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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Será o Benedito!

Mário de Andrade

A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde agüentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer:


— O hôme da cidade, chi!...

Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar.

***

Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:

— Mas será o Benedito! Não é assim, moço!

Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias.

***

Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele, ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a tuberculose que..."

— O que é isso?...

- É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos.

— Será o Benedito...

E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par.

Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho:

— Morrer não quero, não sinhô... Eu fico.

E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”. E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui.

São Paulo, 2ª. quinzena de outubro de 1939. (n°145)

Texto extraído do livro "Será o Benedito!", Editora da PUC-SP, Editora Giordano Ltda. e Agência Estado Ltda.- São Paulo, 1992, pág. 66, uma colaboração de João Antônio Bührer e seus "Arquivos Impagáveis".

Fonte: Releituras

***

Mário Raul de Morais Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo, professor universitário e ensaísta, considerado unanimidade nacional e reconhecido por críticos como o mais importante intelectual brasileiro do século XX. Notável polímata, Mário de Andrade liderou o movimento modernista no Brasil e produziu um grande impacto na renovação literária e artística do país, participando ativamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 37) com a cultura nacional trabalhando como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.

Mário nasceu em São Paulo e construiu praticamente toda a sua vida na metrópole. Na cidade, estudou e também lecionou por muitos anos, desde cedo demonstrando sua paixão pela cidade. Durante seu tempo de vida, Mário criou vínculos fortes com outros nomes do país, se correspondendo freqüentemente com grandes artistas brasileiros, dentre quais se destacam Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino e Augusto Meyer, e veio a falecer em 1945 na mesma cidade em que nasceu, após três décadas de trabalho que desempenhou em estilo vanguarda.

Considerado o escritor mais nacionalista e múltiplo dos brasileiros,[1] Mário construiu um caráter revolucionário na literatura brasileira, que se iniciou com Paulicéia Desvairada, onde analisa a cidade de São Paulo e todos seus elementos (provincianismo, aristocracia, burguesia, rio Tietê, Avenida Paulista). Mário também é considerado um dos primeiros musicólogos do país, e seu maior interesse era a música, particulamente os ritmos nordestinos, nos quais tentou pesquisar e valorizar, assim como fez com a Missão de Pesquisas Folclóricas, tentando criar um estudo e uma descoberta das raízes culturas do Brasil. Isso também ocorreu com seu romance mais famoso, Macunaíma, considerada uma das obras capitais da narrativa brasileira no século XX.

A importância de Mário de Andrade continua sendo ativamente expressa nos dias atuais, e ainda se fala sobre sua obra seja para estudo ou para a investigação do Brasil: o filósofo Leandro Konder considera que talvez essa atualidade seja resultado pelo destaque que Mário tinha sobre os outros nomes do modernismo, "pela amplitude de sua cultura, pela vastidão dos seus conhecimentos [...] [porque] tinha uma visão panorâmica abrangente [e] dispunha de um quadro de referências muito mais rico do que todos os outros."


Fonte: Wikipedia

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