Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A Escada, de Lucas Riello de Almeida

Lucas Riello de Almeida

Já velho, subia as escadas. Por que vim? Se nada muda. Tudo o que é para permanecer, cresce; como o que é para crescer, permanece. O resto cai. Tudo cai. Essa força puxando a tudo para o nada. Os que ainda respiram, prolongam e se lembram. É a vida dissimulando-lhes a verdade. E há tanto que não pairo por estes lugares... Por que vim?

A cidade, as pessoas, essa fumaça pegajosa, o tumulto que cerca a tudo. Há muito eu não ia à Igreja, o lugar mais limpo e silencioso que conheci. A primeira vez que entrei em uma catedral, eu tinha a idade de uma criança inocente. Desejei nunca mais sair. Os detalhes do mármore, suportando grandes esculturas de heróis, translucidados pelos tons que os vitrais filtravam do sol, sob a melodia barroca que uma velha senhora dedilhava ao órgão, parecendo celebrar tudo o que ali havia. A cúpula de vidro irradiava toda minha alegria e surpresa ao perceber a grande convergência de toda a estrutura para o ponto único, o homem mais triste de todos os representados, ao fundo, contrastado, pequeno, soturno, mudo, vazio, completo, e muito distante. Então eu cresci e li! Eu li, e li, e li, e li... E também os deuses caem. Fica no lugar um vazio, que por sinal é a única coisa que não vai embora. O vazio de não se crer em nada e a saudade do que quer que seja.

Bêbados encolhiam-se nos degraus do lance de escadas, frente às duas grandes portas abertas e convidativas. Subi, de costas para o sol, às nove da manhã, algumas nuvens se formando no alto, sozinho. Uma missa dedicada aos mortos acabara há pouco e os vultos de luto colidiam contra minha vaguidão de entrar ou não, em direção à saída. Havia uma dúvida constrangida no olhar pesaroso de algumas dessas sombras, como se a hora final fosse, naquele instante, cair sobre todos os homens. Mas logo o sol tocava-lhes a face, o mundo ainda estava ali, e respiravam, e dissipavam-se, reencontrando-se, vivos, esquecendo, esquecidos, tendo esperanças, desejando, mais incertos do que está por vir, quase felizes, fixando-se no presente, pois o futuro pertence a deus, e deus pertence ao homem.

E a quem eu pertenço? Maldita escada que não termina nunca! Estou há tanto tempo nestes degraus que talvez eu tenha dormido no caminho e isto seja só um sonho. Eu poderia sonhar com o amor que um dia tive. Mas do outro lado não havia ninguém, o ser amado. Só uma idéia que criei, na minha juventude, para satisfazer-me as ilusões românticas. Eu não era romântico e nem sabia o que era o amor. Quando dei conta, ela tinha partido, como a morte, silenciosa, inesperada, violenta, para sempre. Mas como os que ainda vivem, procurei-a e fiz de tudo para que me notasse de onde estivesse, demonstrando que a amava mais que tudo. Restou-me esse sonho de sonhá-la, a verdadeira, aqui, comigo, no que restou do mundo desde então.

Entrei. Sentei-me à metade, igualmente distante da saída e do púlpito, com seu pedestal de água benta, numa hora dessas já vazio de aliviar as angústias dos necessitados. Iluminou-se a igreja por dentro, com suas luzes amareladas que são acesas pela chuva que começa lá fora a bater nas vidraças, limpando a poeira dos vitrais desbotados, escurecendo a tudo. O barulho das gotas sobrepõe-se ao cochilar de uma senhora que murmura uma reza tranqüila, perdida no cansaço de sua vida. O presente é esse abismo de tempo que se me abre das paredes e do chão, mas sobretudo de minha alma. Como eu abraçara tudo aquilo no meu cálido coração! A vida então fazia-me total sentido: desde o menor vestígio de vida, às grandes obras da natureza, soprando-me os ares dos sentimentos variados que aspiram no peito humano: amor, solidão, a vontade de nunca parar de viver, de conhecer a tudo, a humildade, a insaciabilidade, a harmonia com o todo, até além da morte, até deus e depois dele. Então que algo me arrancou a cortina que tapava a visão de minha alma. Ou pôs-lhe uma outra venda, vergando o resto de inocência ao nada. Como saber? Como saber de que lado ficou meu coração? Como enxergar a vida com os olhos da Justiça, se desconfio também da precisão de minha balança, ante a dúvida do que sei contra as certezas que me derramam os outros? Restou-me o enigma sempre presente a devorar-me a paz. Passa o tempo e me afundo mais neste profundo poço que é a vida.

