Joaquim Bispo
Esta
história tem dois atores centrais, em dois tempos distintos, em contexto de
greve, numa empresa de charcutaria, mais concretamente a Salgados, Fumados e
Enchidos, SA.
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
No princípio da década de 80, a contestação sindical à política da empresa agudizou-se fortemente. Os sindicatos mais fortes — o que representava os cortadores e o dos salsicheiros — reivindicavam salários que repusessem o poder de compra que a inflação tinha consumido.
A
situação de greve é sempre delicada. Os sindicatos tentam que os trabalhadores
funcionem como um bloco unido, um “nós”, para que a paralisação seja o mais
extensa possível e a greve obtenha os resultados pretendidos; a entidade
patronal, por seu lado, tenta desmobilizá-los e dividi-los, para que cada um funcione apenas como
um “eu”, se sinta isolado, vulnerável e se vire
para a sua pequena vidinha, ignorando o interesse geral. Os trabalhadores veem-se, por isto, obrigados a optar por um dos campos antagónicos — o sindicato ou a
empresa —, o que implica tomadas de posição de algum risco: fazer greve e arriscar-se a perseguições pela empresa, ou “furá-la” e enfrentar a ira dos colegas.
Anteriores companheiros e amigos podem ver-se assim transformados em adversários e, se não souberem gerir as respetivas ações e emoções, podem magoar-se mais do que esperavam.
Por
alguma mistura socioalquímica que nunca foi possível discernir, a greve que foi
marcada pelos sindicatos, esgotada a esperança de entendimento negocial, teve
uma adesão fortíssima, ao contrário das adesões medíocres de outras
paralisações anteriores. A empresa viu-se na iminência de não garantir a
laboração contínua e só o conseguiu pelo habitual aliciamento de alguns
trabalhadores mais vulneráveis, e também pelo concurso das chefias, que nessa
altura tiveram de mostrar que ainda sabiam “meter as mãos na massa”. Ainda
assim, a greve foi um êxito e foram conseguidas muitas das reivindicações dos
sindicatos.
De
regresso ao trabalho, havia um ambiente de regozijo geral, mas também de
ressentimento por quem, na prática, sabotara o esforço geral de adesão total à
greve. Os “fura-greves” foram olhados de lado e alguns ouviram o que não
queriam.
Amieiro, jovem delegado sindical, estava a aprender a lidar com o ingrato mundo da luta
sindical, a qual lhe parecia obscenamente desequilibrada para o lado do capital. Começava a perceber que, mais do que tudo, é preciso estar do lado
do mais frágil. Por isso, ao ser confidente de um desses seus colegas “amarelos” — o Fajeca
—, compreendeu e aceitou os seus argumentos de medo, porque, dizia, tinha sido
perseguido por fazer greve numa empresa onde tinha estado anteriormente.
Perante o rosto choroso do colega e o seu verdadeiro arrependimento, deu-lhe um
abraço sincero, sentindo que o caminho da vida não é linear.
Dez
anos mais tarde, aconteceu outra greve, desta vez às horas extraordinárias. O Amieiro
já não estava ligado aos sindicatos e já não via o Fajeca há muito, porque trabalhava
num setor da empresa que fora deslocalizado. Estava de serviço exatamente no local onde então era feito o
enchimento e preparava-se para cumprir a diretiva sindical:
à meia-noite, os aderentes deviam parar de trabalhar e abandonar o local de
trabalho. Uns dez minutos antes da hora marcada, viu entrar um grupo de chefes
intermédios para “a casa da máquina”. A empresa, não tendo certeza do
comportamento da equipa de serviço, prevenira-se com mão-de-obra circunstancial, mas fiel. Mas, o Amieiro
reparou também que, entre aquele grupo, pouco habituado ao manuseamento dos
complicados equipamentos da área dos enchidos, vinha uma cara bem conhecida, a
do Fajeca, técnico competente para operar a sofisticada máquina do enchimento
de chouriços.
Amieiro
ficou surpreendido, porque pensara que a lição de dez anos atrás fora
indelével. Relembrou o rosto lacrimejante, o abraço de perdão oferecido, o
passado enterrado, mas não ficou zangado, só um pouco desiludido. "Cesteiro que
faz um cesto…" Mais cínico, mais distanciado, estendeu a mão para o cumprimento,
enquanto saudava em tom exteriormente jovial:
—
Então, outra vez por cá?
Fajeca,
também sorridente, respondeu com uma qualquer trivialidade, convencido de que a
saudação se enquadrava nas dos encontros entre pessoas que não se veem há
tempos. Poucos segundos depois, porém, ao notar o sorriso sarcástico a escorrer
do rosto do Amieiro, apercebeu-se de que o “por cá” se referia à situação de
furar uma greve. Outra vez. Então, fechou o sorriso, corou, despediu-se
atabalhoadamente e incorporou-se no grupo de recém-chegados.
Amieiro
não soube se Fajeca ficou envergonhado por esta reincidência. Nem soube se ele fora
constrangido a sabotar a greve por sentimento de vulnerabilidade económica ou
se tinha escolhido o seu campo conscientemente. Refletiu sim que, se fosse
ainda delegado sindical — com o consequente dever ético de respeito pela atitude perante as lutas sindicais de todo e qualquer trabalhador —, não poderia, ou antes, não deveria ter cedido ao seu lado
sombrio, lançando aquela farpa verbal. E acabrunhou-se por tê-la achado saborosa.
* * *
Ilustração
de Rodolfo Bispo: https://www.facebook.com/rodolfo.bispo.77
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2 comentários:
Parabéns Bispo, até que me fez lembrar muita coisa...
Sabes que esses "eus" que não reconhecem o nós são os blocos com que "os donos disto tudo" fabricam as paredes que aprisionam e dividem sociedades, ao mesmo tempo que dão a entender a defesa intransigente dos direitos humanos.
http://dumoc-and-me.blogspot.pt/2010/12/homem-moderno-homem-do-milenium.html
Bom Natal
É isso, Carlos. Os "DDT" dispõem de meios de manipulação avassaladores. Que ao menos não pensem que conseguem confundir-nos. E vamos em frente, que "a Arte é o que nos liberta".
Abraço!
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