polémicas e falatórios. Sou o “artista que o génio da época produziu.” A Portugal Futurista, no ano passado, poderia ter sido a revista que abalaria os alicerces bolorentos do país. Mas não passou do primeiro número. Nem consegui publicar o Manifesto.»
Tragam-me os meus escritos. Quero fazer um post-scriptum.
«Um gesto, mais um gesto, o último. Que seja único e sublime. Isso! Dois traços a abarcar cada página de canto a canto. E, a finalizar, no frontispício: Errata. E uma assinatura bem explícita: Santa-Rita Pintor, que é o que sempre fui. A minha obra maior ― a minha vida apontada ao futuro ― não cabe nos museus, nem nas bibliotecas.»
Companheiros, foi uma gloriosa vernissage!

Joaquim Bispo
* * *
(No centenário da publicação da revista Orpheu)
* * *
Imagem:
Santa-Rita Pintor, Estojo scientífico de uma cabeça + aparelho ocular + sobreposição dynamica visual + reflexos de ambiente x luz (SENSIBILIDADE MECHANICA), colagem, 1914.
Publicada no nº2 da revista Orpheu, Abril–Maio–Junho, 1915.
* * *





quarta-feira, 24 de junho de 2015

TROVA DE EDWEINE LOUREIRO _ TEMA: SAÚDE PÚBLICA






segunda-feira, 22 de junho de 2015

Só uma fase

Há meses que pelo menos duas vezes na semana Laurinha dava baile na madrugada. Em susto, levantavam mãe, pai, irmãos menores, cachorro latia na rua, cocota latia para o cachorro, luzes de toda a casa acesas. Não parava ninguém dormindo. O que foi, Laurinha? Sempre a primeira a chegar, a mãe tinha com a menina uma paciência eterna. É ele, mãe. O homem, aquele homem sem olhos, ele veio aqui de novo, mãezinha, não deixa ele me pegar, não. Não tem homem nenhum, filha. Isso que tu tens as vezes é pesadelo. Sonho ruim. É só imaginação. Não é real. Quer ver? Olha aqui com a mãe embaixo da cama, ó. Não tem nada, viu. Só uma meia suja tua, já falei que aí não é lugar. Volta a dormir, tá? Vou ficar contigo até pegares no sono de novo, canta com a mãe: mãezinha do céu, eu não sei rezar, só sei dizer... E assim foi até ultrapassar o limite do suportável.

O pai não podia mais com aquela novela. Quando a Laura atravessava a noite dormindo, ele é quem acordava por qualquer ruído, sobressaltado, achando que era mais uma da guria. Os menores desciam das camas e ficavam observando o chororô da irmã com olhos muito arregalados, consternados da situação. A mãe, incansável. Curava cada surto da filha com uma ninada compreensiva, torcendo para que fosse a última. Leva no médico, benze, manda rezar uma missa para a alma do condenado, dá um cansaço durante o dia que vai dormir direto e reto. Os pais ouviam e tentavam todas as receitas que julgavam não fazer mal a ninguém. Mas a Laurinha se repetia, com algumas variações. Era ele e uma mulher malvada e descabelada. Ele e uns outros com machucados nas pernas. Ele e uma velha corcunda e fedorenta. Mas ele toda vez. Até que decidiram acreditar no pediatra: é só uma fase. Bem típica da infância, isso. Coisa de criança que precisa dividir atenção dos adultos com outras crianças. Vai passar. A senhora siga fazendo do seu jeito, mas não dê tanto ibope para as cenas. Trate naturalmente, mude de assunto. Vai ver como as crises da Laura vão rarear até sumirem por completo.

Os pais seguiram exatamente as recomendações do profissional. Então, algum tempo depois, repararam que a filha já não pedia mais socorro às três da manhã. Nem às três e quinze, nem às cinco e meia, não mais. Todos passaram a viver o sono dos justos, dos trabalhadores, da família amorosa, dos céticos. Menos a Laura, que simplesmente entendeu a regra do jogo. Bastava abrir os olhos, respirar fundo e pensar firme que estava tudo bem, que ninguém sem carne e sem osso poderia fazer-lhe mal dentro ou fora do seu sono. No início doeu, mas com o tempo ela se habituou às companhias noturnas. Tentou dialogar, entender, espantar. Em vão. Chegaram outros, alguns foram embora. O homem, jamais. O pediatra acertou, de certa forma. Era só uma fase. Uma fase na infância, uma na adolescência, uma na maturidade, uma na velhice. E nas últimas linhas da vida até que foi bom. Quando a Laura foi viver no lar de idosos, levada pelos irmãos, velha e louca varrida, não estava só, afinal. Terminou os dias entre as flores do jardim da casa coletiva, cercada de amigos, tão cega quanto o mais antigo deles.





