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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

História para adormecer

 



— Sabes de quem me lembrei há dias, Mami? — A mulher está sentada na borda de um leito e fala para a idosa acamada que a ouve de olhar alheado. — Do Gola. Lembras-te, Mami? Acho que tu gostavas dele.

A voz da mulher deve ter evocado alguma recordação importante, porque o olhar da idosa parece ganhar algum brilho.

— Era um preto que tinha vindo de Angola com o patrão, com a descolonização. Exprimia-se mal e acho que também tinha um atraso. Lembro-me de brincar com ele quando era pequena. Ele trazia-me seixos e fazia construções com pauzinhos, para me agradar. Vivia numa quinta para o lado dos Arcos, mas aparecia na nossa muitas vezes. A partir de certa altura, passou a andar esfarrapado e pedia comida. Tu davas-lhes pão e queijo, mas ele tinha de andar à fruta, para se aguentar. Acho que foi porque o patrão morreu e ninguém queria saber dele, não foi, Mami?

A mulher vai falando, mas não parece esperar resposta da velha.

— É engraçado como recuperei estas memórias, que estavam completamente apagadas. Nunca mais me tinha lembrado dele. Estava tudo apagado. Foi há tempos, quando a televisão noticiou que houve um grupo grande de palestinianos que conseguiu escapar do cercado de Gaza e atacou e matou quantos israelitas encontrou. Mais de mil e quinhentos. Não me lembrei logo dele; só senti uma inquietação difusa, estranha. Porquê, se estamos a milhares de quilómetros? Só me lembrei porquê, quando anunciaram, logo depois, que Israel tinha cortado a luz e a água aos habitantes de Gaza. Talvez para os derrotar pela sede. Então, um clarão repentino atingiu-me com dezenas de imagens do Gola.

O olhar da velha voltou a ficar alheado. Dá a ideia de que não sabe nem lhe interessa o que a mais nova diz, que é filha, possivelmente.

— Agora tenho 52; na altura devia ter uns 14. O pai tinha morrido uns dois anos antes e eu, no verão, andava à solta por toda a quinta, pelas bouças, pela serra, sem peias, sem constrangimentos, com poucos tabus. Uma autêntica selvagem. A minha sexualidade começava a despertar. Lembro-me que um dos meus prazeres era observar os garranos a pastar na serra, na sua nudez imaculada, sem pudores. O Gola aparecia de vez em quando, ainda me trazia coisas, mas comecei a notar uma alteração de atitude para comigo. Parecia mais tímido, mas olhava-me com um olhar mais intenso, tocava-me a despropósito e, várias vezes, percebi que se escondia nas moitas a espiar-me. Nessa altura ele já andava maltrapilho e dava bem para perceber que, por baixo da roupa, andava por ali um pénis, “ao badalão”. Às vezes, a meia-haste. Foi aí que comecei a ganhar consciência do poder do meu corpo. Pelo menos, sobre ele. Mas não estava a achar piada. Tinha algum medo de que se entusiasmasse mesmo e me obrigasse a alguma coisa. Ele devia ter uns 60, mas ainda era possante.

A mulher faz uma pausa, atenta melhor no rosto da idosa, mas, claramente, a anciã parece longe dali. Ainda assim, espicaça-a.

— Eu acho que também davas por isso. E que era mesmo a presença dele que não te deixava afundar, depois da morte do pai. Que o facto de ser evidente a presença de um pénis, ainda que não te passasse pela cabeça usá-lo, te dava ânimo e te levava a ajudá-lo com comida. E a acarinhá-lo, como a solteira que se derrete a pegar num bebé-homem. Longe de mim sugerir que o querias sexualmente, Mami, não! Acho que era só essa coisa inspiradora de saber um homem por perto.

Os olhos da velha parecem nublar-se ligeiramente, enquanto o sobrolho descai.

— Então, passou-me uma ideia perversa pela cabeça: testá-lo a ele, enquanto homem, e a mim, enquanto mulher em formação. Eu conhecia o corpo dos meus colegas, já tinha feito uns jogos de toques de corpo, mas como funcionaria um homem adulto, sem as timidezes de adolescente? E, pensei eu, nessa investigação, podia aperfeiçoar as poucas técnicas de sedução que conhecia. A genialidade da ideia é que iria fazer todos os testes em segurança.

