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domingo, 9 de novembro de 2014

PAIXÃO



Tanto tempo se passou desde a última vez que nos vimos, e por todos esses anos você ficou tão presente em meu imaginário, que agora, ao te ver assim, de perto, a coisa flui superficial, sem emoção. E o que sinto – ou o que não sinto – diante da sua presença me angustia.

E você, como se sente agora que tem notícias novamente sobre mim?

Deixa pra lá, melhor não dizer nada.

Mas eu, sim, tenho muita coisa pra te dizer... Pois é, as palavras não ditas, os gestos que se perderam no ar, sentimentos que ficaram rondando meus dias, a angústia de te desejar e não te ter, nem ao menos saber onde você estava.

A vida prega peças, não é?

Ah, por favor, não diga que não sabe do que estou falando.

Não, não acho que éramos imaturas para sabermos o que queríamos. Éramos duas adolescentes, na verdade, e tudo que nos interessava eram as descobertas – sobre o mundo, a vida, o amor... Aquela tarde me marcou para sempre; nos marcou.

Quais eram nossas chances?

Acho que a pergunta mais correta seria: o que iríamos perder?

Nossa amizade seria desfeita de qualquer forma, e você só tornou aquele instante, e aquelas lembranças, mais pesadas e dolorosas. Claro que nos conhecíamos desde muito pequenas, mas não dava pra fingir que um sentimento como aquele fosse...

Falo apenas por mim?

Pode ser, mas não posso ignorar aquilo que senti dentro daquele ambiente; dentro de mim.

Percebo seu mal-estar em abordar esse assunto, mas não podemos deixar que o passado fique mal entendido; eu já não posso mais.

Ficava remoendo aquelas memórias, até que um dia resolvi anotá-las num papel; depois, as transcrevi para um arquivo de computador. Percebi, então, a cada vez que acessava aquele documento, que aquela história se modificava, ganhava novos contornos. Eu mudava uma palavra, alterava o sentido de uma frase, acrescentava e tirava detalhes. Aquela narrativa nunca ficou fechada em si, talvez porque a cada nova experiência de vida, e a cada ano que passava, eu estivesse tendo minha visão de mundo alterada, e via aquela lembrança com olhos mais maduros.

Se é uma obsessão?

Talvez. Mas já percebeu que tudo aquilo que não resolvemos é o que mais persiste?

Porém, acho que pra você aquele momento não significou tanto. Mas algum sentimento, por mais ínfimo que seja, deve ter restado dentro de ti...

Por que insinuo isso?

Não é uma insinuação, porque já não tenho mais esperanças sobre você.

O que me move, neste instante, é a tentativa de tentar sobrepor essa parte da minha vida que nunca se afastou devidamente, que nunca se transformou completamente em uma parte do meu passado, como as lembranças devem ser.

Você continua muito bonita. Seu rosto permanece tão marcante como da última vez que te vi. Os traços se acentuaram, te tornaram mais mulher, mas ainda mantém o frescor da juventude.

Durante todos esses anos eu olhava para sua foto, para aquela nossa foto que tiramos na polaroide dois ou três dias antes de você partir, e passava horas tentando te imaginar mais velha. Por mais que me esforçasse, nunca consegui. Pra mim, você seria sempre aquela adolescente.

E sabe o que eu fiz uma vez? Levei essa foto – levei, não, porque tinha medo que a perdessem. Tirei uma cópia, colorida, e contratei o serviço de um artista plástico que fazia retratos a partir de fotos, propondo à ele um desafio: que ele te desenhasse como se tivesse uns trinta anos. Ele falou que não era muito a dele, mas depois topou. E você precisa ver, é um belo trabalho. Faz um tempo que não olho aquele desenho, mas, pelo que lembro, os traços tem muito a ver com você agora.

Doentio?

Se amar alguém do jeito como te amei é doentio, então você pode incluir essa definição no teu vocabulário.

Não te cobro nada. Peço apenas sua atenção, só isso.

Tenho tantas dúvidas sobre aquele momento, aquela tarde, sobre a tua forma de agir, que é bem possível nunca chegarmos a um consenso sobre aqueles poucos minutos em que estivemos juntas naquele quarto.