domingo, 21 de junho de 2015

A Dívida

telefone soa. Atende no terceiro toque.
— Alô?
— A Soraia está?
— Tá na Igreja.
— Que horas aquela piranha volta?
— Mais respeito, dona! Quem tá falando é o marido dela.
— Então o senhor diz pra esta vagabunda me pagar o que deve! Não
trabalho na zona, pra ganhar dinheiro fácil!
— Te deve o quê?
— Noventa reais, pelas três fantasias.
— Que fantasias? Minha esposa detesta carnaval, é
crente! Você deve tá confundido minha mulher com outra
Soraia!
— É esse número mesmo! Quer me enrolar, seu filho da
puta? Quero meus noventa contos pelas fantasias de enfermeira,
polícial e estudante! Se essa vaca não me pagar até sexta, eu vou
na porta dela e armo um escândalo!
— Vai se fudê, mulher doida!
Desligou. Pensamentos atordoados zuniam em sua
cabeça. Foi ao quarto do casal. Por minutos revirou gavetas, vasculhou o armário e cantos suspeitos. Ouviu a chave da porta principal girar. Retornou à sala. Transpirava.
— Chegou cedo, querido.
— Onde você estava?
— Na igreja, onde mais?
— Na porra da sua igreja funciona escola, hospital ou delegacia?
— Quê?
Três facadas no peito. Uma por cada vestimenta erótica.





quinta-feira, 18 de junho de 2015

Desfastio






















PRURIDO

Quando Rosa pintou o cabelo de cor-de-rosa, não podia imaginar que seguia justamente o caminho que levava à sua perdição.


RED

Ao sair da caixinha, a massa descobriu-se manobrada.


NO BANHEIRO DA PADARIA

Ao estender a mão para o rolo de papel, se deu conta de que não havia o que pegar.





quarta-feira, 17 de junho de 2015

Mística - Poema de Israel Antonini

[Mística]





Há necessidade nisso tudo:
de se fazer ver
ou tentar ver o que se vai fazer.

E tentar é atribuição dos demônios!

Não que se acredite em mitos,
mas, se minto
(ou finjo o que sinto),
é por tentar trazer um traço de realidade perdido

no que não se explica

onde eu me imagino.
Para o meu amigo Eduardo Lacerda






terça-feira, 16 de junho de 2015

Cul-de-sac


Dói. O amor que nunca chega, nunca basta, nunca fica. Dói. O pé inchado pelas pedras ásperas de cada busca estéril. E a cabeça cheia da aguardente de substituir afetos. E o sexo sem reflexo, urgente, mínimo. Dói. A madrugada dividida com outras esfinges; a insônia cortejada pela solidão. Dói. A boca sem sabor de outras; o corpo deslembrado de roçares, de mordidas, de sugadas. Dói. O rosto morto e insepulto confiscado pelo espelho canalha que mora no quarto de dormir. O riso congelado por adestramento. Dói a navalha cega do banheiro; dói o comprimido que faz o choro dormir; dói o silêncio no fundo do copo; dói a cova sem valia que é o peito. Dói ser. E isso é o que mais impressiona. Porque o não ser também dói.







quarta-feira, 10 de junho de 2015

Estou pensando em desistir de escrever


Henry Alfred Bugalho

Estou pensando em desistir de escrever.

Sei que para muita gente, isto pouco importa; a maioria nem sabe que eu existo tampouco o que escrevo. Não faz diferença alguma. Aliás, poucas coisas fazem realmente diferença.


Assim como muitos, pensei um dia que a era digital nos conduziria a um novo Esclarecimento,
alçando-nos a um patamar nunca visto antes. Com informação e diversidade infinita à nossa disposição, só poderíamos inevitavelmente nos tornar mais esclarecidos.
Doce ilusão! Esta é uma nova idade das trevas, que encontrou no espaço virtual um território livre para que todos possam expressar seu ódio, sua intolerância e, principalmente, sua ignorância.
Todos se odeiam e todos sentem o impulso de vocalizar isto. A cacofonia do ódio.
Não que isto não seja um reflexo da essência da sociedade na qual vivemos. As pessoas também se odeiam do lado de fora da internet; entretanto, muitos teriam vergonha de externalizar pessoalmente as mesmas ideias que propagam on-line. Vergonha e medo, pois não saímos às ruas xingando e hostilizando todos aqueles que pensam diferente de nós. Pelo menos, ainda não...


