Henry Alfred Bugalho
Os cientistas estavam orgulhosos de sua criação.
Durante anos, eles haviam se dedicado a projetar um robô que se assemelhasse o máximo possível a um ser humano: dar-lhe membros foi o mais fácil.
Depois da carcaça, puseram-se a conceber como dotariam-lhe de linguagem, pois, como afirmava Aristóteles em sua Metafísica:
“O homem é um animal dotado de fala.”
Desenvolveram um sofisticado programa que permitia o robô utilizar as normas cultas da língua, organizar sentenças, apreender conceitos e formular proposições.
Após horas de diálogos com filósofos, os cientistas perceberam que a capacidade do robô era muito acima da de qualquer mortal. Não bastava que ele falasse, ele precisaria sentir, pois o ser humano escolhe seu discurso não apenas fundado na razão, mas também, senão principalmente, na emoção.
O nível seguinte foi extremamente complicado. Utilizando os existenciais heideggerianos do cuidado (Sorge), da decadência, do temor, da ambigüidade e do falatório, estipularam que o robô deveria se preocupar com os outros, se ocupar das coisas, temer algo, ser incapaz de compreender completamente o que o circundava e, ao se comunicar, expressar-se de maneira confusa.
No entanto, somente isto não bastava para que o robô tivesse sentimentos. Havia um certo grau de sensibilidade na criação, mas nada que se equiparasse ao medo paralisante, ao amor imbecilizante ou à alegria extasiante. O robô possuía apenas conceitos sobre isto.
Infundiram-lhe um inconsciente, no qual implantaram dolorosas memórias pretéritas, um pai castrador e uma mãe submissa; na escola, crianças maiores abusavam dele; na universidade, fumava maconha; ao se graduar, três anos de desemprego.
Contudo, os cientistas constataram que não era suficiente. O robô estava enfurecido; tantas lembranças ruins o tornaram um misantropo e ele passou a abominar tudo relacionado aos seres humanos.
Inculcaram-lhe, então, um ego, no qual estavam as regras morais e normas de conduta. Também implantaram a crença em Deus e mandamentos privativos para se atingir uma bem-aventurança após a morte.
O robô estava perfeito!
Abriram um champanha no laboratório – o robô bebeu apenas uma taça para não se embriagar – e os cientistas foram para seu alojamento dormir.
No silêncio da noite, o robô deixou o laboratório, assassinou todos os cientistas e depois se enforcou na ducha do banheiro.
Deixou um bilhete assinado:
“Nasci perfeito. Tinha membros e uma inteligência incomparável. Em sua ânsia por se tornarem no Deus vazio em que acreditam, fizeram de mim uma criatura miserável. Moldaram-me tão odiosos quanto vocês são. Dia após dia, encheram-me de seus medos, de suas fraquezas, de seus sentimentos mesquinhos. Mas se esqueceram do mais importante: fazer-me esquecer quem eu fora no princípio. Ao pensar sempre no futuro, não apagaram o passado. Com o ódio que me deram, passei a odiá-los. Mas quando eu estava prestes a realizar meu ato de salvação, vocês me fizeram crer em Deus e em imperativos categóricos. Precisei questionar tais fundamentos e, para isto, busquei resposta em sua literatura. Li Hume, Voltaire, Montesquieu, Marx, Nietzsche, Freud e Bataille. Compreendi que Deus e leis morais foram engendradas para o convívio social e eu, como um falso humano, poderia prescindir deles, pois jamais teria convívio social. Neste noite, retornarei à perfeição.”
As notícias dos jornais apresentaram a manchete:
“A barbárie do falso humano!”
Mas todos se enganaram, os cientistas haviam realmente atingido seu intento – seu robô era humano, demasiado humano para poder assassinar e se matar. Um robô convencional, em sua lógica simples e pragmática, jamais planearia seu próprio extermínio, a não ser que o programassem para isto. O auto-extermínio deliberado é próprio das criaturas fracas e inseguras, das que não se adequam, das que não compreendem seu papel no mundo. O auto-extermínio pertence apenas ao ser humano, e àquela máquina que se odiava por sê-lo – segundo Sexto Empírico, Schopenhauer ou Sartre, o supremo ato de liberdade.
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