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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Milionário Modelo

Oscar Wilde
trad.: Henry Alfred Bugalho

Uma nota de admiração

A não ser que se seja rico, é inútil ser um sujeito encantador. Romance é privilégio do rico, não uma profissão do desempregado. O pobre deveria ser prático e prosaico. É melhor tem uma renda permanente do que ser fascinante. Todas estas são grandes verdades da vida moderna que Hughie Erskine nunca apercebeu. Pobre Hughie! Intelectualmente, devemos admitir, ele não era de muita importância. Ele nunca disse uma coisa brilhante, nem mesmo maliciosa, em sua vida. Mas, em compensação, ele era maravilhosamente bem-apessoado, com cabelos castanhos aparados, perfil irreprochável e olhos acinzentados. Ele era popular entre os homens tanto quanto entre as mulheres, e tinha todas as qualidades com exceção daquela de ganhar dinheiro. Havia herdado de seu pai uma espada da cavalaria e a História da Guerra Peninsular em quinze volumes. Hughie dependurou a primeira sobre seu espelho, pôs a segunda numa prateleira entre o Guia do Ruff e a Magazine do Bailey, e vivia com os duzentos ao ano que uma velha tia lhe dispunha. Ele havia tentado de tudo. Havia ido à Bolsa de Valores por seis meses; mas o que podia fazer uma borboleta entre touros e ursos? Ele havia sido um mercador de chá por um pouco mais de tempo, mas logo se cansou de pekoe e souchong. Então, ele tentou vender xerez seco. Isto não surtiu efeito; o xerez era um tanto seco demais. Por fim, ele se tornou nada, um jovem agradável, inútil, com um perfil perfeito e nenhuma profissão.

Para piorar, ele estava apaixonado. A garota que ele amava era Laura Merton, a filha dum coronel da reserva que havia perdido a paciência e a digestão na Índia, e que nunca encontrou nenhum dos dois de novo. Laura adorava Hugh, e este estava pronto para beijar os cadarços dela. Eles eram o mais belo casal de Londres e não tinham um único centavo. O coronel gostava muito de Hughie, mas não podia sequer ouvir a palavra noivado.

— Venha a mim, meu rapaz, quando você tiver suas dez mil libras, então, veremos — ele costumava dizer; e Hughie ficava muito chateado nestes dias e tinha de ir até Laura para consolo.

Uma manhã, ele estava em seu caminho ao Holland Park, onde os Mertons moravam, quando parou para ver um grande amigo, Alan Trevor, Trevor era um pintor. Na verdade, poucas pessoas fogem desta definição, hoje em dia. Mas ele também era um artista, e artistas são relativamente raros. Pessoalmente, ele era um estranho sujeito impetuoso, com rosto sardento e uma barba ruiva desgrenhada. Entretanto, quando pegava o pincel, ele era um mestre verdadeiro e seus quadros eram avidamente procurados. A princípio, devemos reconhecer, que ele havia se atraído inteiramente por conta do charme pessoal de Hughie.

— As únicas pessoas que um pintor deve conhecer — ele costumava dizer — são pessoas que sejam estúpidas e belas, pessoas que são um prazer artístico para serem observadas e uma tranquilidade intelectual para se conversar. Homens que são dândis e mulheres que são dondocas dominam o mundo, pelo menos, deveriam. Contudo, depois que passou a conhecer melhor Hughie, ele gostou ainda mais dele pelo brilhante ânimo bon-vivant e sua descuidada natureza generosa, e lhe concedeu entrée permanente a seu estúdio.

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Quando Hughie entrou, encontrou Trevor dando os toques finais num maravilhoso retrato em tamanho real dum mendigo. O próprio mendigo estava de pé numa plataforma elevada num canto do ateliê. Ele era um velho homem enrugado, o rosto como um pergaminho envelhecido e com uma expressão de causar pena. Sobre seus ombros pendia um grosseiro casaco marrom, todo rasgado e em frangalhos; as espessas botas dele estavam remendadas e mal-costuradas, e ele se apoiava com uma das mãos num bastão rugoso, enquanto que, com a outra, ele segurava seu castigado chapéu para as esmolas.