Sinto que a Arte e a literatura têm pouco espaço neste mundo de intolerância.
Transgressoras em sua natureza, elas não pertencem ao domínio das interdições, não têm voz quando tudo é proibido, quando tudo é potencialmente ofensivo.
É evidente que há a arte subversiva, que floresce justamente porque há a repressão.
Inclusive, penso que é até muito mais fácil e heróico bater-se de frente a um censor estatal opressor. Numa ditadura como a que o Brasil viveu há poucas décadas, sabia-se contra quem e o que lutar; e, de certo modo, também se conhecia as regras implícitas para burlar a censura.
Entretanto, na ditadura do moralismo hipócrita de hoje, na qual qualquer pessoa pode ser uma polícia do politicamente correto, contra quem brandiremos nossas armas? Como contorná-la?


Voltamos assustados nossos olhos para o Oriente Médio e seus jihadistas, sem compreender bem o
que leva alguém a matar ou morrer baseado na leitura equivocada de um livro sagrado, mas também temos dificuldades para constatar que caminhamos nesta mesma direção, dia após outro retornando ao período mais negro e assustador de um Cristianismo que perpetrou horrores inimagináveis.
O problema não está em acreditar em Deus; a tragédia é arrogar-se a primazia da moralidade e dos valores corretos.
Depois disto, tudo é consequência.

O radicalismo religioso é apenas uma das facetas. Hoje, ficar em cima do muro já não é mais uma opção digna. Tudo se polariza. Os extremos estão cada vez mais extremistas. Os movimentos de ação afirmativa, o feminismo, o comunismo, o militarismo e tantos outros "ismos" atracam-se diariamente com qualquer um que se interponha em seu caminho.
Palavras que não podem mais ser usadas. Estereótipos de opressores e oprimidos. Listas negras de livros e autores. Debates intermináveis nos quais todos falam, mas ninguém escuta.
Li recentemente em um blog feminista algumas recomendações sobre como um homem deve conversar com uma feminista e, uma delas, que automaticamente já anula o conceito de "conversar", era "treine a não-opinião", ou seja, cale-se. Quando praticamente tudo que proferimos é basicamente opinião (os gregos tinham uma palavra excelente para isto, "doxa", ou seja, tudo aquilo que aceitamos sem a devida reflexão), isto obriga o interlocutor ao silêncio.
Mesmo quem defende a tolerância e a igualdade acaba caindo na armadilha do discurso e atos intolerantes. Não basta convencer ou redimir o suposto opressor, é preciso aniquilá-lo.

O silêncio...
O tão benéfico silêncio. A verdadeira libertação das oposições e das contradições.
O silêncio que nos une verdadeiramente, quando todos estamos atados pelo nada que tudo devora.
O silêncio, aquilo que prevalece no final.


É uma angústia criar quando cada palavra sua poderá ser escrutinada, examinada com uma lupa à
procura por um alvo de ataque. Se você não faz parte do rebanho, se não fala para um público doutrinado, se você se desvia do caminho, prepare-se para o linchamento público.
A nossa barbárie revela-se justamente neste prazer que temos de ver nossos inimigos queimarem. O vilão tem de pagar no final.
Este espetáculo de horror causa satisfação e reforça nossas posições. O diferente deve ser extirpado e apagado da História.

Entretanto, ao reler tudo que escrevi acima, constato que é justamente por isto que sempre escrevi: para ser a voz dissidente, para expressar o que ninguém gostaria de ouvir, para fugir das normas e romper os tabus e tolas certezas.
Eu sou o inimigo. Eu sou o vilão. Eu sou o diferente.
Por isto, escrevo.
Por isto, devo continuar escrevendo.
Talvez um dia também me queimem em praça pública, mas farei o mundo arder comigo.

Farei o mundo arder comigo.





terça-feira, 9 de junho de 2015

Antípoda


Um resumo em duas palavras: ele mereceu.

Mas espere, não me julgue precipitadamente. Não sou louco. Diante dos fatos, a atitude que tomei era, digamos... inevitável.

Sou um homem bom, Deus sabe disso, e há de me julgar de acordo com a justiça empregada em cada ato que pratiquei. Ele também era um homem bom, mas, sabemos, a vida pode nos conduzir por diferentes caminhos. A infelicidade, para nós dois, foi nos cruzarmos justamente enquanto cada um seguia para um destino.

Eu matei minha mãe, mas ninguém quis me prender por isso.