Levantei-me para dirigir-me ao púlpito. Qualquer padre bastaria agora. Eu buscava somente uma demonstração de fé, uma prova, a mim, testemunho e senhor de tantas dúvidas. Avancei por entre a tempestade que despencava sobre tudo. Cada passo pesava minhas decisões passadas, meus próprios julgamentos, considerando que a moral tenha se tornado um assunto esquecido a todos aqueles com quem eu convivia e, talvez, estivesse readquirindo a cor antiga. Na dúvida, a moral é viver. Assim passamos. Prossigo. Eu receava ser expulso assim que começasse a falar. Mas o que eu falaria? Tantas coisas, por tantos anos, atravessaram-me, e agora estou completamente vazio. Conheço todos os meus desejos e pecados. Mas frente a alguém em quem deposito meu amparo ou alegria, tristeza ou solicitude, frente a qualquer pergunta que venha de fora, esqueço meus infortúnios e sonhos. E por isso talvez nunca chegue a viver, efetivamente.

O padre me avistava, ao longe, e eu, parado, desprotegido, encarava sua força, sustentada pela cruz que o prendia à Terra e aos Céus, sempre ali, ao fundo, como que ressoando na memória destas paredes o alerta de que sempre haverá, no final, um julgamento. De repente, senti-me em casa, ao notar uma goteira desenhando uma poça no tapete cor de vinho no qual eu caminhava. É o único lugar onde talvez algo me pertença, mesmo que seja uma goteira que martele minha cabeça nas noites chuvosas e terrenas.

Meu apartamento guarda a memória de minha vida. Manchas, fotos, quadros, espelhos, livros, cordas de violão, colheres tortas, papel amassado, cartas, idéias, sensações. Entre tudo, os amigos e a família. Procurei guardar a essência deles comigo. Lá está o registro histórico de nossa vida. Se boa, se má, é digna de eu me lembrar dos maus e bons momentos. Cada segundo que vivo lá é um reviver das alegrias e tristezas que passamos. Nem todos terminam tão próximos. Estes laços se afrouxam muito facilmente quando o conteúdo envolvido é pouco. E há também a solidão. Muitos destes fantasmas que habitam minha morada me odiaram, afinal. E quando me lembro disto, peço perdão a eles, olhando fixamente o nada à minha frente, paralisado, absorto, perdido, por um fio de lembrança, o rosto de alguém querido que se foi, e que está à beira de meus olhos que se fecham. E na escuridão eu posso ouvir o sussurro de todas as suas vozes ecoando no vazio de cá dentro, esperando, ansioso, a palavra de boas vindas. Sempre, lá estão eles, dentro de cada detalhe, no ar, nas paredes, na ausência, escutando-me, lembrando-me.

Uma gota de água me desperta. Não reconheço mais neste lugar as alegrias e motivações que me faziam vir aqui. Onde eu estava com a cabeça? Cai um fio de luz da cúpula de vidro acima de mim, na chuva que cessa, clareando-me a vista. Viro-me em direção à porta. Lá fora, talvez, eu esteja a salvo. Saio...


Lucas Riello de Almeida é paulista da cidade de Cotia. Arrisca os sonhos na literatura e na música, com todas as belezas que sucitam tais artes, sua paixão. Vinte anos lendo e pensando muito. Ganhou miopia, dor de cabeça, certas angústias e alguns amores.

Share




0 comentários:

Postar um comentário