Maria de Fátima
- A como está o carapau?
- Dois mil réis, madama. - respondeu a peixeira e já ela ia andando
Ela andando e a vendedeira com as palavras dependuradas do grito, mais censura que rogo:
- Venha cá minha carinha de anjo…. Não gosta do meu carapau?
E ela seguindo, que sempre a deliciara ouvi-las naquele afã de fazer pela vida. E a mulher do carapau fresquinho arrematava impropérios na direcção da camisola muito branca que Maria do Carmo vestira ainda há pouco.
Maria do Carmo a olhar noutra banca uma chaputa de olho arregalado apesar de muito morta. E a vendedeira de carapau ainda a chama:
- Minha puta sem vergonha a desfazer no meu peixe. Badalhoca…
Maria do Carmo ri-se à socapa e apreça duas postas. Ela que nem sabe se dormiu ou simplesmente rebolou ainda uma e outra vez debaixo dele, por cima dele, ao lado dele na cama e no soalho e nem sabe mais senão que havia um bidé com suporte de ferro por detrás de um cortinado soprado pela brisa fria que vinha de uma greta da janela empenada. Ela comprando peixe para fazer tempo. Tempo de dizer em casa, simplesmente:
- Bom dia! Não consegui telefonar. Fiquei por lá.
Um costume de anos: dormir num hotel se demorava mais com uma consulta ou estava mau tempo para se fazer à estrada.
Nem se incomodaria a dizer ao marido onde dormira. Nem Xavier lho perguntaria. Mas para isso era preciso que chegasse à hora de outros dias semelhantes. Ao Xavier nem sequer lhe cheirariam os húmus dessa noite. Talvez sentisse o cheiro a peixe. Ou talvez nem ficasse perto dela o suficiente.
Maria do Carmo comprou duas postas de chaputa e recebeu uma nota húmida que esfregou na mão como se fosse outra a humidade que sentia. Sorriu-se dela mesma e meteu a nota na carteira. Olhou de longe a peixeira que agora apregoava carapau vivinho, minhas meninas. A mulher a chamar-lhe badalhoca e ela que nem lavada dos humores daquela noite …Sorriu de novo.
Tinha sido um acaso. Fora tomar café na salinha ao lado da sala de audiências. A sala muito cheia. Ela cheirou-lhe a alfazema. Voltou-se em busca desse odor e ele sorriu-lhe do meio da fragrância de perfume barato e passou-lhe um pacote de açúcar. E ela ficou adoçando o café num tremor esquecido que era sentir o desejo a percorrer-lhe o corpo. E ele num sussurro, percebendo:
- Poderemos jantar esta noite? - assim. Sem mais nem menos.
E a saia dela, uma saia comprida com duas pregas fundas, acusando interiores muito esquecidos. E ele sorrindo a esperar um sinal positivo:
- Aqui às sete. Está bem para si?
Ela deve ter-lhe acenado um sim antes de voltarem todos à sala de julgamentos.
Às sete estava lá. Esfusiante.
Não foi decerto ela quem disse que aquele hotel era um local discreto. Ela simplesmente terá acedido, toldada a capacidade de decidir o que quer que fosse. Era como estaria ela: numa bebedeira. Toda embrulhada no desejo. Um desejo desmesurado, intenso. Um desejo de sexo. Simplesmente. Assim. Sem mais nem menos.
Colocou o saco com o peixe no interior da pasta. Os papéis daquele processo ficariam a feder a chaputa fresca. Sorriu. Olhou o relógio. Sete e quarenta. Podia ir andando. Parara a fazer tempo na periferia. Em dez minutos estaria no seu bairro. Por baixo do casaco de fazenda castanha, a camisola branca impecável. Apesar da noite: ela nuazinha numa cama de um hotel de terceira. Uma noite inteira até ser madrugada.
- Às sete?
Foi o que ele perguntou, meio deitado sob o lençol de flanela com flores: azul desbotado. A tatuagem, mil novecentos e setenta e dois, sobrando do lençol . E ela rememorando o que tinha lido: Amor de mãe. Escrito por baixo. Não respondeu. Pegou na carteira e saiu do quarto. Nem sequer até mais ou tem um bom dia. Percebeu isso, quando descia a escada forrada com um linóleo às flores. E sorriu-se.
- Bom dia, Maria do Carmo. Ficaste por lá?
O marido saía de casa atrasado para uma reunião. Acenou-lhe a sair da garagem. Cruzaram-se os dois carros, lado a lado.
O duche limpa-lhe restos de saliva e cordões de esperma. Maria do Carmo sabe-os onde. Cobre com as mãos os locais da noite. Deixa escorrer a água e lava-os com sabonete de algas.
Sob o duche morno permanece, amaciado mas desperto, o desejo.
O duche não lhe limpa tudo.
Maria do Carmo grita por cima do soar da água.
- Às sete.
E ri-se alto enrolando o cabelo molhado na toalha a fazer um turbante.
(inédito)
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saudade
Se eu escrevesse hoje
Escreveria com o estilete macio de uma flor
Uma palavra
Uma só palavra que dissesse tudo
Se eu escrevesse
E eu não o faço, hoje
Repetiria a palavra
Uma, mil e muitas vezes
Escreveria sobre o vento que a levasse
Longe
Uma só palavra em letras do meu sangue
Se eu escrevesse hoje
Escreveria saudade
(e por baixo o teu nome)
2 comentários:
Hmmmm... as procuradoras da República andam com postas de chaputa nas pastas, sobre as pastas dos processos de corrupção, elas puras lavam-se com água, com lama sujam reputações, pois só elas, licenciadas em Direito, nasceram imaculadas. Bom Domingo.
Já tive a oportunidade de o dizer no teu Blog. Achei simplesmente perfeito. Saudade? Dos teus textos? Sempre!
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