Agora a mulher olha para o teto, a evocar lembranças, esboça um sorriso largo, ao recordar como conseguira convencer o velho negro a entrar num abrigo de pastores da serra e a trancá-lo lá.

— Havia na serra um cortelho ou cardenha, em bom estado, com uma tranca exterior. Meti lá dentro uma quantidade de fetos, para ele dormir, e improvisei mais duas trancas. Depois foi só propor-lhe uma espécie de jogo sensual, a que ele, ingenuamente, acedeu. Quando deu por ela, estava trancado na cardenha, toda de pedra, de lado e por cima, só com umas fisgas na porta para espreitar.

A velha, claramente, mostra um fisionomia confrangida. Se é que percebe, não espera coisa boa.

— Fui-me lembrando de tudo aos poucos. Esta memória, do dia em que o tranquei na serra, veio-me, ao assistir a uma série de bombardeamentos a edifícios de Gaza e ver os montes de escombros resultantes. Pareciam muitas cardenhas juntas. A salvo de reações dele, encetei todo o tipo de jogos e posições sensuais. Às vezes, não se continha e masturbava-se, dava para perceber. Ao longo das semanas, testei-lhe o entusiasmo com mais ou menos perna à mostra, com mais ou menos mama, de perfil, de frente, de trás. Sabes o que ele apreciava especialmente, Mami? Quando eu me dobrava, de rabo voltado para ele.

Esta evocação faz soltar uma pequena risada à mulher, enquanto a humidade nos olhos da velha ameaça gerar uma lágrima.

— Estas investigações práticas foram-me dando autoconfiança, como mulher, mas, aos poucos, começaram a desinteressar-me. Uma vez, estive três dias sem ir à serra. Lembrei-me disso quando se começou há pouco a falar de fome em Gaza, e mostravam mulheres palestinianas desesperadas a levantar as mãos ao céu. Quando voltei, ouviam-se os berros de longe. Felizmente, não havia vivalma por quilómetros em redor. Comeu o pão e o queijo num instante. E bebeu a garrafa de litro de água, toda. Depois, compensei-o. Sentei-me de pernas abertas para ele e, aos poucos, fui puxando o vestido, até se verem as cuecas. A respiração apressada dele ouvia-se cá fora. Então, fui-me acariciando por cima da roupa e, não tardou, ouvi-lhe o orgasmo. Potente, a avaliar pelo grito. Isso deu-me ideias.

Duas lágrimas tinham rolado por cada face da idosa, mas a mais nova nem repara.

— No dia seguinte, resolvi testar-lhe a resistência total. Sentei-me da mesma maneira, fui insinuando que me masturbava e, a certo momento, afastei a roupa para o lado. Foi instantâneo, com um urro imenso. Mas a ideia era saber até onde ele conseguia levar aquele feito masculino. Três. Não mais de três vezes, Mami. Com intervalos de poucos minutos, mas cada vez mais demorados. Quando eu esperava conseguir um quarto estertor, comecei foi a ouvir um choro. Baixinho, mas um choro. Nem a minha rosa, exposta no seu esplendor carnal, lhe resgatou o ânimo. As provas estavam feitas. Deixei-lhe uma dose extra de pão e fruta e fui-me embora.

A mulher faz uma pausa na narrativa. Baixa um pouco a cabeça, pensativa.

— Em vez de me sentir realizada e poderosa, fiquei desapontada. Na minha ingenuidade, ter percebido que o Gola não aguentava mais do que três orgasmos deixou-me sorumbática, ressentida mesmo. Resolvi não voltar mais à serra. A situação tinha perdido a piada. As vezes que tu perguntaste por ele… Lembrei-me disto ontem mesmo, quando noticiaram que já se contavam mais de 120.000 mortos por bombardeamentos em Gaza, e a caminho dos milhares por fome e sede. Hoje alguém comentou que, mesmo assim, ainda não é desta que conseguem reduzi-los a menos de 30.000, para os acantonarem numa reserva murada no deserto, solução que resultou muito bem com os índios.

A mulher terminara a narrativa. Limpa os rastos de lágrimas no rosto da idosa e acaricia-lhe os cabelos, depois compõe-lhe os lençóis no peito, levanta-lhe a cabeça, retira-lhe a almofada e aplica-lha com força na boca entreaberta e desdentada.

— Dorme bem, Mami!

Joaquim Bispo

*

Imagem: Cardenha

Ermelo, Soajo.

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