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domingo, 8 de fevereiro de 2009

O copo esmaltado

Volmar Camargo Junior

 

 

A cada ano, ele dorme menos. É muito raro que o sol se levante antes do velho. O ritual é o mesmo desde antes do Dilúvio, como ele mesmo sente prazer em repetir. Enquanto a água aquece, ceva o mate com o buraco no meio da erva, a bomba inclinada um pouco para a esquerda. A erva tem que ser moída grossa, amarga, porque não admite outra, dessas misturadas com açúcar. Não gosta de lavar a cuia; raspa bem a erva usada com uma colher, embrulha-a numa folha de jornal e joga fora. Quando a chaleira chia, segura-a pela alça, pressionando para baixo com a palma da mão, os dedos um pouco curvados, o que ele diz que é para a água não ferver. É meio assustador assisti-lo fazendo tudo isso no escuro, com a luz meio fantasmagórica vinda da chama azul da boca do fogão. Esse instrumento, o fogão a gás, o velho só aprendeu a usar por causa de um bendito copo de café.

 

Antes, a cozinha era quente o ano todo. O fogão a lenha estava sempre aceso, e não é um exagero dizer sempre, porque, pela manhã, o pai costumava acender os cavacos nas brasas que sobravam da noite anterior. A água para o mate estava sempre aquecida. Eu cresci à volta desse fogão. A mãe, evocando a sabedoria popular, dizia que “criança que brinca com fogo acaba mijando na cama”. Mas era para mim a coisa mais interessante do mundo até certa idade ver as coisas sendo consumidas naquele fogo.

 

Bem mais interessante era o que se cozinhava sobre aquela chapa de ferro. Não há como descrever o feijão feito assim, cozido muito lentamente. É certo que a mãe descobriu a panela de pressão, mas ainda assim, parece-me que não existe, e talvez não exista mesmo, coisa melhor do que comida feita devagar.

 

Eternamente ao lado desse fogão existia uma cadeira de vime, coberta com um pelego. Essa cadeira era, de modo geral, o lugar onde a mãe permanecia a maior parte das horas do dia. Aprendeu tarde a bordar, e descobriu nisso um prazer inconcebível. Acompanhava, bordando sentada naquela cadeira, o vagaroso cozimento das coisas que não exigiam mais de sua atenção que o olfato. Tinha uma alegria peculiar quando concluía seus trabalhos. Permanecia absorta, tocando com as pontas dos dedos lentamente as figuras bordadas, como se revisasse os pontos um a um.

 

A mãe tinha uma resistência ao sono de causar espanto, um tanto naturalmente, outro tanto devido ao hábito de tomar café. Ela gostava de passá-lo diretamente num copo de metal esmaltado. Tinha um coador que cabia perfeitamente nele, e não se adaptava à boca de nenhum bule. A marca de café que ela gostava muito, hoje nem vendem mais. Era diferente o sabor daquele café. O esmalte do copo já havia descascado em algumas partes, e era muito perceptível um gosto ferroso no meio do gosto do café.

 

Era engraçado, e nessa época eu tinha tempo para observar essas coisas, que algumas vezes a mãe ia se deitar alguns minutos antes da hora do velho levantar. Fosse hoje, eu teria entendido que o pai, dia após dia, tentava encontrá-la ainda acordada. Ela reconhecia cada rangido da cama, como eu também conhecia, e quando ele virava-se para a direita, sentava-se na cama em busca das chinelas, a mãe já estava deitada.

 

Uma noite eu consegui acordar antes do velho, e encontrar a mãe ainda em sua cadeira de vime, com o copo de café no canto da chapa. A cozinha era iluminada só pela luz do fogo vindo da portinhola do fogão. Até aquele momento, eu achei aquilo tudo muito, muito engraçado: era a primeira vez que tinha visto a mãe cochilando. Havia na cozinha um cheiro de café fervido, e quando cheguei mais perto dela, pé-por-pé, vi que o conteúdo do copo estava fervendo. Como a mãe sempre teve uns sentidos felinos, assim que uma das tábuas do soalho rangeu, num rompante, assustou-se e deu um pulo da cadeira. Com o solavanco, o copo de café fervente saltou da chapa do fogão por cima das pernas da mãe. Eu só lembro de eu pedindo desculpas, e a mãe gritando como eu nunca tinha ouvido, e o pai vindo pelo corredor fazendo tanto barulho que fiquei ainda mais assustado. Depois, eu lembro de muito pouca coisa além das cintadas que o pai desferia em mim, e de a mãe, chorando e mandando que ele parasse.

 

Não foi nada de muito grave com as pernas dela. Levantaram umas bolhas vermelhas, mas a minha avó recomendou lavar com sálvia e vinagre para que não arrebentassem. As cintadas que eu levei passaram, e no outro dia nem lembrava mais delas. Estava mais preocupado que a mãe fosse ficar doente, ou morrer.

 

            Na manhã seguinte, o velho apareceu em casa com o fogão a gás. Deitou o machado na cadeira de vime, pôs o pelego do lado de fora da porta, para onde se mudou uns dias depois uma gata que nos adotou, e demos o nome de Baia. No copo esmaltado o velho plantou uma muda de comigo-ninguém-pode. Daquele dia em diante, o café ficou proibido em casa. E até o dia em que a mãe morreu, e isso levou uns bons trinta anos, os dois – juntos – iam para a cama no mesmo horário, e acordavam – juntos – antes do sol nascer para tomar chimarrão.

 

            A velha se foi e fiquei eu. Não tem mais fogão a lenha – e isso nem caberia aqui em casa. Acordo todo dia cedinho pra tomar mate com o velho. Mas, uma vez ou outra, não livre de algum sentimento de culpa, uma sensação de que estou fazendo algo errado, tiro de seu esconderijo o copo esmaltado, que salvei de ser vaso de planta assim que o pai esqueceu-se dele. E o café, além do gosto de ferro, mesmo depois de tanto tempo, parece que guardou um pouquinho do gosto de terra.

 

 

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