Desde então, vivo sozinho no apartamento que um dia foi de meus avós maternos. Fica em um prédio pequeno, maltratado, que me abriga desde que me conheço por gente. Por esse lugar já passaram dezenas de vizinhos, mas nunca alguém como ele...

Desde sua chegada com a família as coisas mudaram substancialmente por aqui.

Odeio mudanças, a não ser que eu as tenha planejado. Minha rotina – sim, é importante acordar a cada manhã e saber porque se tem de fazer tudo novamente, do mesmo jeito, para manter um equilíbrio entre corpo e mente –, a rotina que é minha razão de viver, foi quebrada.

Pode você imaginar quanto tempo levei até conseguir estabelecer uma meta a seguir?

Primeiro foram os constantes pedidos de empréstimo de gêneros alimentícios. Era desafiador ter de abrir a porta e trocar um tanto de palavras bestas até que o pedido fosse finalmente concretizado com o traumático: se não for incômodo. Pior que isso eram os tapinhas nas costas e as últimas palavras gritadas enquanto ele subia as escadas de volta para o apartamento acima do meu.

Em pouco tempo as batidas de pé começaram a fazer parte do repertório. Toda a noite.

Eu acompanhava, atormentado, aqueles sons graves e abafados por entre os cômodos. Não demorou para que ele começasse a gritar também, e daí a colocar música alta foi um pulo.

Tinha vontade de reclamar-lhe; na verdade, queria dizer-lhe uns bons impropérios quando ele tocava a campainha em busca de novos pedidos. Mas assim que abria a porta seu sorriso era tão cordial, e sua voz tão envolvente, que eu esquecia do mal que ele me causava. O cavalheiro à porta nem parecia o monstro que morava no apartamento de cima.

Foi por causa da minha impotência em enfrentar-lhe com palavras que comecei a arquitetar o plano. Na penúltima vez que o vi, sorri-lhe com vontade, sabendo que logo eu teria minha rotina restabelecida.

Um cabo de vassoura era o bastante. Não qualquer cabo – um de madeira maciça, pesado. A forma de usá-lo, ou seja, a intensidade das batidas, teria de descobrir no próprio momento, analisando seu efeito com os sentidos da visão, da audição e do... tato.

A campainha toca.

Acho que precisei de cinco minutos, não tenho certeza... O silêncio estava restabelecido.

Um mês depois, ele veio se despedir de mim. Até pediu desculpas. Para o chão quebrado, arranjei um tapete velho que estava guardado no fundo de um armário.



Foto: Overlook Hotel, de Pat David. Usado sob licença Creative Commons. Ilustração original:





domingo, 7 de junho de 2015

Tricot

arte de Edel Rodriguez


Desfazer velhos sonhos
como quem puxa a ponta solta
do velho agasalho de lã

enrolar metros e metros
de fio, de novo e de novo
até ter nas mãos um novelo

olhar para ele
como se fosse a primeira vez

tecer com ele uma nova peça
que ao menos sirva

durante a próxima estação.





