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quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

O capuchinho vermelho

 

Quando Mera menstruou pela primeira vez, estava a fazer 12 anos. O momento era importante. A mãe não tardou a dar a notícia à irmã e vizinha, usando a expressão “capuchinho vermelho”, em referência metafórica à forma anatómica da parte superior dos pequenos lábios, em situação rubra.

Na comunidade Fula em que a rapariga vivia, era tempo de prepará-la para casar. E isso implicava alguns procedimentos prévios na área genital, executados por uma mulher idosa, designada por fanateca. Excisão do capuz e do clitóris ou, pelo menos, cortes e furos com espinhos de acácia era o procedimento básico. Havia exigências mais drásticas, como ablação dos pequenos e até dos grandes lábios, sem falar da radical infibulação ou cosimento. Mas estas eram práticas menos frequentes, na tradição de intervenção na genitália feminina, largamente enraizada, não só ali, em Gabu, como nas outras regiões da Guiné-Bissau.

Passada uma semana, a mãe da menina, depois de ter avisado Fali, o marido apalavrado — um belo rapaz de trinta anos, também Fula —, para se ir preparando, meteu num cesto tradicional um pequeno pano branco ritual e mais dois panos de tear coloridos, como pagamento, e mandou a menina a casa da avó, que morava no mato, numa minúscula área de exploração de castanha de caju. Mas recomendou-lhe:

— Vai pela vereda do mato; não vás pela estrada, porque podes encontrar algum “nefasto”.

A mãe referia-se aos membros ou às pessoas que colaboravam com a Comissão Nacional para Abandono das Práticas Nefastas, entidade governamental que tentava erradicar costumes arcaicos e desumanos. Esta entidade, apoiada numa lei de 2011, tinha fornecido muita informação às fanatecas, a quem também prometera compensações pelas perdas económicas. Como medida dissuasora, a lei ditava explicitamente que os pais que não impedissem a prática da excisão seriam punidos com pena de prisão de 1 a 5 anos. Com esta ameaça, parecia que as práticas de mutilação genital feminina diminuiriam, mas continuavam a realizar-se muitas, às escondidas. A procura rebentava os diques governamentais.

Mera sabia que o que a avó lhe ia fazer era para seu bem, para que o futuro marido ficasse agradado com ela. Em breve a casariam, mas, antes, devia ser “fanada” segundo as exigências dele ou, pelo menos, segundo a tradição regional.

A menina pôs-se a caminho, mas, ao entrar na vereda da mata, deparou-se com Fali, o prometido marido.

— Tão cedo por aqui, Mé? — saudou ele, tratando-a pelo diminutivo carinhoso.

— Vou a casa da minha avó. Mas é segredo.

— Não queres que eu vá contigo? A mata é perigosa.

— Eu não tenho medo. Já conheço os animais todos que andam por aqui. E tenho de ir sozinha, sem ninguém ver, disse a minha mãe.

— Está bem, adeus. Mas, já que vais pela vereda da mata, leva umas flores à tua avó.

— Boa ideia. Ela vai gostar.

Assim que viu Mera embrenhar-se na mata e começar a colher flores, Fali montou na sua motoreta e, pela estrada, daí a pouco estava nas imediações da casa da avó de Mera. Da estrada lá, eram poucas centenas de metros. Dona Salimata estava ocupada na separação da produção: para um lado, as castanhas rijas e recurvas, para outro, o restante fruto polpudo e doce, para preparar uma cajuada, mais tarde.

— Bons dias, Mãe Grande. A sua bênção! — anunciou-se o homem.

— Viva, Fali! — correspondeu a idosa. — Vens sozinho? Estou à espera da minha neta. O que te traz por cá?

— Ela vem mais tarde. Mas eu queria falar com a senhora. Como sabe, vou casar com a Mera, na próxima estação da lavra. Vai ser a minha segunda mulher. Queria pedir à senhora que fizesse um trabalho mesmo bem feito. A fanateca que fanou a minha primeira deixou muito capuz. E o grelinho também arrebita um pouco, lá quando a senhora sabe. Incomoda.

— Eu sei, eu sei. Mas incomoda assim tanto?

— Mais ou menos. Mas eu também queria que a minha menina se apresentasse muito limpa e bonita.

— Tá bem; mas a limpeza não precisa de passar por cortes. Tu não cortas os dedos quando tens as mãos sujas.

— Eu não quero nada de mais; só o tradicional. E o que o livro santo manda.

— Claro, claro. Mas olha que o livro sagrado não manda fazer isso. E há homens santos que dizem que Deus fez a mulher já perfeita, sem precisar de correções.

— Faz isso pra mim, Salimata. Eu queria tanto ser feliz com a minha menina.

— Com certeza, Fali. E não gostavas que ela também fosse feliz contigo?

— Mas vai ser. Eu sou o homem. Se eu estiver feliz, ela também está.

— Tens a certeza? A tua primeira está feliz depois de fazerem aquilo?

— Nem por isso. Ela não gosta tanto de sexo, como eu. Felizmente. Uma mulher deve ser séria.

— E tu, não és sério por gostares de sexo? Ela não gosta porque não tem. As excisadas, na realidade, não fazem sexo: alguém faz com elas. Têm uma vida infeliz. Sem clitóris ou com ele fanado, as mulheres não conhecem o prazer.

— Como é que sabes, Salimata?

— Eu sou excisada, Fali. Como metade das mulheres guineenses. Desde os seis anos. Mas sei o que sentem as não excisadas. Não tem comparação.

— Foi alguma que te contou?

