(Foto: Cícero R. C. Omena - https://www.flickr.com/photos/10015563@N03/12374279023/in/photostream/)
Tanto tempo se passou desde a última vez que nos vimos, e por todos esses anos você ficou tão presente em meu imaginário, que agora, ao te ver assim, de perto, a coisa flui superficial, sem emoção. E o que sinto – ou o que não sinto – diante da sua presença me angustia.
E você, como se sente
agora que tem notícias novamente sobre mim?
Deixa pra lá, melhor
não dizer nada.
Mas eu, sim, tenho
muita coisa pra te dizer... Pois é, as palavras não ditas, os
gestos que se perderam no ar, sentimentos que ficaram rondando meus
dias, a angústia de te desejar e não te ter, nem ao menos saber
onde você estava.
A vida prega peças,
não é?
Ah, por favor, não
diga que não sabe do que estou falando.
Não, não acho que
éramos imaturas para sabermos o que queríamos. Éramos duas
adolescentes, na verdade, e tudo que nos interessava eram as
descobertas – sobre o mundo, a vida, o amor... Aquela tarde me
marcou para sempre; nos marcou.
Quais eram nossas
chances?
Acho que a pergunta
mais correta seria: o que iríamos perder?
Nossa amizade seria
desfeita de qualquer forma, e você só tornou aquele instante, e
aquelas lembranças, mais pesadas e dolorosas. Claro que nos
conhecíamos desde muito pequenas, mas não dava pra fingir que um
sentimento como aquele fosse...
Falo apenas por mim?
Pode ser, mas não
posso ignorar aquilo que senti dentro daquele ambiente; dentro de
mim.
Percebo seu mal-estar
em abordar esse assunto, mas não podemos deixar que o passado fique
mal entendido; eu já não posso mais.
Ficava remoendo aquelas
memórias, até que um dia resolvi anotá-las num papel; depois, as
transcrevi para um arquivo de computador. Percebi, então, a cada vez
que acessava aquele documento, que aquela história se modificava,
ganhava novos contornos. Eu mudava uma palavra, alterava o sentido de
uma frase, acrescentava e tirava detalhes. Aquela narrativa nunca
ficou fechada em si, talvez porque a cada nova experiência de vida,
e a cada ano que passava, eu estivesse tendo minha visão de mundo
alterada, e via aquela lembrança com olhos mais maduros.
Se é uma obsessão?
Talvez. Mas já
percebeu que tudo aquilo que não resolvemos é o que mais persiste?
Porém, acho que pra
você aquele momento não significou tanto. Mas algum sentimento, por
mais ínfimo que seja, deve ter restado dentro de ti...
Por que insinuo isso?
Não é uma insinuação,
porque já não tenho mais esperanças sobre você.
O que me move, neste
instante, é a tentativa de tentar sobrepor essa parte da minha vida
que nunca se afastou devidamente, que nunca se transformou
completamente em uma parte do meu passado, como as lembranças devem
ser.
Você continua muito
bonita. Seu rosto permanece tão marcante como da última vez que te
vi. Os traços se acentuaram, te tornaram mais mulher, mas ainda
mantém o frescor da juventude.
Durante todos esses
anos eu olhava para sua foto, para aquela nossa foto que tiramos na
polaroide dois ou três dias antes de você partir, e passava horas
tentando te imaginar mais velha. Por mais que me esforçasse, nunca
consegui. Pra mim, você seria sempre aquela adolescente.
E sabe o que eu fiz uma
vez? Levei essa foto – levei, não, porque tinha medo que a
perdessem. Tirei uma cópia, colorida, e contratei o serviço de um
artista plástico que fazia retratos a partir de fotos, propondo à
ele um desafio: que ele te desenhasse como se tivesse uns trinta
anos. Ele falou que não era muito a dele, mas depois topou. E você
precisa ver, é um belo trabalho. Faz um tempo que não olho aquele
desenho, mas, pelo que lembro, os traços tem muito a ver com você
agora.
Doentio?
Se amar alguém do
jeito como te amei é doentio, então você pode incluir essa
definição no teu vocabulário.
Não te cobro nada.
Peço apenas sua atenção, só isso.
Tenho tantas dúvidas
sobre aquele momento, aquela tarde, sobre a tua forma de agir, que é
bem possível nunca chegarmos a um consenso sobre aqueles poucos
minutos em que estivemos juntas naquele quarto.