sábado, 6 de junho de 2015

EXPIAÇÃO




          Tínhamos uma vontade inexplicável de ter filhos desde cedo. Acredito que não racionalizávamos aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no dito schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados desde cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.
          Alice dizia que queria ter filhos e eu imaginava na mesma hora o rosto das crianças, seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do mundo. O mundo era uma coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta. Mas e depois? Sempre me senti frustrado com essa pergunta. É que no mais das vezes não há nada depois. Passei anos trabalhando ininterruptamente, fazendo contatos, explorando o network, bancando o boa pinta, almoçando na casa de campo de grande sócios da empresa, passando feriadões nas mansões em ilhas deles, fingindo ter algo em comum com suas vidas rasas, interpretando um papel. Tudo isso para ter o que tive. E depois?
        Depois veio aquela ideia de Alice de termos um filho. Eva também tinha. Sinto muita pena de Eva até hoje. É que ela me veio com a ideia de filhos antes de saber que era incapaz disso. Estéril. Onde entra Schopenhauer aí? Afinal, uma mulher estéril não está na natureza? Não obedece suas leis? Não modifica o que pode com a sua existência? Eva não ouvia o crescei e multiplicai, seu corpo não atendia a nenhum intento divino e, não obstante, Eva era uma deusa. Não sei até que ponto posso dizer isso, mas explorei o corpo de Eva como uma metrópole a suas colônias, até que ela ficou seca. No final havia restado apenas uma mulher incapaz de ter filhos, e aquilo não era agradável.
      Havia conhecido Eva num dos finais de semana na casa de um dos investidores estrangeiros da empresa. Era uma reunião de negócios que seria estendida a um curto convívio no qual deveríamos mostrar nossas habilidades no inglês e nossa imensa cultura de terceiro mundo – era um daqueles buldogues britânicos que nunca se impressionam com nada, mas que gostam de fazer safári e interpretar determinados papeis, um dos quais de bom anfitrião, outro de gentleman – o que para ele soava exótico num mundo de ratos (que era como imaginava o nosso).
Eva estava lá ao meu lado, como uma assistente, quando o velho buldogue desceu de seu pedestal personalíssimo e soltou numa das baforadas de seu charuto que “Eva” era um nome duplamente incômodo para ele, por sugerir de um lado a gênese evolucionista do ancestral em comum a todos os homens nos prados da África e de outro por ter sido o nome da mulher de Adolf Hitler. Olhei para Eva de relance e vi que ela não estava disposta a “compreender” a piada infame, seja pelo preconceito contra os negros, Eva era uma negra magnífica, seja pela referência à retardada Braun, que teria morrido velha e anônima em seu chalé de Bariloche.
E eu já estava de olho em Eva (teria sido a natureza me impelindo a procriar com ela? Um corpo tão lindo, uma inteligência magnânima... A natureza pode ter errado com Eva), daí tinha sido minha hora de interpretar um papel: o de homem providente. Disse ao gringo que, em que pesasse sua respeitada inteligência, aquele comentário havia sido dito fora de ocasião – não queria soar muito recriminatório, mas o fato é que o meu excesso de educação deu a Eva a impressão de que eu era uma espécie de bundão que não queria desagradar o ricaço, ao mesmo tempo que queria ganhar a donzela, num toma-lá-dá-cá bonachão e dançante típico dos ingênuos idiotas do american way of life. Só depois parei e pensei: “fora de ocasião” significaria que depois, a sós, o gringo poderia ralar o pau em Eva e tudo estaria certo. Amarguei.
Corri tanto atrás de Eva depois daquilo para me desculpar que sem saber estava dando a ela a oportunidade de interpretar um dos papeis que preferia: moça má. No fim, quando já estava exausto, Eva simplesmente me tomou (ainda no escritório) – num ato que demonstrava a superioridade de sua vontade sobre a minha –, e fodemos na sala de um dos diretores no fim do expediente. Pronto, estava de pneus caídos por Eva.
Aquilo durou um século, até que ela veio me dizer numa tarde que não poderia ter filhos e eu pus na minha mente que precisava arranjar outra mulher que me desse filhos, que substituísse Eva. Era como se Eva para mim fosse apenas a minha objetivação de Eva. Veja, eu era um indivíduo latente, Eva também o era para ela mesma, tenho certeza, mas para mim Eva amaldiçoava meu mundo porque o delimitava diante do poder de sua própria querência de mundo. E Eva me era um objeto substituível que eu preparava para descartar, embora jurasse loucamente tê-la amado fielmente. Eu amara Eva ou a mim mesmo por meio dela?
 E assim dei vazão ao meu plano lupino. No início seria apenas uma mulher que me servisse com sua gravidez, uma barriga de aluguel – que soubesse ou que não soubesse disso –, mas aí veio Alice e Alice me dominou. Não sei ao certo, sempre fui muito solícito à dominação do gênio feminino. A mulher é o verdadeiro diabo, verdadeiro e único. E eu ficava naquela de querer dominar o mundo à minha volta, mas de me acomodar com facilidade àquele mundo ideal onde as mulheres vivem e pelo qual lutam até a morte com argumentos morais.
Através dos reiterados cuidados de Alice esqueci o amor que eu jurava ter por Eva e continuei com ambas por muito tempo, até que um dia Eva se cansou de mim e usou seu animus dominandi para me dar o pé na bunda que há muito eu queria dar nela, sem ter coragem. Senti-me pela primeira vez na minha vida pessoal o dominante na ação, como se tivesse montado uma estratégia exitosa. Um Übermensch?! Tive um pouco de paz na redução de minha vida pessoal à de Alice. Um perspectivismo muito amplo no amor dá náuseas. E enquanto Alice dizia que queria ter filhos eu imaginava na mesma hora o rosto das crianças, seus choros, suas brincadeiras, suas descobertas do mundo. O mundo era uma coisa enorme que precisava ser explorada e descoberta. Havia um prazer indescritível naquela ilusão de que o mundo era nosso. Casamos.
