Maria de Fátima
A corda esticada entre paredes. Seguram-na duas buchas. São elas que aguentam a tensão do pedaço de fio protegido por um azul plastificado.
Sentada no poial da porta do quintal, olho o estendal de roupa.
Azul no fundo branco da parede do vizinho.
(O vizinho é um velho simpático. Não vai entrar neste conto, mas dava uma figura linda de narrar, que mais não fosse quando aparece, pelo fim da manhã, no quintal defronte, exercitando os músculos retesados nas peles engelhadas, secas, salpicadas de sardas de um castanho mais intenso que o bronze que lhe ficou de outros sóis. Em camiseta de alças: um dois, hummm, hummm, respira ele fundo; acima, abaixo, hummm hummm, respira ele de novo. E para os lados, torcendo o dorso e soprando um airoso hummm, hummmm, que não me surge onomatopeia melhor para que o conte).
O estendal, azul na luz do fim do dia, corta a parede branca em duas. Esticada entre dois apoios, a corda onde eu estendo, de vez em quando, dois pares de meias, uma blusa, o meu pijama, umas cuecas. Coisa pouca.
Um estendal demasiado. Eu olho-o espantada da sua demasia.
No ladrilho amarelo faz-se sombra de ave. Fica o rasto do voo na parede branca que realça o azul vivo da corda. Um estendal de roupa, mesmo quando está servindo de coisa nenhuma.
Uma gaivota grasna, poisada no telhado da frente.
E eu grito de lembrada. Nem que eu grito. Eu já só penso isso. Já só grito por dentro: “ valha-me deus!“. E ergo-me. Sacudo-me de pós do chão batendo no traseiro com as duas mãos.
Repito: “credo!” várias vezes. Deixo o poial e o ladrilho amarelo e o estendal contrastando no branco. Entro.
Ali está a agenda aberta numa página e escrito na minha letra redonda e certa: “Telefonar à Maria Ana”.
No canto superior direito da agenda, posso ler, em numeração estilizada: vinte e quatro. E ao centro, Dezembro, que é o nome do mês em que estamos.
Marco um número. Sei de cor a posição que o compõe. Falo com um sorriso que envio até ao lado de lá de um oceano:
- Feliz Natal, Maria Ana. Beijinhos.
- Obrigada, mãe.
E cai a ligação.
Um risco negro corta, de um a outro lado, a parede da frente. Tal qual, eu estou esticada entre aqui e um lugar para lá de um oceano. E eu nem me sou corda, nem me tenho apoios de buchas e nem plástico que me faça protecção.
É dia vinte e quatro de Dezembro.
Parece-me que é uma data importante. Não me lembro.
O que eu sei é que o estendal não era demasiado. Noutro tempo. Isso, eu lembro muito bem.
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