Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Ao Sr. Schopenhauer

l
Caro Sr. Schopenhauer, antes de mais nada quero registrar a necessidade de escrever-lhe diretamente. Este documento, entretanto, tem lá sua importância e por isso é possível que aguce a curiosidade alheia. Não me surpreenderia, portanto, que viesse a cair em mãos que não as suas, mas afirmo veemente que a pendência é entre nós dois, um gigante do século XIX e um zé-ninguém dos anos 2000.


Escrevo na certeza de uma resposta, pois sei que para o senhor, dotado de inúmeras qualidades, auto-reconhecidas e auto-exaltadas, os obstáculos que impedem nossa comunicação são facilmente superáveis. Não tenho dúvidas de que um profundo conhecedor e estudioso de línguas, como o senhor, tem o meu humilde português como mais um item em seu vasto repertório de idiomas, mas se por acaso faltar-lhe a ciência sobre a “última flor do Lácio”, estou certo de que seu raciocínio agudo e sagaz, juntamente com o conhecimento do Latim e até mesmo de outras línguas que Dele derivam, farão do senhor um hábil leitor. Espero que, ao escrever Latim em letra capital ressaltando Sua superioridade ante esses dialetos que hoje a Europa conhece como línguas nacionais, perceba meu respeito pelas suas idéias e leia-me com alguma atenção.

Se o senhor foi assaz condescendente para iniciar e continuar a corrente leitura até aqui, seria sensato de sua parte aceitar minhas devias escusas por não dirigir-lhe a palavra em Alemão, esse idioma soberano, embora não-clássico, e também por talvez estar sendo confuso e mesmo ininteligível. Não é que eu queria forçar um estilo. Com toda a sinceridade, afirmo-lhe que tento ser o mais natural e breve possível.

Voltando à questão das barreiras que nos separam, a única que me fez hesitar antes da escrita dessa mensagem foi o fato de o senhor estar morto. Obviamente, considero que o esteja de fato, afinal, se de alguma maneira tivesse descoberto o segredo da vida longa e vivesse nos dias de hoje, por certo não estaria se escondendo, às sombras ou vivendo no anonimato. Primeiro, porque o anonimato lhe causa ojeriza e, depois, porque é de sua natureza exibir-se.

Pois bem, agora vamos ao âmago de minha contestação. Recentemente, entrei no mundo de suas idéias através do brilhante Parerga e Paraliponema. Na verdade, não fiz a leitura completa da obra, mas apenas dos escritos relacionados à literatura, língua e erudição. Cito-os aqui: “Sobre a erudição e os eruditos”, “Pensar por si mesmo”, “Sobre a escrita e o estilo”, “Sobre a leitura e os livros” e “Sobre a linguagem e as palavras”.

Diversas foram as minhas considerações e opiniões acerca dos textos a que me refiro, ora concordando, ora encontrando algumas divergências. Eu poderia enumerar diversos tópicos para debate, mas seria desnecessário, além de trabalhoso. Questões válidas, no entanto, e muito interessantes. Assim, vou me centrar nos pontos que mais me chamaram a atenção quando da leitura desses textos.

O primeiro deles é o mau-humor crônico que lhe é característico. Esse quadro de rabugice eterna na verdade é um transtorno psiquiátrico conhecido como distimia. Muito provavelmente o senhor foi um distímico, um sujeito amargo, que reclamou de tudo e só viu angústias e infortúnios mesmo no mais belo nascer do sol. Por isso tenho lá minhas dúvidas sobre sua causa mortis. Pobre, Schop! Acho que mentiram para o senhor. Disseram-lhe pneumonia em vez de infarto ou AVC, sei lá... algo provocado por toda a amargura guardada e também pelas despejadas em seus escritos.

Não me entenda mal. Não estou criticando seu mau humor. Pelo contrário, ele é sua marca. Ele é você e você é ele. Não existiria Schopenhauer sem mau humor e vice-versa. Sabe, deixe-me contar uma história. Os novos dicionários da língua portuguesa adicionaram o verbete Schopenhauer, ou chopenrrauer (aportuguesado). Adivinha o que ele significa? (risos) Brincadeira, viu Schop? Só para descontrair. Ah, desculpe. Você não sabe o que é isso (risos). Outra piada. Agora que estamos mais íntimos, que criei um clima mais amigo, vou chamá-lo de Schop. Pode ser?

Então, como eu ia dizendo, o chopen... digo, o mau-humor é sua marca. Não haveria graça em lê-lo se não tivéssemos que imaginar qual seria o próximo xingamento para alguns de seus adversários. Ah, Schop, você precisa ver como está o mundo moderno. Sabia que suas idéias hoje são bastante influentes? Acredita que recentemente criaram um curso de "como denegrir a imagem do seu inimigo com classe"? Apostilas baseadas em sua obra.

O outro fato que me levantou uma tremenda curiosidade foi como você tem tanto conhecimento acumulado. Além de um grande pensador, foi um poliglota sem igual. Latim, grego clássico, sânscrito, inglês, francês, italiano e espanhol, além do materno Alemão. Essas são as que nos foram permitidas saber. Não me espantaria que houvesse mais algumas a citar. Mas o que me intriga não é que você tenha todo esse conhecimento, afinal de uma mente brilhante tudo se espera, e sim como você o adquiriu sem tanta leitura. Sim, porque "as pessoas que passam suas vidas lendo e tiram sua sabedoria dos livros são semelhantes àquelas que, a partir de muitas descrições de viagens, têm informações precisas a respeito de um país (...) no fundo não dispõem de nenhum conhecimento coerente", em suas próprias palavras. Só posso concluir que você nunca foi apegado a leituras, especialmente as de má qualidade. Então fica a curiosidade de como vieram as aulas de idiomas que nos dá em Parerga e Paraliponema. Já nessa época você era agraciado com o dom da violação do tempo e conseguia retrocedor em séculos e mais séculos para adquirir as noções de latim e grego?