Quando subimos as
escadas e entramos no quarto – havia algo de importante antes para
ser rememorado? –, logo percebi que ali, aquela ocasião, seria o
momento certo para expor de uma vez o que sentia por você já havia
algum tempo.
Fechei a porta, como
sempre fazia quando estávamos juntas – mas, desta vez, tranquei-a
com a chave, ante a urgência do momento – e, ao me virar, te vi
deitada sobre minha cama, brincando com uma maçã que você tinha
trazido da geladeira. Ao invés de cravar-lhe os dentes – era sua
fruta preferida desde bem pequena, tenho certeza –, você,
maliciosamente, dava leves estalinhos na casca rija.
Eu era mera espectadora
daquele ritual até você voltar os olhos pra mim, sensuais – sim,
você já sabia ser sensual, o que pude comprovar quando te vi alguns
dias atrás –, e pressionar os lábios com força na fruta,
beijando-a com gosto – o que me pergunto, desde então, é se você
realmente me desejava naquele momento ou estava apenas brincando com
meus sentimentos.
Lembro uma vez, alguns
anos antes, quando ainda éramos muito meninas e extremamente puras,
que brincamos com ameixas para aprendermos a beijar(!) os meninos da
nossa classe. Éramos inocentes, não?
Então fui até a cama
com o coração disparado, sentidos em alerta, alegria quase
incontida diante dos sinais de reciprocidade do amor até então
oculto. Deitei devagar, sem saber se era sonho ou realidade. Você se
ajeitou pra mais perto de mim e me ofereceu a outra parte da maçã –
o que você pensava naquele momento?
Via seus olhos tão de
perto, e eles me fitavam com tal insistência, que tive de fechar os
meus, e, nesse instante, entrei quase que em uma sintonia astral. Não
havia mais nada a minha volta – a nossas voltas. Todas as
sensações, os sentidos, a vida, enfim, se resumia unicamente àquele
quarto... àquela cama... a nós.
Sem saber ao certo como
aconteceu, a maçã escorregou da tua mão – suponho. Foi isso
mesmo? – e nossas bocas se encostaram, num ato rápido e sutil.
Naqueles segundos, o calor tomou conta do meu corpo, e de repente
parecia que eu sabia tudo que tinha de fazer. Sem pensar, encostei
minha mão num dos teus seios – pequeno, ainda –, e só então
você reagiu. Saltou para o lado da cama – quando abri os olhos –
e correu em direção a porta trancada. Mesmo com a chave na
fechadura, você parecia desesperada, como se estivesse em perigo
iminente – o que você pensou de mim?
Observei aquela cena
com perplexidade, sem saber o que fazer. Você fugiu daquele quarto,
enfim, e seus passos na escada de madeira ecoavam como verdadeiras
marteladas ferindo minha consciência. Poderia descrever aqui tudo
que pensei e fiz depois de alguns minutos – ou horas? – após o
choque que tive com o teu comportamento, porém acredito que isso não
tenha interesse pra você – tem?
No dia seguinte, quando
me recuperei um pouco do baque, e havia chegado a conclusão de que
eu fora a culpada pelo que aconteceu, resolvi ir até a tua casa
pedir perdão. Foi aí que me vi entrando em uma espiral direito para
um poço fundo e escuro. Você não vivia mais lá, havia se mudado
com a família ainda pela manhã, quando eu estava deitada na minha
cama pensando em como resolver a nossa situação – você pode
imaginar como me senti?
Por um tempo vivi
culpada todos os dias da minha vida, imaginando que eu era a
causadora do teu desaparecimento do lugar onde nascera. Por ironia do
destino fiquei sabendo – não me lembro quem me contou – que teu
pai era perseguido político, e pude concluir que a tua fuga – a
segunda em menos de um dia – não se devia ao que aconteceu naquele
quarto. Quando digo aquele quarto, e não meu quarto, é porque,
depois da tua rejeição naquele local, ele deixou de fazer parte de
mim, e eu, dele. No pouco tempo que ainda o utilizei antes da minha
família também se mudar, nada me fazia sentido – mas isso lhe
interessa?
…
Prefiro tuas negações
ao silêncio.
…
Teu beijo acaba de me
dar a resposta que precisava.
Tenho de ir. Meu marido
e meus filhos estão me esperando.
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