Havia eu casado com Alice pelo simples fato de querer um filho? Havia a natureza me controlado a ponto de me direcionar à simples perpetuação da espécie? Assim, nua e crua? Sem os apetrechos floreados do sentimento humano? Havia em tudo aquilo um perder-se muito acentuado. Enquanto numa perspectiva eu fazia todas elas de marionete, em outra eu e todas elas éramos as marionetes. Aquela visão de Schopenhauer era-me como o suicídio de uma moral que me era doce – a moral do homem que domina. Uma vez um amigo me disse que Nietzsche já havia desconstruído a tese pessimista de Schopenhauer. Por que? Só porque Nietzsche veio depois? Ora, e o que é a história, mon cher ami? Perguntei sem ter resposta – nunca concordei com a disposição sequencial dos livros de história. Nunca vi uma linha reta no processo histórico e do pensamento humano, que para mim eram cheios de loops. Eu gostava de Friedrich, mas queria saber até onde estava certo o velho Arthur. E a vontade de sabença é uma daquelas coisas que nos levam a lugar nenhum e mesmo assim a gente anseia. A gente sempre anseia o inútil. Somos seres que se lambuzam na inutilidade. Que é viver?
O fato é que menos de um ano de casado com Alice já tínhamos o pequeno João. Ela dizia que o nome era em homenagem a um dos discípulos do seu deus, que mais gostava, eu só aceitei porque João era o primeiro nome de Bach. E João cresceu ouvindo a mãe ler os evangelhos e o pai ouvir Bach. Acho que ele prefere a mim, há no cristianismo uma fraqueza jungida à sua espinha dorsal. João já é um menino grande que gosta de coisas intensas. Uma vez o vi jogar um brinquedo pela janela da área de serviço, perguntei porque fazia aquilo ao que me disse que se o boneco resistisse à queda, se tornaria o preferido. Aquele menino já era vontade de potência! Eu estava feliz, o João se parecia muito comigo. Era para aquilo que os filhos serviam? Para nos ser como réplicas? Covers?
Vi o tempo passar – insistimos em dar esse atributo tosco a uma coisa inexistente. E como naquele versículo derradeiro do capítulo sei lá qual da epístola de Lucas: vi a criança crescer e se desenvolver em sabedoria, estatura e graça na presença de seus pais. Uma vez pensei que o melhor papel que já exerci em minha vida tinha sido o papel de pai, daí percebi que estava ficando velho.
João tinha cerca de dez anos quando eu fui diagnosticado com câncer. Acontece. Estava mal pra caralho e de vez em quando me lembrava da pena que sentia por Eva. Soube por um amigo do escritório que Eva estava em outras paradas, que estava linda e ainda mais negra como a rainha de Sabá numa das ilhas da Itália. Eva sempre fora um diabo e diabos merecem a vitalidade eterna da beleza. Eu estava sobre a cama branca e fria de um hospital, rodeado por gente escrota que se gabava por ter minha vida em suas mãos. Alice e o pequeno João vinham sempre. Tínhamos conseguido o permissivo da entrada dele porque eu ficava num apartamento, se estivesse num hospital público só teria direito de ver meu filho no dia de minha morte. O João brincava pelo chão, enquanto sua mãe ficava próxima a mim e brincava de cuidar de mim, como desde cedo brincava de cuidar de suas bonequinhas quando essas machucavam o pezinho. Dizia que tudo passaria com beijinhos, as feridinhas dentro do meu corpo iriam embora para sempre. Eu sentia um conforto naquelas palavras infantis de Alice. No fundo nós homens somos crianças que tiveram de crescer. Apenas isso. Não há nada de complicado em entender-nos. Olhava o pequeno João, que brincava de avião no quarto do hospital. Ele brincava de avião resoluto inventando guerras e mortes em pleno voo, sua expressão facial era a mesma do Hércules estampado em sua camisa branca, havia heroísmo em toda aquela farsa. Alice e eu nos entreolhávamos cúmplices – é que há muito já havíamos saído daquele mundo mágico no qual a entrada de João era a nossa expiação.
Sempre tivemos uma vontade inexplicável de ter filhos, desde cedo. Acredito que não racionalizávamos aquilo. Era a natureza nos impulsionando à reprodução, como no dito schopenhaueriano? Aquilo era vontade de viver? Teríamos sido selecionados desde cedo pela natureza como corpos fortes e saudáveis para gerar e cuidar de filhos, enquanto imaginávamos que nos selecionávamos mutuamente em razão do mero gosto e afeições? Ou seja, se tratava de uma simples tentativa de perpetuação da espécie? Não sei dizer, nunca soube.
Mas enquanto eu olhava o pequeno João arrancar pequenas lágrimas de contento dos olhos de sua mãe com brincadeiras de heróis, com fantasias de aviões imensos dentro de um quarto de hospital, enquanto eu definhava de um câncer que me mataria em dias, entrevi um pouco a chave do mistério. As crianças eram pequenas coisas que colocávamos no mundo para nos substituir. Eu havia desbancado a tese do velho Arthur? Não sei! Mas o fato é que aquilo era-me o epílogo de uma vida toda pensando. Não se tratava de uma vontade da natureza de perpetuação da espécie, ou mesmo de uma vontade nossa de amor. Talvez se tratasse da remissão que precisávamos cumprir por termos abandonado a verdadeira idade da vida que era aquela do João. Por termos nos expulsado do Éden? Tratava-se de uma nossa tal esquizofrenia, a loucura de criarmos com aquela vontade de retorno, os seres que nos vão carpir.
E dias depois estava o pequeno João brincando com uma pequena borboleta multicor sobre a lápide do meu túmulo.






