Joaquim Bispo
O
dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao emprego. Isto
numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à consulta do
psicanalista a Lisboa. Parti de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já
estava a chegar ao Aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado.
Perto das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a
pedir desculpa pelo atraso. Às sete e vinte, já desvairado, encostei o carro
como pude, a meio da 5 de Outubro, e apressei o passo para o consultório, que é
junto ao Saldanha.
A
consulta foi pouco produtiva. Não consegui soltar-me e verbalizar todas as
queixas que tenho da vida desde que a Noémia me deixou. Quando ia para pagar,
dei-me conta que tinha deixado a carteira no compartimento da porta do carro,
onde a meti ao pagar a portagem. Fiquei a dever a consulta.
Voltei
ao carro mas não o encontrei. No café em frente, confirmaram-me que tinha sido
rebocado. Na pressa, tinha-o posto num espaço reservado a deficientes.
De
repente, vi-me numa situação muito desconfortável: só tinha um porta-moedas com
4 euros e 40, eram nove da noite, estava a duzentos quilómetros de casa e não
tinha onde dormir. Enquanto pensava o que havia de fazer, comi uma sandes de
queijo com uma imperial e um café. Fiquei com 1 euro e 70.
Lembrei-me
dum amigo da tropa, o Marques, que, quando me encontra, insiste para o ir
visitar a Campo de Ourique. Liguei-lhe, mas, assim que começou a chamar,
acabou-se a bateria do telemóvel. Numa lista telefónica, por exclusão de
partes, encontrei a morada. Meti-me no Metro até ao Rato e depois fui a pé.
Quando dei com a rua Tomás da Anunciação, eram já quase onze da noite. Toquei,
toquei à campainha, mas ninguém respondeu. Se calhar tinham saído de fim-de-semana.
Voltei
para trás, meio acabrunhado. Sem saber para onde ir, segui a linha do eléctrico
por S. Bento até ao Chiado. Já não cirandava pela cidade desde os tempos de
tropa, há uns vinte e tal anos. Aqui e ali, vi pessoas a dormir enroladas em
cobertores e metidas em caixas de cartão. Um indivíduo de barba hirsuta veio
pedir-me «uma ajuda». Apeteceu-me dizer-lhe «hoje não pode ser», mas acabei por
lhe dar vinte e cinco cêntimos. Deambulei pela Baixa a ver as iluminações de
Natal. Era minha intenção continuar a andar até que amanhecesse mas, ao
contrário do que esperava, comecei a sentir-me cansado. Subi a Almirante Reis e
toquei em três pensões. Uma estava cheia e as outras duas não me aceitaram sem
identificação ou sem pagar adiantado.
Pela
primeira vez, não tinha onde dormir. Para piorar as coisas, começou a
chuviscar. Estive um bocado debaixo do toldo duma montra de móveis. Depois,
encostado às paredes, meti por uma transversal da Morais Soares e entrei na
porta dum prédio que estava encostada.
Fiquei
parado na penumbra, atento a todos os ruídos. Do alto das escadas ouvia-se, de
vez em quando, um ruído indefinido. Cheirava a mofo. Sentei-me nos degraus de
madeira e aos poucos a fadiga invadiu-me. Estive ali muito tempo de pernas
encolhidas, dobrado sobre os joelhos, com o rosto apoiado nas mãos abertas,
enquanto o frio se espalhava por todo o corpo. Apesar de estar cheio de sono,
só conseguia adormecer por curtos períodos, devido ao frio e à posição.
Apetecia esticar-me. A meio da noite, reclinei-me de lado nos degraus, mas as
arestas magoavam. Fui mudando amiúde de posição. Tiritava. Os pés estavam
gelados. Ansiava pela manhã.
De
repente, meio estremunhado, ouvi ruídos de passos a descer as escadas. Em
poucos segundos, estava confrontado com um cão grande a ladrar furiosamente e a
fazer avanços para me morder. O que me valeu foi o dono e a trela com que o
segurava. Envergonhado, saí.
Tinha
parado de chover. Subi a rua até ao alto da Penha de França. O casario
acinzentado começava a ganhar cor. Do lado de Xabregas, o céu tingia-se de
fortes tons de vermelho. Em breve, a enorme bola solar fez a sua entrada
triunfal. Há quanto tempo não via um nascer de sol! Fiquei um bocado a saborear
essa extraordinária visão e a sentir o corpo a deleitar-se com o pouco calor que
o sol transmitia.
Depois,
comecei a encaminhar-me para o parque de carros rebocados de Sete Rios. Na
Duque de Ávila, encontrei um café aberto. Perguntei quanto custava um galão.
–
Oitenta!
–
E se for setenta? – murmurei eu, de porta-moedas aberto.
O
homem mirou-me e começou a preparar o galão. Deve ter reparado na barba por
fazer, nos olhos remelados, na roupa amarrotada e empoeirada de roçar nas
escadas. Fui à casa de banho, aliviei a bexiga, lavei os olhos e passei as mãos
molhadas pelo cabelo. Daí a pouco, com o calor do galão a inundar-me o
estômago, sentia-me pronto para outra. Salvo seja! Espero que nunca mais volte
a não ter onde dormir. Nem imagino pelo que passa quem vive anos sem abrigo.
Ao
resgatar o carro, fiquei a saber que passei uma noite desagradável sem
necessidade: afinal, o parque de rebocados só fecha à meia-noite.
Foto daqui:
http://jn.sapo.pt/Storage/ng1030573.jpg
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