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sábado, 21 de março de 2009

Jogo da Memória

Marcia Szajnbok

Como dois vetores que se anulam, iam pela rua, mesma direção, sentido contrário. O encontro dos olhares não durou mais que a metade de um instante.


Ele: Puxa, há quanto tempo! (Nossa! Ela continua linda...).

Ela, sorrindo um pouco sem graça: É mesmo... (Meu deus! Quem é?).

Ele: Quantos anos faz que terminamos a escola? Uns vinte? (Não acredito... Ela não se lembra de mim?!).

Ela: Por aí... (Meu deus! Quem é?).

Ele: Me conta, você faz o quê da vida? (Me diga que está solteira... ou separada...).

Ela: Fiz jornalismo, mas não trabalho com isso... É uma área difícil, sabe? O mercado... blá-blá-blá... (Meu deus! Quem é?).

Ele: Pois é... Coisas do nosso país... Veja você, eu sou engenheiro... blá-blá-blá... (Não tem aliança no dedo, mas esse pessoal das humanas é meio diferente...).

Ela: blá-blá-blá... (Essa cara não é estranha… da escola… raio de memória que me deixa sempre de saia justa!).

Ele: blá-blá-blá... (Ela me dizia tanta coisa… Como pode ter esquecido?).

...

Ele, depois de um breve silêncio: E... você se casou? (Diga que não...).

Ela: Não… (Melhor omitir os detalhes…) E você?

Ele: Casei, descasei, no momento estou de volta ao mundo dos solteiros...

Ela sorri.

Ele continua: (A-ha... got you, baby!) Você ainda tem contato com alguém daquela época?

Ela: Não... mudei tanto de casa que ninguém mais deve ter me achado...

Ele: (Eu percebi...) Outro dia encontrei o Edu, lembra dele? Aqueles bailinhos de garagem, com luz negra e som de vitrola... A mãe dele sempre punha um monte de gelo na cuba-libre, assim ninguém ficava bêbado! (Não é possível que ela tenha esquecido aquele bailinho...).

Ela, rindo: Era mesmo uma delícia... (Edu, Edu... acho que tinha mesmo um Edu na minha classe...) .

Ele: Nossa! Todo mundo queria dançar igual ao Travolta!

Ela: Nos Embalos de Sábado à Noite... (Há quanto tempo não me lembrava disso? Eram bons mesmo aqueles bailes...).

Ele: Muito namoro começou naquela garagem, ao som dos Bee Gees... (Xeque mate!).

Ela, sem ter tempo de pensar, cantarolou: “Nobody gets too much heaven no more...”

Ele pôs as mãos nos ombros dela, puxou-a para perto, beijou-lhe de leve o rosto, depois os lábios.

...

Ele: Olha, eu preciso mesmo te dizer uma coisa, sabe? É que quando vi você se aproximando, parece até que voltei no tempo... Tudo bem, lá se foram vinte anos, ou mais... Tudo bem, éramos quase crianças, mas nunca esqueci daquele beijo que você me deu, naquele bailinho na casa do Edu... Nossa! E pensar que você ainda se lembra da música... “Too Much Heaven”, era isso mesmo.... Nesse tempo todo, tanta gente passou pela minha vida, mas você sempre esteve na minha cabeça... Te procurei muito, sabe? Mas ninguém tinha sua pista, parecia até que tinha evaporado... Eu não era santo, pisei mesmo na bola, eu sei... Mas, olha... A gente tinha o quê? Dezesseis, dezessete anos? Cabeça de vento, quanta bobagem se faz quando se pensa que é gente grande e não se passa de um menino metido a besta... Deve ter sido algum anjo que pôs você bem aqui no meu caminho hoje... Porque acordei pensando que não vou viver muito, sabe? Mas não queria morrer sem te dizer isso: aquele namoro não passou de umas semanas, mas... falando sério... nunca amei ninguém do jeito que amei você, Silvia.

Ela arqueou as sobrancelhas de modo que seu rosto ganhou um ar de interrogação: Silvia???

...

Do rubor à palidez foram segundos. Muito constrangido, ele encolheu os ombros, baixou os olhos e foi-se embora, tão rápido que ela nem pode ouvir seu pedido de desculpas pelo equívoco.

Ela ficou acompanhando com o olhar o vulto masculino que se afastava. (Que pena... Um moço tão bonito... Que grande imbecil deve ser essa Silvia!).

Segundos depois, estavam ambos diluídos na multidão que caminhava desordenada.

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