Quando subimos as escadas e entramos no quarto – havia algo de importante antes para ser rememorado? –, logo percebi que ali, aquela ocasião, seria o momento certo para expor de uma vez o que sentia por você já havia algum tempo.

Fechei a porta, como sempre fazia quando estávamos juntas – mas, desta vez, tranquei-a com a chave, ante a urgência do momento – e, ao me virar, te vi deitada sobre minha cama, brincando com uma maçã que você tinha trazido da geladeira. Ao invés de cravar-lhe os dentes – era sua fruta preferida desde bem pequena, tenho certeza –, você, maliciosamente, dava leves estalinhos na casca rija.

Eu era mera espectadora daquele ritual até você voltar os olhos pra mim, sensuais – sim, você já sabia ser sensual, o que pude comprovar quando te vi alguns dias atrás –, e pressionar os lábios com força na fruta, beijando-a com gosto – o que me pergunto, desde então, é se você realmente me desejava naquele momento ou estava apenas brincando com meus sentimentos.

Lembro uma vez, alguns anos antes, quando ainda éramos muito meninas e extremamente puras, que brincamos com ameixas para aprendermos a beijar(!) os meninos da nossa classe. Éramos inocentes, não?

Então fui até a cama com o coração disparado, sentidos em alerta, alegria quase incontida diante dos sinais de reciprocidade do amor até então oculto. Deitei devagar, sem saber se era sonho ou realidade. Você se ajeitou pra mais perto de mim e me ofereceu a outra parte da maçã – o que você pensava naquele momento?

Via seus olhos tão de perto, e eles me fitavam com tal insistência, que tive de fechar os meus, e, nesse instante, entrei quase que em uma sintonia astral. Não havia mais nada a minha volta – a nossas voltas. Todas as sensações, os sentidos, a vida, enfim, se resumia unicamente àquele quarto... àquela cama... a nós.

Sem saber ao certo como aconteceu, a maçã escorregou da tua mão – suponho. Foi isso mesmo? – e nossas bocas se encostaram, num ato rápido e sutil. Naqueles segundos, o calor tomou conta do meu corpo, e de repente parecia que eu sabia tudo que tinha de fazer. Sem pensar, encostei minha mão num dos teus seios – pequeno, ainda –, e só então você reagiu. Saltou para o lado da cama – quando abri os olhos – e correu em direção a porta trancada. Mesmo com a chave na fechadura, você parecia desesperada, como se estivesse em perigo iminente – o que você pensou de mim?

Observei aquela cena com perplexidade, sem saber o que fazer. Você fugiu daquele quarto, enfim, e seus passos na escada de madeira ecoavam como verdadeiras marteladas ferindo minha consciência. Poderia descrever aqui tudo que pensei e fiz depois de alguns minutos – ou horas? – após o choque que tive com o teu comportamento, porém acredito que isso não tenha interesse pra você – tem?

No dia seguinte, quando me recuperei um pouco do baque, e havia chegado a conclusão de que eu fora a culpada pelo que aconteceu, resolvi ir até a tua casa pedir perdão. Foi aí que me vi entrando em uma espiral direito para um poço fundo e escuro. Você não vivia mais lá, havia se mudado com a família ainda pela manhã, quando eu estava deitada na minha cama pensando em como resolver a nossa situação – você pode imaginar como me senti?

Por um tempo vivi culpada todos os dias da minha vida, imaginando que eu era a causadora do teu desaparecimento do lugar onde nascera. Por ironia do destino fiquei sabendo – não me lembro quem me contou – que teu pai era perseguido político, e pude concluir que a tua fuga – a segunda em menos de um dia – não se devia ao que aconteceu naquele quarto. Quando digo aquele quarto, e não meu quarto, é porque, depois da tua rejeição naquele local, ele deixou de fazer parte de mim, e eu, dele. No pouco tempo que ainda o utilizei antes da minha família também se mudar, nada me fazia sentido – mas isso lhe interessa?


Prefiro tuas negações ao silêncio.


Teu beijo acaba de me dar a resposta que precisava.

Tenho de ir. Meu marido e meus filhos estão me esperando.

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