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domingo, 16 de novembro de 2014

Empatia

Jesuína não para de me olhar. Ela vigia os meus passos, marca território. O quintal é dela. Cada palmo de terra aplainada, cada minhoca que ela enxerga e come; é tudo dela. É um olhar ruim, sempre ruim. Não demora ela arrepia as penas e bate as asas vigorosamente, tentando me enxotar daqui. Uma criatura irritadiça e antipática. Dessas que são assim e pronto, não mudam.
Agora, ela está de perfil. Para quem não a conhece, parece apenas um desprezo ensaiado, uma sondagem de esguelha. Não é. O que ela está fazendo é se exibir, me mostrando o bico adunco. Para que eu saiba quanta dor ela é capaz de me causar. Para me dizer que não prossiga.
Preciso vencer o medo e cruzar o quintal até o galinheiro. Ignorar o movimento agressivo. A bípede levanta cada perna no ar com lentidão e depois a mantém suspensa no ar por alguns segundos, antes de tocar o solo. Como um soldado marchando num desfile. É o que ela é: um soldado do mal. Desses que cometem atrocidades por prazer, e não por obediência ou disciplina. 
E Jesuína tem adeptos. Se eu não me apressar, ela logo convocará Geralda, Cícera, Teresa, e outras tantas recrutadas 
no caminho. Prontas a segui-la e a brigar por ela com a estupidez das turbas que se enfurecem por qualquer motivo que lhes determine o líder. Atrás delas, excitado pelas bundas de plumas empinadas, Julião, o galo velho que já faz tempo não acorda o dia. Bobo como qualquer macho na presença de um traseiro.
Faltam alguns passos. Poucos. E a porta do galinheiro me protegerá da tropa bicuda, das garras cheias de micróbios. Não tenho coragem de enxotá-las. Tenho dó. Um dó que se mistura ao medo, é verdade, mas que não deixa de ser dó. Viver ao ar livre, sob sol e chuva, ou empoleirada num pau; comer milho cru e minhocas; ter asas que não voam para longe. Pior que isso: ser morte certa em panelas fumegantes. 
Quem não seria como Jesuína? Mas ter motivo não é ter razão. E não vai ser em mim que ela e suas seguidoras vão descontar a raiva e a frustração e a impotência de serem galinhas. 
Eu tenho que me controlar. Até por quê, o meu pavor tem nome. Remorso. Porque eu sei o que vou fazer no galinheiro. Elas sabem o que eu vou fazer no galinheiro. Não é mesmo possível nenhuma simpatia entre nós. A cesta no meu braço condena as minhas intenções. Elas sabem que vou sequestrar seus filhos, que vou encher a cesta com muitos ovos. Sabem que foram expulsas do galinheiro para que eu possa ladroar à vontade. E que voltarão para um ninho vazio. 
Eu sou o inimigo. Contra mim, toda a artilharia. A fúria com que bicam meus pés e minhas pernas até me causar dor intensa. Dor que, em seguida, sou eu quem lhes causa mais intensamente.
Não é uma troca justa. Nenhuma troca é. Mas, apesar da raiva, e da razão que eu sempre penso ter, acabo deixando que machuquem as minhas carnes. Eu também preciso sofrer. Sentir remorso. Essa coisa que aceita castigo, mas não recua da intenção. Jesuína é meu castigo. Ela me sangra além da pele.


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


5 comentários:

coisa bonita de se ler, Cinthia
ternurenta
e para quem teve assim galinheiro e sabe como é, bate uma saudade

Este texto desconcerta, a galinha é chata e má, simboliza os animais que matamos para comer, para deixar enjaulados para exibição, etc.No entanto a dona se deixa bicar, precisa sofrer um pouco porque sente na carne a nossa crueldade para com eles.A maneira com que Cinthia vai nos conduzindo por este mundo de raiva e culpa, impotência e certeza que vamos continuar a explorá-los, fingindo que os animais são respeitados como toda a natureza.Ainda continuo a sentir uma dor funda no peito, que você cara escritora, com seu talento me provocou.Bendita!

Obrigada Fátima e obrigada Anônimo!

Cínthia, parabéns pelo texto. Animais bem humanos - Julião, "bobo como qualquer macho na presença de um traseiro"... e, como animal urbano, imagino-me entrando num galinheiro...

Muito obrigada, Fabio, pela honra da visita e do comentário!

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