Léo Borges
Uma aula de antropologia nunca me saiu da cabeça. Foi quando a professora comentou sobre como o preconceito procura brechas no famigerado “politicamente correto” para se perpetuar. Ela citara o exemplo de jovens alemães que espancavam tunisianos, turcos e marroquinos com a ideologia de que estavam sendo cívicos, isto é, inibindo a presença de estrangeiros que queriam tomar seus empregos. Preconceito? Que nada. Estavam apenas exercendo um ato soberano, digno de defesa da pátria.
O respaldo em questão é necessário para que não haja uma conduta violenta sem fundamento. Assim, tudo é justificado convenientemente e as raízes do preconceito não são abordadas e muito menos discutidas, mas ao contrário, mantidas e propagadas. As conseqüências dos atos advindos de uma cultura preconceituosa são normalmente discriminatórias e violentas, mas tanto o preconceito quanto a influência retórica que o suporta são amplos e sutis, delicados como a própria hipocrisia humana.
Nessa mesma aula a professora ainda comentou sobre um suposto episódio ocorrido entre neonazistas tupiniquins e europeus. A polícia havia descoberto uma conexão entre eles em que os tais novos nazistas brasileiros solicitavam aos congêneres da Europa verbas para que pudessem dar continuidade ao combate contra os negros, índios e homossexuais no Brasil. O bando europeu achou a idéia bastante interessante e apoiou o trabalho. Entretanto, não liberou o dinheiro por um entrave burocrático sinistro: na lista de execrados dos nazis do Velho Continente apareciam também os latino-americanos.
A biologia evolutiva especula que o ser humano é um animal naturalmente preconceituoso. Nesse sentido, a experiência cultural apenas encobre tal característica que, de acordo com essa tese, foi essencial para a nossa sobrevivência e evolução. O ranço discriminatório é impossível de ser extirpado, mas a maneira como lidamos com ele poderia ser abordada de outra forma, já que o modo superficial com que é tratado – principalmente em campanhas e projetos governamentais –, além de não eliminar o problema, o deixa latente, acuado em algum ponto da subconsciência esperando uma chance para emergir.
De acordo com a Anti-Defamation League (organização americana que combate ações preconceituosas) até os seis anos de idade praticamente metade das crianças já proferiu algum termo pejorativo em detrimento de alguém que não possuísse traços semelhantes aos seus. Sem cerimônia, algumas delas apontam diferenças e, não raro, achincalham parentes obesos ou pessoas que tenham algum detalhe que não lhes pareça comum. Diante disso, são admoestadas por seus pais, que, por sua vez, na luta para melhor se ajustarem a uma digna conduta social, compartilham um sentimento que forja uma noção de justiça – frágil ante sua essência –, que visa, com alguma nobreza, conter a sanha racista da qual somos portadores.
Mas foi conversando com conhecidos num bar que tirei algumas conclusões sobre a profundidade da coisa. Começou quando alguém comentou sobre o capítulo de uma novela. Um dos presentes, ao ser inquirido, simplesmente disse que não assistira porque não possuía televisão em casa. Bom, o espanto (meu inclusive) foi geral, pois em princípio pensamos que ele não tinha recursos para isso e houve um efêmero sentimento de dó em relação ao cara (primeiro conceito concebido sem esclarecimento). Mas logo se viu que ele não tinha TV porque não queria ter TV, e não por não ter dinheiro para comprar. De pena, o sentimento passou a ser de perplexidade em rota migratória para o inconformismo (segundo conceito concebido sem base fática). Como alguém poderia não querer ter um aparelho de TV hoje em dia?
Segundo uma sentença proferida recentemente pelo 2º Juizado Especial Cível de Campos, no Norte do Estado do Rio de Janeiro, é, realmente, impensável alguém ficar sem este tipo de aparelho em casa. Não é um eletrodoméstico supérfluo, como bem deixou claro o juiz na sentença do caso de um homem que reclamou da longa espera pelo conserto de sua TV. O magistrado disse que “o aparelho é considerado essencial aos lares brasileiros”, e citou ainda, como referência, o fato de o pobre indivíduo ficar sem poder assistir “jogos do Flamengo e o ’Big Brother Brasil’” (Processo nº: 2008.014.010008-2). Ou seja, o nosso camarada que desprezava o singelo eletrodoméstico contrariou, ainda por cima, uma decisão jurídica.