sexta-feira, 5 de junho de 2015

lamento

o que me resta
é um pedaço de céu
por entre as roupas do varal
no fundo da área de serviço
e mesmo que o cão do vizinho
não me acorde da ilusão
de estar sozinho
despertarei por mais um sol
no piso de um falso quintal
com meu amor de passarinho






quinta-feira, 4 de junho de 2015

A história de uma história

Este conto infantil é de Trevor Zahra, de Malta. Evidentemente, traduzi a partir da versão em inglês - de Albert Gatt, que no momento se dedica a traduzir outros contos, agora para leitores adultos.

A História de uma história



Era uma vez uma história que vivia em um livro. Era uma história maravilhosa, repleta de brincadeiras e risos. Mas o livro estava fechado havia muitos anos. Ninguém mais a lia e, como resultado, a história ficou muito triste. Logo as traças da biblioteca a descobriram. 

- Veja, parece uma boa história - disseram.

Experimentaram a primeira frase.

- Hmmm... delícia!

A segunda frase também parecia muito boa. E então a terceira e a quarta. E assim as traças comeram todas as piadas e risadas da história. Quando finalmente já haviam comido o suficiente, viraram-se para dormir.

As traças dormiram fazendo muito barulho. Não dormiram desse jeito quando comeram aquele outro livro, sobre piratas. Aquele era cheio de batalhas e tempestades, e muitas traças ficaram enjoadas. O mesmo aconteceu depois de comerem a história sobre carros. A gasolina e a fumaça do cano de descarga quase as envenenaram. Mas dessa vez era diferente. Essa história parecia realmente doce.

Não muito longe, duas crianças andavam pela biblioteca e começaram a procurar.

- Olhe, veja este livro. Tem muitos buracos - disse Sara.

- Gostaria de saber do que ela fala - disse Elton. 

- Bem, vamos ler - respondeu Sara.

Mas isso era impossível. Todas as palavras tinham buracos. As crianças não conseguiam entender nada.

- A história não é boa - disse Elton.

- Totalmente sem sentido - concordou Sara.

Puseram o livro de volta de onde o acharam.

As traças estavam espionando Sara e Elton.

- Se vocês pudessem ao menos ter provado essa história antes de nós, não diriam isso - pensaram - Mas agora é tarde. Apenas nós sabemos do que ela trata.






quarta-feira, 3 de junho de 2015

CINDY

Na sala ela valsava
solitariamente

Com o que será que sonhava?

Cindy bailava e sonhava
enquanto sua valsa tocava

Ela não tinha sapatos de cristal
não tinha príncipe
mas a melodia a embalava

Cindy rodopiava e chorava

Era tão bela sua valsa!
Por quem será que ela ansiava?

Não sabia não sabia
apenas sentia o que a música
ao seu coração ditava.

*Inspirada na composição Valsa da Cinderela.





EM PARÁBOLA

EM PARÁBOLA

Voar, como o vento, engolindo distâncias, esvanescendo-se em neblina, liquefazendo-se no vazio. Voar, como num sonho. Descortinar mundos além do olhar rasteiro, de cobra esfolando o ventre no solo pedregoso. (Deserto, este.) Voar sonhando-se gigante, um ser-por-sobre. Não-mais-nunca o pequeno Zeca: homem-menino-sempre. Homenino. Ah, não!
            Parcial, o voo. Um tiro de canhão a torná-lo projétil. Projeto limitado de liberdade. O estampido seco, o soco nos pés pequeninos, o corpo diminuto a cortar o espaço. Como adaga, a água. Em parábola. A pólvora. O cheiro de. O capacete ricocheteia no alvo. O saco-de-batata frouxo despenca nas malhas.
A plateia vibra.

