Dizia-me haver meses desde que abandonara seu passado: casa, família, emprego, tudo. Seu único desejo era que a estrada continuasse eterna à sua frente. Quando a encontrei, naquela rodovia interestadual, ela trazia apenas uma mochila às costas. Eu no carro, ela a pé: duas mulheres em busca de qualquer coisa que não tínhamos. Diminuí a velocidade do automóvel e a acompanhei. Tentei ser gentil:
– Segue para onde, colega?
– Sigo. Simplesmente, sigo.
– Esta estrada é bem longa... Quer carona?
– Quanto mais longa, melhor – fez uma pausa e contemplou a paisagem. – Obrigada, mas, continuo a pé. Quero sentir melhor os ares destas bandas.
– Certeza? A mochila não está pesada?
– Não tenho muita coisa aqui. Só trouxe o que realmente me faria falta da antiga vida. E ainda sobrou bastante espaço – disse, enquanto sacudia a bolsa.
Insisti no diálogo, até que se tornou uma conversa agradável. Em certo ponto, ela parou de andar e eu desci do carro. Acho que ela não confiava em mim, mas, como eu não era um homem, pelo menos não teve medo de conversar. Ficamos sentadas à beira da estrada, e ela começou a contar-me do porquê de estar naquela vida errante, do abandono do passado, da busca por estradas sem fim.
– A vida finge ser gentil conosco – dizia-me –, finge nos fazer felizes, até acreditarmos que o mundo está sempre sorrindo para nós.
– E não é assim que acontece? – perguntei.
– A vida é uma farsa! Quando achar que ela está rindo para você, cuidado, pois ela pode estar rindo de você. E, normalmente, é isso o que acontece. Foi desse jeito comigo.
– Também me sinto assim às vezes. Por isso estou na estrada de novo. Mas, pretendo voltar à minha vida. Abandonar tudo... Isso não é fácil... É quase loucura.
– Loucura é descobrir que esse tudo de que você fala não passa de um castelo de ilusões, um teatro de máscaras, uma comédia grega. E o pior é quando você descobre que é o palhaço da vez. Riem! Riem da sua cara sem piedade, sem se darem conta de estarem te matando, te fazendo menos que lixo! Isso é a realidade, querida! Esse é o meu tudo que abandonei.
– É... a vida nem sempre é como queremos – falei, reflexiva. – Mas, sempre há o que se fazer. Sempre há uma nova estrada para se seguir.
– E esta aqui é a minha! – disse, e então, se levantou.
– Mas, toda estrada, um dia, se acaba.
– Se esta se acabar, terão outras. E o que me resta de vida será pouco para percorrer todas estradas deste mundo.
Ajeitou a mochila às costas, como quem se prepara para recomeçar uma árdua trilha. Eu queria continuar a conversa.
– Será que não há nada por que valha a pena voltar? – perguntei, ao mesmo tempo questionando a ela e a mim mesma.
– Se quiser voltar para sua vida debochada, volte. Eu sigo por aqui, que meu mundo, agora, é o caminho por onde piso.
Eu estava curiosa. Arrisquei perguntar:
– Mas, o que, afinal, te aconteceu?
Ela baixou a cabeça e ficou contemplando os próprios pés por alguns instantes. Como demorava a se mover, resolvi me aproximar. Quando toquei seu ombro, ela desabou. Em reflexo, recuei, assustada, enquanto que ela abraçava a mochila sobre o peito e chorava compulsivamente.
Fiquei sem saber o que fazer. Pedi que se acalmasse, disse-lhe que estava tudo bem, que eu não mais a incomodaria. De repente, gritou:
– Cala a boca! Você não sabe de nada!
Levantou-se, e seu choro se misturou a uma explosão de ódio. Comecei a ficar com medo.
– Sabe por que riram de mim? – inquiriu-me, sem deixar que eu respondesse. – Um tombo! Tropecei no meu próprio pé e caí, como uma criancinha atrapalhada aprendendo a andar.
Diante da confissão, não consegui deixar de imaginar a cena. E o engraçado não era nem tanto o tombo em si, mas o fato de ela ter abandonado tudo por isso. Fugir por conta de um tombo? Comecei a achar que estava lidando com uma louca. Dei um sorriso torto, elevando apenas um dos cantos da boca, quase como uma careta de estranhamento – muito mais pela perplexidade em que me encontrava do que pela graça da situação.
– Isso! Seja mais um a rir de mim! E que tal rir disto aqui? – gritou e abriu sua mochila. O que tirou de lá me deixou ainda mais confusa e assustada.
– Meu Deus! – exclamei. – O que é isso?
– Ah, você não sabia deste detalhe? Assim como todos que riram de mim, você também não sabia que eu levava ele no meu colo. O meu bebê, meu filho!
Vi aquilo e senti nojo. Um corpo minúsculo, enrugado, a pele escura, como que cheia de hematomas, os pequeninos membros retorcidos. Se o que eu via já fora um bebê, naquele momento não passava de um feto mal formado em decomposição, talvez um bicho morto já apodrecendo.
– Foi um acidente! – começou a se explicar, enquanto ninava o que dizia ser seu filho. – Eu caí por cima do pobrezinho. Tão frágil... Tão pequeno... Eu o matei! – gritou. – Mas, agora, eu cuido bem de você, não é, meu anjinho – falava com carinho, olhando-o.
– Meu Deus! Você é louca... Louca... – eu falava, me enroscando nas palavras e recuando em direção ao carro.
– Você é só mais uma que ri de mim, sua vagabunda! Você e o resto do mundo! Nem aqui, no meio do nada, eu me livro da hipocrisia de vocês. Mas, eu estou cansada disso! Cansada! – berrou com tanta força que pude ver saliva saltando de sua boca.
Eu já estava na porta do carro quando ela enfiou a mão novamente na mochila. Tirou um revólver e apontou em minha direção. Sem saber ao certo como, já me encontrava abaixada atrás do volante tentando ligar o carro.
– Isso mesmo, vá embora! – ela gritava. – Volte para sua vidinha! Hoje, riem de mim, amanhã, será de você!
Assim que o carro funcionou, acelerei sem olhar o que havia pelo caminho. Imaginando que a mulher estava bem para trás, arrisquei levantar a cabeça. O carro já quase ia fora da estrada. Trouxe-o de volta e continuei acelerando. Quando olhei pelo retrovisor, ouvi o disparo.
A mulher caiu com seu filho ao colo. Dessa vez, teve cuidado para não cair sobre ele. E, dessa vez, ninguém riu.
Não tive coragem para voltar. Só fui parar quando o primeiro posto policial apareceu. Contei a história enquanto o choro me dominava. Depois de tudo, desisti de viajar em busca do que eu não tinha. Naquele momento, meu único conforto era saber que havia um lar ao qual eu podia retornar.
3 comentários:
Muito bem escrito, Carlinhos.
Me deu arrepios imaginar a louca ninando o filho morto!
Maristela S. Deves
Carlinhos,
li já faz um tempo, mas agora decidi comentar. Antes, achei forte, gostei muito, mas fiquei impressionada. E não é que outro dia, reparando a maneira como uma conhecida cuida da filha (como se não existisse mais nada na vida a não ser aquele pequeno ser), logo lembrei da sua história? Muito interessante e, apesar de surreal, mais real do que a gente pensa, se é que você me entende...
Parabéns!
Forte. Intenso. Excelente.
Quando comecei a ler, pensei que o final iria ser diferente. Já no meio do conto descamba a nova situação.
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