Ele argumentava que não tinha o aparelho por não gostar de ver televisão, de não gostar do que a TV exibe. E não queria gastar dinheiro para ver a barbárie nos telejornais ou as assépticas tramas novelísticas. Não queria ver seriados, programas de auditório e talk shows. Sua alegação era a de que filmes ele via no cinema; esportes ele ia ao estádio. Notícias? Lia jornal ou acessava a internet (cujo computador ficava em outro cômodo que não o seu quarto, conforme frisava). O sujeito começou, então, a ser visto como um eremita e muitos passaram, a partir daí, a boicotá-lo nas conversas, mesmo com provas irrefutáveis de que ele possuía plena condição de debater qualquer assunto. E esse era o seu diferencial: gostava de viajar, de ler, de interagir, se recusando a participar como pólo passivo - sentado, mudo e sonolento – diante de um ruidoso aparelho de TV.
Uma senhora comentou entusiasmada que achava "muito bacana" a atitude dele, mas que não tinha "coragem de fazer o mesmo". Aqui podemos observar como é interessante o termo "coragem" empregado por ela. É como se ficar sem TV fosse um vertiginoso salto em queda-livre sem a proteção de uma grade televisiva. Um outro freqüentador da roda comentou, posteriormente, que acreditava que esse “Sem-TV” era algum tipo de “metido a intelectual”, que queria passar a imagem de “alternativo”, mas que no fundo era, sim, “um anômalo”. Ele usou essa palavra com uma sinceridade aterradora. Seria anomalia uma pessoa não querer gastar uma grana num aparelho de TV? A máquina de consumo não iria gostar se muitas pessoas agissem como ele, pois algumas lojas e indústrias teriam de enxugar seus quadros e demitir. O Poder Judiciário também iria ter de rever suas decisões. Tudo por causa de um anômalo irresponsável que não quis comprar um televisor, aparelho este que já existe, inclusive, em modelos ultrafinos, de plasma ou LCD, podendo ser adquiridos em módicas prestações.
É. O tal sujeito que relutava em ter um aparelho de TV talvez fosse mesmo um anômalo, pedante, subversivo, indolente, desrespeitador, um elemento altamente nocivo à engrenagem capitalista, essa mesma que seduz as crianças com o Papai Noel de gorro vermelho, todo encasacado no verão de 42 graus brasileiro, exibindo os "pleisteichons" a preço de banana no canal de compras da TV por assinatura. Mas, o que mais me intrigou nisso tudo não foi o fato de termos entre nós um indivíduo que resistia em comprar um aparelho de televisão, mas como aquilo, discretamente, transtornou o comportamento dos demais. As pessoas nitidamente, nos encontros em que ele estava presente, não abordavam mais assuntos que pudessem criar algum possível embaraço (terceiro preconceito enraizado). Outros, que faziam a vez de defensores do Homem Sem-TV (como se ele precisasse de advogados), diziam que ele estava certo mesmo, que a programação da TV apenas cria na cabeça do espectador necessidades supérfluas, que prolifera injustiças e "idiotiza a massa". O cidadão em questão não desenvolvia o assunto quando estava no centro do debate. Ficava sem jeito, pois não queria ser um "anômalo", um bicho de circo dos horrores por não ter uma simples televisão. Queria apenas conversar. Desde que não fosse sobre o último capítulo de alguma novela, pois sobre isso ele não teria a mais vaga idéia.
3 comentários:
Longo, mas muito interessante!
Somente considerei o primeiro paragrafo desnecessario. Interessantissimo a otica de não ser mais escravo de um simples aparelho de TV. lendo o texto dá a aquele cocerinha no cerebro e coloca-nos a pensar em outros detalhes tão inuteis no dia-a-dia nosso. parabéns!
Meus parabéns amigo. Vc é e sempre será a pessoa bacana e iluminada. Isso se traz de berço, como se diz. Abraços, Parabéns e felicidade.
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