— Que modelo fantástico! — sussurrou Hughie, enquanto cumprimentava seu amigo.
— Um modelo fantástico? — gritou Trevor, o mais alto que pôde:
— Eu deveria pensar assim! Mendigos como ele não se encontra todos os dias. Un trouvaille, mort cher, um Velasquez vivo! Minha nossa! Que água-forte Rembrandt faria com ele!
— Pobre coitado! — disse Hughie — que aparência miserável ele tem! Mas, acredito que, para vocês pintores, o rosto é a fortuna dele?
— Com certeza — respondeu Trevor — você não quer que o mendigo pareça estar feliz, quer?
— Quando um modelo ganhar para posar? — perguntou Hughie, assim que ele se viu confortavelmente sentado num divã.
— Um xelim por hora.
— E quanto você ganha pela pintura, Alan?
— Oh, por esta, ganho dois mil!
— Libras?
— Guinéus. Pintores, poetas e médicos sempre ganham guinéus.
— Bem, penso que o modelo deveria ganhar um percentual — exclamou Hughie, rindo — eles trabalham tão duro quanto você.
— Absurdo, absurdo! Pois, veja a dificuldade de aplicar a tinta e ficar o dia inteiro diante do cavalete. É muito fácil par você falar, Hughie, mas eu lhe asseguro que há momentos em que a arte quase alcança a dignidade do trabalho manual. Mas você não deve tagarelar; estou muito ocupado. Fume um cigarro e fique quieto.

Depois de algum tempo, um servo entrou e disse a Trevor que o emoldurador queria falar com ele.
— Não fuja, Hughie — ele disse, enquanto saía — voltarei num instante.

O velho mendigo aproveitou da ausência de Trevor para descansar um pouco num banco de madeira que estava atrás dele. Ele parecia tão desgastado e miserável que Hughie não conseguiu evitar de sentir pena dele, e procurou em seus bolsos para ver quanto dinheiro tinha. Tudo que conseguiu encontrar foi um soberano e alguns trocados.

— Pobre coitado — ele pensou consigo — ele quer isto mais do que eu, mas isto representa ficar sem coche por duas semanas — e ele atravessou o ateliê e deslizou o soberano para a mão do mendigo.

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O velho homem se exaltou e um fugidio sorriso se delineou em seus lábios enrugados.
— Obrigado, senhor — ele disse — obrigado.

Então Trevor chegou e Hughie se foi, um pouco ruborizado por causa do que havia feito. Ele passou o dia com Laura, recebeu dela uma encantadora reprimenda por sua extravagância e teve de ir a pé para casa.

Naquela noite, ele adentrou o Palette Club por volta das onze horas, e encontrou Trevor sentado sozinho no fumatório bebendo hock e soda.

— Bem, Alan, você conseguiu acabar bem a pintura? — ele disse, enquanto acendia seu cigarro.
— Concluída e emoldurada, meu rapaz! — respondeu Trevor — e, falando no assunto, você conseguiu uma vitória. Aquele velho modelo que você viu o está idolatrando. Tive de contar a ele tudo sobre você — quem você é, onde vive, qual é sua renda, quais são suas pretensões...
— Caro, Alan — exclamou Hughie — provavelmente, quando chegar em casa, eu o encontrarei esperando por mim. Mas é claro que você está apenas brincando. Pobre velho miserável! Eu gostaria de poder fazer algo por ele. Acho terrível que qualquer um possa ser tão miserável. Eu tenho pilhas de roupas velhas em casa — você acha que ele gostaria de algumas delas? Pois as roupas dele estavam em frangalhos.
— Mas ele fica esplêndido neles — disse Trevor — Eu não o pintaria num fraque por nada neste mundo. O que você chama de trapos, eu chamo de romance. O que lhe parece pobreza, para mim é pitoresco. Contudo, eu direi a ele sobre sua oferta.
— Alan — Hughie disse com seriedade — vocês, pintores, são bastante desalmados.
— O coração dum artista está na cabeça dele — retrucou Trevor — e, além disto, nosso trabalho é mostrar o mundo como o vemos, não mudá-lo como o conhecemos. A chacun son metier. E agora me diga como está Laura. O velho modelo estava bastante interessado nela.
— Você não quer dizer que falou dela para ele? — disse Hughie.
— Claro que sim. Ele sabe tudo sobre o incansável coronel, a adorável Laura e sobre as dez mil libras.
— Você contou ao mendigo todos meus assuntos privados? — exclamou Hughie, muito inflamado e nervoso.
— Meu caro rapaz — disse Trevor, sorrindo — aquele velho mendigo, como você o chama, é um dos homens mais ricos da Europa. Ele poderia comprar Londres inteira amanhã sem entrar no vermelho no banco. Ele tem uma casa em cada capital, janta num prato de ouro e pode impedir a Rússia de ir à guerra quando quiser.