            Liberdade frágil. Fogo-fátuo. O voo, assim, forçado. Correntes invisíveis. Homenino de alma presa ao limite do corpo. Tão-sem. Ele, escravizado ao mister. Desde sempre. Sem direito de. Sem ninguém por.
O corpo anseia outro corpo da alma que a alma beijou.
Lis, a flor de. Bailarina infeliz. Ilha de desejos em mar de tormenta. Do dono, filha. Armadilha.
(Ela, presa aos laços do sangue que pelas veias. Escorre pelas pernas. Pelo sexo, para dentro. Entropia carnal. Amiúde, a contragosto.)
Olhares fugazes, roçares furtivos. Um beijo, se... O despertar rompe. O real é pedra no sonhar.
            Empreender fuga. Reinventar a vida. Um mundo-em-que-ambos-em-si. Homenino-bala, moçamenina-bailarina.
            Um aéreo plano. Asas de alumínio ocultas sob. Abertas, projetam o voo (im)possível.

O espetáculo. Ela sob as estrelas, perto da ponte. Calada, ao frio. Ele se prepara. Mais pólvora, nova mira. O silêncio esmaga. Calafrio. A ânsia secreta tempestades no estômago. Sim e não, uma questão de. Dúvida atroz. Por um fio.
O estampido, enfim. Homenino-bala rasga a prisão da lona. Corisco risca o céu pálido de lua à míngua. Em parábola.
Asas, asinhas, pelamordedeus!
Bate-bate-bate. Debate-se em vão. No vão. O saco-de-batata frouxo.
O real-pedra explode o sonho na cabeça miúda. Filete de rio rubro, verte-se. A relva desveste o verde.
Ela corre. Tropeça, cai. Engole-se na dor, um grito oco. Abraça o corpo já-sem. Vazio compartilhado.
Ah, não!
Lis, meu amor, plante uma flor no canhão que me cuspiu.
            No circo, a plateia vaia.

            O vulto disforme cresce atrás de. O corpo que feriu a semente de si. No breu das noites sem lua. No trailer. Não às súplicas pelo não. Correntes invisíveis, nas mãos grossas. Se um pai-eterno lhe aprouvesse. Se o Pai-nosso balbuciado. Se pai assim o fosse. Pai.
            Num ímpeto, o furor. Afasta-se do corpo inerte, jamais seu. Enquanto o outro, resfolegante. O mesmo que a tivera. Frente a frente já. Submissa, não mais. De uma das mãos, um brilho escapa. Com a outra rasga a branca veste. Seios vivos: liberdade que não. O corpo pálido sob a lua-irmã. Seu, nunca mais. O outro se acerca. Tire as mãos, porco imundo. Um passo mais. Se mais um, te mato. Vacila. Sou eu, seu pai. Olhares faíscam. Pai?! Meu pai? Quisera fosse. Um animal insano. E só. Pai-nosso-que-estais-no-céu. Um verme asqueroso. Pai?! Não sabe o que significa ser. Santificado-seja-o-vosso-nome. Nem jamais do coirmão que me rasga as entranhas. Então você... Num átimo. O abismo do corpo, outro, engole o brilho que antes.
Agora-na-hora-da-nossa-morte. Amém.

Trôpega, até a ponte. A água recria a lua pálida. As pedras, leito macio (em espera). O corpo translúcido. Voo suave. Em parábola.

Sob a lona, ao não tão longe, traquinices dos palhaços.
A plateia delira.    

Edelson Nagues


Do livro Respeitável público: histórias de circo e outras tragédias (com Cinthia Kriemler, Henriette Effenberger, José Ronaldo Siqueira, Tatiana Alves e Zulmar Lopes – Editora Penalux).





terça-feira, 2 de junho de 2015

APROPRIAÇÃO INDÉBITA





O poeta é um criminoso,
Delinquente menestrel.
Assume o tom mais choroso
E desagua no papel.

Mesmo aquele que é cioso
Não terá jamais perdão.
Pega o bem mais valioso
Para usar em sedução.

Usa do tom mais fecundo
Pra falar de desenganos.
Com seu verso mais profundo,
Torna-nos todos insanos.

Este reles vagabundo
Peregrina pelas ruas,
Recolhe as dores do mundo
E as toma como suas.