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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Desejo





Numa de suas brincadeiras de criança, o filho perguntou qual palavra achava mais bonita. Iria escrevê-la com seus cubos de madeira estampados por letras.
Nem precisou pensar:
− “Desejo” − respondeu. − “Desejo” é a palavra mais bonita.
É no desejo que tudo começa, pensou. É no desejo sexual, corporal e compartilhado, que começamos todos nós. Desejo de dois, de dois que nos fazem.
− Desejo é com “s”? – perguntou o filho.
− Isso, com “s” − respondeu.
Com s de seguindo. Seguindo, formando e reformando por conta de outros tantos desejos.
O desejo de brincar, de buscar carinho, colo. Aquele querer, querer, querer... Querer infantil, como se tudo existisse só para si, como se fossemos únicos no mundo.
Então o desejo de se espelhar, de ser como o pai, de ser como a mãe. De ser o super-homem da revista, a mulher-maravilha da televisão.
Com o tempo, o oposto: o desejo de firmar-se e então matar pai e mãe, rir dos super-heróis, desejar ser independente.
Em um dado momento, desejo de ter o que o outro tem, de ser visto, de ser tão bom quanto, de ser o melhor. 
Depois,  o desejo de ser apenas você, de encontrar alguém como você, de encontrar o seu lugar.
− “J” ou “g”? − quis saber.
− “J”, senão fica “desego”.
− E o que rima com desejo?
− Humm... ensejo, revejo, percevejo... – Fez cara de quem não sabia mais o que dizer.
− Não, mãe, sério...
− Sério, não sei mais o que rima com desejo.
Mentiu, sabia sim, mas o filho não entenderia ainda. Desejo rima também com mudança. Muda muito ao longo da vida. Muda a vida.
Era movida a desejos. Em toda sua abrangência. Desejava sempre, constantemente. Não sabia não desejar. Eram os desejos que a empurravam para a frente, que a faziam seguir, continuar vivendo, desejando.
Um baque repentino: a caixa de madeira cai no chão, espalhando os blocos para todos os lados.
Abaixou e ajudou o filho a recolhê-los. De relance, viu sua frase pronta, montada no parapeito da janela:

DESEJO  SAIR

− Aonde quer ir? – perguntou curiosa.
− Ah, sei lá, quero sair, não quero mais ficar em casa.
Nem eu, pensou.
− Me leva ao parquinho?
− Levo. Vamos lá.

Colocou os blocos de madeira sobre a mesa, ficariam ali, as letras vermelhas viradas para cima, à espera de mais desejos. 

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