Ainda sobre idiomas, outra curiosidade. Qual o problema com os "repulsivos sons nasais"? Tudo bem que os alemães nunca se deram bem com os franceses, o que lhe dá motivos para desmerecer a língua dos gauleses, mas que, pelo menos, se atenha às características peculiares do falar desse povo. Eu, como lusófono, me ofendi com essa declaração de ódio aos belos sons nasais. Seria despeito por não saber pronunciá-los corretamente? Nesse ponto, você foi infeliz.

E para finalizar, que a carta está ficando muito extensa, só queria cutucá-lo mais uma vez: você falou mal de Deus e o mundo, atirou pedras aos sete cantos do planeta e em matéria de literatura foi o crítico mais ferrenho de todos os tempos. Desconsiderou a literatura alemã e mundial de seu período. Nem sua mãe lhe escapou à língua firina. Seriam os escritores da época tão lastimáveis assim? Ou o seu mau humor influenciava até na hora de emitir um juízo sobre a obra alheia, fazendo pouco de tudo o que não lhe apetecia? Talvez você fosse um crítico muito parcial, tomado pela mágoa de ter tido um reconhecimento tardio, em seus últimos anos de vida. Ou talvez os alemães de seu tempo fossem bons comedores de chucrute enquanto escritores mesmo, o que é mais provável, dada sua superioridade diante dos outros seres humanos.

Prometo que agora encerro de verdade. Só aproveitando a deixa do último parágrafo. Olha, aqui vai um conselho de amigo. Você é gênio, cara. Não há como negar. Um homem num patamar acima dos demais. Mas não deixa isso lhe subir à cabeça. Pode pegar mal, causar mal-entendidos. Nunca se sabe. Nem todos compreendem a genialidade.

É isso, Schop! Foi uma mensagem breve e amigável. Queria escrever mais, mas agora devo dedicar-me à reflexão, pensar por mim mesmo. Afinal, nos dias de hoje, ainda dá para fazer isso e mais nada da vida. Leio, penso e cuido do meu cachorro. Sou desocupado mesmo, sou filósofo.

Share




4 comentários:

Que maravilha de texto, Caio!
Gostei bastante! Eu só tiraria o "risos" entre parenteses. Na minha opinão, não pegou bem.

Cara, por acaso você leu o livro "A arte de escrever" do Schopenhauer, da L&PM? Ele tem exatamente uma seleção dos textos que você citou. Acho que dele veio a idéia, né? Estou lendo ele ainda.

Meu, parabéns, cara! Gostei mesmo!

Abraço,

Não sabia que o Schopenhauer tinha uma doença, Caio, no entanto, o mau humor filosófico crônico não é uma atitude só dele.

Na verdade, esta parece ser uma postura bastante usual no universo filosófico: "para construir, é preciso antes destruir o que havia antes". De algum modo, quase todo grande pensador realizou um ataque, por vezes sutil, por vezes pesado - como o caso de Schopenhauer -, ao que vinha antes e a seu próprio tempo. Nietzsche, Voltaire, Adorno, Rousseau são alguns exemplos de autores que, vez ou outra, tiveram de ser ácidos para defender suas idéias.

Aliás, no livro intitulado "Como vencer um debate" (que também deve fazer parte do Parerga), Schopenhauer apresenta, baseado no estudo da retórica aristotélica, um estudo sobre a erística, que é a arte de defender seu ponto, apelando até para a ridicularização dos argumentos ou do próprio oponente. Quer dizer, por mais que o filósofo fosse acometido por alguma doença, a estratégica retórica dele é legítima e a incisão dela é o reflexo do impacto que ele causou nos autores subseqüentes.

Confesso que, dos muitos autores que li, geralmente são este tipo de filósofos que deixam uma marca mais duradoura. Ainda me lembro de trechos inteiros de "As Dores do Mundo", por exemplo, enquanto que, de outros filósofos, não me lembro nem do título de suas obras.

Abraços e seja bem-vindo à SAMIZDAT.

Opa, Carlos! Desculpe a demora.

Sim, foi esse mesmo que li. Comprei imaginando ser outra coisa. Engraçado como as propagandas maqueiam os produtos. Mas não me arrependi. Gostei muito da leitura!

E Henry, não tenho nenhuma garantia de que ele era doente, mas tudo levar a crer que sim. De todo modo, foi uma oportunidade de sátira. Lógico, sem desrespeito algum! Apesar de não ser nenhum leitor profunda de filosofia, Schopenhauer é um dos sujeitos que mais admiro.

Durante a carta, ora concordo com ele, ora não. Não que essa oscilação represente minha opinião relativa a cada respectiva parte, mas a tentativa foi ilustrar que muito de sua crítica era pertinente, correta, mas deslizava, ao meu ver, em alguns aspectos.

De todo, um grande pensador.

E obrigado a ambos pelos comentários!

Texto genial! Muito bom mesmo.
Só quero deixar um breve reflexão: não seria "chopenrauer" com um erre só, como em honra? antes de ene se escreve com um erre, mas se pronuncia como se tivesse dois.

Postar um comentário