— Esqueces-te que eu sou uma mulher da mata, há muitos anos. Conheço muitas ervas, muitas árvores, muitos frutos e cascas. Sei fazer remédios para sentir como os corpos das outras.

— Ai, Salimata, isso é fantástico! Ensinas-me a sentir como uma mulher? Eu não gosto de homens, claro, mas tenho curiosidade pelo que sente uma mulher.

— Queres mesmo, Fali? Uma excisada ou uma completa?

— Uma completa, claro; uma que goze como os homens. Como uma maluca que conheci uma vez em Bissau. Estava inteira. Rebolava-se toda, gritava. Um reboliço. Quase que eu é que não gozava.

— Tá bem. Senta-te aí, enquanto acendo o lume.

Dona Salimata começou a ajeitar uns paus no pequeno terreiro à frente da cobertura de palha em que tinham estado protegidos do sol, acendeu o lume e colocou uma lata junto ao fogo. A seguir, entrou na casa tradicional em que vivia, voltou com uns raminhos secos, atados por um cordel de fibras vegetais, que lançou à água, quando começou a ferver. Daí a minutos, verteu um pouco daquele chá numa malga de barro e entregou a Fali duas bolas de resinas de árvore cor de âmbar.

— Mastiga bem esta mistura e depois engole com este chá.

— E não dói?

— Não. Vais sentir-te um pouco tonto, mas deixa-te ir.

O homem seguiu as instruções, os minutos passavam, mas não sentia nada. Quando estava quase a duvidar, o mundo começou a transfigurar-se. Sentia o corpo diferente, alheio. Já não estava numa clareira da mata, mas numa cama que desconhecia. Isso não o assustava, antes pelo contrário. Só estranhava perceber que o seu corpo, agora, era de mulher, mas sentia uma euforia difusa, porque estava prestes a fazer amor com o seu namorado.

Daí a pouco, possuída e embriagada de paixão, entregava-se totalmente ao desejo e ao prazer, que a agitavam em ondas físicas e amorosas. Numa réstia de ligação ao real, pensou como era avassalador o prazer de uma mulher, comparado com o de um homem. O seu parceiro, infelizmente, terminou pouco depois, mas ela manteve-se ainda alguns momentos num estado de graça física e mental.

Então, alguém lhe pôs na boca umas bolinhas pintalgadas que lhe pareceram joaninhas. O resultado não demorou. Viu-se novamente menino, rodeado de feiticeiros que o agarraram, o manietaram e, com uma faca recurva, lhe deceparam o membro logo abaixo do freio. Envolto em dor, percebeu que lhe removiam as duas principais zonas de prazer, equivalentes ao clitóris e ao capuz femininos. O sangue jorrou, as dores eram lancinantes, mas os homens continuaram calmamente a aplicar-lhe uma “boneca” de ervas mastigadas, para cicatrizar.

No meio do caos doloroso, o cenário mudou em segundos e viu-se adulto a tentar fazer amor com uma rapariga lindíssima. Apesar de a desejar, não conseguia sentir grande coisa, fisicamente. Tinha pouco com quê. Apetecia-lhe, era ligeiramente agradável, mas um coto cicatrizado era tudo menos o adequado. Perturbava-o, irritava-o e sentia uma espécie de dor no que já não existia. A rapariga também se mostrava incomodada. Finalmente, ele desistiu de sentir prazer e interrompeu a relação física. A humilhação e uma sensação de menoridade para a vida toda atingiram-o em cheio. Gemia, queria sair dali, queria rogar pragas aos seus fanatecos. Quando recuperou um pouco, viu-se no terreiro de Dona Salimata, incrédulo, os olhos em pavor.

— O que me fizeste, Salimata? — urrou.

— Já sabes o que sente uma excisada? — perguntou a velha, num misto de cinismo e carinho.

— Não me avisaste!

— A maioria das meninas também não sabia o que lhe iam fazer. Sobretudo, nenhuma sabia o que ia perder para toda a vida — concluiu Salimata, em tom menos suave e pedagógico do que o tom usado pelos da Comissão.

Daí a pouco, chegou Mera, com a cesta cheia de flores silvestres. Era uma menina, uma criança em idade de crescer e aprender a viver, muito longe de ter corpo e anseios de adulta. Fali, olhou-a, como se a visse pela primeira vez. Não, não podia deixar fanar a menina. Queria que fosse sua mulher, mas completa, a ter prazer sexual, a ser feliz com ele e como ele. Dissessem o que dissessem. Não deixaria Dona Salimata tirar-lhe nada. E teria de ter uma conversa com a mãe de Mera. Passar-lhe a sua nova visão sobre o assunto. Convencê-la. Dar-lhe garantias. Sossegá-la.

A avó recebeu a neta com um abraço, depois mandou-os sentar a ambos e ofereceu-lhes meia dúzia de frutos polposos e doces. Era a primeira refeição que o futuro casal tomava em conjunto.


Joaquim Bispo

*

Imagem:

David Huguet, Portal principal do Mosteiro da Batalha, 1402–1438.

Batalha, Portugal.

Foto de JFVP.

* * *


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8 comentários:

Sempre intempestivo, incisivo, quase brutal e terno. Abraço Joaquim. Fátima.

Ok, obrigado, boa história

QUE ESTA HISTÓRIA SEJA O RELATO DE UMA REALIDADE. NADA JUSTIFICA ESTE ACTO BÁRBARO.

As tradições, os mitos, os costumes têm muita força e persistem para lá do racional. Esta é que é, infelizmente, a realidade.
Obrigado pela indignação, J. Eduardo.

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