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terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A Página dos Contos

Julio Cortázar
trad.: Henry Alfred Bugalho

Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à quinta; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo esboço dos personagens. Esta tarde, depois de escrever uma carta a seu mandatário e discutir com o mordomo uma questão de arrendamento, voltou ao livro na tranquilidade do estúdio, de frente ao parque dos carvalhos. Confortável em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o havia perturbado como uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma vez ou outra o terciopelo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca o venceu quase em seguida. Gozava do prazer quase perverso de se desgarrar, linha a linha, do que o rodeava e sentir, ao mesmo tempo, que sua cabeça descansava comodamente no terciopelo de alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que para mais além das vidraças dançava o ar do entardecer sobre os carvalhos. Palavra a palavra, absorto pela sórdida disputa entre os heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro no casebre do monte. Primeiro, entrava a mulher, receosa; agora, chegava o amante, a cara castigada pelo açoite de um galho. Admiravelmente, ela estalava o sangue com seus beijos, mas ele rechaçava as carícias, não havia vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e dentro latia a liberdade encolhida. Um ávido diálogo corria pelas páginas como um regato de serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até estas carícias que enredavam o corpo do amante como querendo retê-lo e dissuadi-lo, desenhando abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: Álibis, azares, possíveis erros. A partir desta hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse impiedoso se interrompia apenas para que uma mão acariciasse uma face. Começava a anoitecer.

Sem se encararem mais, atados rigidamente à tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia seguir pela trilha que ia ao norte. Desde a trilha oposta, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu também, parapeitando-se nas árvores e cercas, até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda que conduzia à casa. Os cachorros não deviam ladrar, e não ladraram. O mordomo não estaria a esta hora, e não estava. Subio os três degraus do alpendre e entrou. Através do sangue galopando em seus ouvidos lhe chegavam as palavras da mulher: Primeiro, uma sala azul, depois, um corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e então o punhal em mãos. A luz das vidraças, e alto respaldo duma poltrona de terciopelo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Extraído da obra "Final de Juego".
fonte: http://www4.loscuentos.net/cuentos/other/1/2/4/

***

Julio Cortázar
(Bruxelas, 1914 - Paris, 1984) Escritor argentino. Nascido em Bruxelas, filho de pais argentinos, aos quatro anos, Julio Cortázar se mudou com eles para a Argentina, para morar na província andina de Mendoza.

Depois de completar seus estudos primários, cursou magistério e letras e durante cinco anos foi professor rural. Posteriormente, foi para Buenos Aires e, em 1951, viajou a Paris com uma bolsa. Ao término dela, seu trabalho como tradutor da Unesco o permitiu permanecer definitivamente na capital francesa.

Nesta época, Julio Cortázar já havia publicado em Buenos Aires o livro de poemas “Presencia” com o pseudônimo de Julio Denis, o poema dramático “Los reyes" e a primeira de suas narrativas breves, "Bestiário", nas quais admite a profunda influência de Jorge Luis Borges.

A literatura de Cortázar parte do questionamento essencial, aproximando-se de reflexões existencialistas, em obras de marcado caráter experimental, que o tornam um dos maiores inovadores da língua e da narrativa em língua castelhana. Como em Borges, suas narrativas mergulham no fantástico, mesmo sem abandonar de todo a referência à realidade cotidiana, fato que faz com que suas obras sempre tenham uma dívida em aberto com o surrealismo.

Para Cortázar, a realidade imediata significa uma via de acesso a outros registros do real, onde a plenitude da vida alcança múltiplas formulações. É assim que sua narrativa constitui um questionamento permanente da razão e dos esquemas convencionais de pensamento.

O instinto, o azar, o gozo dos sentidos, o humor e o jogo terminam por se identificar com a escrita, que é, por sua vez, a formulação do existir no mundo. As rupturas de ordem cronológica e especial tiram o leitor de seu ponto de vista convencional, propondo-lhe diferentes possibilidades de participação, de modo que o ato de leitura é convocado a completar o universo narrativo.

Tais propostas alcançaram suas mais perfeitas expressões nos romances, especialmente em “Jogo da Amarelinha”, considerada uma das obras fundamentais da literatura em castelhano, e em seus contos, entre eles “Casa tomada” e “A baba do diabo”, ambos adaptados ao cinema, e “O perseguidor”, cujo protagonista evoca a figura do saxofonista negro Charlie Parker.

Rapidamente, Julio Cortázar se converteu numa das principais figuras do chamado "boom" da literatura hispano-americana e desfrutou de reconhecimento internacional. À sua sensibilidade artística somou-se sua preocupação social: Identificou-se com os povos marginalizados e esteve muito próximo dos movimentos de esquerda.

Neste sentido, a viagem a Cuba, em 1962, significou uma experiência decisiva em sua vida. Graças a sua conscientização política e social, em 1970 se deslocou ao Chile para assistir à cerimônia de posse como presidente de Salvador Allende e, mais tarde, foi a Nicarágua para apoiar o movimento sandinista. Como personagem público, interveio com firmeza em defesa dos direitos humanos e foi um dos promotores e membros mais ativos do Tribunal Russell.

Como parte deste compromisso, escreveu inúmeros artigos e livros, entre eles “Dossiê Chile: O livro negro”, sobre os excessos do regime do general Pinochet, e “Nicarágua, tão violentamente doce”, testemunho da luta sandinista contra a ditadura de Somoza, no qual está o conto "Apocalipse em Solentiname" e o poema "Notícia aos viajantes". Três anos antes de morrer, adotou a nacionalidade francesa, mas sem renunciar a argentina.

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