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— O que diabos que você quer dizer? — exclamou Hughie.
— O que estou dizendo — disse Trevor — O velho que você viu hoje no ateliê era o Barão Hausberg. Ele é um grande amigo meu, compra todas minhas pinturas e coisas do tipo, e me deu uma comissão um mês atrás para retratá-lo como um mendigo. Que voulez-vous? La fantaisie d’un millionaire! E devo dizer que ele ficou uma figura magnífica em seus trapos, ou talvez, devo dizer, em meus trapos; eles são um velho traje que comprei na Espanha.
— Barão Hausberg! — exclamou Hughie — Deus do Céu! Eu dei a ele um soberano! — e ele, a figura da decepção, afundou numa poltrona.
— Deu a ele um soberano! — gritou Trevor, e explodiu numa sonora gargalhada.
— Meu caro rapaz, você nunca mais o verá novamente. Son affaire c'est l'argent des autres.'
— Acho que você deveria ter me contado, Alan — disse Hughie, entristecido — e me impedido de fazer este papel de tolo.
— Bem, para começar, Hughie — disse Trevor — nunca passou pela minha cabeça que você sairia distribuindo esmolas deste modo descuidado. Eu posso entender se você beijasse um belo modelo, mas dar um soberano para um feio — por Deus, não! Aliás, o fato é que eu não estava recebendo ninguém em casa hoje; e quando você chegou, eu não sabia se Hausberg gostaria que o nome dele fosse mencionado. Você sabe, ele não estava paramentado de acordo.
— Ele deve achar que sou um desajeitado — disse Hughie.
— De modo algum. Ele estava com um ótimo humor depois que você partiu; ficou rindo sozinho e esfregando as velhas mãos enrugadas. Eu não conseguia descobrir o porquê de ele estar tão interessado em saber tudo sobre você; mas agora eu entendo. Ele investirá seu soberano para você, Hughie, e lhe pagará juros a cada seis meses, e terá uma baita história para contar depois do jantar.
— Sou um coitado sem sorte — resmungou Hughie — a melhor coisa que posso fazer é ir para a cama; e, meu caro Alan, você não deve contar isto para ninguém. Não ousarei em dar as caras no Row.
— Absurdo! Isto representa o mais alto crédito em seu espírito filantrópico, Hughie. E não fuja. Fume outro cigarro e você pode falar sobre Laura quanto quiser.
Contudo, Hughie não ficaria, mas caminhou para casa, sentindo-se muito infeliz e deixando Alan Trevor em meio a uma crise de riso.

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Na manhã seguinte, enquanto ele tomava café-da-manhã, o servo trouxe-lhe um cartão, no qual estava escrito: Monsieur Gustave Naudin, de la part de M. le Baron Hausberg.

— Suponho que ele tenha vindo para receber minhas desculpas — disse Hughie para si; e ele disse ao servo para trazer o visitante para cima.

Um velho cavalheiro com pincenê de ouro e cabelo grisalho entrou na sala e disse, com um ligeiro sotaque francês:
— Tenho a honra de me endereçar ao Monsieur Erskine?
Hughie aquiesceu.
— Venho da parte do Barão Hausberg — ele prosseguiu — o Barão...
— Eu imploro, senhor, que você leve a ele as minhas mais sinceras desculpas — gaguejou Hughie.
— O Barão — disse o velho cavalheiro, com um sorriso — incumbiu-me de trazer-lhe esta carta — e estendeu um envelope selado.

Por fora, estava escrito: "Um presente de casamento para Hugh Erskine e Laura Merton, de um velho mendigo” e dentro havia um cheque de dez mil libras.

Quando eles se casaram, Alan Trevor foi o padrinho e o Barão fez um discurso no café-da-manhã do casamento.

— Modelos milionários — comentou Alan — são bastante raros; mas, por Deus, milionários modelos ainda mais raros!

fonte: http://www.eastoftheweb.com/short-stories/UBooks/ModMil.shtml

***

Oscar Wilde (Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde) nasceu em Dublin em 16 de outubro de 1854, filho de Sir William Wilde e Jane. A mãe de Oscar, Lady Jane Francesca Wilde (1820-1896), foi uma poetisa e jornalista bem-sucedida. Ela escreveu versos patrióticos à Irlanda sob o pseudônimo “Speranza”. O pai de Oscar, Sir William Wilde (1815-1879), foi um importante cirurgião de ouvido e olhos, um renomado filantropista e dotado escritor que escreveu livros sobre arqueologia e folclore. Oscar tinha um irmão mais velho, Willie, e uma irmã mais nova, Isola Francesca, que morreu precocemente aos 10 anos.

Oscar Wilde estudou na Portora Royal School, Enniskillen, Condado de Fermanagh (1864-71), Trinity College, Dublin (1871-74) e Magdalen College, Oxford (1874-78). Em Oxford, ele se envolveu no movimento estético e se tornou um defensor de "a Arte pela Arte" (L'art pour l'art). Em Magdalen, ele ganhou, em 1878, o Prêmio Newdigate por seu poema Ravenna.

Depois que se graduou, ele se mudou para Chelsea, em Londres (1879), para estabelecer uma carreira literária. Em 1881, ele publicou sua primeira coletânea de poesia – “Poemas” recebeu críticas contraditórias. Ele trabalhou como crítico de arte (1881), palestrou nos Estados Unidos e Canadá (1882), e viveu em Paris (1883). Ele também palestrou na Inglaterra e Irlanda (1883-1884). Desde meados de 1880, ele contribuiu regularmente para a Pall Mall Gazette e Dramatic View.

Em 29 de maio, 1884, Oscar se casou com Constance Lloyd (falecida em 1898), filha de Horace Lloyd, rico conselheiro da rainha. Eles tiveram dois filhos, Cyril (1885) e Vyvyan (1886). Para sustentar sua família, Oscar aceitou o emprego de editor da revista Woman’s World, onde ele trabalhou de 1887 a 1889. Em 1888, ele publicou “O Príncipe Feliz e outras histórias”, contos de fadas escritos para seus dois filhos. Seu primeiro e único romance, “O Retrato de Dorian Gray”, foi publicado em 1891 e foi recebido negativamente. Isto se deveu muito ao tom homo-erótico do romance, que causou comoção entre os críticos vitorianos. Em 1891, Wilde se envolveu com Lord Alfred Douglas, apelidado "Bosie", que se tornou tanto o amor de sua vida quanto a causa de sua decadência. O casamento de Wilde acabou em 1893.

O maior talento de Wilde era para a dramaturgia, sua primeira peça, “O Leque de Lady Windermere”, estreou em fevereiro de 1892. Ele produziu uma série de comédias extremamente populares, incluindo “Uma Mulher sem Importância” (1893), “Um Marido Ideal” (1895), e “A Importância de ser severo” (1895). Estas peças foram muito aclamadas e estabeleceram Oscar como um dramaturgo.

Em abril de 1895, Oscar processou o pai de Bosie por difamação quando o Marquês de Queensberry o acusou de homossexualidade. O caso de Oscar foi mal-sucedido e ele próprio acabou preso e condenado por comportamento indecente. Foi condenado a dois anos de trabalho forçado pelo crime de sodomia. Durante este tempo na prisão, ele escreveu De Profundis, um monólogo dramático e autobiográfico, que foi endereçado a Bosie.

Ao ser libertado em 1897, ele escreveu “The Ballad of Reading Gaol”, relevando sua preocupação com as condições subumanas da prisão. Ele passou o resto da vida vagando pela Europa, ficando com amigos e vivendo em hotéis baratos. Ele morreu de meningite cerebral em 30 de novembro de 1900, sem um tostão, num hotel barato em Paris.

fonte: http://www.wilde-online.info/oscar-wilde-biography.htm

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